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Os diferentes discursos que nos cercam

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: “Trouxeste a chave?”

Carlos Drummond de Andrade

Este número de Bakhtiniana (17.4) apresenta a análise de objetos bastante diversificados, sob perspectivas teóricas distintas. Nele o leitor vai encontrar doze textos: ao lado de um estudo eminentemente teórico, a análise dos discursos literário, dramático, religioso, a análise de discursos das redes sociais, reflexões éticas, reflexões científicas sobre a fala bilíngue, retrospectiva teórica... E três resenhas. Ao observar este importante conjunto, não há como não nos lembrarmos de que todos os objetos de análise se constituem a partir de gêneros discursivos provenientes de diferentes esferas da atividade humana. Recuperando dizeres do Círculo, eles referem-se à ciência, à literatura, à religião, à moral etc. e “estão ligados de modo mais estreito aos problemas da filosofia da linguagem” (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.91). Compreendê-los, pois, é nossa tarefa de estudiosos do discurso.

Medviédev nos diz que cada gênero da comunicação social “é capaz de dominar somente determinados aspectos da realidade, (...) possui certos princípios de seleção, determinadas formas de visão e de compreensão dessa realidade, certos graus na extensão de sua apreensão e na profundidade de penetração nela” (MEDVIÉDEV, 2012MEDVIÉDEV, P. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012., p.196). A leitura dos artigos e das resenhas permite ao leitor observar como esses gêneros se orientam na realidade em que se realizam, os diálogos que propõem, como se dá seu acabamento, como podem ser compreendidos sob a perspectiva teórica que fundamenta as análises, que interações estabelecem com seus ativos contempladores, que discursos mobilizam.

A noção de gênero do discurso, sem dúvida uma das contribuições fundamentais de Bakhtin e o Círculo, implica, em meio a vários outros conceitos, uma reflexão a respeito do contexto vivido pelos pensadores proponentes da perspectiva dialógica, os diálogos, por vezes polêmicos, estabelecidos com outras teorias e pensadores, especialmente no momento da produção de suas obras. Essa reflexão tem sido objeto de pesquisa de muitos intelectuais, em várias partes do mundo. Bakhtiniana tem participado ativamente dessa investigação reflexiva, graças às importantes contribuições que recebe, como ocorre neste número. Por isso, contrariando a ordem no Sumário, iniciamos a apresentação dos textos do 17.4 com a resenha vinda da Rússia, escrita por Oleg Osovsky, Svetlana Dubrovskaya e Ekaterina Chernetsova, as duas primeiras de Saransk (M. E. Evsevyev Mordovian State Pedagogical University e National Research Mordovia State University), onde fica a universidade em que Bakhtin lecionou por muitos anos, e a terceira, de Moscou (National Research University Higher School of Economics). As três autoras, que já contribuíram com Bakhtiniana em outras ocasiões, tomaram para si a bemvinda tarefa de trazer para os leitores brasileiros as importantes publicações sobre Bakhtin e o Círculo em seu país de origem.

O texto é uma excelente resenha sobre o livro The Palgrave Handbook of Russian Thought [O manual Palgrave do pensamento russo] (814 p.), organizado por Marina F. Bykova, Michael N. Forster e Lina Steiner, que expõe o pensamento filosófico e literário russo desde o final do século XVIII até a dissolução da União Soviética, isto é, ao longo de quase três séculos. As autoras destacam a profundidade do trabalho, afirmando que a obra está longe de ser um manual, o que o título faria supor, na medida em que visa “mostrar cada um dos personagens da história intelectual russa no contexto de sua relação com seus predecessores e contemporâneos, com toda a gama de influências filosóficas e sociais nos contextos ideológico, político, social e cultural” (p.265). Após um panorama da obra, Osovsky, Dubrovskaya e Chernetsova expõem como o livro vai introduzir o trabalho de Mikhail Bakhtin, por meio da reavaliação que Michael Forster traz

(...) dos anos sessenta do século XIX, o qual inclui Herzen, Bakunin e muitos outros pensadores que se tornaram oposição ao regime de Nikolai I, mas também aqueles pensadores que não concordavam com a versão de socialismo que o Ocidente esclarecido oferecia naquela época.

Este é precisamente o contexto, o pano de fundo mental contra o qual o leitor percebe os dois capítulos dedicados a Mikhail Bakhtin (p.270).

A partir daí, as autoras se detêm nos capítulos dedicados a Bakhtin, escritos por conhecidos especialistas no legado do pensador: o historiador da filosofia Vitaly Makhlin e o historiador e teórico literário Galin Tihanov. Segundo elas, “os capítulos personificam os dois polos da interpretação de Bakhtin, que podem ser condicionalmente chamados de russo e europeu” (p.270). A resenha é minuciosa, crítica e bem feita. Deve ser lida por todos os estudiosos do pensamento bakhtiniano que, com certeza, irão buscar a obra na web.1 1 https://link.springer.com/content/pdf/bfm:978-3-030-62982-3/1.pdf

Quanto aos artigos, o primeiro é essencialmente teórico. Intitulado “Corpo e transgressão em Bakhtin e Bataille: um debate de excessos”, e foi redigido por Anderson Lopes da Silva (Pesquisador do GP/USP e do NEFICS /UFPR). Pesquisador das ciências da comunicação, Lopes da Silva coloca em diálogo as ideias de Mikhail Bakhtin e de Georges Bataille sobre o corpo. Ao aproximar o pensamento de ambos os filósofos, a argumentação de Lopes da Silva permite ao leitor observar pontos em comum a respeito do corpo, especialmente questões relativas à efemeridade, à ambiguidade e à ambivalência do excesso. Segundo o autor, “a efemeridade possibilita que o que é excessivo em um determinado tempo-espaço não o seja mais no correr da temporalidade que o envolve” (p.31). Trata-se de trabalho com potencial de ampliar o conhecimento na área.

O segundo artigo, “As disputas de sentido envolvendo o corpo homossexual masculino caracterizado como urso: um exemplo de análise dialógica”, de Rafael Lira Gomes Bastos (UFC), também tem o corpo como foco de pesquisa, mas de uma perspectiva diferente. Em um momento em que vivenciamos amplos debates sobre questões identitárias, o texto mostra ao leitor possibilidades bem fundamentadas de análise do discurso homossexual a partir do pensamento bakhtiniano. Também é a obra do Círculo que embasa o próximo artigo: “Ética participativa em Bakhtin. Pandemia e pansemia”, assinado por Pampa Arán e Ariel Gomez Ponce, ambos da Universidad de Córdoba, Argentina. No texto, os autores se aprofundam na leitura do ensaio Para uma filosofia do ato responsável (BAKHTIN, 2010BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2010.), para sugerir leituras éticas e participativas de discursos correntes durante a pandemia, envolvendo medo, humor e otimismo num difícil momento histórico.

O artigo “Análise do conto ‘A dama do cachorrinho’. Paralelos entre as relações autor-personagem em Mikhail Bakhtin e Antón Tchékhov”, trata do discurso literário. As autoras Maria Gluskova e Elena Vasilevich (USP) apresentam ao leitor cartas de Antón Tchékhov, em que o escritor discorre sobre teoria literária, aproximando-as do pensamento de Bakhtin tal como apresentado no ensaio “O autor e a personagem na atividade estética” (2006, p.3-192). A partir daí, num trabalho enriquecedor, analisam aspectos do conto “A dama do cachorrinho” e o colocam em diálogo com A dama das camélias, de Alexandre Dumas Filho. A seguir, temos o texto de Débora Luciene Porto Boenavides (PUC-RS), que faz uma retrospectiva da recepção do Círculo entre nós em “Publicação e recepção das obras do Círculo de Bakhtin no Brasil: a consolidação da análise dialógica do discurso”. Por meio de uma pesquisa detalhada, a autora divide a recepção brasileira aos trabalhos do Círculo em quatro fases, justificando-as.

Uma pitada de estudos clássicos, aliados aos discursivos, é trazida por Dolores Puga (UFMS), no artigo “O teatro ateniense como cenário para as facções políticas: uma disputa de poder na comédia As rãs de Aristófanes (405 a.C.)”. Puga contextualiza a comédia de Aristófanes, mostrando como ela responde ao momento em que foi escrita e apresentada, como se dava o financiamento das obras dramáticas, e como o teatro atuava persuasivamente a favor de facções políticas determinadas. Na análise, recorre a conceitos desenvolvidos por Orlandi, a partir da análise de discurso francesa, e Roger Chartier, historiador do livro e da leitura. No artigo seguinte, “Abordagem formal e multimodal da notícia como gênero, estrutura e metalinguagem em contextos de mídia social e digital. O exemplo do Twitter”, Jan Alyne Barbosa Prado (UFBA) apresenta um importante estudo fundamentado na semântica do discurso multimodal e na teoria da representação do discurso segmentado (SDRT), com vistas à amplificação do conhecimento transversal da literacia digital, em especial, os tweets.

Gabriel Fernandino (UFMG), autor de “Posturas enunciativas em Deus Caritas est (2005): uma análise da primeira encíclica de Bento XVI segundo formulações teóricas de Alain Rabatel”, recorre aos estudos do professor francês, reconhecido especialmente por sua pesquisa na área da linguística textual, a respeito de pontos de vista e responsabilidade enunciativa, para analisar minuciosa e eficientemente a introdução de uma encíclica papal.

O último dos artigos é uma contribuição que nos chega por meio de Sandra Madureira (PUC-SP) e Anna Smirnova (PUC-SP), que se dedicaram a reunir um grupo de pesquisadores que trabalham a língua russa em suas variadas interfaces. O primeiro desses artigos sai neste número: “A construção do corpus de larga escala da fala bilíngue de crianças e da fala bilíngue dirigida à criança, anotado e alinhado aos arquivos de áudio”, assinado por Alex Lưu (Brandeis University, Waltham, Massachussetts, USA), Pasha Koval (New York University Abu Dhabi, Abu Dhabi, United Arab Emirates), Sophia A. Malamud (Brandeis University, Waltham, Massachussetts, USA), e Irina Y. Dubinina (Brandeis University, Waltham, Massachussetts, USA). Trata-se da construção de um corpus bilíngue em condições naturalísticas, que pode lançar novas luzes sobre a aquisição da linguagem, constituindo-se em uma ferramenta importante para a pesquisa sobre a aquisição de sintaxe, morfologia e suas interações com semântica e pragmática.

O número comporta ainda três resenhas, a primeira delas já apresentada. A segunda é redigida por Vanessa Fonseca Barbosa (USP) e trata da obra Analyse du discours et comparaison: enjeux théoriques et méthodologique [Análise do discurso e comparação: questões teóricas e metodológicas], organizada por Sheila Grillo (USP), Sandrine Reboul-Touré (Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3), Maria Glushkova (USP). O texto oferece ao leitor uma visão da obra, cujo enfoque é voltado aos princípios teóricos e metodológicos da Análise de Discursos Comparativa/Contrastiva e sua disseminação no Brasil, França e Rússia. Segundo Barbosa, os textos se “inscrevem, teoricamente, em uma tríplice perspectiva: a análise contrastiva/comparativa do discurso, o dialogismo de Bakhtin, Medviédev, Volóchinov e a linguocultura russa” (p.13)2 2 Em francês: “[...] s’inscrivent, sur le plan théorique, dans une triple perspective: l’analyse des discours contrastive/comparative, le dialogisme de Bakhtine, Medvedev, Volóchinov et la linguoculturologie russe.” . É leitura especialmente relevante para todos que se interessam pela análise do discurso. Finalmente, a última das três resenhas é sobre o livro Além da tese: percursos de pesquisa em ciências humanas, organizado por Jean Carlos Gonçalves et al. Cláudia Garcia Cavalcante (UFPR) aborda a obra de uma perspectiva pessoal e sensível, destacando autores e ensaios, e mostrando a produção acadêmica durante o difícil período pandêmico que vivemos. Significativamente, a resenha leva o título de “No meio do caminho da tese, tem (a) gente e uma pandemia”.

Para finalizar, ressaltamos que Bakhtiniana continua a avançar no caminho da ciência aberta, conforme o leitor pode atestar neste número, por meio da publicação de vários e bons pareceres. Houve mais interações entre autores e pareceristas; algumas vezes, o mesmo parecerista reviu o texto que autores reescreveram de acordo com suas solicitações ou sugestões. O leitor pode constatar, assim, que a produção acadêmica é um aprendizado contínuo, um diálogo produtivo entre pesquisadores. Mas ainda há pareceristas no anonimato e Bakhtiniana os respeita e agradece por sua contribuição para a boa qualidade dos artigos publicados.

Por fim, convidamos todos - leitores, autores e colaboradores - a responder ativamente a esses textos, saboreando e incluindo em suas pesquisas este conjunto. Como podem ver os leitores, trata-se de um número que congrega dez pesquisadores brasileiros de sete diferentes universidades brasileiras (USP, UFPR, UFC, PUC-RS, UFMS, UFBA, UFMG), e dez pesquisadores de universidades estrangeiras (localizadas em Córdoba, Argentina; Waltham, Massachussetts, EUA; Abu Dhabi, Emirados Árabes; Saransk, Moscou, na Rússia).

Agradecemos, mais uma vez, o inestimável e constante apoio, auxílio e reconhecimento do CNPq, por meio da Chamada CNPq Nº 15/2021 -Programa Editorial, Proc. 402109/2021-0, e da PUC-SP, por meio do Plano de Incentivo à Pesquisa (PIPEq)/ Edital 11913/2022 Publicação de Periódicos (PubPer-PUCSP), Solicitação 22883.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.3-192.
  • BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2010.
  • MEDVIÉDEV, P. O método formal nos estudos literários Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012.
  • VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, Notas e Glossário Sheila Grillo; Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022
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