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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.11 no.2 São Paulo fev. 2009

 

ARTIGOS

 

“Tarde demais para os deuses”: Três características de uma perspectiva ser–historial sobre a religião

 

To late for the “gods”: Three characteristics of a historial perspective be on religion

 

 

Claudia Drucker

 

 


RESUMO

Heidegger é mais lembrado hoje como o pensador da técnica e da longa noite indigente do niilismo, com boas razões. Uma visão sobre a religião pode ser derivada daí. Mais difícil de coadunar com a pergunta sobre a técnica, e com a perspectiva ser–historial sobre a religião que daí deriva, é a importância crucial da obra de Hölderlin para Heidegger. Nem Hölderlin é apenas um poeta que interdita a presença dos deuses entre nós, nem Heidegger é só o pensador da indigência técnica quando o interpreta.

Palavras–chave: Hölderlin, Indecisão, Topologia do ser, Virada ocidental.


ABSTRACT

Nowadays, Heidegger is most often remembered as the thinker of technique and of the long precarious night of nihilism, and with good reason. One might derive a view on religion from this standpoint, although hard to reconcile with the crucial role played by Hölderlin in Heidegger’s thinking. Hölderlin is not just a poet who denies the presence of gods among us, and Heidegger is not only the thinker of technical poverty when he reads him.

Keywords: Hölderlin, Indecisiveness, Topology of being, Western turn.


 

 

“Só um Deus pode nos salvar” é provavelmente a afirmação mais conhecida de Heidegger sobre a religião. Ela se encontra em uma entrevista concebida pelo entrevistado como um testamento. A entrevista dada à revista Der Spiegel em 1966 não gira, contudo, em torno de Deus ou da religião. Ao contrário, as perguntas do entrevistador visam, inicialmente, recolher a versão do entrevistado para o episódio da reitoria, que rapidamente desloca o eixo da conversa para o tema da técnica. O sentido do engajamento de 1933 seria que o nacional–socialismo pareceu, por um momento, ser a força capaz de contrapor–se à técnica, mas em vão. O movimento não estava à altura do confronto, e de fato talvez nunca tenha se proposto a isso. Tanto admiradores como críticos de Heidegger admitem que há aí uma dose de autointerpretação retrospectiva. “A pergunta sobre a técnica” é o título de uma conferência de 1953, e o tema da técnica, a rigor, não aparece de forma expressa antes das Conferências de Bremen, de 1949. Não há nem referência expressa ao problema da técnica nos textos heideggerianos de meados dos anos 1930, exceto por um comentário parentético em Introdução à metafísica, nem uma justificação para o engajamento a partir dele.

 

1. A religião como visão de mundo

Não é menos verdade, contudo, que pensamentos preliminares já se encontram nos escritos dos anos imediatamente posteriores ao engajamento. Tomemos o ensaio “A época das imagens de mundo”, cuja primeira versão data de 1938. Interessa–nos também por conter algumas declarações sobre o tema da religião. O ensaio começa pela enumeração de aspectos fundamentais da Idade Moderna (Neuzeit). Um deles é o desendeusamento, “que não designa o abandono puro e simples dos deuses”:

O desendeusamento é o processo duplo por meio do qual, por um lado, a imagem de mundo (Weltbild) se cristianiza, à medida que a base do mundo se cristaliza como o infinito, incondicionado e absoluto, enquanto, por outro lado, a cristandade troca o sentido do seu cristianismo pelo de uma visão de mundo (Weltanschauung) (a visão de mundo cristã). Assim, ela se torna adequada à época moderna. (Heidegger, 1980, p. 74)

O surgimento de uma imagem do mundo cristianizada é acompanhado do surgimento de uma visão de mundo cristã. Qual a relação entre as duas? De imediato, a expressão “imagem de mundo” traz à lembrança a noção diltheyana de visão de mundo. Da perspectiva historicista, a visão de mundo de um indivíduo é o ponto de encontro do puro conhecimento com os valores, das opiniões individuais com a herança da coletividade, da vida da consciência com a vida da vontade, dos processos puramente físicos do corpo humano com as vivências, que são atributos específicos de um espírito. Todos esses aspectos devem se fundir com certa coerência e moldar um determinado indivíduo que sempre pertence a seu tempo, e pode ao mesmo tempo modificá–lo. A visão de mundo, em termos diltheyanos, é como um amálgama de crenças e sentimentos que mediam toda relação dos indivíduos com seu mundo e consigo mesmos.

O historicismo é antimetafísico, pois considera o sujeito descrito pela metafísica exangue. Busca na Psicologia ou na Antropologia suas ciências fundantes, referidas ao sujeito corpóreo e historicamente situado. Elas investigam, a partir do indivíduo, o entrecruzamento de pressões naturais e históricas com o livre–arbítrio individual, para reconstituir o nascimento das suas crenças e atitudes. Dilthey e os grandes historiadores alemães do século XIX inegavelmente contribuíram para despertar entre os filósofos uma consciência histórica maior. No caso de Heidegger, serviu também para que ele declarasse insuficiente a compreensão historicista da história.

Há uma afinidade entre a visão heideggeriana e a husserliana do historicismo. Não é tanto o caráter cético ou relativista da mundivisão que preocupa Husserl, mas principalmente o caráter totalizante. A conferência de 1910 sobre a filosofia como ciência rigorosa opõe visão de mundo, ou cultura, como Husserl a chama, a conhecimento objetivo. A oposição não reside, sobretudo, no caráter incerto das verdades apenas contingentemente consensuais, mas precisamente na consistência e função fundante que lhes são atribuídas. A mundivisão tudo explica, e dela nada escapa, de tal modo que tampouco pode ser refutada ou superada. O relativismo é imperfectível; a seu modo, ergue uma pretensão ao absoluto. A visão de mundo não é apenas o domínio da opinião, mas talvez redunde em uma bolha isolante, se tal imagem é lícita para descrever um pensamento tão sóbrio, pelo qual os homens tornam o mundo compreensível, ao mesmo tempo em que filtram e traduzem todos os eventos nos termos um tanto redutores da sua visão de mundo.

A impressão do caráter opaco da mundivisão é posta aqui na conta de uma posição absoluta da vida empírica do espírito. Tentando fugir da posição naturalizada (“psicologismo”), o historicismo termina se lhe assemelhando. Para Heidegger, o historicismo também termina na rejeição de uma atitude especificamente filosófica em favor da investigação empírica – contudo, a exigência de onde o historicismo nasce não é empírica mas metafísica. Nem a Antropologia nem a Psicologia enquanto ciências primeiras explicam, por si sós, o caráter totalizante da visão de mundo. Ao contrário, pressupõem–no. Agir, sentir e pensar em termos de visão de mundo é uma característica dos homens desta época que a seguir projetam essa tendência sobre uma humanidade em geral, já que antropológica e psicologicamente somos iguais. Não há visão do mundo na Antiguidade, nem para o aborígene da Oceania e o esquimó da Polo Norte do globo – o que seria de se esperar, se a Antropologia e a Psicologia dessem a última palavra. O historicismo seria inconsciente de sua historicidade.

Esse ensaio é um bom exemplo da concepção de filosofia que caracteriza o período que, grosso modo, começa em 1936 ou 1937 – o período da chamada viravolta. O sentido do ser, tema de Ser e tempo, não mais pode ser interrogado sem levarmos em consideração o momento histórico em que se torna enunciável. A pergunta pelo sentido do ser se historiciza, pois o próprio ser é concebido historicamente. A história da essência é a história do seu encobrimento. A história do ser é a história da compreensão do ente como algo dotado de características próprias e objetivas, quando a objetividade simultaneamente mostra e encobre. Mostra o ente singular, encobrindo as relações espaciais e temporais que permitiram que ele se mostrasse. Heidegger não abre mão de falar em essências. A essência (Wesen) de algo não “é”, mas está (west) na história. Não apenas a essência se submete ao passar do tempo, mas o passar do tempo é o modo como a essência é o que é. Mas de maneira encoberta, no sentido em que já em Ser e tempo se afirmava que o fenômeno é precisamente aquilo que no mais das vezes e primeiramente se encobre. O homem, tal como conhecemos, não está pronto – e talvez nunca tenha estado – para levar expressamente em consideração a relação entre essência e história, preferindo tomar o partido de um ou de outro, negando um em favor do outro. A história do pensamento ocidental acontece nesse transe: ou o homem se fixa sobre o acontecido e esquece o acontecer, ou vice–versa.

Na Idade Moderna, encontram–se as duas tendências, embora a fixação de uma imagem objetiva do ente tenha a primazia. A mundivisão é a face mais visível desse evento, mas só seria possível com base no que Heidegger chama imagem de mundo. A imagem do mundo não é uma simples afiguração mas o próprio mundo. é, nesse contexto, outro modo de dizer “representação”, que é a palavra–chave para o pensamento moderno desde Descartes. Conceber o mundo como imagem não significa apenas que o ente é representado, mas sobretudo que ele está diante de nós de certa forma, “em tudo o que lhe pertence e em todas as suas conexões, como um sistema” (Heidegger, 1980, p. 87). Imagem é a representação apriorística que desde sempre já concebeu, definiu e reduziu toda novidade a um já sabido e concebido.

A representação do ente significa o próprio ente – enquanto representação. O que já não recebeu através do próprio representar o caráter de constância e permanência nem sequer poderia recebê–lo de outro modo: “representar significa pôr diante de si mesmo e de volta para si mesmo”. Através do representar, “o ente alcança a constância de um erguer–se, e assim recebe o selo de ser.” O que desde sempre já não é conhecido nos seus traços gerais nem sequer poderia ser encontrado concretamente no mundo. A grande transformação operada com o advento do pensamento cartesiano é que nem sequer se poderia perguntar nada sobre algo que já não seja um objeto. Há aí uma tomada de posição ontológica. Decerto, existe uma pergunta em Descartes sobre como provar a existência das coisas representadas. Mas trata–se de uma pergunta secundária. O aspecto ontológico do pensamento cartesiano não reside na pergunta pela existência. Tampouco o aspecto ontológico do kantismo, mais tarde, residirá na pergunta pela coisa–em–si. A pergunta pela coisa–em–si, ou seja, pelo que nunca é representado, é uma pergunta tardia, que ocorre quando a decisão fundamental do pensamento moderno já foi tomada. De fato, o que simplesmente existe, sem ter nenhuma relação com a consciência, de saída já não é. Só o objeto é, pois só ele pode sequer adentrar o horizonte da consciência. Descartes não recusa a investigação ontológica; ela a transforma. O que não é objeto não é – embora possa em algum sentido existir. A pergunta pela coisa–em–si – por um existente anterior e independente de qualquer relação com uma consciência – forçosamente se impõe a partir de agora. Mas esta não é a pergunta pelo ente e sua verdade, pois a sucede – assim como a verdade do ente é anterior e mais originária que a definição nominal da verdade como adequação. O que não está em relação com uma consciência especificamente enquanto objeto termina simplesmente alijado do cenário do mundo. Só o representável tem nitidez, ou seja, consistência o suficiente para figurar numa cadeia de raciocínio: “quando surge uma imagem de mundo, uma decisão essencial se consuma a respeito do ente em sua totalidade. O ser é buscado e encontrado na representabilidade do ente” (Heidegger, 1980, pp. 87–88).

A filosofia das mundivisões é, desse modo, apenas a justificativa sofisticada para o que já está em curso. A mundivisão só teria sido possível com o advento de uma mutação histórica do Ser. Nossa tendência ao fechamento dentro de sistemas totalizantes é em si mesma um acontecimento histórico que não se concebe de modo suficientemente adequado, mesmo quando exige que nosso ponto de vista seja histórico. Haveria certa continuidade entre a transformação do ente no representável é que a representabilidade é posta na conta de uma tendência antropológica, portanto obscurecendo do que realmente se trata. Contudo, não se reconhece como tal porque faz parte da própria mutação encobrir–se – no caso, apresentar–se como descoberta empírica. A filosofia é suprimida pelo historicismo, mas não superada. Que me seja permitida mais uma citação um tanto longa:

Descartes celebra seu maior triunfo com o advento da antropologia. A antropologia entabula o processo de transição da metafísica até o estágio do fim e exclusão de toda filosofia. A consequência intrínseca da posição antropológica de Dilthey é que ele nega a metafísica, não compreende mais a pergunta que está na base da metafísica e se opõe, desamparado, à lógica metafísica. Sua “filosofia da filosofia” é a forma ilustre de suprimir a filosofia, ao invés de superá–la. Por isso, a antropologia também tem, de fato, o privilégio de ver claramente o que é exigido pela sua própria afirmação, quando é de um tipo que se serve de toda a filosofia até hoje, ao mesmo tempo explicando a obsolescência de toda filosofia. Através dela, a situação espiritual se esclarece, enquanto elocubrações tão penosas e absurdas quanto as filosofias nacional–socialistas só produzem confusão. (Heidegger, 1980, p. 97)

De fato, a mundivisão é a base da ideologia. A ideologia, no sentido arendtiano de sistema fechado de crenças que subsume a priori todos os eventos, de fato não é um termo típico em Heidegger. Argumento ideológico, segundo Arendt, é aquele que, independentemente do seu conteúdo, apresenta–se como tão indiscutível como dois mais dois são quatro, criando um abrigo contra a realidade. Essa é exatamente a característica atribuída no ensaio heideggeriano à mundivisão, quando se nomeiam de forma inequívoca o racismo, o marxismo e a luta de morte entre ambos. As visões de mundo, por definição, excluem–se reciprocamente de tal modo que a imagem de mundo, convertida em organização técnica da humanidade, sempre sai vencedora. Essa luta de morte não é heraclitiana ou homérica – ela não desencobre mas encobre. Ela tem um caráter intrinsecamente nivelador: “no imperialismo planetário da humanidade tecnicamente organizada, o subjetivismo do homem atinge seu ápice, do alto do qual ele se precipitará sobre a planície da uniformidade organizada, para nela se instalar. Esta uniformidade se torna o instrumento mais seguro da dominação completa, porque técnica, da Terra” (Heidegger, 1980, p. 109).

Os aspectos mutuamente complementares e refletidos da época moderna tinham de implicar a religião. Embora as grandes ideologias em luta mortal nomeadas no texto sejam apenas o comunismo e o nazismo, o advento do fundamentalismo religioso já está claramente indicado. O cristianismo transforma–se em sistema de propaganda quando “a base do mundo se cristaliza como o infinito, incondicionado e absoluto”, de tal modo que é possível pela primeira vez uma visão de mundo cristã, capaz de rivalizar em pé de igualdade com todas as outras visões de mundo. Como visão de mundo, o cristianismo compete, a seu modo, com a corrida armamentista e com os movimentos revolucionários e totalitários espalhados pelo globo. é verdade que não assistimos agora ao surgimento de um fundamentalismo cristão consistente, mas as condições para tanto estão dadas, uma vez que, para o cristianismo, as alternativas são: tornar–se ou mais uma entre várias visões de mundo, ou uma atitude estética ou o objeto de uma análise psico–histórica. A religiosidade pode migrar para o território amorfo e estetizado da “vivência”, mas aí não tem compromisso nenhum com nada, nem impacto sobre a existência fáctica. Uma terceira faceta do desendeusamento é a transformação da religião em tema de estudo científico nos departamentos de História e Antropologia. A religião é só mais uma expressão histórico–cultural entre outras, que por sua vez também são niveladas entre si. O resultado é no mais das vezes uma crítica de fontes que mimetiza senão os procedimentos das ciências exatas da natureza, pelo menos a sua atitude objetiva e distanciada.

A religião, como todas as coisas e obras, é passível de ser capturada pela dissolução na trivialidade da essência moderna em processo de consumação. A religião cristã não se opõe à própria transformação em visão de mundo, e, uma vez que todas as visões de mundo resultam em reafirmação da dominação da técnica em nível planetário, não apontam para nenhum tipo de transição. Por isso é que a afirmação de 1966, bem como o ensaio de 1938, nem pertence a um contexto religioso nem sugere a importância da religião. Aqui, “Deus” equivale ao indecidível, ao que está complemente fora do horizonte. Este Deus é completamente imprevisível, indeterminado, intraduzível – e por isso mesmo inócuo e distante.

Do ponto de vista da história do ser, o historicismo corresponde ao capítulo em que a tendência ao fechamento ideológico é justificada e dignificada. Seu caráter totalizante traz a marca da sua origem: um evento dentro da própria história do ser. O historicismo seria inconsciente de sua historicidade, quando a historicidade é a do ser.

 

2. A perspectiva ser–historial sobre a religião

Sobretudo nos apêndices de “A época das imagens de mundo”, encontra–se o esboço de um pensamento ser–historial (seins–geschichtlich) sobre a religião. As características de um quadro puramente ser–historial para a consideração do tema da religião são: em primeiro lugar, referir–se exclusivamente ao cristianismo. O recurso frequente que Heidegger faz ao pensamento pré–socrático, como se ainda nos dissesse respeito em alguma medida, nunca é correspondido por um recurso à religião homérica – ou a qualquer outra. Em segundo lugar, é um quadro de consciência histórica exacerbada. O ambiente primeiramente hegeliano e depois historicista da cultura alemã afetou Heidegger, que entretém a hipótese de a religião ser um evento completamente capturado por uma ordem histórica. Da perspectiva ser–historial, não estão dadas as condições para uma religiosidade autêntica. O fundamental é compreender como chegamos até o instante e situação de indigência e precariedade (Not). Para isso, porém, é preciso adotar a perspectiva ser–historial.

A leitura que Heidegger faz de Hölderlin acrescenta elementos cruciais a essa perspectiva, e há de se considerar se o poeta pode ser interpretado como um precursor da perspectiva ser–historial. O curso sobre os hinos “Germânia” e “O Reno” data de 1934, portanto aproximadamente da mesma época de “A época das imagens de mundo”. Por que a predileção pelos hinos tardios? Hellingrath é o editor que primeiro se ocupou da publicação tão completa quanto possível dos hinos e elegias, até então postos de lado como frutos da loucura. Concordando com ele, Heidegger considera que Hölderlin alcançou aí a sua voz própria.

Os “deuses fugidios” são invocados no primeiro verso da segunda estrofe do hino “Germânia”. O mote dos deuses fugidios marca toda a leitura que Heidegger fará dessa obra, desde o primeiro curso sobre Hölderlin, de 1934. Aí se afirma que, hoje, a tentativa de viver autenticamente a religião é renúncia aos deuses. Mediante a renúncia a considerar Deus – como quer que seja concebido, não apenas o Deus cristão – presente entre nós, os homens enlutados podem vir a encontrar–se consigo mesmos e com o seu mundo. Só o luto, isto é, a admissão da fuga de Deus franqueia o espaço para a verdade. O luto é um afinamento básico (Grundstimmung). Esse “existencial” – conceito básico que esclarece o modo de ser de um ente que não tem propriedades objetivas – já nos foi apresentado em Ser e tempo. Somos de tal forma que primeiramente nosso destino é ligado ao das coisas que encontramos e nossa compreensão de nós mesmos depende das situações em que nos encontramos. O ser no mundo é mais original que o ser destacado do mundo, isto é, um indivíduo autossubsistente. Mais original que a consciência ou cognição de si mesmo e das coisas é o que Heidegger chama Stimmung ou afinamento no parágrafo 29 de Ser e tempo. De fato, como já observado, é característico do alemão que a mesma palavra dê conta do aspecto ao mesmo tempo objetivo e subjetivo. Em alemão, pode–se falar da Stimmung de uma paisagem, assim como da “minha Stimmung”, como nota Agamben; voltar–se–á à leitura que o pensador italiano faz do Hölderlin de Heidegger (Agamben, 1987, p. 12). Há uma indistinção das fronteiras entre externo e interno. Começamos a tomar pé nas situações de forma não consciente e direcionada a um objeto, mas pelo clima ou atmosfera em que nos encontramos. Do ponto de vista etimológico, a tradução por “afinamento” talvez seja a melhor, embora, do ponto de vista da linguagem cotidiana, “atmosfera” talvez seja preferível. Mas em português não se deve falar da “minha atmosfera”, e assim voltamos a traduzir Stimmungen por “afinamento”.

O afinamento não é apenas aquilo em que eu me encontro, mas é também a possibilidade de que algo em geral seja encontrado, daí o seu caráter mais originário frente à consciência, à emoção e à fala. A emoção não é um dos existenciais, como enfatiza Heidegger ao contrastar medo e angústia. Na famosa conferência “O que é metafísica?”, de 1929, a diferença entre afinamento e emoção é retomada, e a partir do mesmo tipo de afinamento: a angústia. A angústia, devidamente compreendida como afinamento e não como emoção, determina um “estar suspenso no nada”. Ergue–se uma súbita estranheza e distanciamento do ente em sua totalidade. O distanciamento, por outro lado, pode ser visto como a própria condição de um encontro do estar–aí com as coisas. A experiência especificamente humana está fundada nessa estranheza inicial, neste movimento de perda e recuperação. A partir deste fundo secreto, o estar–aí reconhece–se como suspenso no nada e por isso mesmo como transcendente. O estar suspenso no nada, a estranheza ou falta de familiaridade iniciais do estar–aí permitem também que algo como a compreensão em geral seja possível. Já estamos habituados a falar no espaço da consciência como extensão, mas a extensão não é produzida pela consciência. Se existe algo como um horizonte que abarca a totalidade da experiência, este é criado a partir de uma extensão.

Conforme a indistinção entre processos visada expressamente aqui, esse espaço de jogo não corresponde a uma dimensão íntima que duplicaria os eventos externos. Novamente, sublinha–se a diferença entre afinamentos e estados de alma e emoções. A emoção tem uma origem e objeto pontuais. O afinamento não tem origem nem objeto pontuais porque diz respeito à totalidade do estar–aí. Mas o afinamento tampouco tem a estrutura do representar–se algo. A análise do luto aqui não sublinha tanto a distinção entre afinamento e emoção como a diferença entre esta e o poder da representação. O luto não é só o oposto de uma relação representacional ou até mesmo emocional com os deuses; é a negação de qualquer definição possível:

O afinamento básico da opressão sagrada, enlutada e ao mesmo tempo disponível, e apenas ele, nos põe diante da fuga, do permanecer retirados e do advento dos deuses, mas não de tal forma que o ser dos deuses fosse re–presentado no afinamento básico. O afinamento não produz uma representação, mas ao contrário retira nosso estar–aí de uma relação afinada e definida com os deuses. (Heidegger, 1999, p. 140)

Assim, até mesmo os hinos de Hölderlin seriam elegias, já que até neles o luto seria a atmosfera ou afinamento determinante, ou a celebração não excluiria o luto. A volta ao passado não o recupera, mas o mantém distante. Implica o reconhecimento de uma distância entre o outrora – presença dos deuses – e o que já não é – quando os deuses permanecem fugidios. O luto, no caso, é um modo de o estar–aí contemporâneo reencontrar–se com o seu mundo, subtraindo–se à trivialidade. O estar–aí enlutado pela fuga dos deuses tal como descrito nos dois primeiros cursos sobre Hölderlin recusa–se a reviver os deuses artificialmente. Mas também preserva–os a distância, em vez de aniquilá–los. O afinamento fundamental nos arrebata da presença dos deuses, pois eles estão inacessíveis, e relança–nos em direção à Terra. O relançamento na direção da Terra não se dirige a nenhum ente específico no seu interior. Ele manifesta em geral o ente como tal. A abertura do mundo acontece como afinamento básico: “Esta abertura da manifestação do ente é tão originária que, em virtude da força do afinamento, nós somos instalados e conectados ao ente manifesto” (idem). Graças ao afinamento surge uma abertura do âmbito a partir do qual toda representação é possível, e comparada com o qual ela é sempre derivativa. O estar–aí franqueia diante de si uma extensão qualquer por ter sido capaz de preservar a distância dos deuses e ser, mediante o luto que a acompanha, devolvido à Terra. O luto é a experiência de uma perda, mas ao mesmo tempo uma experiência fundante de extensão.

Em Os hinos de Hölderlin: “Germânia” e “O Reno”, a análise do afinamento fundamental segue um caminho semelhante ao de Ser e tempo, e ao mesmo tempo invertido. O pensamento de Ser e tempo é invertido, já que aí é a dimensão futural a privilegiada. Aqui, é o deixar o passado ficar no passado que tem a primazia. O luto nos captura ou abstrai da familiaridade cotidiana, assim como nos devolve a ela sob o signo de uma perda consciente e sóbria. Ele tem a mesma função fundadora que o olhar para o futuro, em Ser e tempo. Ambos os afinamentos devolvem o estar–aí a seu lugar e momento, em vez de apenas mostrar coisas sem relações mútuas no espaço e no tempo, pois propriamente elas dependem daquela dimensão mais originária. Mas isso só acontece à medida que os deuses permanecem retirados (Ausbleiben). De fato, Heidegger reserva o verbo ausbleiben para uma ausência constitutiva do fenômeno, diferente da ausência negativa, ou seja, da supressão pura e simples.

Em linhas gerais, esta é a visão atribuída a Hölderlin: a recusa de um simples estado de indiferença, em prol de uma consciência trágica da impossibilidade de viver a religião como outrora. A possibilidade do seu novo advento não está excluída, mas tampouco está afirmada: ela está apenas guardada, encoberta e protegida em algum lugar. Nada parece impedir que a decisão sobre o advento dos deuses seja infinitamente adiada.

A visão ser–historial estaria próxima a uma visão sociológica? Há aqui um distanciamento também desta. Talvez a noção de desendeusamento seja uma resposta ao “desencantamento”, noção com que Max Weber descreve o mundo moderno (Weber, 2005, p. 396). A seu ver, as grandes religiões têm todas o mesmo traço racionalista de justificação do mundo. Já resultam de um afastamento considerável de estágios anteriores, “animistas” e “mágicos”. Enquanto o traço da mentalidade religiosa primitiva é a crença no seu poder de coerção dos espíritos, as grandes religiões trilham o caminho contrário e se aproximam das teodicéias posteriores. Todas empregam o trabalho intelectual de uma casta sacerdotal, e vão se afastando cada vez mais da crença no poder da magia. Há, portanto, modernização e racionalização da própria religião. Por teodicéia entende–se aqui não apenas uma justificação e defesa do mundo, mas também a promessa da salvação, sob certas condições. A religião tem uma relação cada vez mais mediada e distante com o sobrenatural, e aproxima–se de um código feito apenas por homens, mais ou menos como a moral. A magia cede lugar à religião justificadora do mundo e também pragmática. A religião racionalizada contempla especificamente os modos de atingir bens neste mundo também. Assim, passa–se da magia à religião, e desta ao estabelecimento de um código de comportamento meritório a ser recompensado.

Contudo, a sociologia da secularização é uma ciência empírica? Ou será antes uma filosofia da sociedade baseada na hipótese da secularização? Os analistas dos processos de modernização tomam uma decisão de princípio a respeito do Deus e dos deuses: a saber, que sua expulsão do mundo é definitiva. Tendem a considerar lineares os processos históricos, como se, de fato, o sobrenatural tivesse se ausentado do mundo e não houvesse um retorno possível. Aliás, o próprio nome “sobrenatural” já indica uma tomada de posição: uma linha divisória nítida entre natureza e divindade sempre existiu, sem que tivesse sido percebida, até o momento depois do qual já não pudesse mais ser apagada. Mas essa certeza, ao ver de Heidegger, é kantiana, e Kant é um metafísico, e só por isso um pensador da ciência. Por sua vez, Heidegger não nega nem afirma a existência de um componente sub, pré ou trans–histórico no mito e no culto, mas se pergunta qual o nosso modo de acesso a ele hoje. O momento histórico que caracteriza a época da técnica, do qual não há retorno fácil ou sequer possível, é de encobrimento profundo. Mas até mesmo falar em encobrimento é indicar a permanência de algo. O que fica resguardado “por baixo” desse encobrimento é indecidível. Assim, o silêncio distingue a perspectiva heideggeriana da sociológica, isto é, a perspectiva ser–historial da filosofia social.

Daí a diferença entre ateísmo, desendeusamento e indecisão. O ateísmo é um estado de “indiferença” a respeito de Deus – que pode até manifestar–se por meio da religiosidade contemporânea. O ateísmo é claramente considerado superficial, pois não estamos vivendo propriamente uma época de negação do divino. Seria antes uma época de perda que não é sequer sentida como tal – o “estado de indecisão sobre o Deus e os deuses”. O desendeusamento “não exclui a religiosidade”: “de fato, precisamente graças a ela a relação com os deuses se transmuta em vivência religiosa. A religiosidade que não admite o seu esgotamento é muito antes deletéria, na sua tentativa de decidir sobre o divino com instrumentos simplesmente humanos. Quando isso acontece, é porque os deuses fugiram” (Heidegger, 1980, pp. 109–110). Não há hoje como “franquear o espaço de decisão sobre se o ser será capaz, novamente, de um Deus”. O luto de Hölderlin exclui tanto o ateísmo, por não ser uma tomada de posição cognitiva ou pseudocognitiva, quanto o desendeusamento quando este se caracteriza pela tentativa de reviver artificialmente a fé.

De fato, o título desse artigo remete a um trecho do ensaio versejado “Desde a experiência do pensamento”: “Para os deuses vimos tarde demais e / cedo demais para o ser” (Heidegger, 2002, p. 76). E este verso por sua vez foi inspirado pelo verso da sétima estrofe da elegia “O pão e o vinho”, para muitos o momento inaugural da fase tardia da obra hölderlinana em vista de considerações formais e temáticas. Na tradução de Paulo Quintela (1997, p. 359):

Mas, amigo! viemos tarde demais. Decerto vivem os deuses,
Mas lá em cima, noutro mundo, por sobre as nossas cabeças.
Infindamente ali agem e pouco parece importar–lhes
Se nós vivemos ou não, tanto os Divinos nos poupam.

Assim, por último, de acordo com a perspectiva ser–historial, temos um quadro de renúncia aparente à vida religiosa, acompanhada de uma renúncia a qualquer tomada de posição. “Só um Deus pode nos salvar”, no que tem de episódica e de pouco representativa da obra de Heidegger, é uma declaração sintomática antes do silêncio do pensador sobre o tema do divino. é possível que o próprio Deus permaneça intocado, resguardado, encoberto. Para o homem histórico, a indecisão é uma “necessidade”, conforme precisamente resguarda a possibilidade do retorno. Na seção 44 de Contribuições à filosofia, menciona–se uma série de “decisões” que “parecem ser muitas e variadas”, embora se remetam todas a uma só: “se o ser [Seyn, como na grafia hölderliniana] se retirará definitivamente ou se este retiro, enquanto preservação para a primeira verdade, se tornará o outro começo da história” (1989, p. 91). Uma das decisões que remete à decisão principal é se “o desendeusamento do ente na cristianização da cultura celebra o seu triunfo ou se a necessidade da indecisão sobre a proximidade e distância dos deuses prepara um espaço de decisão” .

 

3. A hegemonia questionável da perspectiva ser–historial

Tudo isso significa também que o luto não é uma forma de religiosidade autêntica, e que não há língua capaz de dar conta de uma fé adequada aos dias de hoje? Não seria possível aqui avaliar todos os aspectos do problema da religião em Heidegger, embora, tendo chegado a este ponto, a perspectiva ser–historial pareça uma forma sutil de ateísmo, ainda que mais sutil que a da sociologia da secularização. Pareceria que Heidegger se manteve fiel à distinção radical entre fé e pensamento que marca a conferência de 1927 sobre a relação ente filosofia e teologia: a teologia é “absolutamente distinta” da filosofia, como aliás toda ciência é (Heidegger, 1976, p. 49). O conteúdo específico dos conceitos teológicos não pode ser alcançado filosoficamente, mas apenas mediante uma abordagem desconstruída do fenômeno da fé. Assim, a função da filosofia diante da teologia seria antes negativa, no sentido em que apenas indicaria um “corretivo ontológico” para as abordagens cristalizadas, objetivas, ônticas (Heidegger, 1976, p. 65). Não se trata só de afastamento da teologia, mas de exclusão das verdades da fé do domínio do pensamento.

Há boas razões para reduzir o pensamento inicial de Heidegger à irreligiosidade da conferência de 1927, bem como o seu pensamento tardio à perspectiva ser–historial. Mas a simplificação pode transformar em um enigma insolúvel a importância capital de Hölderlin a partir de 1934. O interesse de Heidegger por Hölderlin é um assunto ainda não esgotado, e um dos mais intrigantes, pois o poeta não se encaixa a contento dentro da perspectiva ser–historial esboçada no curso sobre “Germânia” e “O Reno”. Para Günter Figal, “a constelação dos pensamentos e temas básicos de Heidegger não mais se modificarão essencialmente” desde 1934 (p. 131). Ao contrário, mesmo quando mais tarde se fizer referência à “chegada” ou “vinda” dos deuses, trata–se sempre de preservar a distância entre eles e nós: “Os deuses chegam conforme se retiram, e isto constitui propriamente o ‘espaço de tempo da decisão’. Precisamente conforme permanece em aberto a pergunta ‘fuga ou chegada’, a fuga pode ser uma chegada... se for experimentada e suportada expressamente como fuga” (Figal, 2003, p. 140). A presença dos deuses é preservada pela observância da impossibilidade de torná–los nossos contemporâneos em qualquer sentido objetivo – assim como a sua chegada, de tal modo que talvez seja o mesmo evento, só que observado por ângulos diferentes.

Eis o que aqui foi chamado forma sutil de ateísmo por contraste com a rudeza da concepção secularizada que faz da morte de Deus um fato consumado e indiscutível. Numa veia não muito distante, Agamben refere–se à “ateologia poética” vigente desde Hölderlin (Agamben, 2005, p. 96). O ponto inaugural da ateologia poética encontrar–se–ia nos versos finais do poema “Vocação de poeta”: “E não são precisas armas nem manhas,/ Até que a falta de Deus o venha ajudar” (Quintela, 1997, p. 339). A ateologia poética implica uma descida em que o divino e humano migram, através da noite, até uma zona incerta e desprovida de sujeito, na qual “qualquer transcendência foi nivelada” (Agamben, 2005, p. 97). A prática poética é colorida pelo niilismo. Figuras de semideuses, como Dioniso, e outras criações “para–humanas e subdivinas” ocupam o lugar de configurações tradicionais (Agamben, 2005, p. 98). O leitor que vem acompanhando as publicações do pensador sabe que a sacralidade vem sendo definida como a exclusão de coisas e pessoas dos laços cotidianos, sem que se possa nem restitui–las nem, de fato, poupá–las. A consagração, para Agamben, não permite nenhuma passagem para o divino, pois é antes uma passagem para o abandono. Não me parece que, no itinerário agambeniano, Hölderlin ofereça uma inspiração relevante.

Decerto as configurações do divino já mudaram mais de uma vez. Já não é novidade, desde Hegel, afirmar que uma religião precisa pertencer a seu lugar e tempo. Assim, seria o caso de perguntarmo–nos se a figura do semideus, tão central em Hölderlin, expressa necessariamente uma renúncia ao divino (a “nivelação de qualquer transcendência”) ou antes outra forma de mediação entre a terra e o céu. O poeta da noite que resguarda a distância dos deuses idos é o mesmo que reafirma repetidamente que eles ainda vivem e hão decerto de “voltar no tempo certo”. A nona estrofe de “O pão e o vinho” encerra o hino com a menção ao “Filho, o Sírio”, que se torna presente mediante o pão e o vinho. O vinho é de Dioniso e o pão, embora seja “o fruto da terra, está abençoado pela luz”, isto é, pertence a Zeus, Pai e relâmpago. Não só o novo deus está presente, mas por seu intermédio também os antigos, mesmo que nós não saibamos ainda, porque não sabemos nem quem somos “até que o nosso Pai éter, por todos reconhecido, a todos pertença”.

Por mais difícil que seja a compreensão destes versos e dos hinos tardios como um todo, não é tão fácil suspeitar da fé de Hölderlin, nem da sua retomada do cristianismo, ainda que um cristianismo transformado pela longa meditação sobre os gregos antigos. A última palavra de Hölderlin, parece–me, caminha no sentido de um sincretismo – à falta de melhor nome – entre a religião da Antiguidade e o cristianismo. Estamos longe de um lamento sem matizes pelo fim do politeísmo, como se Cristo fosse um dos deuses em fuga ou estivesse de algum modo aquém dos deuses antigos.

De fato, uma característica dos hinos tardios – a começar por “O pão e o vinho” – é precisamente a chamada “virada ocidental”. De fato, Heidegger só tematiza ocasionalmente a tradução da Antígona de Sófocles, dedicando–lhe uma parte do curso de 1942 sobre “O Istro” (Heidegger, 1993). Todo o problema da relação entre Grécia e “Hespéria”, o extremo Ocidente, encontra nos hinos a sua formulação mais feliz. A obra anterior, o Hipérion, ainda não atingira o ponto em que a domiciliação se completa (Heidegger, 1996, p. 25 passim).1 A obra paralela (a tragédia inacabada A morte de Empédocles) e, já no período dos hinos e elegias, as traduções de Antígona e édipo rei, ainda não constituem uma tentativa de compreender a própria época e o próprio país de modo expresso. Heidegger escreve:

Hölderlin decerto mudou, mas não de direção. Ao mudar, encontrou pela primeira vez o que lhe era próprio e a que sempre se dedicara. Com esta mudança se transforma, de ponta a ponta, o saber da verdade da helenidade e da cristandade e “do Oriente”. (Heidegger, 1996, p. 90)

Teremos de nos contentar com o fato de ser este comentário apenas uma nota de pé de página no centro do ensaio que por sua vez está no centro da Explicações da poesia de Hölderlin. De qualquer forma, ele significa que o privilégio dado aos hinos agora é justificado de um modo que já não se esgota na análise do luto como afinamento fundamental. O sentido da virada ocidental permanece indeterminado e a determinar, mas indica, no mínimo, o atenuamento de qualquer oposição definitiva entre paganismo e cristianismo. Talvez indique a consciência, por parte de Heidegger, de que ver em Hölderlin um niilista ou um ateu exige que ignoremos toda a sua obra poética fora em favor de alguns versos.

Como compreender a inegável preocupação com o papel inaugural, fundador que Heidegger também atribui ao último Hölderlin? Pode ser feita uma leitura abertamente política da multiplicidade de preocupações que marca a longa relação de Heidegger com Hölderlin. A preferência pelos hinos tardios e elegias já foi entendida como ditada por um projeto ideológico ou por “sobredeterminação arquipolítica” (Cf. Lacoue–Labarthe, 1998, p. 4). O movimento do pensamento alemão sobre a Grécia desde fins do século XVIII, com raras exceções, é de construção de imagem a ser mimetizada de modo a obliterar diferenças. O tema recorrente de Lacoue–Labarthe é a denúncia da “mimese agonal” na cultura alemã, sua tentativa de moldar–se como herdeira da Grécia. As traduções hölderlinianas de Sófocles liberam nosso olhar de representações transmitidas sobre a Grécia, tornando o passado significativo pela via da insatisfação com imagens cristalizadas e tornando impossível a “arquipolítica”, isto é, o comprometimento com a edificação de um modelo que exclui a pluralidade de antemão. A referência expressa de Lacoue–Labarthe a Benjamin deveria, em justiça, ser acompanhada por um crédito semelhante concedido a Arendt. Mas a sobredeterminação não poderia ter a forma de uma superestimativa da importância da Revolução Francesa – como Pierre Bertaux já havido feito – e de Rousseau para a compreensão das reflexões sobre a tragédia? A importância dada por Lacoue–Labarthe ao “republicanismo” de Rousseau, em detrimento do viés ontoteológico ou histórico–ontológico parece pôr a poesia de Hölderlin a serviço de urgências imediatas (Lacoue–Labarthe, 1998, p. 66). Poderia recair no tipo de exigência de proveito contemporâneo imediato que Heidegger já havia rejeitado nas considerações preliminares ao curso de 1934 (Heidegger, 1993, p. 4). A relação entre a obra trágica e a hínica de Hölderlin, isto é, a relação entre poesia e virada ocidental, não pode ser convenientemente abordada aqui. Tampouco as implicações da introdução desse tema na interpretação de Heidegger. Ela não nos deixa esquecer que, assim como Hölderlin não é niilista, Heidegger não é apenas um pensador da desconstrução, mas também da fundação2

Uma das leituras mais equilibradas ainda parece ser a de Pöggeler, que prefere separar, como perspectivas distintas, a “história do ser” e a “topologia do ser”, embora cronologicamente e até nos mesmos textos elas caminhem juntas (Pöggeler, 1963, p. 294 ss.). “Topologia do ser”, além disso, é uma expressão introduzida precisamente no ensaio “Desde a experiência do pensamento”: “Mas o poetar pensante é, na verdade, a topologia do ser” (Heidegger, 2002, p. 84). Uma análise satisfatória da relação entre a perspectiva ser–historial e a topológica – se são independentes uma da outra, concorrentes ou complementares – demandaria a leitura das Explicações da poesia de Hölderlin. De passagem, pode–se dizer que poesia pensante pode mostrar ao pensador a “localização” do ser, ou seja, que o ser precisa de um lugar histórico para aceder à palavra. Não há ser sem pátria, nem pátria que não seja precedida pela experiência do exílio, e sempre tocada por tal experiência. O par conceitual encobrimento–desencobrimento é de certa forma substituído pelo par exílio–domiciliação, embora pareça ausente deste último a dialética descendente que aponta para o máximo de indigência. A tendência intrínseca para a queda no niilismo parece ausente na perspectiva topológica. A longa noite da indecisão adquire nuances.

 

Referências

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Agamben, G. (2005). Entäusserte Manier (A. Hiepko, Trans.). In Nymphae. Berlim: Merve.         [ Links ]

Figal, G. (2003). Martin Heidegger zur Einführung. Hamburgo: Junius.         [ Links ]

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Hördelin, F. (1997). In P. Quintela (Ed.), Traduções I (Obras completas de Paulo Quintela) (Vol. II). Lisboa: Calouste Gulbenkian.         [ Links ]

Husserl, E. (1910–11). Philosophie als strenge Wissenschaft. In P. M. e. F. A. Ellison (Ed.), Logos I. Notre Dame: University Press, 1981.

Lacoue–Laberthe, P. (1998). Métaphrasis – suivi de Lê théâtre de Hördelin. Paris: PUF.

Pöggler, O. (1963). Der Denkweg Martin Heideggers (Vol. Pöggeler, Otto 1963: Der Denkweg Martin Heideggers. Pfüllingen: Neske. ). Pfüllingen: Neske.         [ Links ]

Weber, M. (2005). Religionssoziologie. In Wirtschaft und Gesellschaft. Frankfurt/M.: Zweitausendeins.         [ Links ]

 

 

Enviado em 18/4/2008
Aprovado em 26/1/2009

 

 

1 “Domiciliação”: Heimischwerden. Heimisch significa “nativo”, “indígena” e sich heimisch fühlen, sein significam “sentir–se em casa”, “estar à vontade”. Heidegger opõe heimlich (“secreto”) a unheimlich, “estranho”, “não–familiar”, assim como aproxima heimisch e heimlich, escolhas que indicam o modo de a pátria ser, no início – i. é, encoberta. A pergunta central em torno do qual as Explicações da poesia de Hölderlin giram é: como vir tomar residência na terra natal? A terra natal, a pátria, o elemento nativo não se mostra imediatamente àquele que apenas nasceu aí, mas é descoberta mediante a exposição ao não–familiar. A casa e o nativo não se conheciam antes exposição ao e terrível mediante o desvio pelo estrangeiro – numa palavra, ao sagrado – que há de contribuir para a construção da casa própria como terra nativa que possa hospedar os deuses.
2 Mesmo que os especialistas o façam, alguém se encarregará de recorda–los. A reação francesa contemporânea a Heidegger pode ser vista como um caso de resistência retardatária ao nazismo, nascida tanto do incômodo justo e compreensível diante das posições do pensador alemão na primeira metade da década de 1930 quanto da evidência da colaboração com o invasor. Tal reação não é muito diferente, nesse sentido, daquela à exposição recente das fotografias de Paris sob a ocupação feitas por André Zucca, que mostrou o dia a dia sob a ocupação como aprazível, despreocupado e quase indiferente aos tanques e às estrelas amarelas.