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Fundamentos epistemológicos da teoria modular da mente de Jerry A. Fodor

Epistemological fundaments of Jerry A. Fodor's modular theory of mind

Resumos

Este artigo é uma apresentação dos fundamentos da teoria modular desenvolvida por Jerry A. Fodor e uma reflexão sobre seus principais desafios. A noção de modularidade da mente de Fodor, por um lado, procura superar as insuficiências metodológicas e epistemológicas do associacionismo e do localizacionismo a respeito das explicações da estrutura e do funcionamento mental; por outro lado, é uma oposição à postura culturalista de Vygotsky, para o qual as funções superiores da mente, como a cognição, são produtos artificiais, culturais. A psicologia cognitiva de Chomsky converteu esse produto "artificial" em "natural", postulando a existência de módulos inatos para desempenhar funções cognitivas específicos. Com base nessa ideia de Chomsky, Fodor procura explicar a mente como um conjunto de módulos. No entanto, sua principal contribuição para as ciências cognitivas é a apresentação da arquitetura mental em dois níveis e a afirmação da existência de módulos centrais responsáveis pelas atividades cognitivas superiores, como criatividade, reflexão ou imaginação.

ciências cognitivas; arquitetura mental; inatismo; modularidade


The aim of this paper is to present the basic elements regarding the modular theory developed by Jerry A. Fodor and some considerations about its main challenges. Fodor's notion of mind modularity, on the one hand, aims at overcoming the methodological and epistemological gaps of associationism and localizationism concerning the explanations of the structure and functioning of the mind; on the other hand, Fodor's notion stands as an opposition to Vygotsky's culturalist posture, since for the latter the higher functions of the mind, such as cognition, are artificial and cultural products. Chomsky's cognitive psychology has converted this "artificial" product into a "natural" one, postulating the existence of innate modules to perform specific cognitive functions. Based on Chomsky's idea, Fodor describes the mind as a group of modules. However, his main contribution to the cognitive sciences is the presentation of the mental architecture in two levels and the affirmation of the existence of central modules that are responsible for the higher cognitive activities such as creativity, reflection or imagination.

cognitive sciences; mental architecture; innatism; modularity


ARTIGOS ORIGINAIS

Fundamentos epistemológicos da teoria modular da mente de Jerry A. Fodor

Epistemological fundaments of Jerry A. Fodor's modular theory of mind

Kleber Bez Birolo Candiotto

Doutor em Filosofia pela UFSCar e Professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUC-PR

RESUMO

Este artigo é uma apresentação dos fundamentos da teoria modular desenvolvida por Jerry A. Fodor e uma reflexão sobre seus principais desafios. A noção de modularidade da mente de Fodor, por um lado, procura superar as insuficiências metodológicas e epistemológicas do associacionismo e do localizacionismo a respeito das explicações da estrutura e do funcionamento mental; por outro lado, é uma oposição à postura culturalista de Vygotsky, para o qual as funções superiores da mente, como a cognição, são produtos artificiais, culturais. A psicologia cognitiva de Chomsky converteu esse produto "artificial" em "natural", postulando a existência de módulos inatos para desempenhar funções cognitivas específicos. Com base nessa ideia de Chomsky, Fodor procura explicar a mente como um conjunto de módulos. No entanto, sua principal contribuição para as ciências cognitivas é a apresentação da arquitetura mental em dois níveis e a afirmação da existência de módulos centrais responsáveis pelas atividades cognitivas superiores, como criatividade, reflexão ou imaginação.

Palavras-chave: ciências cognitivas; arquitetura mental; inatismo; modularidade.

ABSTRACT

The aim of this paper is to present the basic elements regarding the modular theory developed by Jerry A. Fodor and some considerations about its main challenges. Fodor's notion of mind modularity, on the one hand, aims at overcoming the methodological and epistemological gaps of associationism and localizationism concerning the explanations of the structure and functioning of the mind; on the other hand, Fodor's notion stands as an opposition to Vygotsky's culturalist posture, since for the latter the higher functions of the mind, such as cognition, are artificial and cultural products. Chomsky's cognitive psychology has converted this "artificial" product into a "natural" one, postulating the existence of innate modules to perform specific cognitive functions. Based on Chomsky's idea, Fodor describes the mind as a group of modules. However, his main contribution to the cognitive sciences is the presentation of the mental architecture in two levels and the affirmation of the existence of central modules that are responsible for the higher cognitive activities such as creativity, reflection or imagination.

Keywords: cognitive sciences; mental architecture; innatism; modularity.

1. Introdução

A discussão do relacionamento, ou entrelaçamento, de mente e cérebro produziu as mais diversas concepções sobre a organização geral do cérebro, desde o que podemos chamar de abordagens socioculturais, passando pelas discussões mais recentes advindas da biologia, como o localizacionismo e o holismo, até a proposta mais próxima da neurociência cognitiva, a modular, que trataremos neste artigo.

A psicologia cultural, já orientada por Wundt na sua Volkerpsychologie, propõe uma aproximação entre antropologia, psicologia e psicoantropologia, com a finalidade de obter uma ciência humana interdisciplinar, que estaria ligada à tarefa de desfazer o mal-entendido entre biologia e cultura: mal-entendido que as ciências humanas herdaram do século XIX. A psicologia cultural deixaria de ver a "cultura" como um tipo de "revestimento" sobre a natureza humana determinado biologicamente, tomando a perspectiva de que a cultura e a procura do significado dentro da cultura são as próprias causas da ação humana.

Vygotsky, nas décadas de 1920 e 1930, comprometeu-se a formular uma psicologia fundamentada no marxismo, tendo como princípio fundamental a crença iluminista no progresso e na racionalidade humana universal: "a racionalidade seria acessível a toda a humanidade, embora alguns grupos e indivíduos não estejam em estágio semelhantes no seu domínio sobre elas" (Wersch, Del Río & Alvarez, 1998, p. 15-6). Luria fez várias distinções nas "propriedades genéticas" da história sociocultural e da ontogênese entre processos "superiores" e "elementares" do funcionamento mental. As suposições de Vygotsky adotam a noção de que há um paralelo universal e evolutivo entre a cultura e a unidade psíquica do ser humano.

A perspectiva vygotskyana considera as funções e a inteligência como produtos artificiais (psicotécnicas). Este produto cultural teria sido convertido, ao longo do tempo, em um "modelo natural" pela corrente da psicologia cognitiva, nas figuras de Chomsky e Fodor, que buscaram validade não só por meio de processos psicológicos culturalmente mediados, como também em relação a todos os processos psicológicos humanos.

Na abordagem localizacionista, prevaleceu a crença de que as diferentes partes do cérebro servem a diferentes funções cognitivas. A partir de tal premissa, o localizacionismo focou-se em duas discussões: a existência de faculdades "horizontais", para a qual a percepção e a memória, por exemplo, residiriam em regiões diferentes; e a afirmação de conteúdos "verticais", como processamento visual no lobo occipital e linguagem no lobo frontal e temporal, por exemplo.

Por outro lado, equipotencialistas, ou holistas, como K. Lashley, sugeriam que a quantidade de tecido cerebral intacto determinaria se um organismo, como um rato em suas experiências, poderia desempenhar uma tarefa. O que ficou demonstrado foi que, seccionando regiões de qualquer área do cérebro, o rato ainda era capaz de sair-se bem em um labirinto. A experiência mostrou-se falha porque, na verdade, o rato baseava-se em indícios altamente redundantes advindos de diversas áreas sensoriais, e, portanto, não fazia muita diferença que áreas do cérebro de fato fossem removidas, contanto que algumas fossem deixadas intactas. Verificamos, então, um emergente consenso sobre a localização cerebral. O cérebro pode ser dividido em regiões específicas, cada uma mostrando-se relativamente mais importante para determinadas tarefas e relativamente menos importantes para outras. Tal proposição é o que constitui, em nossa opinião, a passagem para perspectivas emergentes, e amplamente divergentes, como a teoria de Fodor, que afirma consistir a cognição humana em alguns mecanismos cognitivos "de finalidades específicas" supostamente dependentes de "instalações duráveis".

2. Fundamentos chomskyanos da modularidade

Em 1956, Noam Chomsky, durante o Simpósio do Massachusetts Institute of Technology (MIT), expôs, em A gramática transformacional, uma versão prévia de sua teoria linguística, mais bem desenvolvida em Syntactic Structures, de 1957 (2002). Na perspectiva da Gramática Transformacional, a teoria da informação de Shannon, assim como o modelo behaviorista, não teria bases consistentes e eficazes para explicar a linguagem natural. A novidade da teoria de Chomsky é o formalismo, próximo ao formalismo matemático, a que a linguagem natural pode ser submetida. A linguagem pode ser entendida como um processo gerativo de sentenças, estruturado e regido por padrões e regras lógicos de transformação. Estes padrões ou regras lógicos que governam a linguagem constituem uma gramática profunda das línguas naturais.

Com o objetivo de analisar a estrutura profunda da língua natural, a metodologia de Chomsky espelha-se em modelos formais que fornecem uma descrição dos padrões regulares, universais, da comunicação. Como estratégia metodológica de pesquisa, Chomsky tomou as regras de formação das expressões, a sintaxe pura, independentemente de seu conteúdo. A Gramática Transformacional, enquanto um modelo de pesquisa, procura identificar formalmente os padrões que intuitivamente qualquer humano possui a respeito de seu sistema de linguagem. Mesmo uma criança, assim como um analfabeto, que desconhece formalmente as regras gramaticais (sintaxe), sabe intuitivamente julgar quando uma frase dita por um adulto ou outra criança está mal formulada. As regras que a capacidade intuitiva apreende é o objeto da pesquisa de Chomsky.

A teoria de Chomsky faz um recorte, enfocando as observações que o linguista pode obter com base no exercício da linguagem natural. Como qualquer teoria, que visa a generalização, a Gramática Transformacional reduz ao máximo as expressões particulares que um falante pode produzir no contexto de sua língua nativa para deduzir suas regras profundas. A partir destas regras, Chomsky infere que existe uma gramática universal e inata.

Distintamente do behaviorismo e das abordagens estruturalistas,1 1 As abordagens estruturalistas, aqui, referem-se principalmente àquelas influenciadas pela proposta por Ferdinand de Saussure (1857-1913). Em 1878, Saussure publica sua Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-européennes, base dos resultados posteriores que constituirão a Gramática Comparada como disciplina rigorosa e com métodos precisos. Em 1916, em Genebra, três anos após a morte de Saussure, os cursos por ele lecionados, na cadeira especialmente criada para ele, são publicados no monumental Curso de linguística geral (1969). As cinco teses centrais do Curso (a arbitrariedade do signo; signo, significado, significante; linguagem, língua/ langue e fala/ parole; o valor distintivo dos elementos linguísticos; sincronia e diacronia) são consideradas fundamentais para o que chamamos de Linguística Estrutural. Estas teses constituem uma teoria de conjunto a respeito da linguagem e fundam a Linguística como disciplina científica de rigor. a abordagem de Chomsky sobre a linguagem tem como premissa que a essência da linguagem é a sintaxe, compreendida como a capacidade humana de combinar e recombinar símbolos verbais, mediante regras específicas (regras gramaticais) que possibilitam a formação de inúmeras sentenças gramaticalmente válidas, predominando uma perspectiva puramente "computacional" da sintaxe. Entendida assim, como uma combinação de símbolos (palavras, conectivos, advérbios, verbos, substantivos...), a perspectiva computacional desconsidera o nível semântico e o nível fonológico da linguagem. A sintaxe toma relevância para a compreensão não só da formação e desenvolvimento das regras da linguagem, mas também da relação da formação e desenvolvimento destas regras com os processos psicológicos, as estruturas cognitivas.

Chomsky propõe que a linguística concentre-se no estudo da linguagem com base em uma abordagem idealizada: estudar a linguagem como uma forma ideal.2 2 A abordagem de Chomsky sobre a linguagem é formal, abstrata, desconsiderando a maneira com que as pessoas de fato falam (utentes), erros, pausas, lapsos, memória... Chomsky desenvolveu sua concepção inatista da linguagem partindo da constatação de que o ser humano possui, congenitamente, uma evidente inclinação para aprender uma língua: um dispositivo de aquisição da linguagem que facilita sua aquisição. Os humanos teriam uma estrutura biologicamente "pré-configurada" que os tornaria aptos a adquirir linguagem. Além disso, Chomsky também chama a atenção para o modo pelo qual as crianças aprendem uma língua: fenômeno de características altamente abstratas. A constatação do caráter abstrato da linguagem e seu aprendizado levou Chomsky a firmar uma posição mentalista: é necessário levar em conta o conceito de mente para poder explicar o caráter abstrato da linguagem. Retomando o conceito de mente, conceito que foi abolido pelo behaviorismo, Chomsky é considerado por muitos como o pioneiro da chamada revolução cognitiva.3 3 Chomsky (1967) afirma que Skinner, na obra Verbal Behavior, procurou explicar o comportamento verbal em termos de condicionamento operante: reforços ou punições a sentenças emitidas pela criança, ou, no máximo, ouvidas por ela. Para Chomsky, Skinner ignorou completamente os aspectos estruturais e criativos da linguagem. Kenneth MacCorquodale publicou um artigo, em 1970, no Journal of the Experimental Analysis of Behavior intitulado On Chomsky's Review of Skinner's Verbal Behavior, no qual faz uma defesa das noções skinnerianas atacadas por Chomsky em sua resenha de 1959 do livro Verbal Behavior, de Skinner. Teixeira (2005, p. 67) faz uma importante observação a respeito disso: a grande complexidade e dificuldade de compreensão das teorias contidas no Verbal Behavior retardou a reação da comunidade behaviorista às críticas de Chomsky, o que o ajudou a tornar-se uma espécie de herói oportuno para a revolução cognitiva. Foi somente no final dos anos 60 que a crítica chomskyana começou a ser reexaminada [...]. O aspecto mais importante destas revisões foi evidenciar que Chomsky atacou a obra de Skinner julgando estar diante de uma teoria da linguagem, e não de uma teoria do comportamento linguístico".

As ciências cognitivas demonstraram o quanto é difícil representar, se não mesmo impossível modelizar, os processos cognitivos de forma única, global. Levando em consideração tal dificuldade, novas perspectivas foram abertas para os estudos e representação da cognição. Entre muitas perspectivas, das quais daremos melhores referências adiante, vamos desenvolver, como já justificamos no início deste capítulo, a abordagem modular dos processos cognitivos, defendida inicialmente por Chomsky e aprimorada por Jerry Fodor em sua teoria da modularidade da mente.

A teoria da modularidade defende a afirmação de que a mente é formada por vários módulos de processamento de informação, e esses módulos operam de forma relativamente independente uns dos outros, processando somente um tipo específico de informação (corporal, visual, auditivo, linguístico...). Baseado na teoria transformacional de Chomsky, Fodor entende que cada um destes módulos possui uma forma de funcionamento inato e não apreendido. O que ocorre ao longo de nossas vidas é uma adaptação destes módulos ao ambiente, possibilitando a aprendizagem.

3. Fodor e a formulação da teoria modular

Fodor, rejeitando as explicações que entendem a percepção geral, a memória e o julgamento como "processos horizontais" ou "em série", afirma que os processos mentais são mais bem pensados como módulos independentes ou "encapsulados", funcionando cada um com regras próprias e processos próprios em "módulos verticais", como a linguagem, a análise visual ou o processamento musical, cada um com seu modo de operação característico. Módulos estes ligados a um "processador central" que tenha acesso às informações de todos os outros módulos. O processador é "flexível" para tomar decisões e resolver problemas por meio dos vários inputs que recebe, permitindo que se construam hipóteses (crenças) de como o mundo é.

A definição da arquitetura do mental é apresentada por Fodor em A modularidade da mente, de 1983, que teve origem em um curso sobre Teoria da Cognição, desenvolvido juntamente com Chomsky, em 1980, no MIT.4 4 Conforme o próprio Fodor menciona na apresentação de The Modularity of Mind. Vejamos algumas justificativas que o próprio Fodor apresenta no início de sua obra de 1983:

- A noção de modularidade da mente contraria a perspectiva associacionista, na qual a ontogênese dos processos mentais opõe-se à explicação inatista, e, por isso, Fodor advoga a psicologia das faculdades mentais.5 5 Psicologia das faculdades mentais refere-se à postura vertical da psicologia, e opõe-se à visão generalista ou horizontal da mente, defendida, por exemplo, por Piaget.

- A psicologia das faculdades mentais entende "a mente como um complexo heterogêneo e destaca as diferenças entre funções ou noções mentais, como sensação e percepção, volição e cognição, aprendizagem e memória, linguagem e pensamento" (1983b, p. 01).

- Pretende ser um programa de pesquisa que distingue o comportamento exterior do comportamento observável, entendendo-os como o resultado da interação dessas faculdades distintas.

- O mentalismo é evidenciado mediante a seguinte afirmação: "a estrutura do comportamento está para a estrutura da mente, assim como o efeito está para a causa" (1983b, p. 02).

- É um estudo que se restringe à psicologia cognitiva, deixando de lado a psicologia das emoções, assim como a psicologia social.

O principal objetivo da metáfora da mente modular em A modularidade da mente é entender no que consiste a estrutura da mente e como são organizadas as capacidades cognitivas. Para isso, Fodor apresenta quatro explicações acerca da natureza da estrutura mental, que se diferenciam em alguns pontos e se identificam em outros: neocartesianismo, estrutura horizontal da mente, estrutura vertical da mente e associacionismo. É com base no contraste entre estas explicações que emerge a posição a favor da psicologia das faculdades mentais, fundamento de sua tese da modularidade da mente. No entanto, como o próprio Fodor reconhece, essas explicações não são necessariamente as únicas existentes, pois sua visão é shamelessly eclectic, ou seja, "descaradamente eclética" (1983, p. 03).

Fazendo referência à noção de inatismo de Descartes, e influenciado por Chomsky, a primeira explicação que Fodor apresenta é sobre o neocartesianismo, para o qual, neste caso, a estrutura da mente é compreendida como a estrutura do conhecimento. O neocartesianismo sustenta-se na perspectiva chomskyana da estrutura mental como faculdade ou órgão psicológico, perspectiva essa relacionada à aprendizagem linguística. Chomsky desenvolve a noção de que o aprendizado linguístico pode ser explicado mediante uma interação de caráter computacional entre uma faculdade ou órgão linguístico que é inato. Por meio de um conjunto de aspectos inatos acerca de construções universais da língua, é possível explicar a assimilação definitiva da capacidade linguística como a interação computacional entre este conjunto de aspectos inatos e uma série de dados linguísticos empíricos. Sendo assim, o desenvolvimento ontogênico das faculdades mentais é o produto de um processo determinado de modo intrínseco. Chomsky apresenta analogias anatômicas: assim como o desenvolvimento dos órgãos do corpo compreende-se como o desdobramento de um processo determinado de modo intrínseco, também o desenvolvimento de uma suposta faculdade da linguagem possui um desdobramento com as mesmas características. Essa "estrutura psicológica intrínseca é rica [...] e diferenciada" (Chomsky, citado em Fodor, 1983, p. 03). Com base na mesma obra de Chomsky, Rules and Representations, Fodor contrasta esta perspectiva chomskyana com todas as formas de empirismo, que assumem "a homogeneidade e não diferenciamento do estado inicial, uniforme, através dos domínios cognitivos" (citado em Fodor, 1983, p. 03).

Na esteira de Chomsky, uma computação é uma transformação de representações que está submetida a relações semânticas6 6 Aqui Fodor resgata sua preocupação já exposta em A linguagem do pensamento, de 1975. de implicação, confirmação e consequência lógica. Estas relações semânticas são apenas verificáveis entre objetos de possível atribuição de conteúdo proposicional. A interação entre conhecimentos inatos e a experiência perceptual é de caráter computacional e deve ser verificada entre aqueles objetos possíveis de se lhes atribuir conteúdo proposicional. A ação dos estados mentais, de conteúdo proposicional, é de natureza dedutiva.7 7 Fodor menciona que esta estratégia nativista é "prototipicamente" cartesiana e remonta a Platão, que no Menon, mediante o personagem Sócrates, demonstra pela dialética que um escravo é capaz de responder a questões de geometria sem nunca antes ter estudado geometria. Por isso, deduções são obtidas de uma teoria universal dos números e das formas. Sua capacidade geral explica seu comportamento específico: sua competência explica seu desempenho.

A psicologia introspectiva, cartesiana, assume que a estrutura mental deve explicar totalmente a função dos conteúdos proposicionais dos estados mentais. Cada faculdade mental pode ser identificada devido ao conteúdo proposicional que lhe é próprio. Esta perspectiva é questionada por Fodor (1983, p. 10): "como é possível este desdobramento computacional dos conteúdos proposicionais? Como a estrutura do comportamento consegue ser o reflexo das estruturas proposicionais que o ser humano conhece?"

A segunda explicação que Fodor menciona refere-se às faculdades horizontais, entendendo a estrutura mental como arquitetura funcional. Com o objetivo de responder às perguntas acima, contrastando com a perspectiva chomskyana, desponta a ideia de que a faculdade psicológica seja um tipo de mecanismo funcionalmente identificável. Cada faculdade é distinguível em virtude dos efeitos específicos que origina, e não em virtude dos seus conteúdos proposicionais. Há, portanto, uma distinção entre aqueles mecanismos que intervêm na assimilação e o destino de certas capacidades, sem necessitar de nenhum tipo de distinção no nível de estruturas proposicionais cognoscíveis. Estas faculdades psicológicas são mecanismos capazes de executar o desdobramento computacional da forma proposta por Chomsky.

Dessa nova caracterização da psicologia das faculdades, temos duas vertentes: uma horizontal e outra vertical. Na perspectiva horizontal, uma mesma faculdade pode estender-se a domínios cognitivos diferentes. Neste caso, a atenção, a memória, a imaginação, a percepção, por exemplo, são faculdades que podem estender-se a diferentes domínios cognitivos. Dessa forma, na perspectiva horizontal das estruturas mentais, a mesma faculdade exercita-se em relação a distintos conteúdos. O sistema de memória seria o mesmo para referir-se a proposições como a lembrança da cor de uma casa ou de eventos como "a casa desmoronou". Portanto, uma faculdade horizontal é um sistema cognitivo que permeia mais de um domínio.

Para Fodor, a explicação horizontal da psicologia das faculdades pode não ser satisfatória, uma vez que sua origem parece ter vindo de uma teoria do senso comum, com uma característica simplista (1983, p. 14). Por isso, aproxima-se a explicação vertical da estrutura do mental como arquitetura funcional: sua terceira exposição. A postura vertical da psicologia das faculdades considera que não existem faculdades horizontais, tais como juízo, volição, atenção, memória, funcionalmente distinguíveis; pelo contrário, apenas existem faculdades psicológicas aplicadas a domínios cognitivos específicos. Fodor identifica os antecedentes desta postura vertical em F. J. Gall (1758-1828), o pioneiro com a noção de que as faculdades psicológicas8 8 O termo "faculdade psicológica" é de Fodor, pois Gall, o pai da frenologia, utilizava termos como atitude ou tendência. De acordo com Gall, não podemos falar de memória, atenção, volição, entendidas como faculdades gerais, horizontais. O que existe são disposições, propensões, aptidões, entendidas como competências em domínios específicos, contrariando a noção horizontal, em forma de competências gerais. A aptidão musical, por exemplo, distingue-se da aptidão matemática ou da verbal, pois há um mecanismo psicológico específico para cada capacidade cognitiva, e tais mecanismos são distintos entre si (cf. Fodor, 1983, p. 14-9). são verticais e aplicam-se a domínios cognitivos específicos, funcionando de maneira autônoma. Um exemplo de Gall sobre a "acuidade" ilustra bem a questão (Fodor, 1983, p. 15). Pode haver acuidade visual, auditiva, intelectual, mnemônica..., mas não uma capacidade exclusiva de acuidade: um indivíduo pode ser mais capaz de ter mais acuidade num aspecto (auditivo, visual...) que em outro. Portanto, não há uma capacidade da acuidade, mas podemos falar de parâmetros de diferentes módulos: visão, audição, intelecto, memória... O resgate dessa perspectiva de Gall estabelece uma fusão entre o nativismo9 9 A postura nativista de Gall, embora seja extrema, pode ser qualificada como um fundamento significativo à pesquisa de Fodor: "as propensões e instintos, as atitudes e talentos, as habilidades intelectuais e as qualidades morais dos homens e animais são inatas" (Gall, citado em Fodor, 1983, p. 16). e a especificidade de domínio específico de capacidades cognitivas. O exemplo de Gall torna-se mais específico em relação à memória: ela não poderia ser horizontal, pois, dado que podemos lembrar muito bem algumas coisas, ninguém é capaz de lembrar igualmente bem de qualquer outra coisa, nem em relação a vários domínios cognitivos. Alguém pode ser um excelente memorizador de números, mas não necessariamente bom memorizador de uma pauta musical ou de um poema, pois a memorização de números não é como a memorização de um poema, por exemplo.10 10 Outro exemplo de Fodor (1983, p. 19) é sobre um matemático e um metafísico: "Jones é um bom matemático, mas um ruim metafísico, e Smith possui aptidões contrárias. Então matemática e metafísica são competências distintas", e, assim, existe uma faculdade matemática distinta de uma faculdade metafísica.

Há outras faculdades mentais, como juízo, volição, atenção, que poderiam ser equivocadamente caracterizadas como horizontais. As faculdades horizontais são apenas atributos diferentes comuns às qualidades psicológicas fundamentais, ou seja, não são faculdades, pois não possuem locais específicos no cérebro. No entanto, as faculdades verticais, que são capacidades fundamentais, podem ser identificadas a mecanismos cerebrais específicos, determinados geneticamente. As faculdades verticais, segundo a perspectiva de Gall, possuem as seguintes características:

- as faculdades verticais são específicas para cada domínio;

- são determinadas geneticamente;

- encontram-se associadas a estruturas neurais distintas;

- e são computacionalmente autônomas.11 11 Esta última característica implica que as capacidades fundamentais não compartilham nem competem entre si por recursos de caráter horizontal.

Para Fodor, a noção vertical das faculdades psicológicas de Gall foi uma das mais significativas contribuições da psicologia teórica, tornando-se base da Ciência Cognitiva moderna e para o desenvolvimento da noção de um módulo cognitivo. Mas por que Gall, questiona Fodor, não é valorizado nos livros acadêmicos? A seu ver, Gall cometeu dois grandes equívocos:12 12 Essas equivocadas ideias rapidamente deram origem à frenologia, que passou a medir caráter, propensão ao crime, pelas protuberâncias do crânio, da cabeça. Isto causou uma lamentável memória de charlatanismo e fraude da qual, certamente, Gall não é responsável, mas a que teve seu nome associado (1983, p. 22-3). a) associou grau de desenvolvimento de um órgão com a dimensão relativa da área mental correspondente; e b) propôs que o cérebro e o crânio estão ajustados assim como uma luva na mão.

Fodor, para responder à questão "como as capacidades cognitivas são organizadas?", apresenta a quarta e última tendência de explicação da natureza da estrutura mental: o associacionismo. Esta tendência contrapõe-se à teoria das faculdades (vertical e horizontal) e procura oferecer uma explicação da ontogênese dos processos mentais em oposição à explicação inatista, desprezando a necessidade de faculdades mentais. Para o associacionismo, não é possível explicar a estrutura mental tomando como base a existência de faculdades mentais, assim como afirmar que estas faculdades são a base de entidades mais fundamentais, como vimos anteriormente.

O associacionismo, com origem no empirismo clássico de Locke e Hume, desenvolveu ao longo dos dois últimos séculos versões distintas, como a de Ebbinghaus, Thorndike e, de forma peculiar, Skinner. Hermann Ebbinghaus, no final do século XIX, foi um dos pioneiros a compreender que era possível medir processos mentais internos, defendendo o associacionismo. Ebbinghaus sai à frente dos psicofísicos G. Fechner e E. H. Weber, que relacionavam, medindo e reproduzindo as propriedades físicas de fenômenos, como a luz e o som, às experiências psicológicas que podiam produzir no observador. Também sob a influência da teoria da seleção natural de Darwin, E. Thorndike articulou a lei do efeito, lei que demonstra a natureza das associações: a resposta a uma recompensa está gravada ao organismo como uma resposta habitual. Se não existe recompensa após a resposta, esta desaparece.

Fodor (1983, p. 27) elenca um conjunto de noções aceitas pelos associacionistas na tentativa de explicação da teoria cognitiva:

a) Os associacionistas aceitam um conjunto de elementos primários que compõem todas as estruturas psicológicas. Na perspectiva associacionista mais comportamental, como o de Skinner, esses elementos primários referem-se à noção de reflexo. Já os associacionistas, como Hume, que defendem um caráter "mentalista" das estruturas psicológicas, preferem a noção de ideia.

b) Aceitam a existência de leis associativas que se aplicam à relação entre ideias e reflexos. Ideias e reflexos são, neste entender, produtos de associações, gerando uma distinção entre estruturas psicológicas elementares e complexas.

c) Existem certos princípios de leis associativas sobre a forma com que a experiência empírica de um organismo determina quais elementos serão associados, ou seja, que ideias serão associadas ou (mutatis mutandis) que reflexos condicionados são formados. Assim, seja o associacionista dos reflexos ou o associacionista das ideias, o principal dos princípios é o princípio da contiguidade espacial-temporal.

d) Relações associativas admitem parâmetros relevantes para as estruturas psicológicas relacionadas. Dessa forma, por exemplo, as relações associativas podem ser definidas por sua intensidade (a repetição, como em Hume), assim como os reflexos podem diferenciar-se em seu nível operante.

Para a versão clássica do associacionismo, as faculdades mentais não explicam nada, uma vez que todos os fenômenos autenticamente psicológicos são redutíveis aos objetos e relações destacadas nos itens acima. Para o associacionismo, não existem capacidades mentais (no plural), mas apenas uma: a capacidade de fazer associações. Assim, não existem faculdades como mecanismos causais, mas relações entre ideias e reflexos, de característica computacional. É possível, portanto, afirmar a existência de um sistema cognitivo como um sistema computacional, uma vez que, para a teoria cognitiva, o processo psicológico é o resultado de transformações de representações mentais, sendo o sistema cognitivo a entidade capaz de levar a se realizarem tais transformações.13 13 Esta questão pode ser mais bem compreendida em Fodor (1975, p. 164-9).

O modelo E-R do associacionismo comportamental, mesmo em suas versões modernas,14 14 Embora não esteja explícito, os modelos conexionistas são um exemplo de versão moderna dessa vertente que Fodor critica. Este conexionismo é o definido por H. Dreyfus (in Andler, 1998, p. 315-6): "eles [os modelos conexionistas] utilizam sistemas neuronais artificiais e tratamento paralelo distribuído. Os modelos mais sofisticados têm não somente um conjunto de elementos codificando os estímulos do mundo real, bem como um conjunto de elementos codificando as respostas associadas, mas nós intermediários (escondidos) que desempenham um papel na tradução do input em output". contrapõe a existência de uma arquitetura mental de mecanismos psicológicos intrínsecos, e afirma a existência de relações dinâmicas (por exemplo, atração, repulsão, assimilação...) entre os elementos em si mesmos. Assim, o associacionismo torna-se uma doutrina da mente fundamentalmente distinta daquela defendida pela teoria de faculdades computacionais, estabelece uma maior valorização do produto, do corpus, em relação à faculdade, a capacidade gerativa. Esta posição pode ser paradoxal, pois tanto o associacionismo clássico quanto o associacionismo computacional procuram negar ou reduzir o papel das estruturas mentais, ou seja, não admitem a existência de uma arquitetura mental inatamente especificada, como um programa genético, um hardware. E, se admitem (associacionistas computacionais), essas estruturas teriam uma existência posterior às associações, pois são resultados destas.

Essa revisão conceitual feita por Fodor tem a intenção de sugerir um conjunto de questões problemáticas que o leva a concluir pela vantagem da hipótese modular na compreensão da mente. Eis os questionamentos (1983, p. 36-7):

- Os sistemas cognitivos possuem domínio específico ou suas operações passam por domínios de conteúdo? E a organização cognitiva, é vertical ou horizontal? Gall ou Platão?

- O sistema computacional é um sistema inatamente especificado, ou suas estruturas são formadas mediante um processo de aprendizagem?

- O sistema computacional "montado" é resultado de associações de elementos tais como reflexos ou ideias, ou sua arquitetura é implementada neurologicamente?

- Os sistemas cognitivos são computacionais (no sentido em termos de sistemas neurais únicos, específicos), são individualizáveis ou compartilham mecanismos neurais equipotenciais?

- Os sistemas computacionais são autônomos (no sentido de Gall) ou compartilham recursos horizontais (de memória, atenção, ou outra coisa) com outros sistemas cognitivos?

Estas foram, portanto, as quatro diferentes formas de explicar a estrutura da mente, que, segundo Fodor, diferem em importantes pontos, e tais diferenças podem ser úteis para a compreensão do sistema cognitivo. Com base nesse estudo inicial, Fodor conclui a existência de processos modulares, uma vez que os estudos da mente nesta perspectiva (vertical) são mais vantajosos.

Fodor reconhece a existência de processos não-modulares (mediado por faculdades horizontais), tais como pensamento ou fixação de crenças. No entanto, as estratégias nas pesquisas desses processos praticamente não progrediram. Sendo assim, "os argumentos pela não-modularidade devem ser acolhidos com considerável pessimismo" (Fodor, 1983, p. 38).

4. Módulos cerebrais e o processador central

Segundo a concepção de modularidade da mente de Fodor, mecanismos mentais específicos, funcionais e plásticos, foram estabelecidos por seleção natural. São, portanto, estruturas inatas de conhecimento, em que o meio ambiente desenvolverá o domínio específico relacionado ao módulo mental computacional correspondente.

A arquitetura do modelo computacional da mente de Fodor é composta de três sistemas que operam sequencialmente:

a) Sistemas compiladores: são os sistemas do nível sensorial que fornecem os suportes perceptivos, tais como visão, audição (Fodor, 1983, p. 61-4);

b) Sistemas de entrada: é a operação computacional, encapsulada, encarregada de identificar os objetos por meio de suas características visuais, auditivas... São os analistas de entrada sensorial, semelhante ao mecanismo encarregado de transcrição e tradução em uma linguagem, como na fita de uma Máquina de Turing, que, sintetizando inputs sensoriais, dão a eles formatos perceptivos, devendo fazer a máquina "entender". O sistema de entrada é constituído pelos módulos em bottom-up,15 15 Bottom-up é a via que conduz do mundo exterior à percepção e desta ao sistema central, por oposição à top-down, que desce desde à informação do sistema central até a percepção e o sistema de entrada. que estão isolados informacionalmente: o domínio da visão é específico de seu próprio sistema de entrada e não será "invadido" por outros domínios perceptivos, como audição e tato, por exemplo, e tampouco será "invadido" por informações do sistema central (Fodor, 1983, p. 64-7);

c) Processador central: é a Máquina, a cognição, propriamente dita, que processa as informações do sistema de entrada e as informações já armazenadas na memória de modo isotrópico, isto é, a informação agora se encontra integrada e acessível ao longo de toda sua estrutura (Fodor, 1983, p. 86-99):

Essa taxonomia desenvolvida por Fodor tem como objetivo central apresentar o conceito de módulo cognitivo. Antes de definir "módulo cognitivo", contudo, Fodor o associa a um conjunto de propriedades que um sistema cognitivo deve cumprir para ser considerado modular.

Conforme Mithen (2002, p. 62), a modularidade dos sistemas de entrada, o sistema "estúpido", é atestada por duas classes de características. Na primeira classe, a mais evidente: a) os módulos estão associados a partes específicas do cérebro; b) os módulos estão associados a padrões de desenvolvimento cerebral na criança; c) os módulos também exibem padrões específicos de interrupção; d) os sistemas de entrada operam muito rapidamente e são obrigatórios: não podemos deixar de ouvir ou de ver em face de um estímulo. Na segunda classe, a mais discutível: a) um dado sistema de entrada não tem acesso direto à informação que está sendo adquirida por outros sistemas: o que se vê não é influenciado pelo que se ouve ("encapsulado"); b) os sistemas de entrada recebem informações limitadas do e pelo sistema central: o conhecimento geral, ou "capacidade cognitiva geral", de qualquer indivíduo, tem influência marginal ou limitada na maneira pela qual ele percebe o mundo: ilusões óticas persistem, mesmo quando se sabe que o que se vê não é real; c) contrariando as ideias relativistas das ciências sociais (mente entendida como esponja), a natureza da percepção já está embutida na mente no nascimento.

O sistema central ou "esperto" possui duas classes de características. Na primeira, por redução ao absurdo, as características são opostas ao sistema de entrada: a) eles não operam rapidamente, não são encapsulados e não influenciam o domínio (integram a informação de todos os sistemas de entrada, além daquela que está sendo gerada internamente); b) não podem ser relacionados com partes específicas do cérebro. Na segunda classe, fica evidenciado que o caráter fundamental da cognição é holista: "criatividade" e "analogia".

Em que pese a simplificação, podemos resumir a quatro os fundamentos hipotéticos da proposta modular de Fodor (1983, p. 38-47):

a) Os vários módulos ou "órgãos mentais" desenvolvem-se de modo específico, de acordo com um programa genético, do mesmo modo que ocorre no desenvolvimento dos demais órgãos do corpo. O processo de seleção favoreceu o aparecimento de "mecanismos computacionais", alguns, compartilhados com outros animais, como a "percepção facial", e outros tipicamente humanos, como a "produção da sintaxe" e da "semântica". Alguns são de reação física, enquanto outros são, decididamente, de controle voluntário.

b) A mente é um estado funcional do cérebro e não tem estatuto ontológico separado do cérebro biológico. O modelo modular de estado funcional implica diferentes mecanismos computacionais, com finalidades específicas. Cada mecanismo funciona com independência de suas próprias capacidades perceptivas e/ou mnemônicas. Ao longo do processo de seleção, passou a existir interação entre estes mecanismos, e, na maior parte do tempo, a maioria, talvez todos, operam juntos na execução de pensamentos complexos.

c) As funções mentais são produzidas por acontecimentos cerebrais mediante processos computacionais, com base em elementos básicos: os neurônios. Decorrendo daí, do extrato neuronal, que a operação de tais mecanismos é autônoma em sentidos diferentes. Em um primeiro nível, cada mecanismo funciona independentemente, de acordo com seus próprios princípios de funcionamento, não estando "ligado" aos outros. Em um segundo nível, os mecanismos de processamento operam independentemente da consciência; suas operações são disparadas na presença de eventos ou informações do ambiente. No segundo nível, a operação dos módulos é inacessível ao uso da consciência e, neste sentido, os módulos são encapsulados.

d) Cada função cognitiva pode ser considerada como um "módulo" ou um "órgão" específico, como a percepção, a linguagem..., da arquitetura mental: cada mecanismo computacional é específico, independente e "plástico".

Considerações finais

A principal contribuição da teoria modular de Fodor refere-se à noção de "sistema central". Os módulos de entrada possuem compreensão bem clara: são encapsulados, rápidos, obrigatórios e já vêm embutidos na mente ao nascermos, contrariando a noção culturalista de "mente esponja". Nossa "cognição" (pensamento, reflexão, imaginação, inteligência, capacidade de tomada de decisão) está, entretanto, situada em uma região central entre os módulos de entrada, formando os chamados "sistemas centrais". O conhecimento e entendimento desses sistemas centrais é, a nosso ver, o principal desafio das Ciências Cognitivas. Pouco se sabe ainda de seu funcionamento, a não ser que possuem características opostas aos sistemas de entrada.

Concluindo, na metáfora de Fodor, a mente possui uma arquitetura em dois níveis. No primeiro nível, a formação da mente moderna, que é o resultado do processo evolutivo, deu-se mediante um projeto bem engenhoso. A necessidade de adaptação do homem ao mundo que o rodeia possibilitou gerar a percepção para detectar o que está coerente neste mundo. Para Fodor, mais importante que o "eternamente belo e verdadeiro" é não sermos devorados. Assim, em situações de ameaças ou de oportunidades, é preciso ter reações imediatas, praticamente sem pensar. Para isso, houve o desenvolvimento desse primeiro nível da mente humana, que é rápido, porém "estúpido". No segundo nível, quando essas situações de perigo, por exemplo, não eram mais comuns, o homem conseguiu sobreviver contemplando a natureza do mundo de maneira lenta e reflexiva, o que possibilitou o aprimoramento de sua racionalidade para a identificação da ordem e estruturas do mundo. Este segundo nível é chamado de lento e contemplativo. Assim, segundo Fodor, a nossa adaptação ao mundo promoveu duas questões: exigir o melhor desempenho do sistema rápido e "estúpido", assim como do sistema lento e contemplativo, sem haver preferência por um ou outro.

Fodor entende que os sistemas de entrada podem ser relacionados com partes específicas do cérebro, o que não é possível dizer dos sistemas centrais. A cognição deve ser vista de forma holística, o que implica a impossibilidade atual de descrição. Assim, a arquitetura do mental para Fodor dá-se em dois níveis: um inferior, que pode ser comparado a outros objetos no mundo, como o canivete suíço; e outro superior, que não há algo igual no mundo para compará-lo, não sendo, por isso, possível seu estudo. Essas limitações levarão Fodor mais tarde desenvolver a noção de "solipsismo metodológico" e postular a existência de causalidade mental. Por isso, podemos afirmar que o programa de pesquisa Fodor tem como desafio compreender por que e como nós fazemos as afirmações que fazemos com base no equipamento mental que temos.

Artigo recebido em 06/08 e aprovado em 10/08.

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  • 1
    As abordagens estruturalistas, aqui, referem-se principalmente àquelas influenciadas pela proposta por Ferdinand de Saussure (1857-1913). Em 1878, Saussure publica sua
    Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-européennes, base dos resultados posteriores que constituirão a Gramática Comparada como disciplina rigorosa e com métodos precisos. Em 1916, em Genebra, três anos após a morte de Saussure, os cursos por ele lecionados, na cadeira especialmente criada para ele, são publicados no monumental
    Curso de linguística geral (1969). As cinco teses centrais do
    Curso (a arbitrariedade do signo; signo, significado, significante; linguagem, língua/
    langue e fala/
    parole; o valor distintivo dos elementos linguísticos; sincronia e diacronia) são consideradas fundamentais para o que chamamos de Linguística Estrutural. Estas teses constituem uma teoria de conjunto a respeito da linguagem e fundam a Linguística como disciplina científica de rigor.
  • 2
    A abordagem de Chomsky sobre a linguagem é formal, abstrata, desconsiderando a maneira com que as pessoas de fato falam (utentes), erros, pausas, lapsos, memória...
  • 3
    Chomsky (1967) afirma que Skinner, na obra
    Verbal Behavior, procurou explicar o comportamento verbal em termos de
    condicionamento operante: reforços ou punições a sentenças emitidas pela criança, ou, no máximo, ouvidas por ela. Para Chomsky, Skinner ignorou completamente os aspectos estruturais e criativos da linguagem. Kenneth MacCorquodale publicou um artigo, em 1970, no
    Journal of the Experimental Analysis of Behavior intitulado
    On Chomsky's Review of Skinner's Verbal Behavior, no qual faz uma defesa das noções skinnerianas atacadas por Chomsky em sua resenha de 1959 do livro
    Verbal Behavior, de Skinner.
    Teixeira (2005, p. 67) faz uma importante observação a respeito disso: a grande complexidade e dificuldade de compreensão das teorias contidas no Verbal Behavior retardou a reação da comunidade behaviorista às críticas de Chomsky, o que o ajudou a tornar-se uma espécie de herói oportuno para a revolução cognitiva. Foi somente no final dos anos 60 que a crítica chomskyana começou a ser reexaminada [...]. O aspecto mais importante destas revisões foi evidenciar que Chomsky atacou a obra de Skinner julgando estar diante de uma teoria da linguagem, e não de uma teoria do comportamento linguístico".
  • 4
    Conforme o próprio Fodor menciona na apresentação de
    The Modularity of Mind.
  • 5
    Psicologia das faculdades mentais refere-se à postura vertical da psicologia, e opõe-se à visão generalista ou horizontal da mente, defendida, por exemplo, por Piaget.
  • 6
    Aqui Fodor resgata sua preocupação já exposta em
    A linguagem do pensamento, de 1975.
  • 7
    Fodor menciona que esta estratégia nativista é "prototipicamente" cartesiana e remonta a Platão, que no
    Menon, mediante o personagem Sócrates, demonstra pela dialética que um escravo é capaz de responder a questões de geometria sem nunca antes ter estudado geometria. Por isso, deduções são obtidas de uma teoria universal dos números e das formas. Sua capacidade geral explica seu comportamento específico: sua competência explica seu desempenho.
  • 8
    O termo "faculdade psicológica" é de Fodor, pois Gall, o pai da frenologia, utilizava termos como
    atitude ou
    tendência. De acordo com Gall, não podemos falar de memória, atenção, volição, entendidas como faculdades gerais, horizontais. O que existe são disposições, propensões, aptidões, entendidas como competências em domínios específicos, contrariando a noção horizontal, em forma de competências gerais. A aptidão musical, por exemplo, distingue-se da aptidão matemática ou da verbal, pois há um mecanismo psicológico específico para cada capacidade cognitiva, e tais mecanismos são distintos entre si (cf. Fodor, 1983, p. 14-9).
  • 9
    A postura nativista de Gall, embora seja extrema, pode ser qualificada como um fundamento significativo à pesquisa de Fodor: "as propensões e instintos, as atitudes e talentos, as habilidades intelectuais e as qualidades morais dos homens e animais são inatas" (Gall, citado em Fodor, 1983, p. 16).
  • 10
    Outro exemplo de Fodor (1983, p. 19) é sobre um matemático e um metafísico: "Jones é um bom matemático, mas um ruim metafísico, e Smith possui aptidões contrárias. Então matemática e metafísica são competências distintas", e, assim, existe uma faculdade matemática distinta de uma faculdade metafísica.
  • 11
    Esta última característica implica que as capacidades fundamentais não compartilham nem competem entre si por recursos de caráter horizontal.
  • 12
    Essas equivocadas ideias rapidamente deram origem à frenologia, que passou a medir caráter, propensão ao crime, pelas protuberâncias do crânio, da cabeça. Isto causou uma lamentável memória de charlatanismo e fraude da qual, certamente, Gall não é responsável, mas a que teve seu nome associado (1983, p. 22-3).
  • 13
    Esta questão pode ser mais bem compreendida em Fodor (1975, p. 164-9).
  • 14
    Embora não esteja explícito, os modelos conexionistas são um exemplo de versão moderna dessa vertente que Fodor critica. Este conexionismo é o definido por H. Dreyfus (in Andler, 1998, p. 315-6): "eles [os modelos conexionistas] utilizam sistemas neuronais artificiais e tratamento paralelo distribuído. Os modelos mais sofisticados têm não somente um conjunto de elementos codificando os estímulos do mundo real, bem como um conjunto de elementos codificando as respostas associadas, mas nós intermediários (escondidos) que desempenham um papel na tradução do
    input em
    output".
  • 15
    Bottom-up é a via que conduz do mundo exterior à percepção e desta ao sistema central, por oposição à
    top-down, que desce desde à informação do sistema central até a percepção e o sistema de entrada.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      2008

    Histórico

    • Aceito
      Out 2008
    • Recebido
      Jun 2008
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