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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.4 n.2 São Paulo dez. 2002

 

TRADUÇÃO

 

O sonho e a existência1

 

Dreaming and existing

 

 

Ludwig Binswanger

 

 

I

"É preciso ater-se, sobretudo, ao que significa ser um homem."
Kierkegaard

 

Quando, no meio de uma entrega ou expectativa apaixonada, o esperado subitamente nos decepciona, e o mundo se torna tão "outro", a ponto de nos desenraizar totalmente roubando nosso chão, então, mais tarde, após termos reencontrado um apoio firme, voltamos em pensamento a esses instantes, dizendo: "Caímos dos céus como que atingidos por um raio". É de fato através de tais palavras que expressamos a experiência vivida de nossa decepção e de nosso desconcerto, através de uma metáfora poética, de modo algum produzida pela imaginação de um poeta qualquer, mas brotando da pátria espiritual que pertence a todos nós: a linguagem. Pois a linguagem é aquilo que, para todos nós, "poetiza e pensa", bem antes do próprio indivíduo começar a poetizar e pensar. Mas qual seria o propósito desta "comparação poética"? Teríamos aqui simplesmente uma analogia, no sentido da lógica, ou uma metáfora imagética, no sentido da teoria poética? Tal interpretação nos faria passar ao lado da essência mais íntima da comparação poética, pois esta se encontra ainda por trás daquilo que a lógica e a teoria da expressão poética podem desvelar. Esse caráter essencial repousa nas mais profundas estruturas de nossa existência, ali onde toda forma espiritual viva e conteúdo espiritual vivo, ainda unidos, aguardam o raio abrasador que irá separá-los. Quando uma decepção súbita faz-nos "cair dos céus", nós realmente caímos, mas isto não é uma queda puramente corpórea, nem nada que seja (analógica ou metaforicamente) sua imitação ou derivação; podemos dizer, de modo mais exato, que a essência dessa decepção súbita e desse terror, não é senão o fato de a harmonia com o mundo exterior e com o mundo do outro, harmonia que até então fora nossa sustentação, ter recebido tal impacto que a fez vacilar. Num tal instante, nossa existência é realmente afetada, arrancada de seu apoio sustentador no mundo e jogada de volta a ela mesma. Até encontrarmos novamente um ponto de apoio firme no mundo, toda nossa existência irá se situar na direção de sentido que é a do tropeço, do afundamento, da queda. Se chamamos de forma essa direção geral de sentido, e de conteúdo o súbito terror, veremos que ainda aqui ambos são apenas um.

Somente aquele que considera o homem por um único ângulo e não em sua totalidade, como faz o biólogo - pois ser homem é mais que viver -, irá dizer que essa direção de alto para baixo, ou seja, a queda, funda-se puramente na estrutura viva do organismo, pois no caso de um medo súbito, estaria se manifestando uma perda de tônus ou de tensão de nossa musculatura estriada, o que provocaria um estado de maior ou menor fraqueza; assim, a linguagem emprestaria seus conteúdos desse modelo puramente corpóreo. Se nos ativéssemos a essa concepção, a expressão "cair dos céus" seria uma transposição puramente analógica ou metafórica de um fato da esfera somática para a esfera da psique, onde constituiria uma simples forma de expressão imagética, sem conteúdo ou substância, uma simples façon de parler.2

A teoria da expressão de Klages vai mais longe; embora acentue a unidade da psique e do corpo vivo, ele defende a hipótese de que "o psíquico", em conformidade com nossa organização psicofísica, manifesta-se sempre sob uma forma determinada da esfera sensível-espacial: uma psique fraca irá se expressar na falta de firmeza da caligrafia, enquanto o orgulho se revela num porte altivo. Visto que o psíquico aparece dessa maneira, a linguagem, para designar as qualidades e processos psíquicos, emprega toda uma série de expressões retiradas da esfera espacial-sensível. Essa concepção não deixa de ser bastante sedutora, mas pressupõe que adotemos a tese fundamental da teoria da expressão de Klages, que faz do corpo vivo a manifestação da psique, e da psique o sentido do corpo vivo. Não compartilho tal concepção teórica.

Concordo com a teoria da significação de Husserl e Heidegger, que Löwith teve o grande mérito de aplicar, pela primeira vez, a nosso problema particular da linguagem. Se, empregando termos idênticos, falamos de uma torre alta ou baixa, de um tom alto ou baixo, de uma moral alta ou baixa, de um ânimo alto ou deprimido, não se trata absolutamente de transposição verbal de uma esfera de ser a uma outra esfera, mas sim de uma direção geral de sentido que se estende igualmente às diferentes esferas regionais, ou seja, que aí toma sentidos diferentes (espacial, acústico, espiritual, psíquico etc.). É também dessa maneira que o afundamento ou a queda representa uma direção geral de sentido do alto para baixo: esta direção toma, "para" nosso Dasein, uma significação existencial particular, segundo "o existencial ontológico", no caso, o existencial desdistanciador e orientador da espacialidade, o do ser lançado da tonalidade afetiva3 e o da interpretação do compreender. No caso de uma decepção súbita, se caímos como que do céu ou das nuvens, isso não ocorre porque, como disse Wundt, a decepção ou o terror representariam um "afeto astênico", que se manifesta como uma ameaça para a postura ereta do corpo, como uma vacilação, um tropeço ou queda corpóreos que serviriam, para a linguagem, de modelo corpóreo real, para a produção de uma imagem poética na fantasia. Ao contrário, é a linguagem que vai, espontaneamente, recolher, nessa pretensa comparação, um traço essen-cial, específico da estrutura ontológica do ser humano, ou seja, o poder dirigir-se de alto para baixo, descrevendo-o, conseqüentemente, como uma queda. Para isso não há qualquer necessidade de se recorrer ao afeto astênico e sua expressão corporal. Seria melhor tentar explicar por que a decepção possui um caráter astênico: ou seja, aqui, de fato, nossa existência total não repousa mais em pernas "firmes", mas "fracas", e nem mesmo consegue manter-se em pé; é pelo fato de sua harmonia com o mundo ter sido rompida que o chão foge de seus pés e ela começa a flutuar. Essa flutuação de nossa existência não implica necessariamente numa direção para baixo, podendo também significar uma liberação ou uma possibilidade de subida; mas, se a decepção perdurar enquanto tal, não iremos continuar a flutuar, mas começaremos a vacilar, a afundar e a cair. Essa estrutura ontológica essencial é a fonte que abastece a linguagem, a imaginação poética e, sobretudo, o sonho.

Ainda pouco presente entre os psicólogos e os psiquiatras, nosso modo de reflexão tem, no entanto, assumido uma forma cada vez mais distintamente reconhecível na tendência filosófica já nomeada; é com ele que enfrentamos o mais difícil dentre os difíceis problemas de nossa época, ou seja, a relação entre a psique e o corpo vivo. E isso sem ter, de forma alguma, a intenção de resolvê-lo, mas para extraí-lo de suas antigas molduras, metafísicas e religiosas, e de suas formulações particulares, tais como ação recíproca, paralelismo e identidade, fazendo ver que se trata de uma questão mal formulada. Assim, teremos caminho livre para progredir na solução de problemas específicos da antropologia, objeto de nosso presente estudo. E se, na decepção, caímos das nuvens ou dos céus, isso, por sua vez, tem seu fundamento natural noutras relações, materiais e essenciais, captadas pela linguagem; do mesmo modo, quando dizemos que nossa visão se encontra "enevoada" pelas esperanças, desejos, expectativas apaixonadas ou, então, que na felicidade nos sentimos "como no céu"; no entanto, a própria queda e, naturalmente, seu contrário, a ascensão, não se prestam a outras deduções: aqui, ontologicamente falando, tocamos o fundamento.

Esse mesmo fundamento de queda e de ascensão do nosso Dasein também suporta todas as representações religiosas míticas e poéticas, de ascensão do espírito até o peso terrestre do corpo. Lembremos apenas de Schiller e de sua maravilhosa imagem da transfiguração de Hércules:

Feliz com esse novo e estranho flutuar
Ele flui para cima
E, da vida terrestre, o pesado sonho
Afunda, afunda, afunda.

A obrigação de definir esse Nós que se eleva na felicidade de sua existência, ou que cai na infelicidade, põe-nos diante de um cruel embaraço e, caso fosse objetado que esse Nós representa precisamente os homens, não colocando assim qualquer problema, teríamos que responder que é exatamente aí que toda questão científica encontra seu ponto de partida. Pois, nenhuma época, e ainda menos a nossa, conseguiu dar resposta à questão: nós, os homens, quem e o que somos? Hoje, encontramo-nos, mais uma vez, no começo de uma nova pergunta sobre este Nós. Aqui, também, a poesia, o mito e o sonho deram melhores respostas que a ciência e a filosofia, pois sabiam, pelo menos, uma coisa: que esse Nós, como sujeito do Dasein, não se mostra abertamente, mas, ao contrário, gosta de se esconder "sob mil formas"; e uma outra coisa: que esse sujeito não pode, em nenhum caso, ser identificado ao corpo individual e à sua forma exterior. A fim de permanecerem nos limites de uma estrutura parcial, ou seja, de que somos um Dasein que ascende e cai, os poetas sempre souberam que era perfeitamente indiferente se expressássemos esse sujeito, o "Quem" desse Dasein, por nossa forma corporal, um membro dessa forma, uma posse ou, ainda, por qualquer coisa mediante a qual estamos no mundo, sempre que tudo isso pudesse expressar, de alguma maneira, o ascender ou o cair. Não se pode responder à questão, referente ao Quem de nosso Dasein, com o auxílio de qualquer forma particular que seja dada por nossos sentidos, pois esta permanece inessencial: a resposta será dada, ao contrário, por um momento qualquer que possa servir de sujeito ao momento estrutural particular - aqui, a ascensão ou a queda - mesmo que esse sujeito, em sua forma sensível, apareça como estranho, exterior. Apesar disso, eu permaneço sendo o sujeito primordial daquilo que ascende e cai. Sobre esses vislumbres ontológicos corretos funda-se um valor de verdade e uma grande parte da eficácia da representação do sujeito do Dasein no mito, na religião e na poesia. Abordarei, portanto, o meu tema considerando simultaneamente a representação do sujeito da queda e do desabamento ou afundamento. Quando o pintor Nolten,4 num estado de desespero mortal, que fez sua fúria voltar-se contra si mesmo, recebe de boca venerada uma censura que o "humilha" e que, subitamente, o congela na "mais cruel experiência", o poeta irá, nesse momento, abandonar a descrição imediata do estado psíquico de seu herói, para dirigir-se diretamente ao leitor que, com a respiração suspensa, o escuta: "(nesse estado), de repente, um silêncio mortal irá se produzir, e você verá seu próprio sofrimento, como uma ave de rapina atingida por um raio no mais alto de seu soberbo vôo, e que cai lentamente dos ares, semimorta, deitar-se a seus pés". Aqui, não é mais a linguagem que cria enquanto tal, mas apenas o poeta, embora ele tome de empréstimo, da linguagem em geral, o traço essencial da queda, exatamente como esta o tomou da essência do ser humano. E é só desse fundo que seria possível explicar o fato dessa comparação "pegar" o leitor imediatamente, de agir sobre ele, e ele mal notar que se trata de uma comparação, mas, pelo contrário, escutar com a convicção: "é de mim que se trata; eu sou (ou poderia ser, o que aqui é equivalente) esta ave de rapina mortalmente ferida".

Aqui, já nos encontramos no próprio umbral do sonho; mas, da mesma forma, tudo o que dissemos até aqui poderia ser relacionado, palavra por palavra, ao sonho que, em suma, nada é senão um modo particular do ser humano.

Na comparação mencionada, foi minha própria dor, e, portanto, algo vinculado a mim, que me é interior, uma "parte" de mim mesmo, que se tornou a ave de rapina ferida. E, assim, começa a personificação dramática que também conhecemos como o meio de representação principal do sonho: isolado, solitário, "Eu" não caio mais das nuvens na minha dor, mas é minha própria dor, enquanto uma segunda pessoa dramática, que cai a meus pés. A expressão mais eloqüente desse fato é que, em certas circunstâncias, eu possa muito bem cair do céu e, no entanto, permanecer de pé no chão, do ponto de vista meramente corporal, e, na auto-observação, assistir à minha própria queda. Se, na poesia moderna ou clássica, nos sonhos e mitos de todos os tempos e povos, encontramos sempre a águia e o falcão, o milhafre ou o abutre como a personificação não somente de nossa ascensão e de nossa vontade nostálgica de nos elevar, mas também de nosso Dasein cadente, isso mostra apenas que a determinação, em termos de ascensão ou queda, constitui um traço essencial da nossa existência. Além disso, esse traço fundamental não deve ser confundido com a vontade consciente orientada para o fim de se elevar, ou com o medo consciente da queda, que não são senão reflexos, na consciência, desse traço fundamental. Não, a ascensão e a meta concreta da ascensão, para nos atermos a esse ponto, são aqui essencialmente irrefletidas. Do mesmo modo, a frase de Cromwell é objetivamente válida para o pequeno número daqueles por meio dos quais a humanidade se perpetua: ninguém, disse ele, sobe mais alto "do que aquele que não sabe aonde vai".

É exatamente esse momento irrefletido ou, como diz a psicanálise, esse momento inconsciente, que tanto nos "toca" na presença da ave de rapina que se eleva e traça, acima de nós, seus calmos círculos nas alturas do longínquo azul:

E toda via em cada um é inato
Que acima e avante o leve o sentimento,
Se sobre nós no espaço azul perdida
Entoa a cotovia o canto agudo,
Se sobre os pinheirais de altivas rochas
Paira a águia estendida, e por lagoas
Ou por plainos o grau regressa à pátria.

(Goethe, J. W., Fausto, verso 1120 e ss. Tradução de Agostinho D'Ornellas)

Baseando-se nesse "inatismo", todas as comparações com águias e pássaros, assim como todas as expressões autênticas do Dasein, não somente trazem um esclarecimento ou um complemento formal, mas permitem, também, um aprofundamento substancial. Usando mais uma vez um exemplo poético, lembremos como Mörike utiliza a comparação da águia para marcar a felicidade irrefletida do amor que se eleva e teme a queda:

A águia tenta alcançar o sem limite
Seu olhar se embebece de dourado cintilante
Ela não é louca a ponto de perguntar
Se sua cabeça irá chocar-se contra a abóboda celeste
E o amor, será que ele não deve ser comparado com a águia?
O amor tem medo, mas seu medo lhe é sagrado
O que é toda sua felicidade, senão a ousadia infinita?

Nos sonhos, o vôo e a queda aparecem freqüentemente, como é bem conhecido, como a flutuação e o afundamento de nossa forma corporal própria. Esses sonhos de vôo ou de queda são relacionados seja a estados somáticos, particularmente à respiração - caso em que seriam ligados aos sonhos supostamente associados a estimulações somáticas -, seja a tonalidades afetivas eróticas ou desejos puramente sexuais. As duas coisas são possíveis, e não podemos contestar nenhuma das duas hipóteses, pois, na nossa concepção, trata-se de descobrir uma estrutura a priori que recebe seu preenchimento especial e secundário, tanto pela excitação corpórea e pelo esquema corpóreo em geral, como pela tematização erótico-sexual. É somente com respeito a esses preenchimentos que devemos trazer a prova de um motivo definitivo, extraído da biografia exterior ou íntima do sonhador, para que possamos compreender por que, nesse momento preciso, manifesta-se esse preenchimento determinado; buscando, por exemplo, a razão por que o sonhador, nesse instante determinado, concentra toda sua atenção na respiração, porque, precisamente agora, ele experimenta desejos sexuais ou temores, etc. Só, então, um tal sonho pode ser compreendido psicologicamente. Se o desejo ou o temor dissimulam-se sob um segundo ou terceiro personagem (ou um drama entre os animais), é necessário, para a compreensão psicológica, remeter traduzindo, minuciosamente, cada uma das figuras, humana ou animal, às diferentes aspirações psíquicas. Analisamos biograficamente e em detalhe5 um sonho desse tipo, no qual o conflito psíquico é representado pelo ataque de uma águia que se precipita sobre uma marta, tranqüilamente enrodilhada em seu canto, e pelo rapto desta pela ave de rapina que se afasta voando. Vou citar aqui o sonho de uma de minhas pacientes, mais simples, mas absolutamente comparável, e que representa um pensamento de morte e de amor. Não irei, entretanto, analisá-lo, pois isso nos levaria a desdobramentos não pertinentes:

Diante de meus olhos, uma ave de rapina lança-se sobre uma pomba branca, fere-a na cabeça e depois voa, carregando-a. Eu começo a perseguir o animal gritando e batendo com as mãos, e depois de uma longa caçada, consigo fazê-lo largar sua presa. Ao recolher a pomba do chão constato, para minha grande tristeza, que ela já está morta.

Enquanto no exemplo do pintor Nolten, o Dasein, que se eleva e cai, encontrava seu preenchimento imagético na ave de rapina atingida por um raio, aqui, assim como no sonho da águia e da marta, aparece o combate de duas criaturas, uma das quais apresenta a parte que se eleva vitoriosa e a outra, que é derrotada e cadente. Como no exemplo de Nolten, em que o homem, paralisado, congelado pela dor da decepção, vê a ave de rapina que morre cair abatida a seus pés, também nossa sonhadora vê no chão a pomba morta. Para a interpretação do sonho é indiferente que o drama desenrolado no mortal silêncio da alma se dê através do papel da pessoa do próprio sonhador, ou em um, dois ou vários papéis acessórios além do da sua pessoa, ou ainda unicamente em tais papéis acessórios derivados. O tema que o Dasein se proporciona no sono e, portanto, o "conteúdo" do drama, representa o elemento importante e decisivo; quanto à distribuição dos papéis, ela seria apenas, em comparação, acidental e acessória. Muitas vezes, a decepção da vida em descensão assume seu peso na imagem de uma soberba ave de rapina, que, morta, transforma-se num objeto sem valor, ou ainda, que é depenado e jogado fora. No segundo volume de sua biografia de Gottfried Keller, Ermatinger reconstitui dois sonhos do biografado a partir dos diários íntimos do mesmo, os quais ilustram o que acabamos de dizer.

Primeiro sonho
10 de janeiro de 1848

Na noite passada, eu estava em Glattfelden. O rio Glatt, reluzente, corria diante da casa num feliz rumorejar; mas eu o assistia correr numa distância quase inalcançável pela vista, mais distante do que efetivamente era. Estávamos em frente à janela, que dava para a pradaria, quando uma poderosa águia começa a voar através do vale, afastando-se e depois retornando. Quando ela pára em cima da colina e pousa num pinheiro corroído pelo tempo, meu coração começou a bater de um modo estranho. Acho que sentia essa comovente alegria por estar vendo pela primeira vez uma águia planar em liberdade total. Ela se aproximou voando bem perto de nossa janela e então percebemos que ela tinha uma coroa sobre a cabeça e que suas asas e suas penas eram chanfradas de modo bizarro e pontiagudo, como nos ornamentos dos brasões. Meu tio e eu nos precipitamos para agarrar os fuzis pendurados na parede e nos postamos atrás das portas. O pássaro gigante entrou realmente pela janela e preencheu todo o cômodo com sua envergadura; atiramos, e, no chão, em vez da águia, vemos um monte de pedaços de papel rasgados e enegrecidos, o que muito nos irritou.

Segundo sonho
3 de dezembro

Nesta noite, sonhei com um milhafre. Eu estava numa casa, de onde olhava pela janela; os vizinhos estavam no pátio com seus filhos. Então, um milhafre muito grande, um animal magnífico, aproxima-se voando por cima dos telhados. Na realidade, ele apenas planava, pois suas asas estavam dobradas e ele parecia faminto e exausto, enquanto caía cada vez mais, tentando penosamente reerguer seu vôo, mas sem nunca conseguir atingir novamente o ponto que deixara. Os vizinhos e seus filhos gritavam, fazendo um grande estardalhaço e, impacientemente, jogavam os bonés para o alto em sua direção para fazê-lo cair completamente. Ele olha para mim e, subindo e descendo, parece querer se aproximar. Eu corro para a cozinha para achar algum alimento para ele; foi muito difícil achar qualquer coisa e, quando volto apressadamente à janela, ele jazia, já morto, nas mãos de um molequinho que arrancava as maravilhosas plumas de suas asas e as jogava por terra; por fim, cansado da brincadeira, ele joga o pássaro num monte de estrume. Os vizinhos, que tinham conseguido abater o milhafre com uma pedrada, dispersaram-se, cada qual retornando a suas ocupações. Esse sonho me entristeceu muito.

Ao mergulharmos nesses sonhos - e seu encanto estético convida-nos naturalmente a isso -, parece-nos ser possível sentir por um instante a pulsação do Dasein, sua sístole e diástole, sua expansão e depressão, sua elevação e afundamento parecem visíveis. E cada uma dessas fases, visivelmente dupla, exterioriza-se ao mesmo tempo na imagem e na reação colorida afetivamente: na imagem da águia planando em liberdade e da alegria que extraímos dessa contemplação, na imagem dos fragmentos carbonizados de papel e do dissabor que sua visão provoca, na imagem do milhafre morto cujas penas foram arrancadas e da tristeza que isso nos faz sentir. Entretanto, no fundo, a imagem feliz e a felicidade vivida, e a imagem triste e a tristeza a ela ligada, são a mesma coisa: elas são a expressão de uma única onda que cresce e decresce, pois também desse ponto de vista, o tema que o Dasein se proporciona, em cada uma dessas fases, continua sendo o elemento decisivo. O fato de esse tema se expressar, mais fortemente, no teor afetivo das próprias imagens ou na tonalidade afetiva puramente reativa, que a visão dessa imagem parece desencadear no sonhador, é, como veremos a seguir, também significativo, mas tem uma significação secundária (clínico-diagnóstica, por exemplo). É, precisamente, o aprofundamento no conteúdo onírico manifesto - que passou a um segundo plano, desde o postulado de Freud, que marcou época, referente à reconstrução dos pensamentos oníricos latentes - que nos ensina a avaliar corretamente o estreito parentesco original entre o sentimento e a imagem, entre a tonalidade afetiva e o preenchimento imagético. E o que vale para as curtas ondas cujos reflexos brincam na imagem e no humor do sonho, também vale, naturalmente, para as ondas mais longas e profundas da "alteração da tonalidade afetiva", exaltada ou depressiva, nos seres normais e patológicos. Vamos mostrar, ainda, com a ajuda de dois exemplos, que a onda vital eufórica ascendente pode encontrar o preenchimento imagético não só na imagem da subida, e que a onda que afunda na infelicidade também não a encontra só na queda. O segundo sonho de Gottfried Keller, que expusemos acima, possui um prolongamento tão gracioso quanto interessante; após as palavras "Esse sonho me entristeceu muito", o autor continua:

Ao contrário, senti um imenso prazer ao ver uma menina dirigir-se a mim para vender um grande buquê de cravos. Fiquei muito surpreso por ver esses cravos em pleno mês de dezembro e comecei a negociar com a criança. Ela me pedia três schillings por suas flores, mas eu tinha apenas dois no bolso, e me sentia muito embaraçado: pedi-lhe que me separasse somente flores para dois schillings, pois só essa quantidade cabia na taça de champanhe em que normalmente colocava minhas flores. Então, ela me disse: "Deixe comigo, todas elas vão caber". E tomando os cravos um a um, arruma-os delicadamente na delgada taça de cristal brilhante, e eu a observava e sentia o agrado e o bem-estar que nos vem quando vemos ser executado um trabalho fácil no silêncio, na calma e na graça. Quando ela colocou o último cravo, senti novamente uma certa angústia. A menina lança-me um olhar amistoso e malicioso e diz: "Viu? No fundo, não havia tantos quanto eu pensara e seu preço é de apenas dois schillings". Enquanto isso, aqueles cravos comuns haviam se transformado em flores de um laranja flamejante, com um perfume extraordinariamente agradável e típico dos cravos.

Depois do "esplêndido milhafre", depenado e morto, ter sido abandonado desatenciosamente pelo molequinho e pela multidão sobre o monte de estrume, eleva-se uma nova onda, que não projeta mais uma imagem de ascensão, mas flores de cor intensa e de delicioso perfume, uma forma amistosa de menina, graciosa e marota, uma delgada taça de champanhe. Todos esses temas constituem uma cena feliz que, apesar da desagradável ameaça do embaraço e da angústia, mantém-se vitoriosamente até o fim. Aqui, a curva ascendente da onda manifesta-se pelos primeiros acordes de uma excitação vital fortemente sensual e erótica, e pelo acompanhamento que dá a tonalidade afetiva ao tema cênico.

Outras vezes, a mudança de uma corrente vital feliz e vencedora, para uma desanimada e angustiada, mostra-se no enfraquecimento de cores suntuosas que brilham ao sol e no encobrimento da luz e da visibilidade, como revela de forma expressiva o sonho dos faisões que Goethe relata em Viagem à Itália:

Embora me sinta angustiado pela pressão de uma tal plenitude do bom e do desejável, sinto-me obrigado a lembrar a meus amigos um sonho que, justamente há um ano, pareceu-me bastante significativo. Ei-lo: num barco bem grande, aportei numa ilha fértil com luxuriante vegetação onde eu sabia poder encontrar os mais belos faisões do mundo. Comecei então a negociar, com os habitantes da ilha, essas aves, das quais me traziam um grande número que haviam matado. De fato, eram faisões, mas conforme as habituais transformações nos sonhos, percebiam-se longas penas coloridas e oceladas de pavões ou aves-do-paraíso, tão raras. Foram-me trazidas dúzias deles ao barco, onde eram colocados num arranjo com as cabeças voltadas para dentro, de modo tão gracioso que as longas plumas multicoloridas desabrochavam para o exterior e, brilhando ao sol, formavam a mais maravilhosa configuração que se possa sonhar. O conjunto era tão impressionante que mal sobrara lugar para os remadores e pilotos. Enquanto abríamos passagem pelas calmas ondas, eu já escolhia em meu espírito os amigos aos quais faria distribuir esses tesouros de mil cores. Acostando, finalmente, num grande porto, perco-me em meio a mil navios, de mastros gigantescos; escalei de convés em convés, até encontrar um lugar seguro em meu pequeno barco. Essas loucas imagens divertiram-nos muito, pois jorrando a partir delas próprias, deviam efetivamente apresentar uma analogia com o restante de nossa vida e destinos.

Esse sonho, ocorrido mais ou menos um ano antes do começo da viagem à Itália e de seu relato escrito,pelo fato de perdurar de forma tão vívida na lembrança do sonhador, e por sua reiterada menção, dão ao psicólogo um vislumbre bastante claro da labilidade ou mesmo da precariedade da existência de Goethe nessa época, que ele superou vitoriosamente com segurança instintiva, através de sua fuga para a Itália, para o Sul, as cores, o sol, para um novo conteúdo de espírito e de amor.

Mas voltemos aos sonhos em que se voa ou plana. Eu gostaria de mostrar com a ajuda de um exemplo que, com muita freqüência, não são os sonhos com conteúdo imagético surpreendentemente forte que inspiram preocupação ao psiquiatra mas, ao contrário, aqueles nos quais o conteúdo imagético e, portanto, o desenrolar dramático do sonho, retrocedem diante do puro teor afetivo. É um sinal de saúde mental quando o homem objetiva no sonho seus desejos e temores sob a forma de imagens predominantemente dramáticas, das quais parece emanar, conforme vimos, o teor afetivo. No sonho "cósmico" de um de nossos pacientes, que vamos relatar, o teor afetivo é tão preponderante que mesmo a mais poderosa objetivação, a imagem do cosmo ou do universo, não é suficiente para fornecer-lhe uma fixação imagética. Aqui, o doente não se encontra nem ao lado de seu drama, que ele desliga da forma de seu próprio corpo, nem tampouco se integra neste drama.

Eis o sonho:

Eu estava em um outro mundo maravilhoso, num mar universal onde, desprovido de forma, eu flutuava. Via de muito longe a terra e todas as estrelas e me sentia estranhamente fugaz e com um transbordante sentimento de força.

O próprio doente descreve este sonho como um sonho de morte. Essa flutuação sem qualquer forma, essa dissolução total da forma corporal própria, não é favorável do ponto de vista diagnóstico. Da mesma maneira, a oposição entre o exagerado sentimento de poder e a ausência de forma da pessoa indica uma perturbação momentânea mais profunda na sua estrutura mental. Mas isso não pertence mais ao sonho, mas à psicose enquanto tal, quando o doente define esse sonho como um ponto crucial de sua vida, sentindo tal fascinação por seu teor afetivo que busca reviver incessantemente em seus devaneios, preferindo esse sentimento a qualquer outro conteúdo da vida e esforçando-se, sempre de novo, por sair efetivamente da vida. O que Jeremias Gotthelf dizia a respeito de um de seus sonhos certamente não se aplica a nosso sonhador: "Eu sentia que a noite salutar tinha passado sobre mim" ou ainda: "Os sonhos não são também um presente de Deus e não devemos utilizá-los para nosso crescimento espiritual?" Quanto, igualmente, o sonho de nosso doente difere, com respeito a seu estilo e estrutura, também do sonho cósmico de vôo de Jean Paul:

Numa felicidade perfeita, numa prodigiosa elevação do corpo e do espírito, por vezes eu subia verticalmente até a abóboda celeste, de um azul profundo, e no meu alçar vôo, eu cantava o edifício do mundo.

Ele também mostra-se muito diferente dos sonhos maravilhosos, embora um pouco estilizados, de Gottfried Keller sobre o país natal, relatados no volume IV de Henrique, o Verde: aqui, uma abundância de formas e de maravilhas da natureza, um encantamento silvestre de inusitada riqueza que, bem do alto, o sonhador também parece sobrevoar, de maneira que tudo, abaixo dele, aparecia como um céu estrelado subterrâneo, "mas o céu era verde e as estrelas fulguravam com todas as cores". Em nosso paciente, no entanto, imaginação cósmica abstrata que nos dá calafrios! Enquanto Keller, cheio de angústia, via em seus sonhos o prenúncio de uma grave doença, tentando dela escapar de todos os modos, nosso doente, por seu lado, deixa-se cativar sempre mais pelo encanto estético puramente subjetivo de seus sonhos. É nessa dissolução no mais objetivo do subjetivo, no puro teor afetivo, que se perde o sentido da vida para nosso paciente, como ele mesmo reconhece:

Estamos no mundo para descobrir o sentido da vida, mas a vida não tem sentido, e é por isso que quero me liberar da vida para voltar à força originária. Não acredito numa vida pessoal depois da morte, acredito numa dissolução na força originária.

A desesperança total em relação ao sentido da vida seria então sinônimo da dissolução do homem na pura subjetividade ou, mesmo, poderíamos dizer, uma é o inverso da outra: pois o sentido da vida é sempre acima do subjetivo, algo universal, "objetivo" e impessoal. Devemos, entretanto, constatar, se formos rigorosos, que não existe dissolução na pura subjetividade enquanto o homem for homem. Também em nosso doente, a nostalgia do retorno à força originária ainda mostra uma aspiração na direção de um fundamento e de um apoio objetivo. E no entanto, podemos dizer, servindo-nos da distinção de Bertollet, que, aqui, essa aspiração se perfaz aparentemente de modo puramente dinâmico, a saber, cósmico-dinâmico, e não teísta-personalista. Mas, se penetrarmos profundamente na biografia exterior e interior de nosso doente, veremos que esse retorno à força cósmica originária corresponde a uma nostalgia da mãe, com um forte colorido erótico, ou seja, à necessidade claramente manifesta e realizada pelo jovem doente de se apoiar numa mulher que fosse uma amante maternal. Assim, sob as aparências de um dinamismo puramente objetivo, transparece um personalismo fortemente subjetivo, que coloca em questão o apoio no objetivo e impessoal.

II

A imagem da ave de rapina caindo impetuosamente sobre a pomba ou qualquer outro animal, para dilacerá-lo ou aniquilá-lo, é conhecida desde a Antigüidade. Mas, enquanto o homem de hoje vê-se obrigado a construir seu mundo em seu próprio coração, após ter-se proclamado Deus e senhor da vida e da morte, o mundo exterior, dominado pelas forças não espirituais, econômicas e técnicas, não sendo mais capaz de fornecer-lhe um apoio, o homem antigo, em suas vigílias ou sonhos, desconhece essa solidão originária no cosmo, solidão que constatamos, há pouco, em nosso jovem sonhador. Ele não compreenderia a frase do grande sábio que foi Jeremias Gotthelf: "Pense o quanto o mundo escurece quando o homem quer ser seu próprio sol". O homem antigo vive num cosmo do qual fazem parte suas decisões mais íntimas, mais secretas, na vigília ou no sonho, pois

para o iniciado, o que experimentamos enquanto motivos no momento da decisão são os deuses. É neles, e não na mente infinita, que se encontra a profundidade e a mais nobre razão para tudo o que é importante e que se cumpre no homem.6

É claro que não desejaríamos, ainda hoje, imitando o classicismo, simplesmente tomar emprestadas as formas acabadas da Grécia antiga. Isso significaria, principalmente para o psicólogo, um projeto singularmente limitado e escolar. Mas podemos entender, com o humanismo moderno, que a história espiritual dos gregos é a construção de um mundo das formas "no qual as leis naturais do homem desdobram-se em todos os sentidos", e que no aprofundamento neste mundo das formas encontra-se exatamente "a autocompreensão e a autoconstrução do homem espiritual na estrutura fundamental de sua essência."7 É a partir desse ponto de vista que continuaremos a expor nosso modesto problema particular.

Na Odisséia, 19, 535-581, quando, no sonho de Penélope, uma águia lança-se sobre os gansos massacrando-os totalmente, nem o poeta, e tampouco o leitor, pensa em processos subjetivos na psique da sonhadora. Ao contrário, o sonho indica aqui um acontecimento exterior, a saber, o assassinato dos pretendentes por Ulisses. (Esta observação também é válida para o sonho análogo de Hécuba, na tragédia de Eurípides [68-97] com o mesmo nome, quando o lobo se precipita sobre o veado.) Os sonhos são certamente criações poéticas, mas após as experiências psicanalíticas, podemos invocar aqui um precedente famoso, ou seja, Cícero, quando, em seu escrito Sobre a adivinhação, ele coloca em cena seu irmão Quintus, que não se cansa de citar sonhos encontrados nos poetas, fazendo-o dizer: "Haec, etiam si ficta sunt a poeta, non absunt tamen a consuetudine somniorum."

Ainda com mais freqüência que nos próprios sonhos, encontramos a imagem da águia e da pomba, da águia e do ganso, do falcão e da águia etc., enquanto resposta favorável ou desfavorável do oráculo ou do vidente consultado sobre a premonição e o sentido profético do sonho. Também aqui essa imagem indica um acontecimento externo futuro, segundo a convicção fundamental dos gregos de que o acontecer do mundo é ordenado em um todo, encontrando-se fixado de antemão em toda sua precisão pela Moira e pelos deuses. (Da mesma forma, Heráclito forjara essa fórmula lapidar: "O sol não sairá de sua órbita prescrita. Se ele o fizesse, as Erínias, servas de Dike, da necessidade e da lei brônzea, saberiam certamente restabelecê-la".) Encontramos tal oráculo após o sonho, em Os persas, de Ésquilo. Depois da partida de Xerxes para a Grécia com todos os seus exércitos, sua mãe, Atossa, vê em sonho duas mulheres, uma com as vestes dóricas e outra com roupas persas. Essas duas mulheres brigam e Xerxes atrela-as a seu carro. Uma delas curva-se de bom grado ao jugo, enquanto a outra resiste e quebra-o. Xerxes cai do carro e rasga as vestes diante dos olhos de Dario, que lamenta sua sorte. Profundamente transtornada com este sonho e com outros semelhantes, Atossa, acompanhada dos sacerdotes, dirige-se para o altar de Apolo e oferece um sacrifício às divindades que afastam a maldição:

Vi em seguida uma águia que fugia
No rumo de um sacrário de Febo divino.
Parei, muda de espanto, mas no mesmo instante
Diante de meus próprios olhos um falcão
Apareceu no céu em largos movimentos
De suas asas rápidas, e com as garras
Pôs-se a dilacerar a cabeça da águia,
Que mal podia defender-se com o corpo.

(Os persas, V, 191-196, tradução de Mário Gama Kury)

Considerando esta imagem enquanto tal, fica difícil saber se ela provém de um sonho ou de um acontecimento do mundo exterior, tamanha é a fusão das fronteiras, para os gregos, entre o espaço interior da experiência vivida, o espaço exterior do acontecimento e o espaço do culto religioso. Pois, para eles, o sujeito da imagem onírica, o sujeito do acontecimento cósmico e o sujeito da expressão ritual são um único, a divindade, Zeus ou seus mandatários, aos quais teria delegado seu poder de modo passageiro ou permanente. Assim, vemos elaborar-se aqui uma indissociável unidade da imagem onírica (a das duas mulheres que brigam atreladas ao carro de Xerxes e a queda deste último), do acontecer externo (a águia e o falcão) e da significação do culto. Onde, então, tratar-se-ia de um sujeito individual? E onde poderia estar até mesmo a possibilidade de seu fundamento e de sua queda ontológicos? E quem poderá decidir se a verdade deve ser buscada na interioridade da subjetividade ou na exterioridade da objetividade? Tudo o que é "interior" é, aqui, "exterior", assim como tudo o que é exterior é interior. Portanto, pouco importa que tal oráculo ocorra após um sonho ou sem conexão com ele; muitas vezes, o sonho também anuncia a vontade da divindade sem intermediação do oráculo. Na Odisséia (XV), encontramos dois presságios na forma de nossa imagem sem sonho premonitório:

Enquanto ele assim falava, uma ave passou voando a sua direita; era uma águia e carregava nas garras um grande ganso branco, doméstico, do quintal; homens e mulheres a seguiam gritando; a águia, aproximando-se do grupo, precipitou-se pela direita, adiante dos cavalos.Vendo-a, alegraram-se e o coração o peito a todos aqueceu. (pp. 177-178)

Com o auxílio desses presságios, Helena interpreta o futuro para Telêmaco: da mesma forma que a águia se apoderara do ganso cevado, Ulisses retornaria em breve ao lar para defender seus direitos (174-177).

No mesmo canto encontramos uma imagem muito semelhante à imagem onírica de nossa sonhadora previamente mencionada:

Mal acabara de falar, passou voando pela sua direita uma ave, um falcão, célere mensageiro de Apolo, carregando nas garras uma pomba, que depenava, esparzindo as penas pelo chão entre o barco e a pessoa de Telêmaco. (p. 186)

Homero 2002: Odisséia. Tradução de Jaime Bruna.
São Paulo, Cultrix, 12. ed.

Esse pássaro que voa para a direita também é um enviado dos deuses e, portanto, significa felicidade.

Aqui não se trata ainda, de forma alguma, de uma vida na ascensão ou na queda, no sentido de uma corrente vital pertencente ao indivíduo isolado; trata-se antes daquilo que se eleva para a felicidade ou cai na infelicidade, ou seja, as linhagens, as famílias entrelaçadas umas às outras pelo destino comum e predeterminado. O indivíduo, a linhagem, o destino e a divindade entrelaçam-se intimamente em um espaço único; mas é ainda mais significativo e instrutivo o fato de que, nesse espaço do Dasein, tão diferente do nosso, se manifeste tão claramente a estrutura ontológica parcial da ascensão e da queda.

No lugar daquilo que, para nós, é interno e externo, no lugar dessa oposição neoplatônica, cristã e romântica, vemos, nos gregos antigos, a oposição entre o dia e a noite, a escuridão e a claridade, a terra e o sol. Os sonhos pertencem ao reino da noite e da terra e são, eles mesmos, demônios que assombram seu próprio domínio (Demos, em Homero) e constituem sua própria linhagem (Phylon, em Hesíodo). Sua mãe é a noite (Hesíodo), mãe também da morte e do sono; daí o parentesco entre os demônios do sonho e as almas dos mortos que, suplicantes ou acusadores, aparecem durante o sono. Esse é um motivo que, em Homero (Ilíada, 22), Ésquilo (As Eumênidas) ou Eurípedes (Hécuba), desenvolvido artisticamente de modo grandioso, provoca um poderoso efeito estético e psicológico. Então, é profundamente significativo o fato de que, enquanto os próprios sonhos pertencem inteiramente ao lado noturno do Dasein grego, a sua interpretação cultual, o oráculo, tenha sido progressivamente retirada do poder de Gaia, velha divindade, parente da noite (veja-se, por exemplo, a antiga adivinhação délfica), e usurpada por um novo deus, Phoebos Apolo. O sonho de Atossa e o oráculo do falcão e da águia não se cindem em exterior e interior, em acontecimento objetivo e subjetivo, mas, ao contrário, em reino noturno confinado em sua proximidade, obscuro e vago, e no reino do mais desperto de todos os deuses, Apolo, radiante divindade do sol, vigiando e desferindo de longe seus raios.

Sabemos, entretanto, que para os gregos, ao lado dessa grandiosa concepção do mundo, fundada na unidade religiosa, também havia lugar para uma observação sóbria e baseada na experiência, que sustentava uma teoria científica e, sobretudo, a interpretação filosófico-metafísica do mundo enquanto encadeamento do acontecer do mundo, desde o mais universal até o mais singular e aparentemente mais fortuito. Em sua polêmica contra a adivinhação baseada em sonhos, Cícero menciona três concepções que poderiam explicar as interpretações proféticas do sonho e, na verdade, ele rejeita essas três possibilidades, e, com elas, qualquer profética do sonho, ao que aderimos completamente. Em De divinatione (II, 60, 124), ele menciona a possibilidade de inspiração por uma força divina (divina vis quaedam), pela "convenientia et coniunctio naturae", "quam vocant sympatheian", e pela observação constante e durável (quaedam observantio constans atque diuturna) de coincidências de acontecimentos oníricos com acontecimentos reais posteriores. O fator novo que descobrimos aqui é essa teoria da simpatia que já está em Heráclito, nos estóicos e particularmente em Poseidonius, e mais tardiamente, sob outra forma, em Plotino, e depois novamente em Synesius, em sua obra sobre os sonhos, tão importante para nós. É a famosa teoria filosófica do Todo-Um, que, onde quer que seja encontrada, evoca o espírito dos gregos. Podemos, é verdade, distinguir muitas variantes nessa teoria: em Heráclito (seguimos aqui Kosmos und Sympathie de H. Reinhardt) trata-se de um Todo-Um, um hen kai pan do ser e da sua ordem, da dissonância e da harmonia; mais tarde, em Poseidonius, trata-se "da matéria e do espírito, da natureza e do deus, do acaso e do destino". É preciso distinguir de tudo isso o Todo-Um, no sentido do hen to pan da união mágica de forças, da atração, do apelo da evocação pública e secreta, religiosa e filosófica do "fluxo imperioso que salta de uma aparência a outra". Aliás, essa concepção pode ser encontrada ainda hoje na superstição, e exatamente naquela ligada aos sonhos, sendo observável em todas as classes sociais. Enquanto a antiga mitologia e a filosofia gregas só conhecem uma ordenação harmoniosa do cosmo, do mundo, já vemos em Poseidonius uma concepção do mundo puramente dinâmica; "no lugar do conceito de ordem já aparece o de uma força explicável, natural e, no entanto, secreta e cheia de mistério", representação que domina ainda hoje as teorias científicas e filosóficas. Tudo isso desempenhou um papel na concepção dos sonhos desde os gregos e romanos, até o dia em que o mundo antigo desmoronou e em que, como sinal infalível dessa queda, Petrônio, espírito refinado e libertino, o familiar de Nero, declarava ironicamente que não eram, de forma alguma, os deuses sagrados e poderosos que enviavam os sonhos do céu para baixo, mas que cada um os elaborava por si próprio: Somnia, quae mentes ludunt volitantibus umbris, non delubra, nec ab aethere numina mittunt sed sibi quisque facit (Anth. latin., 651, R).

Assim como Lucrécio que, bem antes dele, em De natura rerum (IV, 962-1029), fazia uma descrição altamente realista da relação entre as experiências oníricas vividas e as ocupação diárias, os temores, os desejos, os apetites sexuais, também Petrônio imagina por antecipação a parte mais importante da nova teoria dos sonhos: "sed sibi quisque facit". Aqui, os mundos antigo e moderno separam-se, não somente na história da problemática do sonho, mas na história em geral: a hybris da individuação, da onipotência e da igualdade do indivíduo humano com os deuses, levanta, agora, a sua cabeça. E eis o momento em que nós, em oposição à sublevação do homem contra o todo, contrária à natureza, lançaremos um olhar a esse mundo das formas dos gregos "no qual as leis naturais dos homens desdobram-se em todos os sentidos", apoiando-nos, justamente, em nosso problema particular do sonho e da existência.

III

Quem é então esse quisque de Petrônio? Podemos apreender, aqui, realmente e de maneira tangível, o sujeito do sonho ou somente o sujeito do sonhar? Os adeptos da pura teoria da subjetividade centrada no quisque esquecem que eles só detêm uma semiverdade, negligenciando o fato de que, na verdade, o homem faz rodar seu carro "onde bem entende, mas que sob suas rodas gira, invisível, a esfera que ele percorre". Isso também é tão válido para a concepção puramente científico-genética do sonho quanto, sobretudo, para o seu julgamento ético e para o problema da responsabilidade moral do sonho. Na distinção de Freud entre o ego e o id, na de Häberlin entre o eu e o universo, na de Jung entre o inconsciente individual e inconsciente coletivo, na de Schleiermarcher entre a consciência do indivíduo e a consciência de espécie, na de Agostinho entre o que acontece apenas em nós e o que acontece a partir de nós, em todas essas distinções mostra-se a diferença entre o carro e a esfera sobre a qual ele se desloca.

Existe ainda uma outra distinção do mesmo tipo, bastante importante, e que desempenha um papel primordial na história da filosofia, sem que seja lembrado que sua gênese está ligada à distinção entre o sonho e a vigília: é a distinção entre, de um lado, a imagem, o sentimento, a opinião subjetiva, a "forma dóxica" (Platão, Husserl), em geral, e de outro, o espírito, a objetividade, a verdade. Essa distinção, por sua vez, é a mesma que aquela entre o quisque, o indivíduo, o isolado, o hekastos dos gregos e a comunidade homens-deuses mediatizada pelo logos, a compreensão mútua. Mas, enquanto em Petrônio, assim como em qualquer época "das luzes", o quisque, como um x totalmente indeterminado, dissimula-se por trás do sonho, sendo aquele que faz o sonho, o homem, aqui, ele é completamente diferente de um simples quisque, e isso somente na medida em que ele emerge no mundo do sonho, das imagens, do sentimento. Aqui, o indivíduo é conduzido, a partir de uma construção ingênua do realismo metafísico, para um dos modos de ser homem, para uma das maneiras e um dos procedimentos através dos quais é possível ser um homem, ou seja, a possibilidade não espiritual do ser humano. Nomearemos apenas algumas das etapas dessa teoria, ligada aos nomes de Heráclito, Platão, Hegel, Kierkegaard e Heidegger, limitando-nos a indicar certos pontos úteis para nosso tema.

Segundo Hegel, é a Heráclito que devemos o nascimento da filosofia: de fato, é com ele que, pela primeira vez, encontramos a "idéia filosófica em sua forma especulativa". Seu pensamento maior foi a passagem do ser ao vir-a-ser, sua grande descoberta foi a de que o ser e o não-ser são abstrações desprovidas de verdade, e de que o verdadeiro originário é apenas o vir-a-ser; assim, em Heráclito, o momento da negatividade - que é ao mesmo tempo o princípio de vida - é imanente. Por outro lado, Hegel e Heráclito conjugam-se no desprezo e mesmo na recusa de tudo o que é particular e isolado, negando-lhe qualquer interesse. Ambos também pensam que, nesse sentido, não há qualquer "significação espiritual" em se "considerar a individualidade consciente como fenômeno único do ente"; pois é "próprio do contraditório que a sua essência seja o universal do Espírito" (Hegel, Fenomenologia do Espírito).

Já na primeira parte de nosso estudo, ao examinarmos a individualidade, o sonhador isolado do ponto de vista do universal, sem dúvida o fizemos numa chave existencial muito fragmentária, a partir da imagem da vida individual feliz ou infeliz, da concórdia ou da danosidade, segundo a imagem onírica do pássaro que sobe para os ares ou cai, e ainda, de seu combate com uma segunda forma de pássaro, ou da ascensão, do vôo, da flutuação, do afundamento, da queda. Essa característica de universalidade que então nos preocupava, o teor imagético supra-individual, não é certamente elaborado pelo indivíduo, mas este último o possui durante o sono, apenas ele o vê e já se encontra mergulhado nele no encantamento ou tormento. Suas imagens, seus sentimentos, seu humor, pertencem somente a ele, que vive completamente em seu próprio mundo. Falando psicologicamente, tudo isso chama-se sonhar, sendo indiferente o fato de que estejamos fisiologicamente dormindo ou despertos. Heráclito reconheceu nisso o elemento decisivo para caracterizar o sonho na vida psíquica e para distingui-lo da vigília. Ele diz que (fragmento 89) os "despertos (plural) têm um único mundo que lhes é comum (hena kai koinon kosmon), enquanto aqueles que dormem, cada um (hekastos: singular) volta-se para um mundo totalmente seu (eis idion apostrefesthai)".

Por mais que já se tenha escrito sobre a oposição, em Heráclito, entre o elemento comum, o koinon ou xynon, e o particular, o individual, o idion (ver principalmente o Parmênides, de K. Reinhardt), consideramos sumamente instrutivos os desenvolvimentos de Hegel, tão próximos dele em muitos aspectos, em sua História da filosofia. Evidentemente, aqui só podemos dar um vislumbre de seu pensamento fundamental. (Ver ainda a tentativa de explicação do fragmento 89 por meio da psicologia moderna do pensamento, realizada no estudo em que também evidenciei o duplo sentido desse fragmento 89, ou seja, que e por que, no sonho, temos um mundo próprio e nos voltamos para ele.)

A expressão mundo, cosmo, não deve significar o mundo (objetivo), se nos referirmos ao vocabulário de Anaxágoras que Heráclito pressupõe aqui, mas o estado (subjetivo) da união (koinos) e da dispersão (idios). Contudo, em Heráclito, o elemento determinante dessa união ou dessa dispersão é o logos, que certamente devemos traduzir (como fizeram Joël, G. Burckhardt e outros) seja por palavra ou discurso, seja por pensamento, doutrina, necessidade de pensamento, relação sujeita à razão, conexão racional conforme as leis ("ordem do mundo tanto harmoniosa quanto dissonante", como afirma Howald). O logos refere-se, diz Hegel, tanto ao ato de compreender quanto à possibilidade de ser compreendido. O que é comum a todos é o entendimento, o pensamento reflexivo (to fronein)8; embora devamos nos curvar a essa instância comum e embora, portanto, haja algo em que todos poderiam se encontrar ou se compreender, como num elemento comum, a saber, o logos, também é verdade que muitos vivem como se tivessem seu próprio entendimento ou um pensamento próprio privado, e como se tivessem o direito de tê-lo (fr. 92). Ora, esse último não passa de um devaneio, seja no estado fisiológico de sono, seja na vigília. Aqueles que assim devaneiam ignoram o que fazem no estado de vigília, como esquecem o que fizeram no sono (fr. 1). Para Heráclito (negativamente), a vigília propriamente dita é o despertar do pensamento individual (doxa) e da apreciação subjetiva; do ponto de vista positivo, é a vida (não somente a vida do pensamento) segundo as regras do universal, pouco importando se este universal se chama logos, cosmos, sophia ou, ainda, seja uma conjunção de tudo isso no sentido de uma visão racional, de uma conexão unitária de acordo com as leis, e no sentido da ação de acordo com essa visão. Hegel expõe essa teoria de Heráclito dizendo que seria a razão, o logos, a juíza da verdade, não aquela de cada indivíduo, mas a juíza divina, universal, "essa medida, esse ritmo cujas vibrações percorrem a essência de tudo" (encontramos aqui como um eco da antiga sympatheia). Estamos despertos somente quanto vivemos conscientes dessa conexão, quer a chamemos entendimento, compreensão ou reflexão. "Essa forma de compreensão é o que chamamos vigília." "Sonhamos apenas porque não nos encontramos em conexão com o todo." Assim separado, o entendimento (segundo Heráclito) perde a força da consciência que possuía anteriormente e (segundo Hegel) o espírito perde a objetividade quando é somente uma singularidade individual: ele não é universal na singularidade. Enquanto participamos do saber do entendimento divino, encon-tramo-nos na verdade; quando pertencemos ao particular (idiasomen), estamos no engano; estas são, diz Hegel, palavras grandes e importantes:

Não se pode expressar a verdade de modo mais verdadeiro e imparcial. Apenas a consciência do universal é consciência da verdade, mas a consciência do singular e a ação enquanto singular, originalidade que se torna uma particularidade do conteúdo ou da forma, é o não verdadeiro e o mau. O erro consiste então apenas na particularização do pensamento, o mal e o erro residindo na separação do universal. Normalmente, os homens acham, quando lhes é pedido que pensem algo - que esse algo deva ser particular; é isso que é o engano.

De outro lado, segundo Hegel, "o conhecimento de uma coisa, que sou o único a ter", é precisamente o sonho, assim como a imaginação e o sentimento são um sonhar:

a saber, a maneira segundo a qual algo existe apenas para mim, algo cuja posse se encontra em mim enquanto sou este sujeito aqui; por mais sublimes que os sentimentos possam se mostrar, eles estão em mim e não são livres com relação a mim.

Assim como o objeto não é apenas imaginado nem feito por mim, se eu o reconhecer como algo livre, existindo em si, como algo universal em si, assim também o sentimento só está "na verdade" se, para falar como Spinoza, eu o reconheço sob a forma da eternidade. Isto soa certamente muito abstrato, mas se encontra muito próximo da vida. Pois, em qualquer tratamento psicológico sério, e sobretudo na psicanálise, há momentos em que o homem tem de decidir se quer preservar seu pensamento individual, seu teatro privado, como dizia uma paciente, sua arrogância, seu orgulho e obstinação, ou se, entre as mãos do médico, mediador iniciado entre o mundo particular e o mundo em geral, entre a ilusão e a verdade, quer despertar de seu sonho e participar da vida universal, do koinos kosmos. Pobres de nossos doentes se, para curar-se, fossem obrigados a compreender Heráclito ou Hegel; no entanto, ninguém poderá curar, nem ser curado no mais profundo de seu ser, se o médico não conseguir despertar nele a pequena centelha de espiritualidade, para que se torne sensível à presença do sopro. Goethe sabia disso e muito melhor que a maioria de nossos psicoterapeutas contemporâneos; lembremos somente as palavras que ele põe na boca de Parmênides, em Os sábios e as gentes:

Adentre em si mesmo. Se não encontrares aí
O Infinito no espírito e nos sentidos
Nada no mundo poderá ajudá-lo.

Ao se despertar o sentido do infinito como oposição à limitação do particular, não se retira do indivíduo suas imagens e seus sentimentos, seus desejos e esperanças; estes serão apenas despojados do desassossego tantalizador, da inquietude e do desespero, da vida na queda, no afundamento, na descida, e transformados não numa paz total - isso seria a morte -, mas na vida em ascensão, na flutuação sem esforço ou na embria-guez. Foi isso que uma de nossas pacientes viu após o fim do tratamento, numa visão onírica que mostra claramente que a espiritualidade, uma vez desperta, pode inflamar até mesmo o sonho para fazer surgir dele ao menos a imagem da vida universal:

Certa noite eu tinha adormecido muito cansada e atormentada por um intenso desassossego e perturbação interior. Em sonho, vi-me percorrendo uma praia interminável, e o eterno ruído das ondas, quebrando contra os rochedos, em sua infinita agitação, deixava-me inquieta até o desespero. Com toda minha alma, eu desejava impor imobilidade ao mar, apaziguá-lo pela força. Vi então que um homem alto, com um chapéu de abas largas, aproximava-se de mim vindo através das dunas. Usava um grande casaco e segurava nas mãos um bastão e uma rede enorme. Um de seus olhos estava tapado por uma grande mecha de cabelos que caía em sua testa. Quando chegou até mim, o homem jogou sua rede e nela recolheu o mar, que estendeu à minha frente. Eu via horrorizada, por entre as malhas da rede, o mar morrer lentamente diante de meus olhos. Uma calma estranha se estendia a meu redor; as algas, os animais e peixes aprisionados na rede lentamente tornavam-se castanhos e mortos com ar fantasmático. Em lágrimas, joguei-me ao pés do homem, implorando que ele devolvesse a liberdade ao mar - pois agora eu sei que o desassossego significa a vida, e a calma, a morte. Então, o homem rasgou a rede e liberou o mar. Quando ouvi novamente o ruído e o quebrar das ondas, senti em mim uma alegria jubilosa... e despertei.

Em mais de um sentido esse sonho é extremamente interessante. Ele se decompõe em três passos: tese (vida onírica, atormentada no isolamento), antítese (morte por apagamento total da vida própria em conseqüência de uma entrega total ao princípio objetivo avassalador da alteridade) e síntese (pela retomada da objetividade na subjetividade). Em seu desenvolvimento em três passos, vemos esse sonho refletir, numa representação imagética, o processo psicanalítico, a sua progressão da arrogante obstinação no isolamento até a humilde submissão à "autoridade" (impessoal) do médico ("fase da transferência") e até a "resolução da transferência". Muito já foi escrito e, decerto, ainda se escreverá sobre essa dissolução da transferência, mas o fato de que ela possa acontecer como uma espiritualização genuína, como uma vigília espiritual mais clara, no sentido de Heráclito e Hegel - pois do contrário não passaria de impostura e de auto-engano -, escapa de uma concepção unilateralmente biológica ou mesmo de uma concepção que considere o espírito como "inimigo da vida". Mas não devemos nos limitar a Hegel, pois, enquanto psicoterapeutas, o que nos interessa não é a verdade objetiva, a concordância entre o pensamento e o ser, mas sim a "verdade subjetiva", da qual fala Kierkegaard quando afirma que ela é a "paixão da interioridade", graças à qual a subjetividade há de trabalhar para abrir caminho através da objetividade (comunicação, compreensão, submissão a uma norma supra-subjetiva), e para sair novamente dela, como indica a terceira fase de nosso sonho. Somente baseando-se nesse ponto de vista é que o próprio piscoterapeuta deixará de ser um espírito que sonha para tornar-se um espírito acordado, de modo que seja possível dizer dele o que Kierkegaard diz de Lessing: "Por não admitir uma entrega servil, nem reconhecer uma imitação forçada, ele coloca, sendo ele próprio livre, quem quer que se aproxime, numa relação livre com ele". Todos esses problemas encontram-se adormecidos na teoria freudiana da transferência sobre a pessoa do médico e, mais particularmente, no que se refere à superação dessa transferência; mas não iremos despertá-los aqui, pois ainda ninguém conseguiu e ninguém nunca conseguirá derivar o espírito dos instintos, já que se trata de conceitos incomensuráveis por sua essência. E, devemos acrescentar, é justamente dessa incomensurabilidade que eles retiram a justificação para sua existência. Aqui, Jung vai ainda mais fundo com sua teoria da individuação, enquanto princípio liberador do si-mesmo "fora dos véus falaciosos da persona, de um lado, e da força sugestiva das imagens inconscientes, de outro". Mas, por mais profundas que sejam as idéias extraídas por Jung da observação da individuação, enquanto processo psicológico de desenvolvimento, isso não impede que o problema fundamental dessa individuação ainda se encontre encoberto. Pois a oposição entre o sonho e a vigília, a emergência no mundo próprio e no mundo comunitário, ainda não é concebida como uma oposição, por um lado, entre a imagem e o sentimento (que sempre se co-pertencem), e, por outro, o espírito. Como essa oposição existe, ela não pode escapar de um pesquisador como Jung. Entretanto, a tentativa de retirá-la da "função do inconsciente" e de sua "relação compensatória com a consciência" não é satisfatória, pois aqui essa oposição parece ter desaparecido da esfera do problema fundamental, embora ainda permaneça viva nos problemas de detalhe e nos conceitos fundamentais. Isso vale, particularmente, para o conceito de "inconsciente coletivo", que representa não somente um tipo de "consciência da espécie" imagética, no sentido de Schleiermacher, mas ainda deve implicar a relação ética com um universal, com o "mundo" ou o "objeto". É claro que, nesse inconsciente coletivo, nossa oposição está longe de ser resolvida. O mesmo vale para o conceito de Jung referente ao si-mesmo, no qual vê-se o inconsciente e o consciente "se complementarem" para formar um todo, uma totalidade. Os processos inconscientes que compensam o eu consciente devem conter todos os elementos indispensáveis à auto-regulação da psique total: mas mesmo reconhecendo que nessa compensação já se dissimula o fator primordial ético, a consciência - que é a que põe em movimento todo o dinamismo funcional -, e que, inversamente, o mecanismo de compensação não regula a psique total, em nada avançamos na solução de um problema ao transferi-lo do todo para os seus elementos. Na formulação de suas teorias, Jung recorreu com grande êxito às fontes orientais, da Índia e da China, e aproximou-se de bom grado dos primitivos. Nós, ao contrário, embora apreciemos suas fontes, não nos sentimos no direito de anular o passo dado pelos gregos na sua interpretação da existência - tanto no que concerne à psicologia, à psicanálise e à psiquiatria.

Voltemos ao nosso ponto de partida. Quando caio dos céus numa decepção desconcertante, após ter-me recomposto, formulo essa impressão dizendo: "Não sabia como isso tinha me acontecido". Diremos aqui, para falar com Heidegger, que o Dasein é trazido diante de seu ser. Ele é trazido na medida em que algo lhe acontece e ele não sabe como e o que lhe acontece. Esse é o traço ontológico fundamental de todo sonho e de seu parentesco com a angústia.9 Sonhar significa: "Eu não sei como isso está me acontecendo". Nesse "eu" e nesse "me" reaparece, na verdade, o indivíduo, o quisque, o hekastos;mas, de forma alguma, como aquele que faz o sonho, e sim como aquele a quem o sonho acontece "sem que ele saiba como". E esse indivíduo, aqui, não é senão "o mesmo", no sentido da "identidade numérica da pessoa" (Kant), uma indicação puramente formal, desprovida de substância, o joguete da vida na ascensão ou na queda, do ruído do mar e do silêncio da morte, do brilho das cores ao sol e da noite na escuridão, da forma grandiosa do pássaro voando no éter e de seus fragmentos de papel enegrecido jogados desordenadamente ao chão; ele é o joguete da forma atraente da menina, do perfume dos cravos, do cadáver do pássaro que jaz no chão, da poderosa e cruel ave de rapina e da frágil pomba. Um indivíduo torna-se si-mesmo ou "o" indivíduo apenas a partir desse ser o mesmo; de sonhador torna-se o homem em vigília, no momento insondável em que ele decide, não somente querer saber como isso lhe acontece, mas também intervir "ele mesmo" no movimento do acontecer; quando ele decide introduzir continuidade e conseqüência na vida que se eleva e cai. Somente nesse momento ele faz alguma coisa. Mas o que ele faz não é a vida - pois, esta, o indivíduo não pode fazer - e sim a história. Retomando uma distinção por nós já estabelecida em outro lugar, diremos que sonhando o homem "é" uma "função vital", e que, em vigília, ele "faz" a história da sua vida. E, na verdade, ele faz exatamente a história de sua própria vida, a biografia interior, a qual não deve ser confundida com a história exterior ou a história do mundo, sendo que entrar ou não nesta última não depende, de modo algum, só dele. Colocar os dois membros da disjunção da função vital e da história interna da vida sobre um denominador comum, como incansavelmente tentamos fazer, não é possível, pois a vida enquanto função é uma outra vida que a vida enquanto história e, entretanto, ambas têm o mesmo fundamento: a existência. Nossa tarefa foi mostrar o lugar do sonho no interior desse fundamento. Fora dessa comunidade do fundamento e, no entanto, ligados a esta, o sonho e a vigília têm ainda algo em comum. Sendo a "transição" de um a outro paulatina (no que o caráter repentino das decisões singulares tomadas ao longo da história da vida nada muda), o começo da função vital e, portanto, do sonhar, e o final da vigília, da história da vida interna, estão no infinito; pois, visto que ignoramos onde começam a vida e o sonho, sempre nos será lembrado, no decorrer de nossa vida, que está acima das forças humanas "ser o `indivíduo', na acepção mais alta desse termo".

 

 

Recebido em 9 junho de 2002.
Aprovado em 15 de dezembro de 2002.

 

 

Tradução de Martha Gambini
Revisão de Zeljko Loparic

1 O título do original: "Traum und Existenz", Binswanger, Ludwig 1992/94: Ausgewählte Werke, v. 3, pp. 95-119. Este texto continua a série de traduções, iniciada pelos artigos de Medard Boss e de Henri Maldiney, que Natureza humana vem publicando com o objetivo de promover a recepção crítica de teorias psicoterápicas elaboradas em diálogo com Heidegger (N. do E.).
2 Em francês no texto (N. da T.).
3 Binswanger emprega a palavra Stimmung para designar tanto a coloração afetiva de uma experiência vivida quanto o caráter receptivo da existência humana considerada no nível do existencial ontológico (N. da T.).
4 Romance de Mörike, Maler Nolten (N. da T.)
5 Em Wandlungen in der Auffassung und Deutung des Traumes von den Griechen bis Gegenwart (Modificações na concepção e na interpretação dos sonhos dos gregos até nossos dias). Berlin, Springer, 1928.
6 Walter F. Otto, Die Götter Griechenlands (Os deuses gregos). Bonn, Ed. Cohen.
7 Werner Jaeger, Die geistige gegenwart der Antike (Presença espiritual da Antigüidade). Berlin, Ed. de Gruyter.
8 No que se refere à significação central do fronein e da frónesis na filosofia grega e suas transformações em Sócrates, Platão e Aristóteles, cf. Werner, Jaeger, Aristóteles (ed. de Gruyter, Berlin).
9 Consideramos os sonhos de angústia como o protótipo da angústia existencial-ôntica original, colocada no Dasein enquanto tal (ver Heidegger, O que é a metafísica?).