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Sobre a origem da linguagem de Herder, o seu legado e a inevitável reflexão a fazer no hipotético quadro de singularidade tecnológica

On the origin of Herder's language, its legacy and the inevitable reflection to be made in the hypothetical framework of technological singularity

Resumo:

Johann Gottfried Herder, à semelhança dos seus contemporâneos, reflectiu sobre a linguagem e, em 1772, publicou o Ensaio Sobre a Origem da Linguagem, que, no ano anterior, lhe valera a distinção da Academia de Berlim para melhor ensaio. No entanto, ainda hoje, muito do seu pensamento é desconhecido, ignorando-se, por isso, que algumas das modernas abordagens da filosofia contemporânea, da antropologia filosófica ou mesmo da sociobiologia estão já aí enunciadas, nomeadamente nas narrativas decorrentes da enunciação das quatro leis naturais. Mais do que a justificação sobre a origem da linguagem, o ensaio do filósofo permite ainda compreender a natureza humana, inserindo no coração da antropologia filosófica a sua génese, e contrariando, se não mesmo confrontando, dessa forma, a tradição divina dessa atribuição. Assim, num primeiro momento, far-se-á uma análise genérica da obra, ressaltando as teses fundamentais que permitirão o estabelecimento do diálogo com algumas das abordagens filosóficas contemporâneas. De seguida, admitindo a possibilidade de um cenário de singularidade tecnológica, tal como enunciado por Irving John Good, Vernor Vinge ou Ray Kurzweil, verificar a plausibilidade e a validade das teses de Herder, no que concerne ao alcance da linguagem e à natureza humana, e de como isso poderá constituir uma fronteira de resistência.

Palavras-Chave:
Herder; Linguagem; Natureza Humana; Evolução; Singularidade Tecnológica

Abstract:

Johann Gottfried Herder, like his contemporaries, reflected on language and in 1772 published the Treatise on the Origin of Language, which in the previous year had earned the distinction of the Berlin Academy for best essay. However, even today, much of his thought is unknown, ignoring the fact that some of the modern approaches of contemporary philosophy, philosophical anthropology or even sociobiology are already stated there, namely in the narratives resulting from the enunciation of the four natural laws. More than justifying the origin of language, the philosopher’s essay also allows us to understand human nature, inserting its genesis at the heart of philosophical anthropology and contradicting, if not even confronting in this way, the divine tradition of this attribution. Thus, at first, a generic analysis of the work will be carried out, highlighting the fundamental theses that will allow the establishment of a dialogue with some of the contemporary philosophical approaches. Then, admitting the possibility of a scenario of technological singularity, as stated by Irving John Good, Vernor Vinge or Ray Kurzweil, to verify the plausibility and validity of Herder’s theses regarding the scope of language and human nature and how this could constitute a frontier of resistance.

Keywords:
Herder; Language; Human Nature; Evolution; Technological Singularity

Introdução

A questão com que Herder abre o ensaio é significativa e premonitória do problema fundamental que marcava as intenções filosóficas do século XVIII, a saber: “[...] terão os homens, entregues às suas faculdades naturais, podido inventar por si mesmos a linguagem?” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 25). A questão tornava claro um desafio filosófico maior que a história da filosofia vinha postulando e que acabaria por ter correspondência no desafio recorrente, que era lançado pela Academia de Ciências de Berlim todos os anos e que, a par do interesse desenvolvido em França pelo tema da (origem ou princípio) da linguagem,2 2 São exemplos do interesse pelo tema da linguagem e da sua origem, em França, algumas das seguintes obras: Ensaio sobre a origem das línguas, de Rousseau, Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos, de Condillac, Homem Máquina, de La Mettrie, Reflexões filosóficas sobre a origem das línguas e a significação das palavras, de Maupertuis, Lógica ou a arte do pensamento, de A. Arnault e P. Nicole. Recorde-se ainda, a esse respeito, que já se haviam iniciado os problemas da linguagem muito anteriormente (desde a antiguidade clássica, como sabemos) e em países como Inglaterra, Itália ou Suíça (e na própria Alemanha, então Prússia) de que são exemplos Locke, Berkeley, Vico, Bonnet, Leibniz, Wolff ou Lambert, apenas para citar os mais relevantes. premiava um autor que originalmente explorasse a possibilidade da invenção humana da linguagem.3 3 A questão, como se verá mais adiante, vai muito para lá do mero academismo formal e ensaístico que o prémio estabelecia, pois tratava de recolocar a questão sob um fundo antropológico, contrariando as explicações de origem ontoteológicas. O aumento do interesse pela reflexão em torno da origem da linguagem dá-se pelas oportunidades que se começavam a desenhar na relação da linguagem, já não só com a representação e a lógica, mas com as condições de possibilidade do conhecer e do pensar que determinam o homem enquanto ser pensante-falante.

Herder, aluno de Kant (e cuja influência se faz sentir, nalguns momentos do texto, não tanto pelo modo de escrita, mas pela forma como estrutura o seu pensamento), permite-se explorar tal possibilidade a partir do confronto direto com a visão da origem divina da linguagem, por um lado, e, por outro lado, firmando a essencialidade racional da natureza humana. Nesse particular, Herder utiliza não só algumas das conceções filosóficas dos seus contemporâneos, o que acaba por lhe favorecer o discurso e a argumentação,4 4 O ensaio de Herder traz ao diálogo diversos interlocutores, de que se destacam Rousseau e Condillac, contudo, é com Süßmilch que ele trava o verdadeiro confronto e crítica, uma vez que a sua obra - Versuch eines Beweises, daß die erste Sprache ihren Ursprung nicht vom Menschen, sondern allein vom Schöpfer erhalten habe - institui a origem divina da linguagem. Veja-se, a título exemplificativo a seguinte passagem: “Um dos defensores da origem divina da linguagem encontra razõeas para reconhecer a presença de uma ordem divina no facto de os sons de qualquer língua conhecida se poderem resumir com uma vintena de letras. Só por si o facto já é falso e a conclusão mais incorreta ainda. Não há língua que, na sua sonoridade viva, se deixe reduzir completamente a letras e ainda menos a uma vintena delas; provam-no todas as línguas em conjunto e uma por uma.” (HERDER, 1987, p. 31). como introduz ainda as perspetivas culturais proporcionadas pelas ofertas literário-ensaísticas que começavam a chegar ao Velho Continente, através dos relatos de viagens.5 5 Herder revela um conhecimento alargado desses relatos e dos seus autores, usando-os em muitos momentos para justificar grande parte da sua argumentação e para confrontar os seus contemporâneos. São disso exemplos as referências a missionários, como o Padre Chaumonot ou o Padre Rasles, ou a relatores, como Garcilaso de la Veja ou De la Condamine, que falam dos povos indígenas da América do Norte, dos povos peruanos ou das tribos na Amazónia. Refira-se ainda que Herder persiste na ideia (em voga à época) da existência de povos bárbaros que usariam uma linguagem mais próxima da origem, por isso menos evoluída.

Nesse sentido, o ensaio do filósofo não se limita a colocar hipóteses sobre o aparecimento da linguagem, ou melhor, sobre as características fundantes da linguagem, mas consolida-a no horizonte antropológico a partir do qual se permite a compreensão da natureza e da condição humana. Parece, pois, inegável a afirmação de que o ensaio representa um marco na instauração da filosofia da linguagem - arriscamos dizer que se trata efetivamente de uma aproximação ontológico-metafísica aos conteúdos que virão a categorizar a filosofia da linguagem, enquanto área específica que viria a categorizar muita da filosofia do século XX -,6 6 José M. Justo, na introdução ao ensaio de Herder, ressalta a transformação dessa conceção da filosofia da linguagem, que irá encontrar eco na obra tardia do filósofo, colocando a ênfase na preeminência dessa conceção como disciplina primeira do pensamento filosófico: “Donde uma importante consequência que Herder esboça no Ensaio mas à qual só mais tarde, na Metacrítica, dará formulação cabal: o problema epistemológico quando compreendido em termos duma génese que é axialmente génese de linguagem prolonga-se necessariamente para dentro da própria reflexão filosófica, já não como ‘influência’ da linguagem ‘sobre’ a filosofia, mas como configuração da filosofia dentro da linguagem, ou seja, como fluência, fluxo discursivo condicionante e gerador da filosofia (para o melhor e para o pior), cuja validade é preciso discutir previamente. Por outras palavras, a Filosofia da Linguagem começa a ocupar o lugar estratégico duma Filosofia Primeira.” (JUSTO, 1987, p. 13). e, nessa perspectiva, um instrumento de formação ontológica do próprio mundo humano, conformando do ponto de vista epistemológico, estético e antropológico o posicionamento do homem que conhece e se conhece na historicidade das suas vivências criativas, emocionais e educativas.

A noção de uma linguagem que faz acontecer mundo está já aqui em génese, não no sentido clássico da nomeação e da relação com o valor de verdade ou com a existência do nomeado (de que os muito conhecidos Crátilo e Sofista, de Platão, são um bom exemplo), porém, no sentido da configuração íntima da acção humana com o dictum que a dita. Atente-se nas seguintes palavras de Herder (1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 41-42), as quais sugerem já essa reconfiguração de sentido de uma “filosofia das línguas” para uma filosofia da linguagem, uma “filosofia primeira” que se faz objeto de reflexão para a construção do próprio pensamento filosófico do homem:

E como este tema imenso promete um tão variado alargamento de horizontes na Psicologia, na ordenação natural do género humano, na Filosofia das línguas e na reflexão sobre todos os conhecimentos a que chamamos por intermédio da língua, quem não gostaria de escrever um ensaio obre ele?

E, se os homens são, do nosso ponto de vista, as únicas criaturas de linguagem que se conhecem, se se distinguem dos animais precisamente pela linguagem, que ponto mais seguro para iniciar a investigação senão o das observações relativas à diferença entre os animais e os homens? Condillac e Rousseau tinham que se enganar sobre a origem da linguagem já que se enganaram abertamente e em vários aspetos sobre essa diferença.

Dito ainda de uma outra forma, está aqui em génese um pensamento fenomenológico do homem que fala no mundo e, permitimo-nos dizer, uma visão antecipatória da linguagem como casa do ser, que viria a marcar alguns dos discursos filosóficos do século XX, ao colocar o homem como o único ente capaz de uma linguagem que interpela ao discurso do ser e que, portanto, possibilita a interpelação de si e do raciocínio que o pensa (estendendo-se, no limite, à constituição autêntica e fidedigna do modo de ser do ente que raciocina, porque fala e fala porque raciocina, num mundo só entendível por humanos). A relação que Herder estabelece entre razão e linguagem é não só evidente como é necessária para a coerência justificativa do discurso no seu ensaio, isto é, para a justificação da origem humana da linguagem. A constituição dessa linguagem, a qual é fala e dizer, faz-se através da interconexão dos elementos que constituem a experiência subjetiva, particularmente no acolhimento realizado pelos sentidos das impressões mundanas, da operação reflexão-raciocínio e da consciência de (estar a) ser num mundo social, que, como refere o filósofo, “[...] a natureza não nos criou como rochedos isolados, como mónadas egoístas!” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 25).

Nesta abordagem ao ensaio de Herder (ainda que sobrevoando muitas das suas palavras), não podemos deixar de notar que há ainda um trabalho filosófico por fazer, no que concerne ao seu pensamento. Dois exemplos podem ser imediatamente fornecidos a esse propósito: um, a falta de uma leitura linguística rigorosa às considerações do filósofo sobre os signos/sinais, e, segundo, a falta de uma fenomenologia da audição (ou pelo menos uma interpretação fenomenológica) que certamente integraria Herder como personagem principal. Dizendo de uma outra forma, falta fazer uma leitura que integrasse os elementos de uma fenomenologia do acontecimento inaugural da linguagem humana - onde a audição e o acontecer dos fenómenos vibratórios dos sons se dessem como integrantes do modo de ser do ente que está-a-ser-no-mundo -, que prepararia e alargaria a compreensão da linguagem e da própria natureza humana.

1 Linguagem, leis naturais e o pensamento da natureza humana segundo Herder

O ensaio de Herder está dividido em duas partes, sendo a primeira parte constituída por três capítulos e a segunda parte, menos longa, constituída com um único texto (eventualmente, pode ver-se uma divisão, através das leis naturais que são enumeradas). Na primeira parte, o primeiro capítulo tem a função de exortar o pensamento sobre a origem humana da linguagem7 7 Por exemplo: “Tal como o seu precursor, Rousseau começa pelo grito da natureza do qual decorreria a linguagem humana. Não vejo como é que alguma vez poderia ter tido aí a sua origem e admiro-me de que a inteligência de um Rousseau, por um momento, a tenha podido ir procurar aí. […] Para terminar, Diodoro e Vitrúvio, que acreditaram na origem humana da linguagem, mas a não demonstraram, viciaram abertamente a questão porque começaram por pôr os homens a vagabundear pelas florestas como os animais, aos gritos, e depois - sabe Deus como e para quê - dão-lhes a (criticando principalmente a visão da criação divina da linguagem proposta por Süßmilch, a que não escapam Condillac e Rousseau), seguindo com a apresentação da fragilidade humana (a sua natureza) em contraponto com a natureza dos animais.8 8 “Colocado [o homem] entre animais, ele é o mais desprotegido dos filhos da natureza. Nu e desprotegido, fraco e necessitado, tímido e desarmado e, cúmulo da sua miséria, destituído de tudo o que pudesse guiar-lhe a vida. Nascido com uma sensibilidade tão dispersa e enfraquecida, com capacidades tão indefinidas e adormecidas, com instintos tão repartidos e imprecisos, abertamente exposto a mil necessidades e destinado a um círculo de atividades vastíssimo… E tão desarmado, tão abandonado que nem sequer lhe foi dada uma linguagem com que possa exprimir as suas carências… Não! Uma tal contradição não pode ser património da natureza. Em vez de instintos há por certo outras forças escondidas, adormecidas neste ser!” (HERDER, 1987, p. 46).

O segundo capítulo, talvez o mais importante para o propósito do ensaio, apresenta um conjunto de considerações sobre o homem enquanto ser que, carenciado das aptidões animais (como habilidades inatas e instinto), se vê dotado de inteligência e sensibilidade (tomadas como disposições naturais).9 9 “Chame-se a esta disposição global das forças do homem o que se quiser, entendimento, razão, consciência, etc. Se se não tomarem estas designações por forças separadas ou por meros acréscimos de grau em relação às forças animais, pouco importa o nome. É o arranjo global de todas as forças humanas, é a economia da natureza sensível e cognitiva, cognitiva e volitiva do homem. Ou mais ainda: é a simples força positiva do pensamento que, ligada a uma organização definida do corpo, recebe no homem o nome de razão, do mesmo modo que nos animais se torna habilidade instintiva, e que no homem é liberdade, enquanto nos animais se converte em instinto.” (HERDER, 1987, p. 49). Aqui Herder introduz o conceito fundamental de “reflexão”, que o ajudará objectivamente a conciliar três orientações: primeira, a apresentar a razão humana e a determinação para o pensamento (exemplo, não ser um ser que apenas conhece, mas que sabe que conhece),10 10 “Usando conceitos mais rigorosos, a racionalidade do homem, o carácter do género humano, é algo de diferente, a saber, a determinação global da sua força para o pensamento na correlação que mantém com a sensibilidade e com as disposições humanas. […] de acordo com as mesmas leis que regulam a economia natural das relações em jogo, era necessário que, uma vez desaparecida a sensibilidade animal e o confinamento a um só ponto, sobreviesse uma outra criatura cuja força positiva se exprimisse com maior clareza, num espaço alargado e de acordo com uma organização mais subtil, um ser que já não se limitasse a conhecer, a querer e a agir em independência e liberdade, mas que também soubesse que conhecia, queria e agia. Esta criatura é o homem e a esta disposição global da sua natureza vamos chamar reflexão, para evitar confusões com as faculdades isoladas da razão ou outras.” (HERDER, 1987, p. 51). Nota: Deve ser tido em conta que Herder utiliza muitos subterfúgios da linguagem, e isso lhe permite ir refazendo o discurso. segunda, a conferir a possibilidade de desenvolver o argumento em favor de um ser que só pode raciocinar, porque tem linguagem e vice-versa, e terceira, a colocação do conceito de “reflexão” (um “estado”) que enseja desvelar a essencialidade da natureza humana. Refere Herder (1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 52. Itálicos nossos.):

Se o homem não podia ser um animal instintivo, então, devido à força positiva da sua alma e à liberdade de acção dessa força, tinha que ser uma criatura dotada de reflexão. […] Se de facto a razão não é uma força isolada, agindo sozinha, mas sim um direcionamento específico de todas as forças próprias do género humano, então o homem tem que a possuir logo no primeiro momento, precisamente porque é homem.

Essa conceção de Herder é fundamental para a compreensão global do seu pensamento e, em concreto, para a compreensão do problema a que se dedicou, neste ensaio. De facto, o filósofo não está apenas a realçar a racionalidade humana que, de resto, era já uma marca do pensamento na época, mas a reclamar uma tonalidade diferente para essa racionalidade, ao inseri-la no âmbito de uma essencialidade interior à mente humana; significa isso que a “reflexão”, enquanto característica do homem, permite-lhe validar uma primazia ontológica na natureza humana, quer dizer, a reflexão só assola ao raciocínio, ao pensamento, porque já é constitutivamente originária na alma humana e, se o não fosse, não poderia aparecer, pois, como diz Herder (1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 54),

[...] se nada houvesse na capacidade, como chegaria a haver alguma coisa na alma? Se, no estado inicial, não houvesse na alma nenhuma presença da razão, como poderiam efetivar-se os milhões de estados que se vão seguir? É uma fraude verbal dizer que a utilização pode transformar uma capacidade numa força, transformar uma mera possibilidade numa realidade; se uma força não existe já, então não se pode utilizá-la e aplica-la. […] o estado mais sensível do homem era já um estado humano e, portanto, nele agia já a reflexão, apenas num grau menos notável; do mesmo modo que, nos animais, o menos sensível dos estados é ainda um estado animal e, portanto, por maior clareza que haja nos seus pensamentos, nunca está em acção a reflexão própria de um conceito humano.

O filósofo insere assim, no âmbito da análise da natureza humana, uma forma de intelecção fundante que será propiciadora da linguagem. A reflexão (veja-se também o sentido primeiro dessa consciencialização interna como o que reflete na sua interioridade) é essa capacidade de interiorização que opera um reconhecimento (de características diferenciadoras, leia-se também com função simbólica) e que, dando uma dimensão consciente de si e do acto, favorecerá o aparecimento da linguagem:11 11 A linguagem humana está assim para lá de uma mera identificação do falar e do falado, quer dizer, está presente na própria forma como a alma tem conscientemente inscrito em si o reconhecimento da realidade do que lhe é interior e exterior. Por isso, Herder ressalta que, “[...] se a outros pareceu incompreensível o modo pelo qual a alma humana pôde chegar a inventar a linguagem, a mim pareceu-me incompreensível que a alma humana tivesse podido chegar a ser aquilo que é sem, por isso, mesmo, ter precisado de inventar a linguagem, e isto ainda independentemente de haver boca e sociedade.” E, mais adiante, consolida essa ideia, asseverando: “[...] a língua torna-se assim um órgão natural do entendimento, um sentido da alma humana, comparável à visão que, nas antigas teorizações da alma sensitiva, era responsável pela constituição do olho, ou comparável ao instinto que é responsável pela fabricação do favo da abelha. Notável é que este novo sentido do espírito, produzido por ele mesmo, seja mais uma vez, logo na sua origem, um meio para a ligação. Não posso pensar o primeiro pensamento humano, alinhar o primeiro juízo consciente, sem dialogar no interior da minha alma ou, pelo menos, sem experimentar o impulso para dialogar.” (HERDER, 1987, p. 59 e 69).

Colocado no estado de reflexão que lhe é próprio, logo que essa reflexão começou a agir livremente, o homem inventou a linguagem. Pois, reflexão o que é? E linguagem?

A reflexão é caracteristicamente específica do homem, faz parte da essência da espécie humana. Ora, a linguagem e a invenção da linguagem pelo próprio homem também o são. Assim, a invenção da linguagem é para o homem tão natural como o facto de ser homem! […]

Ou seja, o homem evidencia reflexão, não quando se limita a conhecer com vivacidade ou clareza todas as propriedades, mas quando consegue reconhecer para si uma ou mais propriedades como diferenciadoras. O primeiro acto de um tal reconhecimento fornece já um conceito distinto; é o primeiro juízo do espírito. […]

Esta primeira característica da consciência era já palavra da alma! Com ela estava descoberta a linguagem humana! (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 55-56).

É, portanto, a partir da compreensão desse estado de reflexão e não da explicação do carácter imitativo, presente na natureza,12 12 “Supôs-se um princípio de imitação da natureza e dos sons naturais, como se uma tal inclinação cega permitisse pensar alguma coisa e como se o macaco, que tem essa inclinação, ou o melro, que tão bem macaqueia os sons, pudessem ter inventado a linguagem. […] Não há aqui grito da impressão; porque não foi uma máquina dotada de respiração que inventou a linguagem, mas sim uma criatura consciente. Não há na alma nenhum princípio imitativo; a eventual imitação da natureza é apenas um meio para um fim que aqui tem de ser explicado. E menos ainda haverá aqui entendimentos mútuos, convenções arbitrárias e sociais; o selvagem, o solitário na floresta teria tido que inventar a linguagem para si mesmo, ainda que nunca a tivesse levado à fala.” (HERDER, 1987, p. 58-59). que deve residir a explicação lógica e natural para a origem humana da linguagem. Este é um ponto sensível no discurso de Herder que, tal como sucede ainda hoje, suscita muitas interrogações. E suscita-as precisamente porque a ideia da imitação parece surgir como algo redutor ou como algo que remete para uma competência instintiva no humano, o que, de acordo com Herder, não parece aceitável.13 13 Daniel Everett, no seu mais recente livro, parece ir ao encontro de (alguma) argumentação de Herder, contrariando, dessa forma, a perspectiva de Chomsky de um inatismo da linguagem. Cf. How Language Began. The Story of Humanity’s Greatest Invention. Uma das grandes defensoras da teoria mimética é Susan Blackmore, para quem a imitação é precisamente aquilo que nos faz humanos, ou melhor, seriamos “imitadores diferenciados”,14 14 “Ser humano é imitar. […] A maioria dos seres vivos na Terra é produto da evolução baseada na cópia, na variação e na seleção dos genes. Contudo, quando os humanos começaram a imitar, criaram um novo tipo de cópia e desenvolveram um processo evolucionário baseado na cópia, na variação e na seleção dos memes. Este novo sistema evolucionário evoluiu ao lado do antigo para nos tornar em mais do que máquinas de genes. Nós, os únicos deste planeta, somos também máquinas de memes. Somos sistemas de imitação seletiva numa corrida evolucionária com um novo replicador. É por isso que somos tão diferentes das outras criaturas; é por isso que somos os únicos que têm cérebros grandes, linguagem e uma cultura complexa.” (BLACKMORE, 2009, p. 25). seres de memes (nota-se claramente a influência da obra de Richard Dawkins, O Gene Egoísta), que define como “[...] instruções para realizar comportamentos, armazenadas no cérebro (ou em outros objetos) e passadas adiante por imitação”. (BLACKMORE, 1999BLACKMORE, S. The Meme Machine. Oxford: Oxford University Press, 1999., p. 17). Diga-se apenas que, apesar dessas teorias, e mesmo com a descoberta dos neurónios-espelho (uma espécie de justificação neuronal para os processos imitativos), ainda subsistem muitas incertezas quanto à sua validade.

O terceiro capítulo revela a genialidade do pensamento de Herder, já que justifica, do ponto de vista interno (da alma humana) e do ponto de vista externo (a história social das línguas e povos do mundo), a invenção humana da linguagem.15 15 Isso está referido e enfatizado no final do capítulo três: “[...] suponho que, como já o disse, a possibilidade da invenção da linguagem humana terá ficado de tal modo demonstrada - dum ponto de vista interno, a partir da alma humana, e, dum ponto de vista externo, a partir da organização do homem e com base na analogia entre as diversas línguas e povos, por um lado nas partes constitutivas do discurso, por outro no progresso global da linguagem em conjunto com a razão -, que quem não quiser negar ao homem a posse da razão ou, o que é o mesmo, quem souber o que e a razão, quem se ocupar filosoficamente dos elementos da linguagem e levar também em conta, com olhos de observador, a constituição e a história das línguas do mundo, não poderá nem por um momento ter dúvidas sobre essa possibilidade, ainda que eu não acrescente nem mais uma palavra. A génese interior da alma humana é tão demonstrativa como qualquer prova filosófica e a analogia externa entre as diferentes épocas, línguas e povos tem um grau de probabilidade tão elevado quanto é possível tê-lo o mais garantido dos factos históricos.” (HERDER, 1987, p. 112-113). Para tal, o filósofo introduziu uma triangulação curiosa, a qual se opera no jogo entre sonoridades, ouvido e linguagem interior (audição, som e reflexão), e avançará com a conclusão que explorará na segunda parte, frisando “[...] que o homem teve necessariamente que inventar a linguagem.” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 113).

Na verdade, e como já fizemos questão de mencionar, Herder dá especial atenção à audição, ao atribuir-lhe a responsabilidade de interligação entre o som ouvido e o ressoar interior de significação (enquanto atribuição de características identificadoras e/ou diferenciadoras da realidade exterior), o que assentirá na interioridade do homem ao desvelamento funcional da razão e linguagem.16 16 A partir de um conjunto de exemplos práticos do quotidiano, Herder explica assim essa relevância da audição no processo: “Tu bales! A rola arrulha! O cão ladra! Eis três palavras, porque experimentou três ideias distintas! As ideias guarda-as na sua lógica, as palavras no seu vocabulário! Razão e linguagem acabam de dar, em conjunto, um tímido passo. E a natureza encurtou-lhes o caminho: deu ao homem a audição. Não se limitou a fazer soar alto a característica, mas fê-la soar também profundamente, no interior da alma! A característica soou, a alma captou-a e agora…possui uma palavra sonora! O homem é, pois, uma criatura naturalmente disposta para a linguagem, e é fácil de perceber que até um cego ou um mudo teria que inventar a linguagem, bastando que não fosse totalmente insensível e surdo.” (HERDER, 1987, p. 72) Embora não descurando a importância dos outros sentidos para o processo, Herder submete-os à relevância da audição,17 17 Herder assinala a primazia do ouvido sobre o tato e a visão, pois, nas sensações que o mundo oferece, é através das sonoridades (os objetos, segundo Herder, soam sempre de alguma forma) que se fazem representar interiormente: “E o tato está tão próximo do ouvido! Pensemos em designações como áspero, rugoso, liso, lanoso, aveludado, felpudo, rijo, mole, macio, duro, etc., que apenas dizem respeito a superfícies e que nem sequer agem profundamente sobre nós, e notaremos como todas elas soam como se estivéssemos a sentir com os dedos. […] Palavras como odor, som, doce, amargo, acre, soam como se estivéssemos a sentir; pois na sua origem, que outra coisa são os sentidos senão tato?” (HERDER, 1987, p. 85-86). pois é “[...] fácil compreender como as sonoridades, uma vez transformadas em características para uso do entendimento, se converteram em palavras.” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 82). Quer isso significar que, na ordem da sensação (todo o sentir), terá imediatamente o seu “som” e, sendo o ouvido um órgão de linguagem que unifica a totalidade das sensações que soaram, a condução ao plano em que é racionalmente atribuída uma característica, passará a existir uma palavra para tal evocação.18 18 O filósofo justifica a importância do ouvido, através da clareza e distinção que enseja afirmar que ele é sentido para a linguagem: “O ouvido está no meio. Põe de lado todas as características sobrepostas e obscuras do tato e também todas as características demasiado finas da visão. E eis que do objeto tocado e contemplado se liberta uma sonoridade! Nela se vão reunir as características respeitantes aos outos dois sentidos… e temos um sinal verbal! Podemos então dizer que o ouvido se estende para ambos os lados: torna claro aquilo que é demasiado obscuro, torna mais suportável aquilo que é demasiado luminoso, introduz maior unidade, tanto na multiplicidade obscura do tato como na diversidade ofuscante da visão. E como este reconhecimento da multiplicidade por intermédio duma unidade, por intermédio duma característica, é já linguagem, o ouvido é órgão da linguagem.” (HERDER, 1987, p. 89). É exatamente isso que está dito para fundamentar a noção do ouvido como sentido central para a “[...] criatura de reflexão e linguagem, de consciência e criatividade linguística” que é o homem. Refere Herder, a esse propósito (1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 87):

Como o homem só por intermédio do ouvido recebe a linguagem que a natureza lhe ensina e como sem o ouvido não seria possível a invenção da linguagem, o ouvido tem que ocupar uma posição central específica no conjunto dos sentidos; o ouvido torna-se assim a verdadeira porta para a alma e o laço de união entre os restantes sentidos.

Acontece ainda que as línguas evoluem, preparam e desenvolvem conceitos mais vastos e, portanto, também mais abstratos, o que vem, segundo Herder, corroborar mais uma vez a origem humana da linguagem (1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 106):

Precisamente porque a razão humana não pode existir sem abstração e porque nenhuma abstração se faz sem linguagem, acontece que em qualquer povo a língua tem que conter abstrações, ou seja, tem que ser imagem da razão, uma vez que foi seu instrumento. Mas, como cada língua só contém aquilo que o povo que a fala pôde fazer, e como nenhuma abstração existe que tenha sido obtida sem os sentidos (assim o demonstra a sua expressão originalmente sensível), acontece que em parte alguma se encontra ordem divina a não ser no acto de a linguagem ser integralmente humana!

Deve ser notado que Herder está, ao longo de todo o ensaio, a articular (quase) despercebidamente um conceito fundamental que conferirá uma unidade extraordinária e genial à sua teoria e que é, nas palavras de José M. Justo, o “dispositivo” da totalidade (ou globalidade). É com ele e a partir dele que faz sentido pensar a unidade global do homem no devir, no transcorrer histórico das suas aquisições e, nesse sentido, a totalidade do homem faz-se ressoar na totalidade do processo constitutivo da linguagem, ao sucessivamente ir aprimorando os estados reflexivos (na interioridade) do seu ser.19 19 “Significa isto que cada estado deste processo é condição num sentido duplo: condição daquilo que com essa configuração se pode operar (por exemplo, no estado inicial, condição da interiorização das características) e condição das transformações a que a configuração vai ser submetida (exemplo extremo, o estado inicial contém ‘in nuce’ as condições necessárias para que o homem se transforme lentamente naquilo que hoje é e, claro está, naquilo que amanhã vier a ser). Donde se conclui que a génese (a partir do momento em que Herder a pode encarar), longe de ser um percurso linear aditivo, uma cadeia mecânica de causas e efeitos em que não haveria lugar para falar de progresso porque todos os momentos teriam o mesmo valor, torna-se um percurso de complexificação crescente, uma articulação sequencial de estados em que cada um recolhe a riqueza dos anteriores para preparar os seguintes e em que cada estado sendo um “todo vivo” produz mais que a soma mecânica das partes.” (JUSTO, 1987, p. 16).

Na segunda parte do ensaio, e com base em grande parte da argumentação já desenvolvida, Herder irá estabelecer as leis naturais que condensam as leis da natureza e da espécie humana, no que diz respeito à sua predisposição para a linguagem.

Assim, a primeira lei natural refere: “O homem é um ser em actividade, que pensa livremente, e cujas forças atuam em progressão; por isso é uma criatura de linguagem.” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 117). O homem é um ser que está, pela sua natureza, predisposto a desenvolver-se, pelo que o seu primeiro momento de consciencialização interna teria de ser também o do nascimento interior da linguagem. Para Herder, o homem é homem desde que é posto no mundo e, embora possa não ser ainda uma criatura de consciência, já o é de reflexão (porque todos os estados de reflexão são estados linguísticos, quer dizer, “uma cadeia de pensamentos é uma cadeia de palavras”). Desse modo, a formação da linguagem é um processo que se desenvolve tão naturalmente como a formação da própria natureza humana.

A segunda lei natural estabelece: “O homem é por vocação uma criatura gregária, social: o desenvolvimento progressivo duma língua é-lhe, pois, natural, essencial, necessário.” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 134). Da mesma forma que é natural uma criatura se desenvolver no seio de uma comunidade, é natural que um homem se desenvolva linguisticamente, no seio dos homens. Herder afirma que nenhum homem existe para si mesmo, quer dizer, os homens partilham de uma natureza tal que os impede de se desenraizarem da espécie humana. Acresce ainda que, sendo o homem um ser social por essência, não faria sentido não possuir um meio de comunicação, quer dizer, in absurdo isso entraria em contradição com a própria noção de ser social. Daqui decorre também a diversidade de línguas, que a terceira lei e a quarta lei vêm plasmar, como se vê:

A terceira lei natural dita: “Tal como o género humano na sua globalidade não podia continuar a ser uma só horda, também não podia permanecer com uma só língua. Assiste-se, assim, à constituição de diferentes línguas nacionais.” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 146).

A quarta lei natural: “Tal como o género humano, segundo toda a probabilidade, se foi constituindo progressivamente como um todo, duma só origem para uma grande família, o mesmo se passou com todas as línguas e, portanto, com toda a cadeia da formação.” (HERDER, 187, p. 156).

O filósofo está a acentuar aquilo que estava já subentendido antes da expressão das leis e que estas vêm sublinhar com a riqueza do seu pensamento antropológico, a saber, que não só que a humanidade é uma e una, mas também que a linguagem se reproduz e se desenvolve na proximidade da humanidade ou, para usarmos a nomenclatura de Herder, com o género humano (sente-se uma vez mais a coesão do discurso do filósofo, pela constante referência à globalidade na proximidade da essencialidade da natureza humana). Diga-se, por conseguinte, que o pensamento de Herder se alarga e abre portas a pensar a existência humana com a linguagem (naquilo que pode ser encarado como uma afirmação da coexistência da espécie e o seu legado cultural):

Tal como não posso fazer uma acção ou pensar uma coisa sem que isso naturalmente tenha efeito sobre toda a incomensurabilidade da minha existência, nem eu nem nenhuma outra criatura da minha espécie podemos fazer seja o que for que não tenha efeito sobre toda a nossa espécie e sobre todo o progresso global dela. Cada um junta sempre uma onda, pequena ou grande; cada um modifica o estado da própria alma e nisso a totalidade dos estados das almas; cada um age sobre os outros e neles modifica sempre qualquer coisa. O primeiro pensamento da primeira alma humana está ligado ao último pensamento da última das almas. (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 157).

2 O cenário de Singularidade Tecnológica e o legado de Herder

A cogitação operada por Herder em torno da origem humana da linguagem possibilitou compreender que a espécie humana e a linguagem estão em permanente evolução.20 20 É dito: “Pois, se os homens tivessem recebido de Deus juntamente com a linguagem as sementes de todos os conhecimentos, que coisa restaria como produto da alma humana? Então o começo das Artes, das Ciências, o início de cada conhecimento seria sempre incompreensível? A tese da origem humana não permite nenhum passo sem horizontes e dá lugar às mais frutíferas explicações tanto nos diferentes capítulos da Filosofia como no que toca aos diversos tipos e utilizações das linguagens.” (HERDER, 1987, p. 169). Se há uma história efetiva do progresso, então ela deve contemplar a linguagem como aquisição fundamental, a partir da qual não haveria essa mesma história. Também de considerar que há no ensaio de Herder uma espécie de teleologia (de evidente fundo kantiano) para a humanidade, que se revela precisamente através da conceção de um inacabamento da linguagem e do homem, entretanto, que tenderia para um perfecionismo (de que as linguagens metafísicas podem constituir uma primeira amostra). De acordo com isso, tal finalidade encontra sentido nos horizontes que vai constituindo e, por isso, alargando a experiência de ser um ser que reinventa a linguagem.

Talvez aqui o texto de Herder ganhe um novo sentido, ao alertar-nos para a permanente reconstrução que o homem faz de si mesmo e dos conhecimentos que gera. É a partir dessa capacidade inventiva do homem (inscrita na sua natureza) que se dá o desabrochar das diferentes linguagens que viriam a transformar o mundo. Uma tal conceção permite compreender também que nem todas as invenções poderão ser tidas com a fortuna da linguagem, na sua criação. Pensemos um pouco sobre isso.

No ensaio “A última grande invenção ou o fim do humano”, defendi a tese de que a Inteligência Artificial poderá ser a última grande invenção da humanidade. Com tal tese, permiti-me alertar, baseando-me nas preocupações de reputados filósofos (sobre a criação e uso de drones militares), entre os quais Stephen Hawking e Noam Chomsky, não apenas para o perigo da robotização inteligente,21 21 Refere-se aos riscos do crescente e rápido desenvolvimento da inteligência artificial ou da também apelidada robotização inteligente. Perante esse cenário, Stephen Hawking e Noam Chomsky (entre mais de mil cientistas e filósofos) redigiram, em 2015, uma carta aberta a pedir a proibição dos “robôs assassinos”. mas também para a possível anulação da espécie.22 22 A esse propósito, sugiro que se consulte o site do Future of Life Institute, o qual tem como objetivo apaziguar os potenciais riscos existenciais que se deparam para a humanidade. Naturalmente, estamos conscientes de que um tal cenário (que não deve ser tido como um cenário de ficção científica, mas como uma possibilidade real) recai sobre um cenário de “Singularidade”, termo que Raymond Kurzweil cunhou, para se referir a esse ponto no qual a inteligência artificial teria superado a inteligência humana. Também Nick BostromBLACKMORE, S. A imitação faz de nós humanos. In: PASTERNACK, C. (ed.). O que nos torna Humanos? Lisboa: Texto e Grafia, 2009. coloca em questão a possibilidade de uma superinteligência poder fugir ao controle humano (o que enseja pensar que a última invenção pode ser efetivamente dramática, do ponto de vista existencial para a humanidade). São disso exemplos os livros The Age of Spiritual Machines: When Computers Exceed Human Intelligence (2000), de Ray KurzweilKURZWEIL, R. Singularity is Near. Londres: Gerald Duckworth, 2006., ou Smarter Than Us. The rise of machine intelligence (2014ARMSTRONG, S. Smarter Than Us. The rise of machine intelligence. Berkeley: MIRI, 2014.), de Armstrong, os quais alertam para esse cenário dramático.

Ora, esse cenário conta ainda com uma agravante. No final do século XX e início do século XXI, começaram a surgir alguns estudos que alertavam para uma diminuição do uso de vocabulário, sobretudo nas camadas mais jovens da população, tal como alertavam para uma diminuição das capacidades cognitivas, motivada pelo uso excessivo de meios digitais, como tablets e smartphones e dos motores de pesquisa, em detrimento da informação (SPARROW; LIU; WEGNER, 2011SPARROW B; LIU J; WEGNER D.M. Google effects on memory: Cognitive consequences of having information at our fingertips. Science, v. 333, p. 776-778, 2011.). Esses estudos vinham confirmar, em parte, aquilo que já se supunha poder acontecer com a alienação intensa a que o homem estava a ser submetido. Embora esteja aqui apresentada uma visão sinistra, talvez seja a partir dela que se possa questionar a sua validade, isto é, que se possa questionar o que significa ser humano ou como ser humano, num mundo computacionalmente inteligente, segundo alerta Nick Bostrom, em Superintelligence: Paths, Dangers, Strategies (2014BOSTROM, N. Superintelligence. Paths, Dangers, Strategies. Oxford: Oxford University Press, 2014.).

Considerações finais

Chamando ao debate o nosso filósofo, poderemos perguntar também que lições retirar do seu ensaio ou, reequacionando de outra forma: a verificar-se um quadro de singularidade, o legado de Herder, no que concerne não só à linguagem per se, mas em relação à essência da natureza humana, fará sentido ou constituirá mesmo um patamar de compreensão e determinação para a salvaguarda da humanitas? É bom de ver que a pergunta conduz já a um respondimento afirmativo e, no que interessar considerar para o intuito deste ensaio (estabelecendo um contacto com o ensaio de Herder), devem ser tidos em conta dois aspetos: o primeiro, a natureza humana, e o segundo, a linguagem humana. Como referido, Herder pensa o Homem na sua globalidade e descobre-lhe forças e fraquezas. Todavia, é nessa fragilidade que o homem descobre a sua força, é nessa aparente incapacidade que se faz homem, conforme escreve Herder (1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 136. Itálicos nossos.):

E do mesmo modo, também na totalidade do género humano a natureza sabe transformar a fraqueza em força. É por isso mesmo que o homem vem ao mundo tão fraco, tão necessitado, tão destituído de ensinamentos naturais, todo ele sem talentos, sem habilidade, como nenhum animal; para que possa, como nenhum animal, gozar duma educação e para que o género humano, como nenhuma espécie animal, possa tornar-se um todo intimamente ligado!

Essa espécie de apelo de Herder à natureza humana, esse apelo à compreensão e avaliação das capacidades humanas, reverte-se na capacidade que a humanidade tem para se reinventar e, nesse sentido, também para reinventar a linguagem.

Se a inteligência artificial, num estado avançado, poderá vir a manifestar algo como uma vontade própria (o machine learning parece apontar nesse sentido), só uma reinvenção humana da linguagem poderá estabelecer os alicerces de uma resistência total aos ditames dessa nova entidade. É pela linguagem que se resiste. Do mesmo modo que se codificam as mensagens (ou, se preferirmos, se codificou a linguagem), nas grandes guerras, também, num cenário futuro, uma reinvenção da linguagem permitirá resistir para vencer. E talvez aqui se encontre a grande força do homem, o qual, mesmo num cenário de singularidade, não deixará de manifestar a sua capacidade de criação, a sua força inventiva, a sua força e capacidade de resistência (à semelhança dos seus antepassados, dos criadores humanos da linguagem). Nada disso é novidade - só um cenário distópico o poderá ser, na realidade - e Herder já o sabia e deixou-nos este legado (1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 163):

Coloque-se este homem em sociedade e perante dificuldades várias, de tal forma que tenha de cuidar de si e doutros […] Poder-se-ia pensar que o peso desses novos fardos lhe retirasse a liberdade de se erguer, que este acréscimo de tarefas penosas lhe roubasse a disponibilidade para a invenção. Mas passa-se precisamente o inverso! A necessidade fortalece-o, as tarefas pensosas despertam-no, a falta de descanso mantém-lhe a alma em movimento: há-de fazer tanto mais quanto mais espantoso for que o faça.

Referências

  • ARMSTRONG, S. Smarter Than Us. The rise of machine intelligence. Berkeley: MIRI, 2014.
  • BLACKMORE, S. The Meme Machine. Oxford: Oxford University Press, 1999.
  • BLACKMORE, S. A imitação faz de nós humanos. In: PASTERNACK, C. (ed.). O que nos torna Humanos? Lisboa: Texto e Grafia, 2009.
  • BOSTROM, N. Superintelligence. Paths, Dangers, Strategies. Oxford: Oxford University Press, 2014.
  • BOSTROM, N.; MUEHLAUSER, L. Why We Need Friendly AI. Think, v. 13, n. 36, p. 41-47, 2014.
  • CASTRO, P. A. e. A última grande invenção ou o fim do humano. In: PIRES, H. et al (org.). Cibercultura. Circum-navegações em redes transculturais de conhecimento, arquivos e pensamento. Braga: Centro de Estudos Comunicação e Sociedade e Húmus, 2017. p. 97-106.
  • CHACE, C. Surviving AI. The promise and peril of artificial intelligence. Londres: Three Cs, 2015.
  • DOBRANSZKY, E. A. De língua e literatura: considerações acerca do ensaio Sobre a origem da linguagem de Herder In: Educação e Ensino, v. 1, n. 1, p. 123-132, 1996.
  • EVERETT, D. L. How Language Began. The Story of Humanity’s Greatest Invention. New York: Liveright/Norton, 2017.
  • HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987.
  • JOY, B. Why the Future Doesn’t Need Us. Wired, v. 8, n. 4, p. 1-18, 2000.
  • KURZWEIL, R. Singularity is Near. Londres: Gerald Duckworth, 2006.
  • MORIN, E. O paradigma perdido - a natureza humana. Trad. de Hermano Neves. Lisboa, Publicações Europa-América, 2000.
  • PARRET, H. History of Linguistic Thought and Contemporary Linguistics. New York: De Gruyter, 1975.
  • RUSSEL, S.; NORVIG, P. Artificial Intelligence: A Modern Approach. Upper Saddle River: Prentice Hall, 2003.
  • SAVAGE-RUMBAUGH, S.; TAYLOR, T. J.; SHANKER, S. G. Apes, Language, and the Human Mind. New York: Oxford University Press, 1998.
  • SPARROW B; LIU J; WEGNER D.M. Google effects on memory: Cognitive consequences of having information at our fingertips. Science, v. 333, p. 776-778, 2011.
  • WELSH, T. Do Neonates Display Innate Self-Awareness? Why Neonatal Imitation Fails to Provide sufficient Grounds for Innate Self-and Other-Awareness. Philosophical Psychology, v. 19, p. 221-238, 2006.
  • 2
    São exemplos do interesse pelo tema da linguagem e da sua origem, em França, algumas das seguintes obras: Ensaio sobre a origem das línguas, de Rousseau, Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos, de Condillac, Homem Máquina, de La Mettrie, Reflexões filosóficas sobre a origem das línguas e a significação das palavras, de Maupertuis, Lógica ou a arte do pensamento, de A. Arnault e P. Nicole. Recorde-se ainda, a esse respeito, que já se haviam iniciado os problemas da linguagem muito anteriormente (desde a antiguidade clássica, como sabemos) e em países como Inglaterra, Itália ou Suíça (e na própria Alemanha, então Prússia) de que são exemplos Locke, Berkeley, Vico, Bonnet, Leibniz, Wolff ou Lambert, apenas para citar os mais relevantes.
  • 3
    A questão, como se verá mais adiante, vai muito para lá do mero academismo formal e ensaístico que o prémio estabelecia, pois tratava de recolocar a questão sob um fundo antropológico, contrariando as explicações de origem ontoteológicas. O aumento do interesse pela reflexão em torno da origem da linguagem dá-se pelas oportunidades que se começavam a desenhar na relação da linguagem, já não só com a representação e a lógica, mas com as condições de possibilidade do conhecer e do pensar que determinam o homem enquanto ser pensante-falante.
  • 4
    O ensaio de Herder traz ao diálogo diversos interlocutores, de que se destacam Rousseau e Condillac, contudo, é com Süßmilch que ele trava o verdadeiro confronto e crítica, uma vez que a sua obra - Versuch eines Beweises, daß die erste Sprache ihren Ursprung nicht vom Menschen, sondern allein vom Schöpfer erhalten habe - institui a origem divina da linguagem. Veja-se, a título exemplificativo a seguinte passagem: “Um dos defensores da origem divina da linguagem encontra razõeas para reconhecer a presença de uma ordem divina no facto de os sons de qualquer língua conhecida se poderem resumir com uma vintena de letras. Só por si o facto já é falso e a conclusão mais incorreta ainda. Não há língua que, na sua sonoridade viva, se deixe reduzir completamente a letras e ainda menos a uma vintena delas; provam-no todas as línguas em conjunto e uma por uma.” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 31).
  • 5
    Herder revela um conhecimento alargado desses relatos e dos seus autores, usando-os em muitos momentos para justificar grande parte da sua argumentação e para confrontar os seus contemporâneos. São disso exemplos as referências a missionários, como o Padre Chaumonot ou o Padre Rasles, ou a relatores, como Garcilaso de la Veja ou De la Condamine, que falam dos povos indígenas da América do Norte, dos povos peruanos ou das tribos na Amazónia. Refira-se ainda que Herder persiste na ideia (em voga à época) da existência de povos bárbaros que usariam uma linguagem mais próxima da origem, por isso menos evoluída.
  • 6
    José M. Justo, na introdução ao ensaio de Herder, ressalta a transformação dessa conceção da filosofia da linguagem, que irá encontrar eco na obra tardia do filósofo, colocando a ênfase na preeminência dessa conceção como disciplina primeira do pensamento filosófico: “Donde uma importante consequência que Herder esboça no Ensaio mas à qual só mais tarde, na Metacrítica, dará formulação cabal: o problema epistemológico quando compreendido em termos duma génese que é axialmente génese de linguagem prolonga-se necessariamente para dentro da própria reflexão filosófica, já não como ‘influência’ da linguagem ‘sobre’ a filosofia, mas como configuração da filosofia dentro da linguagem, ou seja, como fluência, fluxo discursivo condicionante e gerador da filosofia (para o melhor e para o pior), cuja validade é preciso discutir previamente. Por outras palavras, a Filosofia da Linguagem começa a ocupar o lugar estratégico duma Filosofia Primeira.” (JUSTO, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 13).
  • 7
    Por exemplo: “Tal como o seu precursor, Rousseau começa pelo grito da natureza do qual decorreria a linguagem humana. Não vejo como é que alguma vez poderia ter tido aí a sua origem e admiro-me de que a inteligência de um Rousseau, por um momento, a tenha podido ir procurar aí. […] Para terminar, Diodoro e Vitrúvio, que acreditaram na origem humana da linguagem, mas a não demonstraram, viciaram abertamente a questão porque começaram por pôr os homens a vagabundear pelas florestas como os animais, aos gritos, e depois - sabe Deus como e para quê - dão-lhes a
  • 8
    “Colocado [o homem] entre animais, ele é o mais desprotegido dos filhos da natureza. Nu e desprotegido, fraco e necessitado, tímido e desarmado e, cúmulo da sua miséria, destituído de tudo o que pudesse guiar-lhe a vida. Nascido com uma sensibilidade tão dispersa e enfraquecida, com capacidades tão indefinidas e adormecidas, com instintos tão repartidos e imprecisos, abertamente exposto a mil necessidades e destinado a um círculo de atividades vastíssimo… E tão desarmado, tão abandonado que nem sequer lhe foi dada uma linguagem com que possa exprimir as suas carências… Não! Uma tal contradição não pode ser património da natureza. Em vez de instintos há por certo outras forças escondidas, adormecidas neste ser!” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 46).
  • 9
    “Chame-se a esta disposição global das forças do homem o que se quiser, entendimento, razão, consciência, etc. Se se não tomarem estas designações por forças separadas ou por meros acréscimos de grau em relação às forças animais, pouco importa o nome. É o arranjo global de todas as forças humanas, é a economia da natureza sensível e cognitiva, cognitiva e volitiva do homem. Ou mais ainda: é a simples força positiva do pensamento que, ligada a uma organização definida do corpo, recebe no homem o nome de razão, do mesmo modo que nos animais se torna habilidade instintiva, e que no homem é liberdade, enquanto nos animais se converte em instinto.” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 49).
  • 10
    “Usando conceitos mais rigorosos, a racionalidade do homem, o carácter do género humano, é algo de diferente, a saber, a determinação global da sua força para o pensamento na correlação que mantém com a sensibilidade e com as disposições humanas. […] de acordo com as mesmas leis que regulam a economia natural das relações em jogo, era necessário que, uma vez desaparecida a sensibilidade animal e o confinamento a um só ponto, sobreviesse uma outra criatura cuja força positiva se exprimisse com maior clareza, num espaço alargado e de acordo com uma organização mais subtil, um ser que já não se limitasse a conhecer, a querer e a agir em independência e liberdade, mas que também soubesse que conhecia, queria e agia. Esta criatura é o homem e a esta disposição global da sua natureza vamos chamar reflexão, para evitar confusões com as faculdades isoladas da razão ou outras.” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 51). Nota: Deve ser tido em conta que Herder utiliza muitos subterfúgios da linguagem, e isso lhe permite ir refazendo o discurso.
  • 11
    A linguagem humana está assim para lá de uma mera identificação do falar e do falado, quer dizer, está presente na própria forma como a alma tem conscientemente inscrito em si o reconhecimento da realidade do que lhe é interior e exterior. Por isso, Herder ressalta que, “[...] se a outros pareceu incompreensível o modo pelo qual a alma humana pôde chegar a inventar a linguagem, a mim pareceu-me incompreensível que a alma humana tivesse podido chegar a ser aquilo que é sem, por isso, mesmo, ter precisado de inventar a linguagem, e isto ainda independentemente de haver boca e sociedade.” E, mais adiante, consolida essa ideia, asseverando: “[...] a língua torna-se assim um órgão natural do entendimento, um sentido da alma humana, comparável à visão que, nas antigas teorizações da alma sensitiva, era responsável pela constituição do olho, ou comparável ao instinto que é responsável pela fabricação do favo da abelha. Notável é que este novo sentido do espírito, produzido por ele mesmo, seja mais uma vez, logo na sua origem, um meio para a ligação. Não posso pensar o primeiro pensamento humano, alinhar o primeiro juízo consciente, sem dialogar no interior da minha alma ou, pelo menos, sem experimentar o impulso para dialogar.” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 59 e 69).
  • 12
    “Supôs-se um princípio de imitação da natureza e dos sons naturais, como se uma tal inclinação cega permitisse pensar alguma coisa e como se o macaco, que tem essa inclinação, ou o melro, que tão bem macaqueia os sons, pudessem ter inventado a linguagem. […] Não há aqui grito da impressão; porque não foi uma máquina dotada de respiração que inventou a linguagem, mas sim uma criatura consciente. Não há na alma nenhum princípio imitativo; a eventual imitação da natureza é apenas um meio para um fim que aqui tem de ser explicado. E menos ainda haverá aqui entendimentos mútuos, convenções arbitrárias e sociais; o selvagem, o solitário na floresta teria tido que inventar a linguagem para si mesmo, ainda que nunca a tivesse levado à fala.” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 58-59).
  • 13
    Daniel EverettEVERETT, D. L. How Language Began. The Story of Humanity’s Greatest Invention. New York: Liveright/Norton, 2017., no seu mais recente livro, parece ir ao encontro de (alguma) argumentação de Herder, contrariando, dessa forma, a perspectiva de Chomsky de um inatismo da linguagem. Cf. How Language Began. The Story of Humanity’s Greatest Invention.
  • 14
    “Ser humano é imitar. […] A maioria dos seres vivos na Terra é produto da evolução baseada na cópia, na variação e na seleção dos genes. Contudo, quando os humanos começaram a imitar, criaram um novo tipo de cópia e desenvolveram um processo evolucionário baseado na cópia, na variação e na seleção dos memes. Este novo sistema evolucionário evoluiu ao lado do antigo para nos tornar em mais do que máquinas de genes. Nós, os únicos deste planeta, somos também máquinas de memes. Somos sistemas de imitação seletiva numa corrida evolucionária com um novo replicador. É por isso que somos tão diferentes das outras criaturas; é por isso que somos os únicos que têm cérebros grandes, linguagem e uma cultura complexa.” (BLACKMORE, 2009BLACKMORE, S. A imitação faz de nós humanos. In: PASTERNACK, C. (ed.). O que nos torna Humanos? Lisboa: Texto e Grafia, 2009., p. 25).
  • 15
    Isso está referido e enfatizado no final do capítulo três: “[...] suponho que, como já o disse, a possibilidade da invenção da linguagem humana terá ficado de tal modo demonstrada - dum ponto de vista interno, a partir da alma humana, e, dum ponto de vista externo, a partir da organização do homem e com base na analogia entre as diversas línguas e povos, por um lado nas partes constitutivas do discurso, por outro no progresso global da linguagem em conjunto com a razão -, que quem não quiser negar ao homem a posse da razão ou, o que é o mesmo, quem souber o que e a razão, quem se ocupar filosoficamente dos elementos da linguagem e levar também em conta, com olhos de observador, a constituição e a história das línguas do mundo, não poderá nem por um momento ter dúvidas sobre essa possibilidade, ainda que eu não acrescente nem mais uma palavra. A génese interior da alma humana é tão demonstrativa como qualquer prova filosófica e a analogia externa entre as diferentes épocas, línguas e povos tem um grau de probabilidade tão elevado quanto é possível tê-lo o mais garantido dos factos históricos.” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 112-113).
  • 16
    A partir de um conjunto de exemplos práticos do quotidiano, Herder explica assim essa relevância da audição no processo: “Tu bales! A rola arrulha! O cão ladra! Eis três palavras, porque experimentou três ideias distintas! As ideias guarda-as na sua lógica, as palavras no seu vocabulário! Razão e linguagem acabam de dar, em conjunto, um tímido passo. E a natureza encurtou-lhes o caminho: deu ao homem a audição. Não se limitou a fazer soar alto a característica, mas fê-la soar também profundamente, no interior da alma! A característica soou, a alma captou-a e agora…possui uma palavra sonora! O homem é, pois, uma criatura naturalmente disposta para a linguagem, e é fácil de perceber que até um cego ou um mudo teria que inventar a linguagem, bastando que não fosse totalmente insensível e surdo.” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 72)
  • 17
    Herder assinala a primazia do ouvido sobre o tato e a visão, pois, nas sensações que o mundo oferece, é através das sonoridades (os objetos, segundo Herder, soam sempre de alguma forma) que se fazem representar interiormente: “E o tato está tão próximo do ouvido! Pensemos em designações como áspero, rugoso, liso, lanoso, aveludado, felpudo, rijo, mole, macio, duro, etc., que apenas dizem respeito a superfícies e que nem sequer agem profundamente sobre nós, e notaremos como todas elas soam como se estivéssemos a sentir com os dedos. […] Palavras como odor, som, doce, amargo, acre, soam como se estivéssemos a sentir; pois na sua origem, que outra coisa são os sentidos senão tato?” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 85-86).
  • 18
    O filósofo justifica a importância do ouvido, através da clareza e distinção que enseja afirmar que ele é sentido para a linguagem: “O ouvido está no meio. Põe de lado todas as características sobrepostas e obscuras do tato e também todas as características demasiado finas da visão. E eis que do objeto tocado e contemplado se liberta uma sonoridade! Nela se vão reunir as características respeitantes aos outos dois sentidos… e temos um sinal verbal! Podemos então dizer que o ouvido se estende para ambos os lados: torna claro aquilo que é demasiado obscuro, torna mais suportável aquilo que é demasiado luminoso, introduz maior unidade, tanto na multiplicidade obscura do tato como na diversidade ofuscante da visão. E como este reconhecimento da multiplicidade por intermédio duma unidade, por intermédio duma característica, é já linguagem, o ouvido é órgão da linguagem.” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 89).
  • 19
    “Significa isto que cada estado deste processo é condição num sentido duplo: condição daquilo que com essa configuração se pode operar (por exemplo, no estado inicial, condição da interiorização das características) e condição das transformações a que a configuração vai ser submetida (exemplo extremo, o estado inicial contém ‘in nuce’ as condições necessárias para que o homem se transforme lentamente naquilo que hoje é e, claro está, naquilo que amanhã vier a ser). Donde se conclui que a génese (a partir do momento em que Herder a pode encarar), longe de ser um percurso linear aditivo, uma cadeia mecânica de causas e efeitos em que não haveria lugar para falar de progresso porque todos os momentos teriam o mesmo valor, torna-se um percurso de complexificação crescente, uma articulação sequencial de estados em que cada um recolhe a riqueza dos anteriores para preparar os seguintes e em que cada estado sendo um “todo vivo” produz mais que a soma mecânica das partes.” (JUSTO, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 16).
  • 20
    É dito: “Pois, se os homens tivessem recebido de Deus juntamente com a linguagem as sementes de todos os conhecimentos, que coisa restaria como produto da alma humana? Então o começo das Artes, das Ciências, o início de cada conhecimento seria sempre incompreensível? A tese da origem humana não permite nenhum passo sem horizontes e dá lugar às mais frutíferas explicações tanto nos diferentes capítulos da Filosofia como no que toca aos diversos tipos e utilizações das linguagens.” (HERDER, 1987HERDER, J. G. Ensaio sobre a origem da linguagem. Trad. de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987., p. 169).
  • 21
    Refere-se aos riscos do crescente e rápido desenvolvimento da inteligência artificial ou da também apelidada robotização inteligente. Perante esse cenário, Stephen Hawking e Noam Chomsky (entre mais de mil cientistas e filósofos) redigiram, em 2015, uma carta aberta a pedir a proibição dos “robôs assassinos”.
  • 22
    A esse propósito, sugiro que se consulte o site do Future of Life Institute, o qual tem como objetivo apaziguar os potenciais riscos existenciais que se deparam para a humanidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2021
  • Aceito
    03 Fev 2022
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