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Crítica
4 de Julho de 2016   Epistemologia

Percepção

Robert Sekuler e Randolph Blake
Tradução de Pedro Galvão

1. A falibilidade da percepção

Durante séculos, os filósofos debateram o modo como os seres humanos podem conhecer o mundo exterior. Os seus argumentos reflectiram uma preocupação quanto à validade das experiências sensoriais. Embora a nossa concepção do mundo derive da informação dos nossos sentidos, poder-se-á confiar nesses sentidos para conhecer a verdade? Não poderemos estar iludidos em relação ao mundo? Talvez, como Platão sugeriu no Livro VII da República, sejamos como prisioneiros numa caverna, isolados do mundo de tal forma que só podemos ver uma sombra do mundo exterior.

Na verdade, as pessoas já sabem há muito tempo que os seus sentidos são falíveis. Ao compreenderem que a informação sensorial não era totalmente fidedigna, os filósofos tornaram-se cada vez mais cépticos quanto à nossa capacidade para conhecer o mundo tal como realmente é. Este cepticismo atingiu o seu ponto mais elevado durante o final do século XVII e o início do século XVIII. Durante essa época, o filósofo britânico John Locke fez uma observação crucial: a água de um recipiente pode parecer quente ou fria ao tacto, consoante o sítio em que a nossa mão acabou de estar. Se a nossa mão esteve em água fria, a água do recipiente parece quente; se a nossa mão esteve previamente em água quente, a água do recipiente parece fria. O frio ou calor aparentes da água não residem na própria água; são uma qualidade do estado do próprio sujeito. Já que, para si, algumas qualidades percebidas do mundo exterior pareciam mais subjectivas que outras, Locke distinguiu as qualidades primárias (qualidades reais, efectivamente presentes nos objectos) das qualidades secundárias (que resultam de um poder de um objecto para produzir várias sensações em nós). Entre as qualidades primárias contavam-se o volume, o número, o movimento e a forma dos objectos; entre as qualidades secundárias de Locke contavam-se a cor, som, gosto e cheiro dos objectos. De acordo com esta concepção, podemos acreditar que as qualidades primárias reflectem rigorosamente a natureza dos objectos do mundo real, mas devemos ser prudentes ou cépticos quanto se trata de confiar do mesmo modo nas qualidades secundárias.

Este cepticismo relativo à informação dos sentidos foi levado a grandes extremos por David Hume no Tratado da Natureza Humana. Hume rejeitou a distinção entre qualidades primárias e qualidades secundárias, banindo todas as experiências sensoriais para o domínio daquilo que é subjectivo e não é fiável. O pessimismo de Hume quanto à possibilidade de compreendermos alguma vez a percepção está bastante bem representado no seguinte comentário do seu Tratado:

Quanto àquelas impressões que surgem dos sentidos, a sua causa última é, na minha opinião, perfeitamente inexplicável pela razão humana, e será sempre impossível decidir sem margem para dúvidas se elas surgem imediatamente do objecto, se são produzidas pelo poder criador da mente ou se derivam do autor do nosso ser. (Livro I, Parte III, Secção V, p. 75)

Há boas razões, no entanto, para questionar este cepticismo humiano. À medida que o conhecimento dos nossos sentidos se aprofundou, acabámos por compreender que há processos que obedecem a leis que são responsáveis por coisas que antes pareciam caprichos sensoriais misteriosos. Imagina que pões óculos de sol coloridos. Se estes forem fortemente coloridos, vão mudar a aparência do mundo. Mas isto não é razão para considerar a visão inerentemente enganadora. Se compreenderes como os óculos de sol alteram a luz que atinge os teus olhos, e se compreenderes suficientemente a própria visão, serás capaz de explicar a mudança na aparência do mundo. Na verdade, os sentidos são efectivamente bastante fiáveis desde que saibamos o suficiente sobre o modo como operam. Podemos ser capazes, por exemplo, de pegar em qualquer par de óculos de sol e prever com bastante precisão o modo como o mundo parecerá através desses óculos. A investigação da percepção, segundo este ponto de vista, pode superar as dúvidas do cepticismo.

2. Realidade e aparência

Já que estamos a discutir atitudes sobre a relação entre percepção e realidade, esta é uma boa altura para introduzir um ponto de vista, o realismo ingénuo, que é frequente entre pessoas pouco informadas e estudantes que estão a começar a estudar a percepção. Segundo este ponto de vista, o mundo é sempre exactamente como aparece.

Um teste simples pode determinar se alguém é um realista ingénuo; se lhe perguntarmos “Por que te parece o mundo desta maneira?” o realista ingénuo responderá: “Porque o mundo é desta maneira”. Por outras palavras, as propriedades da experiência podem ser sempre completa e facilmente explicadas pelas propriedades do próprio mundo. Mas este ponto de vista simples sobre a percepção está errado, pois não pode explicar por que razão pessoas diferentes têm experiência do mesmo acontecimento ambiental de maneira diferente. E isso acontece. Sabe-se que as crianças não podem ver objectos pequenos que os adultos conseguem ver, sabe-se que os jovens adultos podem ouvir alguns sons que os adultos mais velhos não conseguem ouvir, e sabe-se que certas pessoas são completamente insensíveis a odores que outros cheiram sem qualquer problema. Estes factos colocam em questão o realismo ingénuo. Todos vivemos no mesmo mundo físico. Se o realismo ingénuo fosse um ponto de vista válido, os nossos mundos perceptivos não seriam idênticos?

No outro extremo do realismo ingénuo situa-se o idealismo subjectivo, o ponto de vista segundo o qual o mundo físico é inteiramente o produto da mente, uma ficção mental convincente. Geralmente associa-se esta posição filosófica ao filósofo irlandês George Berkeley, que resumiu a ideia na expressão “ser é perceber” [percepcionar]. Levada ao seu extremo, esta posição conduz ao solipsismo, a ideia de que só a nossa mente existe e de que todos os outros objectos do mundo são percepções da nossa mente. Pode ser divertido discutir esta posição com os amigos, mas ela é cientificamente estéril. Se não houvesse qualquer mundo em que existíssemos, não haveria qualquer razão para estudar a relação entre a percepção e esse mundo imaginário.

Depois de termos rejeitado o realismo ingénuo e o solipsismo, o que propomos quanto às relações entre as percepções humanas e o mundo real? Reconhecemos a existência do mundo real e afirmamos que a sua existência não depende de um observador. Ao mesmo tempo, reconhecemos a contribuição do próprio observador para o processo da percepção. A visão que o observador tem do mundo é necessariamente imprecisa, porque o sistema sensorial do observador limita a informação disponível ao mesmo tempo que aumenta essa informação.

Para mostrar com mais exactidão o que queremos dizer com a contribuição do observador, considere-se uma questão conhecida: “Será que uma árvore a cair na floresta produz algum som se não estiver ninguém por lá para ouvi-lo?” Segundo o solipsista, na ausência de um observador não existe qualquer árvore, floresta ou som. Mas, segundo o nosso ponto de vista, para além de a árvore a cair existir mesmo que nenhum observador esteja por perto, a sua queda criaria energia acústica na forma de ondas de pressão de ar. Mas isso constituiria som? Se o termo “som” corresponde a uma experiência perceptiva, então é óbvio que a árvore a cair não produz som. Para que a árvore produza som, é necessária a presença de um organismo com um sistema sensorial capaz de registar a energia acústica disponível. Mas mesmo isto não garante que a experiência resultante corresponda àquilo a que normalmente chamamos som. É concebível que o organismo presente não seja capaz de ouvir, por não ter ouvido, mas sinta a energia produzida pela árvore a cair (do mesmo modo que podemos sentir o vento a soprar de encontro à nossa pele). Para se qualificar como som, a energia tem de afectar os ouvidos de um ser humano ou de uma criatura com um sistema nervoso parecido com o do ser humano.

Resumindo, para compreender a percepção tão bem quanto possível, temos de estudar não só as propriedades do mundo físico, mas também as propriedades do observador.

Robert Sekuler e Randolph Blake
Perception, 3ª ed. (McGraw-Hill, Nova Iorque, 1994), pp. 8–11.
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ISSN 1749-8457