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15 de Março de 2011   Filosofia da ciência

Realismo e anti-realismo

Luiz Helvécio Marques Segundo
The Philosophy of Science
org. David Papineau
Oxford: Oxford University Press, 1996, 339 pp.

Os cientistas nos surpreendem freqüentemente: energia escura, bactérias que deram origem a complexos celulares, universo eterno, quarks e leptons, ar deflogisticado, éter, grávitons, e assim por diante. Muitas dessas coisas existem; algumas nunca existiram, e outras talvez nunca saibamos. É assim que funciona a ciência — no intuito de nos explicar como funciona o universo, os cientistas têm de postular (para não dizer inventar) certas entidades e certos mecanismos de funcionamento, e têm de usar raciocínios extremamente complexos. Além da boa vontade dos cientistas e do sucesso de muitas de suas teorias, quais são as razões que temos para crer que a ciência nos fornece uma imagem cada vez mais acurada e próxima da realidade? Que boas razões temos para acreditar que grande parte das entidades postuladas pela ciência existem? Estas são questões de interesse dos filósofos da ciência e estão no cerne dos artigos compilados por Papineau em The Philosophy of Science.

Mais especificamente, os artigos dessa coletânea centram-se num amplo debate na filosofia da ciência chamado realismo contra anti-realismo. Os realistas sustentam, grosso modo, que as melhores teorias científicas devem ser entendidas como relatos se não verdadeiros, pelo menos mais próximos da verdade tanto quanto possível, acerca de uma realidade física amplamente independente de nós; sustentam que a aceitação de uma teoria científica envolve o comprometimento com a existência de certas entidades e mecanismos inobserváveis que desempenham papéis explicativos centrais nas teorias. Já os anti-realistas sustentam que a aceitação e a excelência de uma teoria científica não precisam estar ligadas à sua descrição verdadeira ou aproximadamente verdadeira dos mecanismos inobserváveis da realidade — talvez tudo o que conte seja a sua capacidade para fornecer uma explicação razoável da realidade observável. Os anti-realistas podem também negar que precisemos fazer referência a uma realidade amplamente independente de nós e sustentar que tudo o que uma boa teoria científica precisa fazer é representar o mundo como ele nos é apresentado pelos sentidos.

Esta distinção entre realismo e anti-realismo é importante, pois pode gerar uma certa confusão, se não prestarmos atenção ao que estamos a defender ou rejeitar. E a fim de nos ajudar a evitar qualquer confusão, Papineau se deu ao trabalho de mapear conceitualmente os aspectos mais relevantes envolvidos nas posições realista e anti-realista, seus principais pressupostos e seus alcances. Esse mapeamento se encontra na introdução do volume e é de longe um dos textos mais esclarecedores sobre o debate realismo/anti-realismo na filosofia da ciência que já li. O restante da introdução não só apresenta de maneira lúcida e concisa o conteúdo dos treze artigos reimpressos na coletânea, como também fornece uma pequena introdução aos temas em causa.

Os artigos estão divididos de acordo com a posição assumida quanto ao realismo (ou anti-realismo). Os dois primeiros artigos, de autoria de Arthur Fine e Alan Musgrave, tratam da atitude que deveríamos ter com respeito às teorias científicas e como deveríamos entender o realismo científico (e o anti-realismo). Fine defende que podemos ser neutros em relação à tomada de posição entre realismo e anti-realismo, enquanto Musgrave o critica dizendo que a sua suposta neutralidade é um tipo de realismo (Papineau nos alerta para a diferença entre os significados de “realismo” presente nos dois artigos).

Os próximos três artigos dizem respeito à subdeterminação das teorias pelos dados, i.e., a idéia de que para quaisquer duas teorias científicas, se tiverem as mesmas conseqüências observacionais, nunca haverá indícios conclusivos a favor de uma em detrimento da outra. O artigo de Lawrence Sklar aponta as opções a serem escolhidas caso aceitemos a subdeterminação: o ceticismo, ou uma maneira de mostrar que é possível adotar uma teoria ao invés de outra, sem cair na arbitrariedade, ainda que as teorias sejam empiricamente equivalentes. Bas van Fraassen prefere a opção cética, argumentando que deveríamos evitar principalmente as teorias que fazem referência a entidades inobserváveis. Já Peter Lipton crê ser possível oferecer uma solução não cética ao problema da subdeterminação; defende a idéia de que há certas virtudes teóricas, como a simplicidade, a elegância e o poder unificador, que são indicadores da verdade de uma teoria — faz da teoria a melhor explicação para os dados disponíveis.

Supondo que o realista tenha parcialmente vencido o desafio da subdeterminação, há ainda recursos disponíveis ao anti-realista. Essa alternativa é apelar à metaindução pessimista: o argumento de que, uma vez que as nossas melhores teorias científicas do passado se revelaram falsas, não há razões para pensar que nossas melhores teorias atuais sejam verdadeiras — com o tempo também acabarão por se revelar falsas. O famoso artigo de Larry Laudan apresenta diversos casos de teorias científicas do passado, e.g., a teoria do flogisto, consideradas na altura empiricamente bem-sucedidas, mas que se revelaram falsas à luz das teorias posteriores. Laudan pretende com isso mostrar que o sucesso empírico de uma teoria não é suficiente para considerá-la verdadeira; além do mais, muito do sucesso empírico está ligado ao postular de entidades inexistentes. O artigo de John Worrall apresenta uma resposta a Laudan. Worrall tenta evitar a metaindução pessimista dizendo que deveríamos nos concentrar na estrutura da realidade inobservável e não nos comprometermos com qualquer afirmação sobre a natureza dessas entidades; essa é a posição conhecida como realismo estrutural.

Os três artigos seguintes dizem respeito às noções de verdade e racionalidade. São discutidas questões sobre a finalidade da ciência e o que podemos esperar de uma teoria. Brian Ellis defende uma concepção pragmática de verdade a fim de sustentar que a ciência pode nos fornecer uma descrição verdadeira da realidade (principalmente da parte inobservável). Considera dispensável a noção de realidade amplamente independente das normas racionais do pensamento humano, argumentando que deveríamos considerar como verdadeiras aquelas teorias que estaríamos obrigados a aceitar racionalmente dados todos os indícios disponíveis. Desse modo, Ellis considera ter mostrado por que as teorias virtuosas são provavelmente mais verdadeiras. Laudan, em mais uma contribuição para a coletânea, oferece uma perspectiva diferente sobre como superar o hiato entre a virtude teórica e a finalidade da ciência. Ao considerar as metodologias dos cientistas em função da finalidade da ciência, Laudan sugere que as metodologias corretas sejam aquelas que atinjam melhor a finalidade da ciência. Daí não se segue que tenhamos de considerar que uma teoria é verdadeira só porque se revelou bem-sucedida. Mas Boyd, em seu artigo, defende que sim. Tal como Laudan, Boyd recolhe indícios empíricos dos sucessos da ciência e faz uma metainferência: a melhor explicação do sucesso previsivo da ciência é que na maioria das vezes a ciência conduz à verdade.

A probabilidade e a teoria da confirmação são objeto dos artigos de Clark Glymour e Wesley Salmon. É um tanto esquisita a inclusão desses artigos na coletânea, pois até esse ponto toda a discussão versou sobre questões relacionadas diretamente com o debate realismo/anti-realismo, e esses dois artigos são sobre a interpretação das probabilidades. Talvez se enquadrassem melhor numa coletânea sobre a explicação científica. Mas isso não é tão mau assim, já que de uma maneira ou de outra os artigos anteriores trataram da aceitação de teorias, e muitos tiveram em consideração o poder explicativo das teorias como critério relevante para considerar que uma teoria é bem-sucedida ou não.

O último artigo, de Nancy Cartwright, trata da maneira como devemos entender as leis científicas. Ela argumenta, a partir de uma posição denominada realismo de entidade, que ainda que tenhamos razões para sermos realistas quanto às leis científicas, disso não se segue que tenhamos de ser fundamentalistas, i.e., não se segue que tenhamos de sustentar a perspectiva de que as leis da física valem universalmente sem restrições e que regem todos os fenômenos.

Seja-me permitido voltar à introdução do volume. Papineau nos dá aí uma boa noção do que aconteceu na filosofia da ciência depois das eras positivista e pós-positiva (ou histórica); frisa alguns aspectos em que a filosofia positivista da ciência foi corrigida pela abordagem histórica e naturalista, e também os exageros historicistas a serem evitados. Em suma, após a leitura da introdução, o leitor ficará com uma noção razoável de uma parte importante da prática da filosofia da ciência produzida após a segunda metade do século XX.

No final do volume é oferecida uma bibliografia, compilada com Stathis Psillos, contendo leituras adicionais sobre todos os temas tratados no volume, incluindo a epistemologia naturalizada e a sociologia da ciência.

A maioria dos artigos reimpressos nessa coletânea foi publicada originalmente em alguns dos principais periódicos de filosofia como a Philosophical Quaterly, Journal of Philosophy, Proceedings of the Aristotelian Society e outros. Muitos foram também reimpressos em noutras coletâneas. No geral, são artigos importantes para o debate realismo/anti-realismo na filosofia da ciência e devem ser estudados por todos os interessados em filosofia da ciência. Conhecê-los é condição sine qua non para quem pretender oferecer qualquer tipo de contribuição à discussão, ou sequer saber o que se discute hoje nesta área.

Luiz Helvécio Marques Segundo

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