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A SOPHÍA EM METAPH. A2: DA CIÊNCIA DAS CAUSAS PRIMEIRAS OU PRINCÍPIOS À CIÊNCIA DIVINA

RESUMO

Tendo por base a ligeiramente controversa idéia de que a caracterização de sophía como a “ciência das causas primeiras ou princípios” seja a formulação cardeal de ciência suprema na “Metafísica” de Aristóteles, neste artigo examinamos Metaph. A2, o capítulo que contém tal caracterização. Em primeiro lugar, seguimos a análise aristotélica dos pontos de vista ordinários acerca da sophía e do sophós, análise que culmina na referida descrição de sophía. Em seguida, examinamos como a concepção de sophía como ciência de causas absolutamente primeiras leva o filósofo a considerá-la como uma ciência que pode ser descrita apropriadamente como divina, sendo também o tipo mais elevado de conhecimento ao qual a filosofia pode aspirar.

Palavras-chave
Aristóteles; “Metafísica”; sophía; ciência divina

ABSTRACT

Based on the somewhat controversial idea that the characterization of sophía as the “science of first causes or principles” is the pivotal formulation of the supreme science in the Aristotle’s “Metaphysics”, in this paper we scrutinize Metaph. A2, the chapter which contains such a characterization. Firstly, we follow the Aristotelian analysis of the commonly held views on sophía and the sophós, an analysis which culminates in the aforementioned description of sophía. Then we examine how the conception of sophía as the science of absolutely first causes leads the philosopher to regard it as a science that can be properly described as divine, being also the highest kind of knowledge which philosophy can aspire to.

Keywords
Aristotle; “Metaphysics”; sophía; divine science

1 Considerações preliminares

Um exame do quadro geral da exegese contemporânea da “Metafísica”1 1 Para um exame de parte da bibliografia sobre o tema da ciência suprema contida na “Metafísica” remetemos a Cecílio (2014, 2016a e 2016b). revela que, por mais diversificadas que sejam as tentativas de compreensão da ciência preeminente contida na obra, há algo que acomuna a maioria das interpretações recentes, nomeadamente, elas tendem a considerar a ciência suprema como sendo fundamentalmente uma ontologia.2 2 Os principais defensores de que a “Metafísica” contenha um projeto de ciência minimamente unitário e que o caráter de tal ciência seja “ontológico”, isto é, que se trate de uma ciência que possa ser caracterizada, grosso modo, como uma ciência que investiga o ser/ente são comentadores de língua inglesa e alemã, capitaneados por Joseph Owens, Michael Frede e Günther Patzig. Cf. Owens (1978); Patzig (1960); Frede (1987b). A interpretação “protológica” ou “arqueológica” de Enrico Berti constitui uma notável exceção a essa tendência geral. Cf. Berti (2006 e 2014). A interpretação de Berti é seguida, em linhas gerais, por Rossito (2012). Desse modo, tem sido amplamente privilegiada a formulação da ciência preeminente presente em Γ, isto é, a noção de ciência do ser qua ser e dos seus atributos per se - ἔστιν ἐπιστήµη τις ἣ θεωρεῖτὸ ὂν ᾗ ὂν καὶ τὰ τούτῳ ὑπάρχοντα καθʼαὑτό - (Metaph. Γ1, 1003a20-21).3 3 Τodas as referências ao texto grego da “Metafísica” contidas neste trabalho dizem respeito a Ross (1958). Para a tradução portuguesa da “Metafísica” utilizamos - com modificações pontuais - a tradução de Lucas Angioni.

Um exemplo bem marcado desse tipo de atitude é a edição de Christopher Kirwan dos livros ΓΔΕ da “Metafísica”, saída pela prestigiosa coleção Clarendon Aristotle Series, na qual Kirwan alega que o verdadeiro começo da obra seja Γ, sendo os livros Α-α-Β simplesmente irrelevantes como contexto (Kirwan, 1972KIRWAN, C. “Metaphysics - Books Γ, Δ and Ε”. Translated with notes by C. Kirwan. Oxford: Clarendon, 1972. (Clarendon Aristotle Series)., p. 75).4 4 A observação encontra-se em Menn (1995, p. 202).

Γ é, porém, o quarto livro da “Metafísica”, e parece a nós que ignorar os livros precedentes é transcurar uma parte indispensável do argumento da obra, como procuraremos fazer ver. Poderia pairar, entretanto, uma suspeita: não seriam os livros anteriores a Γ parte de outro projeto filosófico, tendo sido alocados em sua posição atual por algum editor tardio, quiçá na tentativa de dar à “Metafísica” uma introdução aceitável? Semelhante tipo de suspeita ganha plausibilidade quando se considera a situação absolutamente sui generis do livro α da “Metafísica”, o único caso entre todos os textos herdados da cultura grega em que há dois livros “primeiros”.5 5 Como é bem sabido, os gregos usavam letras - sempre maiúsculas - em ordem alfabética para numerar as partes ou aquilo que nós chamaríamos, talvez, de capítulos duma obra. Todavia, a “Metafísica” contém um livro alpha maiúsculo, depois do qual vem o livro alpha minúsculo, em vez do natural beta; o equivalente moderno de tal anomalia seria publicar um livro contendo um capítulo I e outro I*. Para um estudo aprofundado da questão da numeração dos manuscritos gregos, com seus diferentes padrões de numeração segundo os períodos históricos, cf. Gardthausen (1913, pp. 353-381).

Apesar de α estar, certamente, mal posicionado,6 6 A questão do não pertencimento de certos livros à “Metafísica” é polêmica. Giovanni Reale é, aparentemente, o único comentador contemporâneo a defender a autenticidade e a correta ordenação de todos os livros da obra (ou, mais precisamente, a existência de alguma contribuição por parte de cada um dos livros, na ordem em que nos chegaram, ao projeto geral de Aristóteles), o que constitui hoje uma posição extrema e isolada. Cf. Reale (2008, passim). Note-se que, com tal posição, Reale está retomando propostas tradicionais de leitura da “Metafísica”, tais como a do alemão Karl Ludwig Michelet (1836). Um ponto de partida para a discussão dos livros que podem ser considerados como pertencentes ao projeto “original” da “Metafísica” é a informação presente num catálogo antigo das obras do Estagirita, o catálogo de Hesíquio, no qual é mencionada uma “Metafísica” em dez livros; muitos comentadores, sugestionados por essa informação - que por si só não é decisiva -, especularam sobre essa hipotética “Metafísica” em dez livros. É quase universalmente reconhecido o misplacement de α, ou seja, o fato de ele não poder pertencer, pelo motivo já mencionado, à série original de livros da “Metafísica”. Restaria ainda discutir, no que concerne a Metaph. α, se se trata de um livro autêntico ou não; em caso positivo, a que tipo de projeto ele serviria (quiçá uma introdução à Física); para uma discussão aprofundada, cf. Berti (2011b). Pairam sobre K sérias dúvidas acerca de sua autenticidade. Já Δ é frequentemente considerado um livro autônomo, espécie de catálogo (parcialmente) metafísico de termos. Por fim, Λ foi considerado por muitos (Bonitz, Jaeger, Ross e outros tantos que os seguiram) um tratado independente, enxertado posteriormente na obra. Chegar-se-ia, destarte, ao aspirado número de dez livros. Para uma sóbria discussão da questão, remetemos ao capítulo intitulado ‘The Metaphysics and its constituent books’, capítulo que pertence a uma obra ainda não publicada em mídia impressa - “The Aim and the Argument of Aristotle’s Metaphysics” -, mas cujo extensíssimo rascunho foi disponibilizado no site da Humboldt-Universität zu Berlin. Citamos esse trabalho do seguinte modo: MENN, título do capítulo, página. Para as listas antigas das obras de Aristóteles, cf. Moraux (1951). isso não implica a irrelevância dos livros AB. As linhas iniciais de Γ, com sua famosa formulação da “ciência do ser qua ser e de seus atributos per se”, são uma clara resposta às primeiras aporias de B. Este livro, por sua vez, não é um tratado autônomo, um livro “solto” casualmente inserido na “Metafísica”; pelo contrário, B desempenha nitidamente a função de problematizar a ciência preeminente, a qual, por sua vez, já fora alinhavada em A.

Dito de outro modo, a ciência do ὂν ᾗ ὄν de Γ não é diferente da ἐπιζητουµένην ἐπιστήµην de B,7 7 A esse respeito, escrevem Michel Crubellier e Pierre Pellegrin: “Le livre suivant (Γ) s’inscrit assez nettement dans la continuité de B, puisqu’il se présente explicitement comme la discussion et la résolution de deux de ces apories, la deuxième et la quatrième [...]”, Crubellier; Pellegrin (2002, pp. 322). que, por sua vez, é apenas outra descrição da σοφία de A.8 8 Acerca da estrita conexão dos livros B e A, escreve Stephen Menn (the Metaphysics and its constituent books, pp. 1): “Metaphysics B is closely connected with A, to which it explicitly refers back three times (995b4-6, 996b8-10, 997b3-5), in such a way as to leave no doubt that A and B are intended as parts of a single treatise beginning with A”. Reconhecer isso, em nossa opinião, é dar o primeiro passo para que se comece, finalmente, a redimensionar a suposta “ontologia” 9 9 A palavra “ontologia”, apesar de ser formada a partir de étimos gregos, não integra o Grego Antigo vernacular. De acordo com o Historisches Wörterbuch der Philosophie (verbete Ontologie, v. 6, pp. 1189), o termo teria sido empregado pela primeira vez no século XVII por Rudolph Göckel (Rodolphus Goclenius) em seu Lexicon philosophicum. Cf. Goclenius (1964). de Aristóteles. De fato, cremos ser imperioso procurar remediar a ênfase que a crítica especializada tem colocado sobre a chamada “ontologia aristotélica” - que começaria com a ciência do ser qua ser de Γ e culminaria na análise das substâncias sensíveis em ΖΗ -.

Assim sendo, dedicaremos este artigo ao exame detalhado da primeira entre todas as formulações da ciência preeminente na “Metafísica”, a σοφία, tal como ela foi descrita em Metaph. A2. Ao longo de tal exame, procuraremos compreender a definição da σοφία como ciência das causas primeiras ou princípios, e veremos também que tal definição, que poderia ser rotulada como “arqueológica” ou “protológica”,10 10 “Per Aristotele la definizione più appropriata della filosofia prima è scienza delle cause prime, scienza dei principi. Se dovessimo trovare una parola italiana, la scienza dei principi dovremmo chiamarla archeologia, perché in greco il principio si dice ἀρχή, ma purtroppo la parola "archeologia" viene adoperata per indicare altre cose, cosi potremmo chiamarla "protologia", per dire scienza dei primi, e in ogni caso non c'è bisogno di una parola. Certo, essa è, può anche essere ontologia e, se volete, anche teologia, ma non si riduce né all'ontologia né alla teologia, bensi è ricerca delle cause prime e dei principi di tutti gli enti [...]”, Berti (2006, p. 78). desemboca, forçosamente, na discussão de quais sejam tais causas primeiras ou princípios. E convém notar que, já aqui em Metaph. A2, Aristóteles claramente afirma que deus deve ser contado entre as causas primeiras ou princípios, de tal modo que a valência “arqueológica” da ciência suprema parece estar conectada com sua valência “teológica”.11 11 Desejamos ressalvar que se deve usar de extrema cautela ao empregar termos como “ontologia” e “teologia” para nos referirmos a Aristóteles, sob pena de distorcer gravemente o seu pensamento. De nossa parte, estamos persuadidos de que a ciência preeminente que é desenvolvida na “Metafísica” deve culminar num exame do(s) motor(es) suprassensíveis, e, nesse sentido apenas, esta ciência tem caráter “teológico”. Sendo assim, sustentamos que a investigação desenvolvida na obra desemboca, depois dum longuíssimo percurso, em considerações acerca de ente(s) que Aristóteles qualifica como divino(s). Pois bem, se este fato faculta-nos chamar semelhante investigação de “teológica” (como, aliás, o próprio Aristóteles o fez), isso certamente não significa que ela seja stricto sensu uma teologia, se por “teologia” se entende necessariamente aquele tipo de disciplina intelectual que foi cultivada para aperfeiçoar a compreensão do objeto mais eminente das grandes religiões monoteístas.

2 A especificação da σοφία como a ciência dos princípios ou causas primeiras

O primeiro capítulo do livro A da “Metafísica” termina em certa tensão: num primeiro momento Aristóteles afirma que a meta do seu argumento é mostrar que a “sabedoria - σοφίαν - é a respeito das primeiras causas e princípios - τὰ πρῶτα αἴτια καὶ τὰς ἀρχάς -” (Metaph. A1, 981b28-29), mas, logo a seguir, ele diz que “a sabedoria - σοφία - é uma ciência a respeito de certos princípios e causas - τινας ἀρχὰς καὶ αἰτίας -” (Metaph. A1, 982a13). Caberá, então, ao segundo capítulo do mesmo livro resolver tal tensão, e mostrar que a sabedoria é uma ciência que tem por objeto não apenas certas causas, mas as causas primeiras.

De fato, assim começa Metaph. A2: “Dado que procuramos essa ciência, devemos investigar o seguinte: a respeito de quais causas e de quais princípios a sabedoria é ciência?” (Metaph. A2, 982a4-6). Como se vê, Aristóteles está retomando a questão da σοφία que ficara em suspenso em Metaph. A1, propondo-se a determinar em que consistem as referidas causas e princípios. Eis como ele propõe fazê-lo:

Ora, se considerarmos as concepções - ὑπολήψεις - que temos - ἔχοµεν - a respeito dos sábios - σοφοῦ -, disso poderá surgir, talvez, algo de mais claro. Concebemos - ὑπολαµβάνοµεν -, primeiramente, que [1] um sábio conhece tudo - ἐπίστασθαι πάντα -, na medida do possível, sem ter conhecimento de cada coisa particular - µὴ καθ᾽ ἕκαστον -. Em seguida, consideramos sábio aquele que [2] é capaz de conhecer coisas difíceis, isto é, que não são fáceis de conhecer para o homem comum (o sentir - αἰσθάνεσθαι - é comum a todos e, por isso, é fácil e não é “sábio”). Além disso, no que respeita a qualquer conhecimento, consideramos ser mais sábio - σοφώτερον - aquele que [3] é mais exato - ἀκριβέστερον - e que [4] tem maior capacidade de ensinar as causas - διδασκαλικώτερον τῶν αἰτιῶν -. E, entre as ciências, consideramos ser sabedoria - σοφίαν - antes aquela que [5] é escolhida em vista de si mesma e graças ao saber, de preferência àquela que é escolhida em vista dos resultados; e consideramos ser sabedoria antes a que [6] governa - ἀρχικωτέραν - do que a subordinada, pois é preciso que o sábio não seja mandado - ἐπιτάττεσθαι -, mas mande - ἐπιτάττειν -; e é preciso não que ele obedeça a outro, mas que lhe obedeça o menos sábio (Metaph. A2, 982a6-19).12 12 Os números entre colchetes foram introduzidos por nós.

Antes de nos voltarmos para o conteúdo da passagem, convém atentarmos para o método empregado por Aristóteles. Já Alexandre de Afrodísia (Commentarius In Libros Metaphysicos Aristotelis, pp. 9) observava que o procedimento aqui adotado reflete, de fato, uma prática comum do filósofo, facilmente encontrável em inúmeros outros lugares do corpus, nomeadamente, a consideração de opiniões reputadas referentes ao tema que o Estagirita pretende abordar. Como observa o Afrodísio, isso se deu, por exemplo, na Física, no que tange às noções de espaço e tempo, e o mesmo ocorre aqui em Metaph. A2, com relação à σοφία.

Voltemos agora nossa atenção para o trecho citado da “Metafísica” (Metaph. A2, 982a6-19). Aristóteles indica seis traços característicos do sábio - σοφός - e de sua sabedoria - σοφία - segundo as concepções - ὑπολήψεις - comumente partilhadas. Estas são:

  • (1) O sábio conhece tudo - ἐπίστασθαι πάντα -, ainda que não possua um conhecimento de cada coisa individualmente considerada - µὴ καθ᾽ ἕκαστον -.

  • (2) O sábio conhece as coisas difíceis (o que exclui, por exemplo, a sensação - αἰσθάνεσθαι -).

  • (3) O sábio é mais exato - ἀκριβέστερον - do que todos os outros que possuem algum tipo de conhecimento.

  • (4) O sábio é o mais capaz de ensinar as causas - διδασκαλικώτερον τῶν αἰτιῶν -.

  • (5) A sabedoria (o tipo de conhecimento que o sábio detém) é escolhida por si mesma, diferindo, portanto, daqueles saberes que se escolhem por suas consequências.

  • (6) A sabedoria é a ciência soberana - ἀρχικωτέραν -,13 13 Trata-se do comparativo de superioridade do adjetivo ἀρχική. Modificamos aqui, como em muitos outros lugares, a tradução de Lucas Angioni que tomamos por base neste trabalho, tendo decidido traduzir “ἀρχικωτέραν” por “soberana” ou, ainda, “a [ciência] que mais governa”; ressaltamos, porém, que essa opção com toda a certeza não é única, nem, necessariamente, a mais correta. Ver discussão a seguir, na nota 26. de modo que o sábio não é comandado - ἐπιτάττεσθαι - por ninguém, e sim é ele quem comanda - ἐπιτάττειν - os outros.

Esse é, como já dissemos, o elenco das marcas distintivas do sábio segundo as opiniões mais difundidas. No entanto, não é imediatamente óbvio que o conjunto dessas características se coadune perfeitamente. Alguém poderia objetar que as preconcepções partilhadas pela maioria resultam num conjunto quimérico, não podendo, pois, haver um único saber que atenda a todas essas condições.

Poder-se-ia argumentar, para ficarmos em apenas um exemplo, que os itens 2 (o sábio conhece as coisas mais difíceis) e 3 (o sábio possui o conhecimento mais exato) formem um par inconsistente: talvez as coisas mais difíceis a conhecer sejam tais que não permitam que se as perscrute com exatidão, como a noção de matéria em geral e, em particular, a matéria-prima.

O modo adequado de fazer essa “demonstração” parece ser, em primeiro lugar, explicitar, nem que seja de modo esquemático, em que consiste a σοφία. De fato, somos de opinião de que é exatamente isso que o filósofo fará nas próximas linhas da “Metafísica”.

Antes de iniciarmos a análise da passagem, convém ter em mente que já foi apresentado ao menos um esboço de definição da σοφία; lembremo-nos de como reza a primeira frase de Metaph. A2: “Dado que procuramos essa ciência, devemos investigar o seguinte: a respeito de quais causas e de quais princípios a sabedoria é ciência?” (Metaph. A2, 982a4-6). Foi precisamente para mostrar de quais causas - ποίας αἰτίας - e de quais princípios - ποίας ἀρχάς - trata a σοφία que se elencaram os já referidos seis traços do sábio e da sabedoria. Vejamos, enfim, como o filósofo descreve a sabedoria.

São tais e tantas as concepções - ὑπολήψεις - que temos - ἔχοµεν - a respeito da sabedoria - σοφίας - e dos sábios - σοφῶν -; entre elas, [1] conhecer tudo - πάντα ἐπίστασθαι - pertence, necessariamente, sobretudo àquele que detém a ciência do universal - καθόλου - (pois este conhece, de certo modo, todos os [itens] subjacentes), e, por assim dizer, [2] o mais difícil para os homens comuns é conhecer estes [itens], quais sejam, os mais universais - τὰ µάλιστα καθόλου - (pois são os mais afastados - πορρωτάτω - das sensações - αἰσθήσεων -), e, [3] entre as ciências, são mais exatas - ἀκριβέσταται - sobretudo as que são [a respeito] das coisas primeiras - τῶν πρώτων - (pois as ciências que procedem de menos [princípios] são mais exatas do que as que procedem por acréscimo [de princípios]; por exemplo, a aritmética [é mais exata] que a geometria); além do mais, [4] também comporta maior poder de ensinar - διδασκαλική - [a ciência] que mais contempla - θεωρητικὴ µᾶλλον - as causas - τῶν αἰτιῶν - (pois são estes que ensinam: os que dizem as causas - αἰτίας - a respeito de cada coisa); [5] e o saber (ou o conhecer) em vista do próprio saber pertence sobretudo ao conhecimento daquilo que é mais cognoscível (pois quem escolhe o conhecer em vista do próprio conhecer escolherá sobretudo o conhecimento que é mais conhecimento, e este é o conhecimento daquilo que é o mais cognoscível), e [os itens] mais cognoscíveis são as coisas primeiras - τὰ πρῶτα -, isto é, as causas [primeiras] - τὰ αἴτια - (pois é devido a elas e a partir delas que os demais [itens] vêm a ser conhecidos, mas não [é] através dos itens subordinados que elas [vêm a ser conhecidas]), e, [6] dentre os conhecimentos, o soberano - ἀρχικωτάτη -, isto é, o [que é] mais afeito ao governo - µᾶλλον ἀρχική - do que o [conhecimento] subordinado, é aquele que sabe em vista de que - τίνος ἕνεκεν - cada coisa - ἕκαστον - deve ser feita; e isso [o “em vista de quê”, o fim] é o bem - τἀγαθόν - de cada coisa - ἑκάστου - e, em geral, [o fim] da natureza como um todo - ἐν τῇ φύσει πάσῃ - é o sumo bem - τὸ ἄριστον -. Por tudo que foi dito, a denominação que procuramos recai sobre a mesma ciência: ela deve ser uma ciência que contempla - θεωρητικήν - os primeiros princípios e causas - τῶν πρώτων ἀρχῶν καὶ αἰτιῶν - (pois também o bem - τἀγαθόν -, isto é, o “em vista de quê” - τὸ οὗ ἕνεκα -, é uma - ἕν - dentre as causas - τῶν αἰτίων -) (Metaph. A2, 982a19-982b10).14 14 Os números entre colchetes foram introduzidos por nós.

A primeira coisa que chama a atenção nessa passagem é a ordenação geral do argumento. Aristóteles retoma aqui, exatamente na mesma ordem em que foram inicialmente referidas, cada uma das seis características elencadas como constituintes da opinião que se faz do sábio e da sabedoria; o filósofo, então, procura mostrar, com notável paralelismo terminológico, a correção dessa opinião.

Em primeiro lugar, Aristóteles explica (1) como o sábio seja capaz de conhecer todas as coisas - ἐπίστασθαι πάντα -. Isso é possível porque ele detém a ciência do universal - ἔχοντι τὴν καθόλου ἐπιστήµην -, o que faz com que ele conheça, “de certo modo, todos os [itens] subjacentes” (Metaph. A2, 982a21-23).

Que pensar dessa explicação? Que tipo de ciência é, então, a σοφία? Uma hipótese é imaginá-la como uma ciência de universais, de tal modo que, ao conhecer o universal, conhecer-se-ia, “de certo modo - πως -”, todos os particulares que caem sob a sua esfera.

Mas, como explicam virtualmente todos os comentadores, a noção de “universal” - καθόλου - não possui tal acepção no trecho em apreço. De fato, não faria sentido algum dizer que a σοφία seja a ciência dos universais, pois também aqui se afirma peremptoriamente que ela conhece todas as coisas; ora, se assim fosse, a σοφία teria de consistir numa espécie de conhecimento de todos os universais que há.

Mas Aristóteles certamente não aceitaria a existência de semelhante disciplina. Tal saber constituiria, aparentemente, uma espécie qualquer de “super-saber”, isto é, um conhecimento genérico dos conceitos que integram cada uma das ciências particulares, estas, sim, ciências legítimas e autônomas no entender do Estagirita. Seria possível perceber, talvez, alguma semelhança entre tal “super-ciência” e a dialética platônica, a qual, como se sabe, Aristóteles não reconhece como sendo verdadeira ciência.

Mas se a σοφία é ciência do universal, como afirma o texto em análise, então que tipo de universal é esse?

Depois de procurar em vão por uma resposta nos muitos e ilustres comentadores da “Metafísica”, chegamos à conclusão de que o melhor modo de explicar a passagem seja supor que Aristóteles esteja fazendo uma referência implícita à noção de causa: a σοφία é ciência não do universal simpliciter, mas sim de causas universais. Tal hipótese é também compatível com a glosa de que aquele que conhece o universal “conhece, de certo modo, todos os [itens] subjacentes)”: conhecer a causa universal implica conhecer, de certo modo - πως -, também os efeitos que dela se seguem.

Reconhecemos, todavia, que a interpretação que aqui propomos não seja imediatamente óbvia; acreditamos, porém, que a sua plausibilidade será reforçada pela leitura do restante da passagem. De fato, um dos princípios hermenêuticos é que a interpretação mais adequada dum trecho qualquer é aquela que melhor expressa a relação entre o todo e as partes do escrito; tal interpretação faz com que o sentido da parte seja iluminado e esclarecido pelo todo, e o sentido do todo pelas partes. Vejamos, então, como prossegue a argumentação aristotélica.

A seguir, Aristóteles passa a explicar (2) por que o sábio é detentor do conhecimento mais difícil. Isso é o caso, afirma o filósofo, porque o sábio conhece o que há de mais universal - τὰ µάλιστα καθόλου -. Ora, esta resposta ressoa claramente o argumento das linhas imediatamente anteriores, quando se disse que o sábio, que tudo conhece - ἐπίστασθαι πάντα -, detém a ciência do universal - ἔχοντι τὴν καθόλου ἐπιστήµην -.

Mas por que, poder-se-ia indagar, τὰ µάλιστα καθόλου é o que há de mais difícil a conhecer? Isso se dá, explica Aristóteles, porque os itens mais universais “são os mais afastados - πορρωτάτω - das sensações - αἰσθήσεων -” (Metaph. A2, 982a23-25). Ora, cremos que tal glosa pode lançar luz sobre o sentido de “universal” que está em jogo em toda essa passagem.

Suponhamos que o termo “καθόλου” na expressão “τὰ µάλιστα καθόλου” signifique “universal”. Aristóteles estaria dizendo, então, que há alguns universais mais gerais do que outros. Isso significaria, talvez, que os itens com maior extensão fossem mais gerais, como “animal” com relação a “homem”. Aristóteles propugnaria, ademais, que os universais mais gerais seriam os mais difíceis a conhecer, por serem os mais afastados da sensação - αἴσθησις -.

Aplicando o raciocínio ao exemplo dado, o argumento implicaria que “animal” seria mais afastado da sensação do que “homem”, e os itens mais universais - τὰ µάλιστα καθόλου - (talvez o “ser”, o “uno”, o “igual”, o “diverso” etc.) seriam maximamente afastados - πορρωτάτω - da sensação.

Ora, não parece fazer nenhum sentido dizer que “animal” seja literalmente mais afastado da sensação do que “homem”; e, mesmo que houvesse alguma explicação disponível, Aristóteles certamente nem sequer indica qual essa possa ser.

Propomos, ao contrário, que o termo “καθόλου” deva ser entendido também aqui como fazendo referência implícita à noção de causa. Sendo assim, a expressão “τὰ µάλιστα καθόλου” significaria “as causas mais universais”.15 15 O Aquinate também faz uma leitura que pressupõe que a noção de causa esteja implícita no argumento em tela: “Sed quantum ad investigationem naturalium proprietatum et causarum, prius sunt nota minus communia; eo quod per causas particulares, quae sunt unius generis vel speciei, pervenimus in causas universales”, “Mas no que diz respeito às investigações de propriedades e causas naturais, são conhecidas primeiro coisas menos comuns, porque descobrimos causas universais por meio de causas particulares que pertencem a um gênero ou espécie.” Tomás de Aquino (1950, I, lectio 2, n. 46, grifo nosso). No mesmo sentido, ver também Reale (2005, v. 3, p. 13). E podemos considerar que uma causa seja mais universal do que outra quando ela tem influência sobre um número maior de itens. Por exemplo, uma luz artificial pode ser a causa da germinação duma determinada planta; mas, no que diz respeito à germinação em geral, a luz do sol é uma causa muito mais universal do que qualquer luz artificial, porque ela causa a germinação dum número muito maior de plantas.16 16 Ou ainda, para contemplar itens de diferentes espécies dentro de um mesmo contexto causal: uma fonte de calor (e luz) pode ser tanto causa da germinação de plantas quanto dos movimentos que informam a matéria de animais elementares.

Mas como explicar, então, a ideia de que os itens mais universais sejam os mais distantes da sensação? Valendo-nos da interpretação que ora sugerimos, podemos afirmar que os itens mais afastados da percepção sensível são as causas mais universais. Aristóteles estaria afirmando, portanto, que as causas que afetam o maior número de itens seriam, justamente, as mais afastadas da sensibilidade. E, talvez, a referência aqui seja mesmo à causalidade divina: deus é algo sumamente afastado da sensibilidade (sendo, de fato, estritamente não-sensível),17 17 Há de se notar que a referência dos termos “deus” e “divino” é bastante ambígua nos textos aristotélicos. Sabe-se que o filósofo considera todos os seres supralunares como sendo, lato sensu, divinos; esse grupo inclui os astros e planetas, mas também os motores celestes. Por vezes, entretanto, Aristóteles usa o termo “deus” de forma bem mais restrita, referindo-se somente aos entes imateriais ou, mais especificamente, ao primeiro motor imóvel. e é também uma causa universal.

Que Aristóteles esteja aqui lidando com a ideia de que deus seja uma causa não é algo tão implausível quanto pode parecer à primeira vista. Não precisamos supor que o filósofo já esteja se apoiando nas complexas afirmações incluídas em Λ. Aqui mesmo, no livro A, o tema do divino é abordado, e, note-se, sem maiores pruridos. De fato, apenas algumas linhas adiante, o Estagirita afirma-o categoricamente: “todos reputam que deus se conta entre as causas e é um princípio” (Metaph. A2, 983a8-9). Não é, portanto, de todo inverossímil que já aqui, na passagem em apreço (Metaph. A2, 982a23-25),18 18 Também Alexandre parece sugerir que a passagem já implique uma referência aos primeiros e mais simples entre todos os entes, isto é, ao(s) deus(es). Cf. Commentarius In Libros Metaphysicos Aristotelis, pp. 10-11. esteja subentendida a ideia de que a causa mais universal, isto é, deus, seja o que há de mais afastado - πορρωτάτω - da sensação.19 19 Como vimos, o corpus ostenta certa ambivalência no que tange ao termo “divino”. Mas, ainda que, por hipótese, não se faça menção aqui aos motores imateriais, mas apenas aos astros, que são supralunares, porém sensíveis, a explicação ainda se sustentaria. Como dissemos, também os astros são divinos para o Estagirita, e seus regrados movimentos determinam o ciclo das estações e todas as demais alterações meteorológicas às quais estão necessariamente submetidos todos os seres do mundo sublunar. Desse modo, poder-se-ia afirmar que os planetas, seres distantes da sensibilidade (no sentido de remotos, afastados de nossa experiência sensorial pedestre), são causas, e causas bastante universais, de diversos fenômenos que acometem todos os seres sublunares.

Em seguida, Aristóteles assevera que (3) as mais exatas - ἀκριβέσταται - entre as ciências são as que têm por objeto as coisas primeiras - τῶν πρώτων -, “pois as ciências que procedem de menos - ἐξ ἐλαττόνων - [coisas primeiras/ princípios] são mais exatas - ἀκριβέστεραι - do que as que procedem por acréscimo - ἐκ προσθέσεως - [de coisas primeiras/princípios]; por exemplo, a aritmética é mais exata que a geometria” (Metaph. A2, 982a25-28).

O argumento é razoavelmente claro. Em primeiro lugar, o filósofo exprime a ideia de que quanto mais uma ciência trata das coisas primeiras - τῶν πρώτων -, tanto mais exata ela é. Mas que quer dizer “coisas primeiras - τῶν πρώτων -” aqui?

A explicação que Aristóteles dá em seguida (bem como a menção às ciências da aritmética e da geometria) sugere que ele pretende se referir com essa expressão aos princípios - ἀρχαί - que estão na base duma ciência; e, acrescenta o Estagirita, quanto mais simples são os princípios, tanto mais exata é a ciência.

Dito isso, Aristóteles apenas alude ao exemplo da aritmética, que ele diz ser mais exata que a geometria. A explicação desse pormenor é, como indica a opinião dos comentadores, que a aritmética tem por princípios apenas quantidades discretas, ao passo que a geometria abarca, além daquelas, também princípios relativos a quantidades contínuas (retas, superfície, figuras etc.). Em suma, os princípios da geometria são mais numerosos e complexos do que os da aritmética, o que faz com que esta seja mais exata do que aquela.

Desejamos chamar a atenção para o fato de que essa breve passagem dá uma importante contribuição para o argumento de Metaph. A2. Recordemonos que o objetivo do capítulo, claramente estipulado em sua primeira frase, é determinar “[...] a respeito de quais causas e de quais princípios a sabedoria é ciência” (Metaph. A2, 982a4-6). Pois bem, o trecho em apreço assenta que a σοφία é acerca das coisas primeiras - τῶν πρώτων -. Como acabamos de ver, tal expressão faz referência, provavelmente, aos princípios - ἀρχαί - que estão na base duma ciência. Aristóteles sublinha, ademais, que quanto menos numerosos (ou mais simples) forem os princípios, tanto mais exata é a ciência que deles decorre. Ora, se a σοφία é a ciência mais exata, isso se dá, segundo a argumentação aqui exposta, porque seus princípios são os mais simples.

Em resumo, fica aqui estabelecido que a σοφία tem por objeto as coisas primeiras, isto é, os princípios, e que esses são os mais simples que há.

A quarta característica do σοφός era, como vimos, a sua excepcional capacidade de ensinar. Aristóteles explica (4) que o σοφός é quem detém o maior poder de ensinar justamente porque a σοφία é a ciência “que mais contempla - θεωρητικὴ µᾶλλον - as causas - τῶν αἰτιῶν - (pois são estes que ensinam: os que dizem as causas - αἰτίας - a respeito de cada coisa)” (Metaph. A2, 982a28-30).

A estrutura argumentativa é bastante evidente e poderia ser expressa no seguinte silogismo (S2):

(M2) A ciência que mais conhece20 20 Aristóteles não usa, literalmente, o correspondente em grego do verbo “conhecer”; ele emprega, ao contrário, uma fórmula um tanto idiossincrática: ἡ τῶν αἰτιῶν θεωρητικὴ µᾶλλον, que poderíamos traduzir, ao pé da letra, como “a [ciência] mais contempladora das causas”. Seja como for, o filósofo quer dizer, sem dúvida, que essa ciência, que sabemos ser a σοφία, conhece as causas mais (ou melhor) do que as demais ciências, havendo, ademais, a implicação de que tal ciência seja teorética - θεωρητική -. as causas é a ciência mais capaz de ensinar;

(m2) a sabedoria é a ciência que mais conhece as causas;

(C2) logo, a sabedoria é a ciência mais capaz de ensinar.21 21 Em rigor, a passagem em tela contém explicitamente apenas a premissa maior (M2), seguida duma glosa. A premissa menor (m2) e a conclusão (C2) estão, pois, somente implícitas. Mas isso não nos deve admirar, pois na maior parte de Metaph. A2, 982a20-982b10, isto é, todo o trecho em que Aristóteles argumenta em favor das seis concepções anteriormente elencadas (Metaph. A2, 982a4-19) acerca da σοφία e do σοφός, ele só emprega o termo “σοφία” uma única vez, no início da passagem (Metaph. A2, 982a20). Em suma, em toda essa argumentação o filósofo simplesmente presume que se esteja falando da σοφία, eximindo-se, assim, da obrigação de citá-la nominalmente a cada passo.

Se a estrutura do argumento é bastante clara, não se pode dizer o mesmo dos termos que o compõem. De fato, não é nada óbvio o que significa ser “a ciência que mais conhece as causas”, uma vez que qualquer ciência, de acordo com Aristóteles, consiste no conhecimento de causas. “Conhecer mais as causas” significa conhecer um maior número de relações causais? Ou, talvez, apreender causas mais eminentes? Note-se que tal dúvida acaba por afetar a adequada compreensão da premissa menor - (m2) a sabedoria é a ciência que mais conhece as causas -, cujo entendimento é, todavia, fundamental.

Como Aristóteles não nos legou nenhum esclarecimento explícito, para compreendermos o real significado da premissa menor (m2) temos de nos valer do que já foi dito acerca da σοφία até aqui. Poderíamos, então, supor, com base na explicação dos critérios (1), (2) e (3) há pouco examinados, que a expressão “conhecer mais as causas” signifique apreender causas mais universais - (1) e (2) - e mais fundamentais ou primeiras - (3) -. Isso implica que a premissa (m2) “a sabedoria é a ciência que mais conhece as causas” exprime a ideia de que a σοφία conhece causas primeiras - (3) - (o que quer dizer, provavelmente, causas simples e que constam como princípios no esquema dedutivo duma determinada ciência) e causas cujo poder causal incide sobre um grande número de itens - (1) e (2) -.22 22 A expressão θεωρητικὴ µᾶλλον também sugere que a σοφία seja uma ciência teorética, como, de resto, se sabe desde Metaph. A1.

Salientamos, por fim, que o argumento em análise (Metaph. A2, 982a2830) torna explícito que a σοφία diz respeito a causas, algo que estava somente implícito, como observamos, nas linhas que o antecedem.

O quinto critério distintivo da sabedoria é, como vimos, (5) que ela é escolhida por si mesma, e não por qualquer vantagem superveniente. Mas, quando Aristóteles se ocupa de argumentar em favor dessa assertiva, ele prova na verdade algo de mais forte, nomeadamente, que a σοφία seja, entre todas as ciências, aquela a que, em rigor, mais convém a descrição de ser buscada per se.

[5] e o saber (ou o conhecer) em vista do próprio saber pertence sobretudo ao conhecimento daquilo que é mais cognoscível (pois quem escolhe o conhecer em vista do próprio conhecer escolherá sobretudo o conhecimento que é mais conhecimento, e este é o conhecimento daquilo que é o mais cognoscível), e [os itens] mais cognoscíveis são as coisas primeiras - τὰ πρῶτα - e as causas - τὰ αἴτια - (pois é devido a elas e a partir delas que os demais [itens] vêm a ser conhecidos, mas não [é] através dos [itens] subordinados que elas [vêm a ser conhecidas]) [...] (Metaph. A2, 982a30-982b4)

A passagem citada poderia ser sintetizada no seguinte silogismo (S3):

(M3) O conhecimento que, entre todos, é o mais escolhido por si mesmo é o conhecimento do maximamente cognoscível;23 23 Os termos gregos que equivalem a “conhecimento” e “cognoscível” aqui empregados são, respectivamente, “ἐπιστήµη” e “ἐπιστητός”. Preferimos, neste caso, seguir a opção do tradutor, por causa do jogo linguístico entre “conhecimento” e “cognoscível”, que seria impossível manter se optássemos por traduzir “ἐπιστήµη” por “ciência”. Mas, como veremos adiante, é importante ter em mente quais são os termos originais empregados aqui por Aristóteles.

(m3) o conhecimento do maximamente cognoscível é o conhecimento das causas primeiras;24 24 Sugerimos que a expressão “τὰ πρῶτα καὶ τὰ αἴτια” seja interpretada como sendo equivalente à noção de causas primeiras (ou princípios). Para a justificação dessa posição, ver discussão a seguir.

(C3) logo, o conhecimento mais escolhido por si mesmo é o conhecimento das causas primeiras (i.e., a σοφία).

Note-se, em, primeiro lugar, que o texto aristotélico só contém explicitamente as premissas maior (M3) (Metaph. A2, 982a30-32) e menor (m3) (Metaph. A2, 982b2), ficando a conclusão do argumento (C3) subentendida. Na verdade, a passagem consiste na enunciação da maior e da menor, respectivamente, seguindo-se a cada uma delas uma justificativa, as quais ocupam a maior parte do texto e acabam por constituir pequenos argumentos paralelos ao principal. Vejamos.

Depois de asseverar a premissa maior - (M3) o conhecimento que, entre todos, é o mais escolhido por si mesmo é o conhecimento do maximamente cognoscível -, Aristóteles sente a necessidade de apresentar algum tipo de elucidação. De fato, não é nada evidente que o conhecimento que é mais buscado per se tenha de ser, necessariamente, o conhecimento do que é mais cognoscível.

Ele explica, então, que quem persegue o saber por si mesmo, e não por suas consequências, escolherá preferencialmente - µάλιστα αἱρήσεται - o conhecimento máximo - τὴν µάλιστα ἐπιστήµην - (argumento que é bastante plausível); mas o conhecimento máximo é o conhecimento do que é maximamente cognoscível - ἡ τοῦ µάλιστα ἐπιστητοῦ [ἐπιστήµη] - (o que também é razoável); disso resulta que quem escolhe o saber per se escolherá o conhecimento do que é maximamente cognoscível.

A plausibilidade desse argumento depende, é claro, de que se indiquem quais são os itens maximamente cognoscíveis, coisa que Aristóteles faz logo a seguir, enunciando, então, aquela que chamamos de premissa menor (m3): “[os itens] mais cognoscíveis são as coisas primeiras e as causas - τὰ πρῶτα καὶ τὰ αἴτια -” (Metaph. A2, 982b2). Essa formulação comporta, porém, vários problemas.

Em primeiro lugar, a que se refere “τὰ πρῶτα” na locução “τὰ πρῶτα καὶ τὰ αἴτια”? Ora, “τὰ πρῶτα” é uma expressão que acabamos de encontrar, apenas algumas linhas acima no texto (Metaph. A2, 982a25-26), e que interpretamos como sendo equivalente à noção de princípios (de uma ciência qualquer). Poderíamos, por conseguinte, traduzir “τὰ πρῶτα καὶ τὰ αἴτια” por “os princípios e as causas”.

Mas, como sugeriu Jaeger numa emenda a sua edição crítica da “Metafísica”, é possível subentender o adjetivo “primeiras” - “πρῶτα” - referido à palavra “causas” - “αἴτια” -.25 25 “Ab; an πρῶτα αἵτια legendum est? ad hunc enim locum refert 996b13”. Jaeger (1957), p. 5. De fato, a observação parentética que vem depois da locução “τὰ πρῶτα καὶ τὰ αἴτια” indica exatamente isso: “(pois é devido a elas - διὰ γὰρ ταῦτα - e a partir delas - ἐκ τούτων - que os demais [itens] vêm a ser conhecidos, mas não [é] através dos [itens] subordinados que elas - ταῦτα -[vêm a ser conhecidas])” (Metaph. A2, 982b2-4).

A ideia que Aristóteles pretendeu exprimir com essa glosa parece ser a seguinte: é por meio - διά - dos princípios (duma ciência qualquer) que “ascoisas-que-resultam-dos-princípios” vêm a ser conhecidas, e não o contrário, isto é, não é possível conhecer os princípios partindo-se “das-coisas-queresultam-dos-princípios”. Para maior esclarecimento, vejamos o exemplo da geometria, ciência que o filósofo possivelmente tem em mente aqui.

Os princípios da geometria são os pontos, as retas, as figuras, os ângulos, o plano etc. Pois bem, é por meio de tais princípios que são conhecidas “ascoisas-que-resultam-dos-princípios”, isto é, no caso da geometria, os teoremas e corolários. Em suma, as ciências procedem dos princípios para atingir os teoremas, e não no sentido inverso, dos teoremas aos princípios.

Ora, se esse é, como tudo indica, o modo correto de ler a referida glosa, então o antecedente lógico do demonstrativo “ταῦτα” no texto “(pois é devido a elas - ταῦτα - e a partir delas - τούτων - que os demais [itens] vêm a ser conhecidos, mas não [é] através dos [itens] subordinados que elas - ταῦτα - [vêm a ser conhecidas])” (Metaph. A2, 982b2-4) é a noção de princípio: é partindo dos princípios e por meio deles que são conhecidas “as-coisas-queresultam-dos-princípios”, e não o contrário.

No que diz respeito à linguagem da passagem, sabemos que o antecedente gramatical do demonstrativo “ταῦτα” é, provavelmente, a locução “τὰ πρῶτα καὶ τὰ αἴτια” como um todo. Sendo assim, o “καί” não teria aqui o sentido aditivo, mas sim epexegético, significando, portanto, “isto é”.

Mas se “τὰ πρῶτα καὶ τὰ αἴτια” significa “os princípios, isto é, as causas”, então, efetivamente, deve estar implícito, como quis Jaeger, o adjetivo “πρῶτα” junto a “αἴτια”, pois somente assim os dois termos são sinônimos e podem estar ligados epexegeticamente. Devemos, portanto, traduzir “τὰ πρῶτα καὶ τὰ αἴτια” por “os princípios, isto é, as causas [primeiras]”.

Fica, assim, a passagem em discussão:

[...] [os itens] mais cognoscíveis são os princípios - τὰ πρῶτα -, isto é, as causas [primeiras] - τὰ αἴτια - (pois é devido a elas e a partir delas que os demais [itens] vêm a ser conhecidos, mas não [é] através dos itens subordinados que elas [vêm a ser conhecidas]) [...] (Metaph. A2, 982b2-4)

Tendo ficado estabelecido que o Estagirita pretenda afirmar, no texto em tela, que existe uma ciência - ἐπιστήµη - que apreende os princípios dos quais ela mesma deve proceder, temos, então, um problema.

De acordo com a filosofia aristotélica, o papel de apreender os princípios não cabe à própria ἐπιστήµη, mas sim ao νοῦς; stricto sensu, a ἐπιστήµη somente procede (demonstrativamente) a partir dos princípios que ela recebe do νοῦς. Ross (1958, v. 1, p. 122)ROSS, W. D. “Aristotle’s Metaphysics: a revised text with introduction and commentary by W. D. Ross”. (Oxford: Clarendon Press, 1958)., que percebeu o problema, deu-lhe, em nosso parecer, a melhor solução: as noções de ἐπιστήµη e, acrescentaríamos, de ἐπιστητά estão sendo empregadas aqui em sentido bastante amplo, capaz de incluir em si as funções que seriam, em rigor, próprias do νοῦς.

Vejamos agora a justificação da sexta característica da sabedoria - σοφία - e do sábio - σοφός - segundo as opiniões mais difundidas, a qual prometia que (6) a σοφία fosse a ciência soberana, de modo que o σοφός não fosse comandado - ἐπιτάττεσθαι - por ninguém, mais sim ele é que comandasse - ἐπιτάττειν - todos os outros. Eis como Aristóteles pretende cumprir essa promessa:

[6] dentre os conhecimentos - τῶν ἐπιστηµῶν -, o soberano - ἀρχικωτάτη -, isto é, o [que é] mais afeito ao governo - µᾶλλον ἀρχική - do que o [conhecimento] subordinado - ὑπηρετούσης -, é aquele que sabe em vista de que - τίνος ἕνεκεν - cada coisa - ἕκαστον - deve ser feita - ἐστι πρακτέον -; e isso [o “em vista de quê”, o fim] é o bem - τἀγαθόν - de cada coisa - ἑκάστου - e, em geral - ὅλως -, [o fim] da natureza como um todo - ἐν τῇ φύσει πάσῃ - é o sumo bem - τὸ ἄριστον - . (Metaph. A2, 982b4-7).

De todos os argumentos que visam a justificar as seis características da σοφία de acordo com a opinião comum, esse é, certamente, o mais elíptico. Stricto sensu, o trecho apenas justapõe três proposições, as quais, ao menos à primeira vista, não parecem ser concatenadas o suficiente para conduzir a conclusão alguma. Ei-las:

(P1) A ciência que sabe em vista de que - τίνος ἕνεκεν - cada coisa particular - ἕκαστον - deve ser feita - ἐστι πρακτέον - é a ciência soberana - ἀρχικωτάτη -26 26 Trata-se do superlativo do termo ἀρχική, que, de acordo com o Liddel-Scott-Jones, tem os seguintes significados: (a) principesca, real; (b) afeita ao comando; (c) soberana; (d) relativa aos princípios, primitiva, original. Para verter esse termo, alteramos um pouco a opção original de Angioni, cuja tradução temos por base neste trabalho, tendo preferido a tradução “soberano”. Há, é claro, outras possibilidades de tradução, que contemplam diferentes acepções do termo, e é provável que Aristóteles esteja jogando aqui com pelo menos alguns dos múltiplos sentidos da palavra. com relação à(s) ciência(s) subordinada(s) - ὑπηρετούσης -.

(P2) O fim (i.e., o “em vista de quê”) de cada coisa particular - ἕκαστον - é o bem - τἀγαθὸν - da coisa particular.

(P3) Em geral - ὅλως -, o fim da natureza como um todo - ἐν τῇ φύσει πάσῃ - é o sumo bem - τὸ ἄριστον -.

Como dissemos, o trecho deveria provar que a σοφία é o saber supremo, mas, na verdade, o tema da sabedoria nem sequer é mencionado. De nossa parte, cremos que seja possível, sim, mostrar que a conclusão pretendida resulte dessa passagem, mas somente se forem supridas várias premissas ocultas.

Em primeiro lugar, analisemos a proposição (P1), que reza: a ciência que sabe em vista de que - τίνος ἕνεκεν - cada coisa particular - ἕκαστον - deve ser feita - ἐστι πρακτέον - é a ciência soberana - ἀρχικωτάτη - com relação à(s) ciência(s) subordinada(s) - ὑπηρετούσης -.

Aquestão que imediatamente se coloca é: a que ciências Aristóteles pretende referir-se aqui ao falar da ciência soberana e da(s) ciência(s) subordinada(s)? Dito de outro modo: qual é o espectro de ciências que se estão comparando?

É suficientemente claro que as ciências aqui comparadas não são todas e quaisquer ciências, mas sim apenas aquelas que dizem respeito a uma mesma coisa particular - ἕκαστον -. Mais especificamente, o Estagirita parece ter em mente uma espécie de disputa entre, por um lado, a ciência que conhece o fim próprio de uma coisa particular e, por outro, as ciências que sabem algo a respeito dessa coisa, mas não o seu fim.

Ora, se há, como sugere Aristóteles aqui, mais de uma ciência a respeito de uma mesma coisa particular, é, de fato, muito plausível que seja hierarquicamente superior a ciência que contempla o fim - τίνος ἕνεκεν - de tal coisa, aquilo em vista de que todo o resto deve ser feito - ἐστι πρακτέον -.

Tomás de Aquino captou bem essa ideia, tendo proposto um exemplo que ilustra perfeitamente a superioridade da ciência que apreende o fim de determinada coisa sobre todas as demais ciências que dizem respeito à mesma coisa. Em seu comentário à passagem, Tomás compara o navegador (ou o capitão) dum navio ao construtor da nau: o primeiro, por conhecer o seu fim, sabe como usar corretamente o navio; o último sabe, certamente, muitas outras coisas acerca do navio, mas, ignorando o seu fim, não sabe como usá-lo. Numa disputa entre o conhecimento de um e de outro, o saber do construtor está certamente subordinado à ciência do navegador, ciência que se pode chamar de soberana nesse contexto.

Como acabamos de ver, o que hierarquiza as diferentes ciências acerca duma mesma coisa particular é o conhecimento do fim dessa coisa, do “em vista de quê” - τίνος ἕνεκεν -. Convém, então, que Aristóteles explique em que consiste “o em vista de quê” - τίνος ἕνεκεν -, e ele o faz afirmando que (P2) o fim (i.e., o “em vista de quê”) de cada coisa particular - ἕκαστον - é o bem - τἀγαθόν - da coisa particular.

O equacionamento da noção de fim com a noção de bem pode não ser tão esclarecedor como gostaríamos, mas trata-se aqui, sem dúvida, duma doutrina tipicamente aristotélica. Seja como for, a identificação de fim e bem estabelecida por P2 acarreta importantes consequências quando aplicada a P1. Vejamos.

P1 afirma, como vimos, que a ciência que conhece o fim é a ciência soberana; mas P2 identifica fim e bem, facultando, portanto, a substituição de uma noção por outra em P1. Ora, de tal substituição resulta a seguinte proposição: com relação a cada coisa particular - ἕκαστον -, a ciência soberana - ἀρχικωτάτη - (por oposição às ciências subordinadas que versam sobre a mesma coisa particular) é aquela que conhece o bem - τἀγαθόν - de cada coisa.

Sublinhamos que, embora esta premissa não seja explicitada por Aristóteles, ela é a consequência natural de P1 e P2. E, mais do que isso, o seu conteúdo é perfeitamente razoável: de fato, numa disputa entre os vários saberes atinentes a uma mesma coisa particular, é natural que seja considerada soberana - ἀρχικωτάτη - a ciência que conhece o bem - τἀγαθόν - da coisa. Mas voltemos agora à análise do texto aristotélico.

Em seguida, o filósofo parece fazer uma generalização da ideia de que (P2) o fim de cada coisa particular é o bem (de cada coisa particular), quando afirma que, (P3) em geral - ὅλως -, o fim da natureza como um todo - ἐν τῇ φύσει πάσῃ - é o sumo bem - τὸ ἄριστον -.

Tudo indica que o filósofo, a partir da ideia de que cada coisa particular - ἕκαστον - possui um fim (particular), postule, então, a existência dum fim global, o fim de todas as coisas; e se já o fim duma coisa particular é um bem - τἀγαθόν - (o bem da coisa particular), então o fim de toda a natureza - ἐν τῇ φύσει πάσῃ - é o sumo bem - τὸ ἄριστον -.

O texto em apreço deveria provar a supremacia absoluta da σοφία; mas, agora que chegamos ao fim da passagem, talvez não seja tão claro como semelhante conclusão possa resultar do que ficou dito. Mas, como já afirmamos, para mostrar como a desejada conclusão possa resultar do texto aristotélico, faz-se necessário que o comentador suplemente o argumento do Estagirita. Sendo assim, alinhamo-nos com a maioria dos estudiosos ao propor a seguinte leitura.27 27 Escreve, por exemplo, Colle (1912, p. 28): “On ne saurait s’exprimer d'une manière plus elliptique, car la science qui connaît la fin n’est hiérarchiquement supérieure à toutes les sciences qui si la fin qu'elle connaît c’est la fin suprême de l’ensemble des choses. Il est vrai que cet élément se retrouve facilement dans le texte qui suit. Car Aristote ajoute que la fin c’est dans les choses particulières le bien, et pour l’ensemble des choses le plus grand bien dans la nature entière, c’est-à-dire le bien suprême. On peut donner au syllogisme la conclusion suivante qu’Aristote néglige de formuler: Donc la science qui connaît le bien suprême est la plus haute sagesse”. Ver também Reale (2005, v. 3, pp. 14-15) e Ross (1958, v. 1, pp. 121-122).

Ao afirmar que, (P3) em geral - ὅλως -, o fim da natureza como um todo - ἐν τῇ φύσει πάσῃ - é o sumo bem - τὸ ἄριστον -, Aristóteles está fazendo referência (de modo extremamente críptico, é verdade) a uma ciência muito especial, justamente a ciência que conhece o fim da natureza como um todo - ἐν τῇ φύσει πάσῃ -.

Mas já ficou assentado que a ciência que conhece o fim (ou o bem, porque, como estabeleceu P2, os dois se equivalem) duma coisa particular - ἕκαστον - merece o título de soberana - ἀρχικωτάτη - no âmbito das ciências que dizem respeito a esta coisa particular. Se, de fato, é assim, então a ciência que conhece o fim global da natureza - ἐν τῇ φύσει πάσῃ - (e, do mesmo modo, o sumo bem - τὸ ἄριστον -) tem de ser a ciência absolutamente soberana.

Por fim, o contexto nos permite supor que tal ciência absolutamente soberana seja a própria σοφία. Atinge-se assim, portanto, a almejada conclusão de que a σοφία seja, entre todas as ciências, a hierarquicamente mais elevada.

Para termos uma visão de conjunto da leitura que fizemos dessa passagem da “Metafísica”, propomos o seguinte esquema, no qual (P) é a abreviação de ‘proposição’, (PI) de ‘proposição implícita’ e (CI) de ‘conclusão implícita’:

(P1) A ciência que conhece o fim de uma coisa particular é soberana com relação às ciências que não conhecem o fim dessa coisa particular.

(P2) O fim de uma coisa particular é o bem da coisa particular.

(PI1) A ciência que conhece o fim de uma coisa particular também conhece, ipso facto, o bem da coisa particular.

(PI2) A ciência que conhece o bem da coisa particular é soberana com relação a todas as ciências que não o conhecem. (PI3) Além dos fins das coisas particulares, há também o fim da natureza como um todo.

(P3) O fim da natureza como um todo - ἐν τῇ φύσει πάσῃ - é o sumo bem - τὸ ἄριστον -.

(PI4) A ciência que conhece o fim da natureza como um todo também conhece, ipso facto, o bem da natureza como um todo, isto é, o sumo bem - τὸ ἄριστον -.

(CI) A ciência que conhece o sumo bem - τὸ ἄριστον - é a ciência absolutamente soberana - ἀρχικωτάτη -.

(Corolário) O contexto permite afirmar que a ciência que conhece o sumo bem - τὸ ἄριστον - é a própria σοφία, que é, portanto, a ciência absolutamente soberana - ἀρχικωτάτη -.

Se a nossa reconstrução da passagem estiver correta, então Aristóteles realmente provou a sexta e última característica da sabedoria e do sábio segundo as opiniões comumente aceitas, nomeadamente, (6) que a sabedoria seja a ciência soberana - ἀρχικωτέραν -, de modo que o sábio não seja comandado - ἐπιτάττεσθαι - por ninguém, e sim ele é que comande - ἐπιτάττειν - os outros.28 28 Surge aqui, porém, um problema. Como observou Ross (1958, v. 1, pp. 121-122), quando se compara a passagem da “Metafísica” que acabamos de analisar (Metaph. A2, 982b4-7) com as famosas primeiras linhas da “Ética a Nicômaco”, patenteia-se que Aristóteles usa aproximadamente o mesmo argumento para provar, na “Metafísica”, a supremacia da σοφία e, na “Ética”, a supremacia da πολιτική [ἐπιστήµη] sobre todas as demais ciências. Ora, como explicar semelhante inconsistência entre esses dois importantes textos aristotélicos? Essa é, de fato, uma questão bastante complexa, de modo que nos seria impossível dar a ela o tratamento adequado sem exceder em muito o escopo do presente trabalho. Para uma apresentação do problema, bem como uma excelente proposta de solução, remetemos a Menn (The strategy of progressive definition and the argument of A1-2, passim).

Convém ressaltar algo que, embora muito importante, talvez tenha passado despercebido, a saber, que o trecho que acabamos de analisar põe em destaque a noção de causa final. Como vimos, a σοφία é considerada como sendo a ciência absolutamente soberana precisamente porque ela conhece o “em vista de quê” - τίνος ἕνεκεν - da natureza como um todo - ἐν τῇ φύσει πάσῃ -. Mas o “em vista de quê” - τίνος ἕνεκεν - é apenas o jargão aristotélico para uma das quatro causas, nomeadamente, a causa final. Até essa passagem da “Metafísica”, a noção de causa já foi por muitas vezes trazida à baila; mas esta é a primeira vez em que se cita nominalmente algum dos quatro tipos de causa e, justamente, a causa final. Voltemos agora à análise do texto da “Metafísica”. o tratamento adequado sem exceder em muito o escopo do presente trabalho. Para uma apresentação do problema, bem como uma excelente proposta de solução, remetemos a Menn (The strategy of progressive definition and the argument ofA1-2, passim).

3 Σοφία: da ciência dos princípios à ciência de deus

Por tudo que foi dito, a denominação que procuramos recai sobre a mesma ciência - ἐπὶ τὴν αὐτὴν ἐπιστήµην πίπτει -: ela deve ser uma ciência que contempla - θεωρητικήν - os primeiros princípios e causas - τῶν πρώτων ἀρχῶν καὶ αἰτιῶν - (pois também o bem - τἀγαθόν -, isto é, o “em vista de quê” - τὸ οὗ ἕνεκα -, é uma - ἕν - dentre as causas - τῶν αἰτίων -) (Metaph. A2, 982b7-10).

Com estas palavras Aristóteles encerra o exame das ἔνδοξα acerca da σοφία e do σοφός.

É digno de nota, em primeiro lugar, que o filósofo faz questão de sublinhar a unidade da ciência buscada, isto é, da σοφία: “a denominação que procuramos recai sobre a mesma ciência”. É bastante conveniente que Aristóteles enfatize esse aspecto, porque, como já aludimos, não havia garantias de que as ἔνδοξα não redundassem num composto quimérico, não existindo, neste caso, uma única e mesma ciência - τὴν αὐτὴν ἐπιστήµην - que respondesse a todas as opiniões comumente aceitas. E o modo como Aristóteles defende a coerência de semelhante ciência é, justamente, apresentando uma definição dela; não somente existe tal ciência, como também é possível exibir a sua definição: “ela deve ser uma ciência que contempla os primeiros princípios e causas”.

Tal definição já havia sido ventilada desde Metaph. A1; mas é só aqui, ao fim dessa passagem de Metaph. A2, que se pode dizer que Aristóteles tenha efetivamente argumentado em favor dela. De fato, ao justificar os seis traços característicos da σοφία segundo as ἔνδοξα, o filósofo foi paulatinamente revelando que a sabedoria tem de ser a ciência não de qualquer causa, mas das causas primeiras, isto é, dos princípios.

Temos de reconhecer que a argumentação aristotélica para atingir tal definição foi um tanto lassa; mas, de fato, seria injusto exigir deduções rigorosas nesse contexto. O que o filósofo fez em toda essa passagem foi aduzir as opiniões mais difundidas acerca da sabedoria (que o sábio conheça coisas difíceis, que ele conheça todas as coisas etc.) e mostrar que essas opiniões convergem coerentemente na definição da σοφία como a ciência das causas primeiras e princípios.

Por fim, devemos notar que o trecho citado enfatiza, uma vez mais, a noção de causa final: “ela [a σοφία] deve ser uma ciência que contempla - θεωρητικήν - os primeiros princípios e causas (pois também o bem - τἀγαθόν -, isto é, o “em vista de quê” - τὸ οὗ ἕνεκα -, é uma - ἕν - dentre as causas - τῶν αἰτίων -)” (Metaph. A2, 982b9-10). Como já dissemos, a locução τὸ οὗ ἕνεκα é apenas o modo técnico segundo o qual Aristóteles faz referência à causa final. Temos aqui, ademais, a já conhecida identificação da causa final com o bem - τἀγαθόν -. O trecho informa-nos, portanto, não somente que a σοφία é ciência das causas primeiras, mas ele também destaca que, entre as causas, encontra-se a causa final, a qual equivale ao bem.

Ao afirmar que “ela [a σοφία] deve ser uma ciência que contempla - θεωρητικήν - os primeiros princípios e causas”, Aristóteles também sugere que a σοφία seja uma ciência de tipo teorético, sugestão que é retomada nas linhas subsequentes:

Que ela não seja um conhecimento produtivo - ποιητική -, é evidente também pelos que primeiro filosofaram - φιλοσοφησάντων - : de fato, os homens, tanto agora quanto no início, começaram a filosofar - φιλοσοφεῖν - devido à admiração - θαυµάζειν -, admirando - θαυµάσαντες -, inicialmente, entre as coisas surpreendentes, aquelas que estavam à mão; em seguida, paulatinamente progredindo e formulando impasses sobre problemas maiores, por exemplo, sobre as afecções da lua, do sol e dos astros, e sobre a geração do todo - περὶ τῆς τοῦ παντὸς γενέσεως -. Ora, quem formula impasses e se admira - θαυµάζων -, julga ser ignorante (por isso, também o apreciador de mitos é de certo modo filósofo - φιλόσοφός -, pois os mitos constituem-se de fatos admiráveis - θαυµασίων -); consequentemente, se filosofaram - ἐφιλοσόφησαν - justamente para fugir da ignorância, é claro que buscaram conhecer pelo saber, e não em vista de alguma utilidade - οὐ χρήσεώς τινος ἕνεκεν -. Assim testemunham os próprios acontecimentos: por assim dizer, essa ciência - ἡ τοιαύτη φρόνησις - começou a ser buscada quando já se encontravam satisfeitas todas as necessidades concernentes àfacilitação e ao divertimento. É evidente, então, que a buscamos não devido a outra utilidade - χρείαν -, mas, tal como dizemos que é livre - ἐλεύθερος - o homem que é em vista de si mesmo e não é [em vista] de outro, do mesmo modo dizemos que apenas - µόνην - ela, entre os conhecimentos - τῶν ἐπιστηµῶν -, é livre - ἐλευθέραν -, pois apenas - µόνη - ela é em vista de si mesma (Metaph. A2, 982b11-27).

Como se vê, Aristóteles claramente indica o caráter puramente teorético da σοφία, tema que, aliás, já havia sido tratado no primeiro capítulo do livro A. De fato, Aristóteles retoma aqui uma série de temas já anteriormente visitados, como a total independência da sabedoria com relação a qualquer utilidade prática - χρεία - e a noção de que as ciências teoréticas se constituíram historicamente somente depois que todas as necessidades mais prementes já haviam sido atendidas.

Digna de nota é a substituição do termo σοφία e seus cognatos por φιλοσοφία e demais palavras congêneres: a sabedoria é aqui, portanto, usada como sinônimo da filosofia em geral.

Quanto à motivação, à origem da busca da σοφία/φιλοσοφία, Aristóteles retoma a explicação do Teeteto platônico (Teet. 155d), afirmando, numa passagem que se tornou celebérrima, ser esta a admiração - θαῦµα -.

Destacamos que o filósofo indica claramente que, embora a σοφία comece com problemas menores, indagando a causa de fenômenos prosaicos, a investigação dirige-se a problemas cada vez “maiores, por exemplo, sobre as afecções da lua, do sol e dos astros, e sobre a geração do todo - περὶ τῆς τοῦ παντὸς γενέσεως -”. Ou seja, o escopo da σοφία é, claramente, bastante amplo, chegando a envolver a geração de todas as coisas, do universo.29 29 Desejamos ressalvar que a descrição da sabedoria como uma busca da γένεσις, ainda que do universo inteiro, não necessariamente exprime de modo adequado o projeto “metafísico” do próprio Aristóteles. O Estagirita certamente emprega semelhante terminologia para fazer menção ao tipo de investigação praticada por aqueles que classificamos como pré-socráticos, cujos esforços serão perquiridos nos capítulos subsequentes do livro A.

Por fim, ressaltamos a grandeza do elogio que aqui se faz da σοφία. Valendo-se da contraposição entre escravo - δούλος -, aquele que sempre serve a alguém, e homem livre - ἐλεύθερος -, que não precisa servir a ninguém, Aristóteles compara a σοφία com o homem livre, pois também ela não serve a nada, isto é, não é voltada para nenhuma utilidade - χρεία -. O panegírico da sabedoria atinge patamares realmente superlativos, quando Aristóteles afirma que “apenas ela, entre os conhecimentos, é livre, pois apenas ela é em vista de si mesma” (Metaph. A2, 982b27-28). Aristóteles assevera aqui, pois, não apenas que a σοφία é livre, mas que, entre todas as ciências existentes, somente ela pode ser efetivamente considerada livre.

Tão enaltecida foi a σοφία, que Aristóteles acha por bem aventar uma possível objeção:

Por isso, é com justiça que se poderia considerar a posse dela como não-humana, pois a natureza dos homens é de vários modos escrava - δούλη -, de modo que, segundo Simônides, “apenas deus poderia ter tal prêmio”, mas, com relação ao homem, não é digno não buscar o conhecimento que lhe é conforme. Ora, se os poetas falam com acerto, e se o divino naturalmente é invejoso, é plausível que isso suceda, sobretudo, neste caso, isto é, que sejam infelizes todos os que se distinguem [no saber] (Metaph. A2 982b28-983a1).

A dificuldade é formulada de modo claríssimo. Semelhante ciência, a única absolutamente livre entre todas as ciências, deve estar fora da alçada humana, já que a natureza humana é escrava - δούλη -. De fato, dada a descrição dessa ciência, a sua posse estaria restrita à esfera dos seres divinos. Aristóteles cita aqui, para dar mais peso à objeção, a autoridade de um insigne poeta, Simônides de Ceos. Ainda com base na autoridade dos poetas, o filósofo menciona a suposta natureza invejosa - πέφυκε φθονεῖν - dos deuses, que, desse modo, considerariam ὕβρις que certos homens pretendam possuir um conhecimento que só caberia a eles próprios, os deuses. Se assim fosse, conclui o Estagirita, os mais desventurados entre os homens seriam precisamente aqueles que se esforçam por atingir tal saber superior, divino. A objeção poderia ser sintetizada como se segue:

(P1) Os deuses são zelosos das coisas que lhes são próprias [i.e., as coisas divinas];

(P2) há uma ciência [a σοφία] que é divina;

(C) então os deuses são zelosos dessa ciência [a σοφία].

(Corolário): Caem em desgraça os homens que, ilegitimamente, pretendem alcançar essa ciência divina [a σοφία].

Se a conclusão e o corolário desse argumento estivessem corretos, então empreender a busca da σοφία, saber divino, seria uma verdadeira temeridade, e todo o projeto que vinha sendo alinhavado nessas páginas iniciais da “Metafísica” deveria ser, por prudência, prontamente abandonado.

Mas, em nossa opinião, o argumento consiste numa reductio ad absurdum: a experiência revela ser patentemente falso que aqueles que se distinguem no saber sejam desventurados; muito pelo contrário, os que buscam diligentemente o conhecimento vivem a melhor vida que há. Pois bem; como em qualquer argumento por absurdo, se a conclusão do argumento é falsa, isso se deve à falsidade de (pelo menos) uma de suas premissas. Portanto, ou não é verdade que (P1) os deuses sejam zelosos das coisas divinas ou não é verdade que (P2) a ciência em questão [a σοφία] seja divina.

Vejamos como Aristóteles responde ao problema: “Mas nem cabe que o divino seja invejoso - pois, pelo contrário, segundo o ditado, ‘muito mentem os aedos’ - nem se deve considerar algum outro conhecimento mais valioso do que este” (Metaph. A2, 983a2-5).

Parece-nos ser bastante claro que o Estagirita esteja aqui avaliando justamente as duas premissas há pouco referidas. E ele escolhe sacrificar P1, isto é, ele nega o testemunho dos poetas, segundo o qual os deuses seriam invejosos. De fato, ele desfaz completamente na autorictas dos poetas, citando, inclusive, o provérbio “muito mentem os aedos”.

Ora, se a premissa P1 é falsa, já estaria suficientemente explicado o absurdo a que chegou o supramencionado argumento. Mas, como se sabe, uma conclusão falsa pode resultar seja de uma única premissa incorreta, seja de mais de uma. Assim sendo, poder-se-ia aventar a hipótese de que também P2 fosse falsa, ou seja, que a σοφία não pudesse ser qualificada como uma ciência divina.

Para afastar semelhante interpretação, Aristóteles apressa-se em asseverar que não “se deve considerar algum outro conhecimento mais valioso do que este [a σοφία]”. Assim prossegue o Estagirita:

De fato, a [ciência] mais divina - θειοτάτη - é também a [ciência] mais valiosa - τιµιωτάτη - ; e apenas ela seria de tal tipo, por duas maneiras: é divino - θεία -, dentre os conhecimentos, [1] aquele que sobretudo - µάλιστ’ - deus - ὁ θεός - poderia possuir, e [2] aquele que fosse [conhecimento] de itens divinos - τις τῶν θείων -. E apenas ela satisfaz ambos esses requisitos: todos reputam - δοκεῖπᾶσιν - que [2] deus - θεός - é [uma] dentre as causas - τῶν αἰτίων - e é certo [tipo de] princípio - ἀρχή τις -, e [1] um tal conhecimento apenas - µόνος - ou sobretudo - µάλιστ’- deus - θεός - poderia possuir. E todos os outros conhecimentos são mais necessários do que ela, mas nenhum é melhor (Metaph. A2, 983a5-11).

A passagem é bastante densa e merece grande atenção. Como já deve estar claro, Aristóteles trata de assegurar o estatuto sobreeminente da ciência de que se está falando, isto é, da σοφία. Sendo assim, fica esclarecido onde reside o erro na objeção há pouco referida. Esta conduzia à conclusão de que os homens que se esforçam para atingir o saber supremo seriam os mais desgraçados junto aos deuses. Mas esta conclusão é flagrantemente falsa, porque, embora o conhecimento em questão seja efetivamente divino, os deuses não são de modo algum invejosos, ao revés do que fazem crer os poetas. Em outras palavras, Aristóteles nega veementemente P1, mas preserva P2.

Mas a verdade é que Aristóteles faz muito mais do que apenas preservar P2, a premissa que reza que a σοφία seja divina. O filósofo faz neste trecho um importante excurso, no qual ele tece considerações acerca da dignidade da ciência em tela. E o superno encômio da σοφία atinge aqui o seu fastígio. Não só essa ciência tem valor, como ela “é também a [ciência] mais valiosa - τιµιωτάτη -”; ela não é simplesmente uma ciência divina, ela é “a [ciência] mais divina - θειοτάτη -”.

O Estagirita leva o elogio da σοφία ao cúmulo, ao afirmar que a σοφία é divina - θεία - nos únicos dois sentidos em que uma ciência pode ser qualificada como tal: trata-se de um conhecimento que tem os deuses por objeto e, ademais, é um saber que deus possui. Cabem aqui algumas observações.

Em primeiro lugar, já há algumas linhas Aristóteles não tem se referido a essa ciência diretamente pelo nome de σοφία. Mas o contexto não deixa dúvidas de que a ciência em questão seja, de fato, a σοφία, a qual, como vimos, foi caracterizada como a ciência das primeiras causas e princípios - τὰ πρῶτα αἴτια καὶ τὰς ἀρχάς - (Metaph. A1, 981b28-29). Em consonância com semelhante caracterização, o filósofo assevera que “deus - θεός - é [uma] dentre as causas - τῶν αἰτίων - e é certo [tipo de] princípio - ἀρχή τις -”.

Com essa asserção Aristóteles dá um importante passo na elucidação da natureza da σοφία. Pode-se dizer que o filósofo fora notavelmente reticente no que tange à exata definição de quais sejam as tais causas primeiras ou princípios que a σοφία examina. Ele elencara no começo de Metaph. A2, é verdade, seis características da σοφία e do σοφός. No entanto, mesmo ao término desse elenco e de sua minuciosa justificação, ainda nos restava uma imagem razoavelmente indefinida das causas e princípios investigados pela σοφία. Aqui, entretanto, Aristóteles diz algo bem mais concreto: a σοφία tem por objeto as coisas divinas - τις τῶν θείων -. E isso quer dizer, explica o próprio Aristóteles, que deus - θεός -, que é certo tipo de princípio - ἀρχή τις -, encontra-se entre as causas - τῶν αἰτίων - que a σοφία estuda.

É claro que nem todo o mistério foi já dissipado. Aristóteles ainda não indicou, por exemplo, que tipo de princípio ou causa primeira deus é. Dito de outro modo, falta ainda determinar se deus é uma causa primeira material, formal, eficiente ou final. Mas, de todo modo, agora já se sabe que deus deve ser contado entre as causas que a σοφία investiga. Essa é, em nossa opinião, uma afirmação preciosíssima, que, infelizmente, não tem recebido a merecida atenção por parte da crítica especializada. Uma notável exceção é Reale (2005, v. 3, p. 16)______. “Metafísica - ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale”. Tradução para o Português de M. Perine. São Paulo: Loyola, 2005., que observa que tal afirmação prenuncia conspicuamente a doutrina, avançada em Metaph. E1, que a ciência suprema seja uma ciência θεολογική.

Mas ainda resta uma incógnita na asserção aristotélica de que “todos reputam - δοκεῖπᾶσιν - que deus - θεóς - é [uma] dentre as causas - τῶν αἰτίων - e é certo [tipo de] princípio - ἀρχή τις -”: a quem pretende referir-se o filósofo com a expressão “todos reputam - δοκεῖπᾶσιν -”? Tratar-se-ia, como dá a entender Ross (1958, v. 1, 123)ROSS, W. D. “Aristotle’s Metaphysics: a revised text with introduction and commentary by W. D. Ross”. (Oxford: Clarendon Press, 1958)., duma menção às concepções populares acerca do divino? Ou esses “todos” são todos os filósofos dignos de consideração?

Somos de parecer que Aristóteles faz aqui o mesmo que fará no restante do livro A, a saber, que ele esteja se referindo tanto a uma certa tradição poética (que, por sua vez, pode ser considerada como a origem e síntese das concepções populares acerca dos deuses) quanto à opinião dos filósofos que o precederam. Como é sabido, no restante do livro A o Estagirita passa em revista seja o parecer de poetas como Homero e Hesíodo acerca das causas primeiras e princípios, sejam as opiniões dos φυσικοί e de Platão. Em suma, ao menos da perspectiva aristotélica, tanto esses poetas quanto os filósofos predecessores, “todos reputam - δοκεῖπᾶσιν - que deus - θεóς - é [uma] dentre as causas - τῶν αἰτίων - e é certo [tipo de] princípio - ἀρχή τις -”. E, de fato, tal asserção é, prima facie, bastante plausível: Hesíodo, por exemplo, põe os deuses como princípio do cosmo; entre os pré-socráticos, fácil é encontrar afirmações sobre o caráter divino do princípio - ἀρχή - escolhido por cada um deles (seja fogo, ar, água, terra ou qualquer combinação desses); e também Platão claramente qualifica as Ideias como divinas, para já não falar do Demiurgo, o deus plasmador do Timeu.

Poderíamos organizar o que dissemos até aqui do seguinte modo. Na passagem em exame, Aristóteles assevera que a σοφία é ciência de deus. Mas o predicado “ciência de deus” é anfibológico, podendo ser entendido como um genitivo objetivo (ciência que tem deus por objeto) ou como um genitivo subjetivo (ciência que deus possui). Como vimos, Aristóteles ostentosamente proclama que a σοφία é ciência de deus em não apenas um desses sentidos, mas em ambos.

Até o presente momento analisamos apenas a acepção objetiva da locução “ciência de deus”; vimos que, de acordo com Aristóteles, todos reputam estar deus entre as causas primeiras ou princípios que a ciência suprema investiga. Convém agora, então, dizermos algumas palavras sobre a expressão compreendida como um genitivo subjetivo, isto é, no sentido de saber que o próprio deus detém.

Aristóteles tratou de deixar bem claro que deus efetivamente possui essa ciência. Sendo assim, coloca-se, de pronto, a questão de quão exclusiva é a posse de tal ciência por parte de deus. É sobremaneira manifesto que, se somente deus a possui, então nenhum de nós poderia aspirar a tão excelso saber, caindo por terra o edifício que a “Metafísica” vinha cuidadosamente construindo até aqui. Mas o Estagirita acautela-se contra semelhante perigo: “[...] é divino, dentre os conhecimentos, aquele que sobretudo - µάλιστ’ - deus poderia possuir [...] um tal conhecimento apenas - µόνος - ou sobretudo - ἢ µάλιστ’ - deus poderia possuir” (Metaph. A2, 983a6-10).

Como provam as frases citadas e, especialmente, os termos grifados, Aristóteles sutil, mas decididamente, toma posição: a ciência suprema é possuída sobretudo - µάλιστ’ - (ou, numa outra tradução, em máximo grau) por deus; ora, isso implica que deus não a possui de modo exclusivo, sendo facultado também a nós almejar atingi-la.30 30 Embora seja essa uma minudência, consideramo-la de suma importância, pois, como dissemos, se coubesse apenas a deus o privilégio de deter tal ciência, então todo o projeto da σοφία traçado até aqui viria abaixo. É, portanto, crucial a ressalva que Aristóteles faz por meio do termo µάλιστα. É com certa surpresa, pois, que constatamos que esse pormenor tenha escapado a todos os comentadores que pudemos consultar.

Façamos um brevíssimo balanço do resultado atingido. Estamos diante dum saber, sem dúvida, muito peculiar. Trata-se duma ciência que é possuída por deus e cujo objeto é o próprio deus. Dito de outro modo, tem-se aqui um conhecimento cujas posições de sujeito e objeto são ocupadas pelo mesmo item, a saber, deus. Some-se a tudo isso mais uma peculiaridade: nós, homens, também podemos possuir essa ciência, ainda que, certamente, num grau ou modo inferior ao modo como o próprio deus a possui.

Sendo assim, podemos concluir que tão exaltada ciência parece merecer, sim, o elogio que lhe faz o Estagirita ao fim do trecho em exame: “E todos os outros conhecimentos são mais necessários do que ela, mas nenhum é melhor” (Metaph. A2, 983a10-11).

De fato, não resta dúvida que semelhante ciência seja a melhor entre todas as ciências: seu objeto é o mais elevado que se possa excogitar, nomeadamente, deus, e, além disso, ela é possuída (em máximo grau) pelo mais perfeito dos sujeitos, o próprio deus.

Poderíamos nos perguntar, todavia, por que Aristóteles afirma que a melhor das ciências é também a menos necessária. Para compreender esse pormenor, é preciso ter em vista uma tese já advogada pelo Estagirita na “Metafísica”, a saber, o completo divórcio entre a utilidade dos saberes e a sua excelência. O filósofo defende essa posição, como vimos, com o seguinte argumento: se um conhecimento atende alguma necessidade, então ele, ipso facto, serve para alguma coisa. Mas, assim como o escravo (que serve) é inferior ao seu mestre, assim também um conhecimento que serve a algo é inferior em dignidade ao conhecimento que não serve a nada.

Pois bem. O conhecimento em questão, a σοφία, parece ser desprovido de qualquer utilidade. De fato, essa ciência tem, como vimos, deus por objeto, mas, acerca desse objeto, só se pode fazer uma única coisa: contemplá-lo. Dito de outro modo, o saber que a σοφία nos proporciona não tem qualquer serventia; ele não atende a qualquer das necessidades cotidianas, tais como comer, vestir ou morar. Poderíamos mesmo dizer que, entre todos os conhecimentos, trata-se do mais distante de qualquer aplicação prática. E isso, ao menos do ponto de vista aristotélico, em nada diminui o seu valor. Bem ao contrário, por ser o saber mais remotamente conectado a qualquer utilidade, ele é o mais excelente entre os saberes.

“E todos os outros conhecimentos são mais necessários do que ela, mas nenhum é melhor”. Essas laudatórias palavras, que acabamos de examinar, parecem ser o adequado fecho para o longo e grandioso panegírico da σοφία no livro A. Mas, em lugar de encerrar o livro aqui, Aristóteles acha por bem incluir ainda o seguinte adendo:

No entanto, é preciso que a posse dela de certo modo nos deixe no lado oposto às investigações do começo. Pois, como dissemos, todos começam a investigar por se admirar - θαυµάζειν - de que tal e tal coisa seja assim, como no caso das marionetes autômatas, ou a respeito das voltas do sol, ou a respeito da incomensurabilidade da diagonal [...] (de fato, a todos os que ainda não consideraram as causas - αἰτίαν - parece ser espantoso - θαυµαστόν - que algo não seja mensurável pelo menor de todos). Mas é preciso, conforme se diz, terminar no estado oposto e melhor, como nesses casos, quando se aprende: de fato, nada poderia causar mais espanto - θαυµάσειεν - para um homem que sabe geometria do que a diagonal [do quadrado] tornar-se comensurável [com o seu lado] (Metaph. A2, 983a11-21).

Esses comentários, claramente marginais, servem para rematar um dos temas anteriormente ventilados pelo filósofo, o tema da admiração - θαῦµα -.

Aristóteles (Metaph. A 2, 982a12-21) disse, e o repete aqui, que a admiração ou espanto - θαῦµα - é o ponto de partida para a busca do conhecimento: os homens empreendem qualquer investigação porque, em primeiro lugar, eles se depararam com fenômenos que, não sabendo como explicá-los, deixaramnos admirados, estupefatos. Mas, e aqui reside a ênfase, uma vez encontrada a causa - αἰτία - do fenômeno em questão, por exemplo, o fenômeno da incomensurabilidade da diagonal do quadrado com o seu lado, o espanto tem de, por força, cessar. De fato, observa o filósofo, nada seria mais espantoso “para um homem que sabe geometria do que a diagonal [do quadrado] tornar-se comensurável [com o seu lado]”.

O sentido de tal asserção é bastante claro, parece-nos. Uma vez conhecida a causa de determinado fenômeno, seria espantosíssimo (ou mesmo inconcebível) que essa causa não opere, gerando, pois, o efeito esperado. Descoberta a causa do fenômeno que é o movimento das marionetes (que inicialmente parecera ser autônomo), a saber, o operador de marionetes, seria literalmente incrível que as marionetes não se movessem, atuando o seu operador normalmente. E o mesmo vale, é claro, para o caso da incomensurabilidade da diagonal do quadrado com seu lado: compreendida a causa da incomensurabilidade, nada poderia ser mais estupefaciente do que a súbita comensurabilidade da diagonal com o lado.

Em suma, se a admiração está necessariamente presente na origem de qualquer investigação, tão logo sejam atingidas as causas do fenômeno, a admiração deve extinguir-se.

Só resta a Aristóteles concluir o argumento acerca da σοφία desenvolvido até aqui: “Está dito, portanto, qual é a natureza da ciência que está sendo procurada, e qual é o alvo que esta investigação e este estudo em seu todo devem alcançar” (Metaph. A2, 983a21-23).

4 Conclusão

Gostaríamos de concluir este artigo com algumas considerações que têm, de certo modo, o caráter de um epílogo. Pretendemos esboçar de forma muito resumida como entendemos que a σοφία ou ciência dos princípios possa se articular no restante da Metafísica.

Antes de sequer sugerir uma solução para semelhante desafio, seria preciso dar um passo atrás e examinar a caracterização de σοφία que nos foi apresentada, a saber, uma ciência das causas primeiras ou princípios. Por mais instigante que seja tal caracterização, qualquer um que se dê ao trabalho de analisá-la com mais vagar logo se dará conta de que ela é bastante geral ou, até mesmo, imprecisa.

A esse respeito, Menn faz uma interessante observação. O estudioso insiste que não se pode considerar que “ciência das causas primeiras ou princípios” seja, stricto sensu, uma definição de σοφία, uma vez que os termos da suposta “definição” não são claros. Uma verdadeira definição teria de ser semanticamente transparente, ao passo que “ciência das causas primeiras e princípios” é uma expressão que, faltando adequadas explicações, permanece envolta em obscuridade.31 31 Menn (The strategy of progressive definition and the argument of A1-2, passim). Há, de fato, muitas perguntas perfeitamente cabíveis, tais como: o que são essas causas primeiras ou princípios? Se se trata de causas, essas seriam causa de quê, de que “efeito”?

Em suma, se, por um lado, a σοφία é claramente descrita como uma ciência das causas primeiras e/ou princípios, por outro, tal descrição é genérica e incompleta: ainda falta determinar o que sejam, concretamente, as causas primeiras e princípios. E dado que Aristóteles dá-se ao trabalho, já na Física (Ph. II3, 194b23 et seq.), e também em Metaph. A3, de distinguir explicitamente diversos tipos ou gêneros de causa, uma questão perfeitamente válida que se pode levantar é se todos os tipos de causas primeiras têm de ser estudadas pela mesma ciência. Mais do que válida, esta é uma questão crucial, que, por isso mesmo, consiste na primeira de todas as aporias discutidas por Aristóteles no livro B: “Examinemos, pois, em primeiro lugar, a primeira questão que enunciamos: se o estudo de todos os gêneros de causa - πάντα τὰ γένη τῶν αἰτίων - é tarefa de uma única e mesma ciência ou de mais ciências” (Metaph. B2, 996a18-20).32 32 A continuação do texto aristotélico deixa perfeitamente claro que Aristóteles esteja aqui equacionando causas com princípios, fato unicamente explicável se compreendermos que Aristóteles esteja falando de causa - αἵτιον - pensando em causa primeira, e causa primeira seja equivalente a princípio - ἀρχή -.

O problema não poderia ter sido expresso com maior clareza. Seguemse as famosas seções dialéticas de Metaph. Β. Berti, que foi um comentador importante em nossa leitura da Metafísica, simplesmente presumiu que a resposta a essa fundamental aporia seja que a σοφία deva estudar todos os gêneros de causa. Mas essa é apenas uma das possibilidades. Nós sugerimos, ao contrário, que apenas se se restringir o escopo da σοφία ela será capaz de cumprir aquilo que prometia a genérica e incompleta descrição do livro Α, a saber, ser uma ciência dos princípios - ἀρχαί -.

A ciência preeminente advogada por Aristóteles não consiste, como sugeriu Berti, no conhecimento das causas primeiras em cada um dos gêneros de causa, posição que encontra dificuldades de ser sustentada.33 33 Para um balanço da profícua posição de Berti, cf. Cecílio (2014). O que Aristóteles faz na Metafísica é buscar ἀρχαί, o que por definição significa buscar causas supremas; mas certos gêneros de causa podem simplesmente não conduzir a ἀρχαί em sentido próprio, tais como as causas materiais.34 34 Argumenta Menn (Wisdom as περὶ ἀρχῶν: expectations of the ἀρχαί and the competing disciplines, 2) de modo muito pertinente que a noção de ἀρχή inclui a de não-dependência: o que é absolutamente primeiro não pode, por força, depender de outrem. Ora, certamente a causa material primeira depende ontologicamente (isto é, para ser) da forma, jamais existindo separadamente desta. Disso se segue, trivialmente, que a matéria-prima, pace Berti, não pode ser qualificada como ἀρχή. Ademais, a causa primeira material jamais poderia constituir um princípio universal, uma vez que, segundo Aristóteles, nem todos os seres são materiais. Logo, a causa primeira material, ainda que seja um princípio explicativo, não é capaz de ser um princípio explicativo universal, pelo simples fato de existirem entes imateriais, para os quais a matéria-prima ou mesmo os elementos materiais mais básicos não são, de modo algum, princípios nem causa. Isso, aliás, não deveria surpreender: especular sobre causas materiais é, muito provavelmente, tarefa da filosofia segunda, não da filosofia primeira.

Ademais, procurar por causas formais primeiras, como Berti pretendeu que Aristóteles fizesse, parece ser um projeto muito mais afim ao “platonismo”. Num modelo platônico (seja se aceitarmos as ditas “doutrinas não-escritas”, seja se nos ativermos às indicações dos diálogos), parece plausível supor uma hierarquia entre as Ideias: no Sofista fala-se, por exemplo, de gêneros supremos - µέγιστα γένη - e a República dá indicações duma hierarquização das Ideias no cume da qual está a Ideia de Bem, para já não mencionar as doutrinas do Uno e da Díade indefinida.35 35 Se estas são doutrinas de Platão ou se são, exclusivamente, doutrinas de outros membros da Academia, não faz diferença para os objetivos deste trabalho. Num modelo piramidal como este, faz sentido falar de Formas supremas ou primeiras; mas, se há algo que Aristóteles faz reiteradamente na Metafísica é rejeitar semelhante modelo. Não há, para Aristóteles, uma Forma primeira (como o seriam o Uno ou a Forma de Bem da República); o motor imóvel, qualquer relação que ele guarde com o restante do universo, certamente não é uma relação de causalidade formal: o motor imóvel não é forma de coisa alguma.

Em suma, propomos que a ciência preeminente não tenha por objeto36 36 E aqui cabe uma sutil, porém importantíssima, distinção. Dizer que a ciência preeminente não tem por objeto todas as causas primeiras não significa, forçosamente, que no próprio ato de expor tal ciência o filósofo não trate de outros “candidatos” relevantes ao posto de causa suprema. Talvez seja este o caso de Metaph. ZH: cabe a Aristóteles, enquanto está ainda pavimentando o caminho de sua ciência das causas primeiras, investigar quais sejam as verdadeiras causas formais, para, talvez, concluir que não faz sentido falar duma suposta série de causas formais, cada vez mais genéricas, nos moldes acadêmico-platônicos. Este pode ser o caso também de Metaph. MN como um todo: para demonstrar quais são os verdadeiros princípios, e, portanto, os objetos próprios duma ciência preeminente “arqueológica”, também importa provar que as propostas filo-matemáticas dos acadêmicos para uma ciência dos princípios são falidas precisamente porque não conduzem a princípios reais. Isso significa, é bom que fique claro, que boa parte da Metafísica consistiria numa empresa negativa, a saber, desqualificar as propostas de ciências dos princípios - ἀρχαί - que concorrem com a própria proposta aristotélica, isto é, desconstruir as ciências supremas defendidas por φυσικοί, pitagóricos e, principalmente, pelos concorrentes mais temíveis, Platão e os acadêmicos. Mas somos de parecer que aceitar o caráter negativo ou “dialético” de grandes seções da obra seja um preço justo a se pagar por uma proposta de ciência preeminente capaz de devolver o mínimo de unidade à Metafísica. todas as causas primeiras, mas só algumas dentre elas. E, talvez, os únicos tipos de causa aptos a constituir uma verdadeira ἀρχή sejam as causas final e eficiente; naturalmente, o primeiro motor imóvel revela-se como o melhor candidato ao posto de causa suprema final e eficiente.

Essa é uma indicação sumaríssima do caráter da ciência preeminente; ainda seria preciso examinar como tal ciência se desenvolve na Metafísica como um todo. Um momento crucial é, sem dúvida, o livro Γ, com sua famosa fórmula, ciência do ser qua ser. Como harmonizar tal caracterização com a descrição “arqueológica” apresentada no livro Α?

Metaph. Α estabeleceu que a σοφία é ciência das primeiras causas e princípios. Uma das perguntas mais fundamentais que há de se fazer é esta: causas de quê, de que “efeito”? Dito de outro modo, diante de qualquer fenômeno causal, a abordagem correta parece ser, primeiramente, isolar ou delimitar bem o efeito ou explanandum em questão. Cremos que uma das contribuições mais importantes de Γ para o argumento da Metafísica seja justamente essa: delimitar o explanandum - o fato de X ser - correlativo do explanans, isto é, das causas supremas referidas na caracterização de σοφία do livro A.37 37 Que Γ desempenhe tal função é algo explicitamente defendido não apenas por Menn (The “methodological” aporiai and the program of Metaphysics Γ and following, passim), mas também por Allan (1983, p. 90-92): “Mas tanto ‘causa’ como ‘princípio’ são termos relativos, incompletos até que se estabeleça qual a segunda entidade de que são causa ou princípio. Tendo isto em consideração, Aristóteles aborda subsequentemente a natureza da filosofia por uma segunda via. Descreve-a como um estudo desinteressado e contemplativo do Ser, bem como de atributos pertencentes ao Ser enquanto tal. [...] Não há qualquer contradição entre a afirmação de que a sabedoria busca as primeiras causas e a afirmação de que se trata de uma análise do Ser. As primeiras causas são o que o filósofo procurará indagar, ao passo que o Ser enquanto Ser será o seu objeto de contemplação, para usar uma imagem. As duas fórmulas exprimem, não concepções rivais acerca da natureza da filosofia, mas sim dois aspectos bastante consistentes e na verdade mutuamente complementares da respectiva operação”.

Voltemos nossa atenção agora para outra questão, a extensão do explanandum, questão, sem dúvida, da maior importância. Segundo o Estagirita, o fato de X ser (e, consequentemente, o fato de se poder dizer ou “predicar” o “ser” de X) constitui o efeito mais amplo que há. E uma conclusão crucial que se pode extrair disso é que a causa desse efeito, que verdadeiramente se pode chamar de universal (pois de tudo se pode “predicar” o “ser”), é, a pleno título, uma causa universal. Este é definitivamente um ponto para o qual se deve dar atenção.

Mas surge, então, uma dificuldade no horizonte; é possível que o ser seja “predicado” homonimicamente, isto é, em sentidos diferentes. É claramente importante livrar-se de qualquer eventual homonímia: quer-se saber qual é a causa do fato de X ser, mas se a noção de ser é equívoca, isso poderia implicar que “o fato de X ser” possa ter acepções totalmente distintas em diferentes contextos. É preciso, pois, esclarecer essa questão.

Ser (ou, mais precisamente, ente - ὄν -) é dito tanto de substâncias quanto de não-substâncias, e essa é uma primeira desambiguação a ser realizada; cabe ao próprio livro Γ esse primeiro esclarecimento, com a célebre doutrina da unidade homonímia mitigada - πρὸς ἕν -, doutrina que coloca a οὐσία como “centro de foco” da noção de ὄν. Este não é, contudo, o único esclarecimento necessário no que tange à questão dos múltiplos sentidos de ser.

O livro Δ, tão frequentemente descartado da “série principal” de livros da Metafísica, desempenha, na verdade, um papel fundamental no argumento da obra. Um dos casos mais patentes, mas, certamente, não o único, é o elenco de sentidos de ser em Δ7. Destacam-se aqui duas acepções de ser: (1) o ser entendido como figura das categorias - τὰ σχήµατα τῆς κατεγορίας -, dentre as quais sobressai a οὐσία, noção que é detidamente examinada em Metaph. ΖΗ; (2) o ser compreendido como ato e potência, sentido que ganha o merecido aprofundamento no livro Θ. Como se sabe, a doutrina da potência e do ato é riquíssima, sendo por vezes considerada a mais original contribuição filosófica do Estagirita. Além da importância que tal doutrina tem por si mesma, a qual reaparece em momentos-chave do corpus, devemos atentar para a sua centralidade na própria Metafísica.

No livro Λ, o ápice, segundo cremos, de toda a obra, o primeiro motor imóvel é enfaticamente descrito como sendo pura atualidade. Aristóteles explica ainda que o ato “desempenhado” pelo motor imóvel, o ato que proporciona a plena atualidade que lhe cabe é o ato de pensar - νοεῖν -. O motor imóvel é pensamento de pensamento - νόησις νοήσεως -, e neste ato ele está desde a eternidade, e nele permanecerá. Doutrina muito célebre de Λ7, se bem que não isenta de controvérsias, é que este νοῦς seja objeto de amor - ἔρως -, sendo graças à sua condição de objeto de amor que ele de algum modo - exatamente como, é questão controversa - move permanecendo imóvel; e aquilo que se move por amor ao motor imóvel é o primeiro céu, o céu das estrelas fixas.38 38 O prof. Marco Zingano espertou a minha atenção para uma objeção concernente à função motora desempenhada pelos motores imóveis de Λ, que pode ser descrita como se segue: aquilo que os motores imóveis supostamente moveriam são as esferas celestes e os planetas que nelas estão “incrustados”. No entanto, no De Caelo o filósofo estabelece que tais planetas e esferas são compostos de éter, um quinto elemento primordial para além dos mais conhecidos fogo, ar, água e terra. O éter é, sem dúvida, um elemento especial, sendo responsável pela eternidade que distingue o mundo supralunar. No entanto, o éter compartilha uma característica com os demais elementos: também ele é dotado dum movimento natural, nomeadamente, o movimento circular em torno da Terra, isto é, do centro do universo. Ora, se tal é o movimento natural do éter e, conseguintemente, dos corpos por ele constituídos, a própria existência de motores celestes parece tornar-se supérflua: os planetas e esferas celestes mover-se-iam em círculos por força de sua natureza etérea e não por ação de motores imóveis e imateriais, e não há nada no De Caelo que desminta semelhante conclusão. Essa parece, prima facie, ser uma objeção fatal à existência dos motores imóveis de que falam a Física e, especialmente, o livro Λ da Metafísica. No entanto, também essa dificuldade pode ser superada pelo intérprete benevolente. Realmente, é falso dizer que os motores imóveis movem simpliciter as esferas celestes; mas há muitos aspectos do movimento espontâneo do éter que dão espaço para a existência dos motores celestes. Em primeiro lugar, por que as esferas têm de se mover num determinado sentido, por exemplo, com determinada angulação e não outra? E todas as esferas giram com a mesma angulação ou com angulações diferentes? Ademais, com que velocidades giram as esferas? São tais velocidades constantes ou variáveis? E se trata das mesmas velocidades para todas as esferas, ou não? Em suma, há uma enorme gama de fenômenos que não podem ser explicados unicamente pelo fato de as esferas serem compostas de éter, exigindo-se, portanto, uma explicação adicional. Em suma, pode-se afirmar que os motores imóveis parecem cumprir a importante função de ordenar o movimento das esferas celestes (mesmo que não as movam simpliciter), uma ordenação tão complexa que não pode ser explicada meramente com apelo à matéria dessas esferas. Para uma breve, porém aguda, discussão do problema em tela, remetemos a Menn (From eternal motion to its ἀρχή, 4-6).

De acordo com a astronomia endossada por Aristóteles, o movimento do céu das estrelas fixas finda por envolver e influenciar os movimentos de todas as demais esferas celestes. Por essa via, que à primeira vista pode parecer tênue (sobretudo quando estamos acostumados a teologias monoteístas, em que um Deus criador faz tudo depender radicalmente de si), mas que, no fim das contas, é assaz significativa, torna-se patente que todo o cosmo dependa em última análise do primeiro motor imóvel. Cessasse a ação deste motor, alterar-se-ia profundamente o movimento de todas as esferas celestes. Neste caso, ficariam severamente afetados os ciclos das estações e também do dia e da noite, ciclos que presidem sobre a cíclica e ordenada transmutação dos elementos primordiais (fogo, ar, água e terra) uns nos outros, os quais determinam a geração e corrupção de todos os seres sublunares.39 39 Em Λ, Aristóteles afirma explicitamente a radical dependência de todo o universo - ὁ οὐρανὸς καὶ ἡ φύσις - do primeiro motor imóvel: “Portanto, é de um princípio desse tipo que depende o céu e a natureza”, Metaph. Λ7, 1072b13-14. No que tange, contudo, à explicação de como exatamente se daria tal influência, Aristóteles é atrozmente elíptico. Mas o fato de o Estagirita ser, por vezes, excessivamente elíptico não é algo que surpreenda qualquer leitor assíduo do corpus. Diante de tais embaraços, cremos ser o dever do intérprete suplementar a laconismo de certos trechos com o que o filósofo diz em outros lugares. Neste caso, os textos mais relevantes são o De Caelo e o De Generatione et Corruptione. No De Caelo Aristóteles explica a quantidade e o funcionamento das esferas celestes, e também dá indicações da influência dos movimentos dos astros sobre a natureza como um todo: “Disso [do céu] dependem, para os demais seres (para uns de modo mais exato, para outros de modo mais indeterminado), o ser e o viver”, Cael. I9, 279a28-30, tradução nossa. No De Generatione et Corruptione o Estagirita detalha as fases do ciclo de transformações dos quatro elementos primordiais uns nos outros, ciclo no qual o quente e o frio, duas das qualidades sensíveis fundamentais, desempenham um papel crucial. Nesse tratado Aristóteles defende ainda que a causa motora primeira da geração e da corrupção seja o sol, oferecendo para isso uma explicação plausível (considerandose o quadro geral de sua cosmologia). O movimento do sol ao redor da Terra determina o aquecimento e o resfriamento cíclico de certas regiões; mas como o frio e o quente são qualidades definitórias dos quatro elementos primordiais (fogo, ar, água e terra), o ciclo do dia e da noite e, de modo mais importante, o ciclo das estações causa a transformação dos elementos, a qual, por sua vez, impacta decisivamente sobre toda a geração e corrupção.

  • 1
    Para um exame de parte da bibliografia sobre o tema da ciência suprema contida na “Metafísica” remetemos a Cecílio (2014CECÍLIO, G. C. A. “Sobre a Questão da Unidade da Ciência Preeminente na Metafísica de Aristóteles - O Panorama Exegético Contemporâneo”. Synesis (UCP), Vol. 6, 2014, pp. 119-125., 2016a______. “Conspecto das principais interpretações da Metafísica de Aristóteles - dos primórdios a Paul Natorp e Eduard Zeller”. O Que nos Faz Pensar (PUC-Rio), Vol. 38, 2016a, pp. 219-237. e 2016b)______. “A interpretação evolutiva de Werner Jaeger da Metafísica de Aristóteles: uma análise crítica”. Anais de Filosofia Clássica, Vol. 10, Nr. 20, 2016b, pp. 65-84..
  • 2
    Os principais defensores de que a “Metafísica” contenha um projeto de ciência minimamente unitário e que o caráter de tal ciência seja “ontológico”, isto é, que se trate de uma ciência que possa ser caracterizada, grosso modo, como uma ciência que investiga o ser/ente são comentadores de língua inglesa e alemã, capitaneados por Joseph Owens, Michael Frede e Günther Patzig. Cf. Owens (1978)OWENS, J. “The Doctrine of Being in the Aristotelian ‘Metaphysics’: A Study in the Greek Background of Medieval Thought”. Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 1978.; Patzig (1960)PATZIG, G. “Theologie und Ontologie in der ‚Metaphysik‘ des Aristoteles”. Kant-Studien, Köln, Vol. 61, 1960. pp. 185-205.; Frede (1987b)______. “The unity of general and special metaphysics: Aristotle’s conceptions of metaphysics”. In: FREDE, M. (ed.), 1987b. pp. 81-95.. A interpretação “protológica” ou “arqueológica” de Enrico Berti constitui uma notável exceção a essa tendência geral. Cf. Berti (2006BERTI, E. “Strutura e Significato della Metafisica di Aristotele”. Roma: Edusc, 2006. e 2014)______. “Aristotele - dalla dialetica alla filosofia prima, con saggi integrativi”. Milano: Bompiani, 2014.. A interpretação de Berti é seguida, em linhas gerais, por Rossito (2012)ROSSITO, C. “Metafisica”. In: BERTI, E. (ed.), 2012. pp. 199-239..
  • 3
    Τodas as referências ao texto grego da “Metafísica” contidas neste trabalho dizem respeito a Ross (1958)ROSS, W. D. “Aristotle’s Metaphysics: a revised text with introduction and commentary by W. D. Ross”. (Oxford: Clarendon Press, 1958).. Para a tradução portuguesa da “Metafísica” utilizamos - com modificações pontuais - a tradução de Lucas Angioni.
  • 4
    A observação encontra-se em Menn (1995, p. 202)MENN, S. “The editors of the Metaphysics”. Phronesis, Leiden, Vol. 40, Nr. 2, pp. 202-208, 1995..
  • 5
    Como é bem sabido, os gregos usavam letras - sempre maiúsculas - em ordem alfabética para numerar as partes ou aquilo que nós chamaríamos, talvez, de capítulos duma obra. Todavia, a “Metafísica” contém um livro alpha maiúsculo, depois do qual vem o livro alpha minúsculo, em vez do natural beta; o equivalente moderno de tal anomalia seria publicar um livro contendo um capítulo I e outro I*. Para um estudo aprofundado da questão da numeração dos manuscritos gregos, com seus diferentes padrões de numeração segundo os períodos históricos, cf. Gardthausen (1913, pp. 353-381)GARDTHAUSEN, V. (ed.). “Griechische Palaeographie - Die Schrift, Unterschriften und Chronologie im Altertum und im byzantinischen Mittelalter”. Leipzig: von Veit & Comp., 1913a..
  • 6
    A questão do não pertencimento de certos livros à “Metafísica” é polêmica. Giovanni Reale é, aparentemente, o único comentador contemporâneo a defender a autenticidade e a correta ordenação de todos os livros da obra (ou, mais precisamente, a existência de alguma contribuição por parte de cada um dos livros, na ordem em que nos chegaram, ao projeto geral de Aristóteles), o que constitui hoje uma posição extrema e isolada. Cf. Reale (2008, passim)REALE, G. “Il concetto di “filosofia prima” e l’unità della metafisica di Aristotele”. Milano: Bompiani, 2008.. Note-se que, com tal posição, Reale está retomando propostas tradicionais de leitura da “Metafísica”, tais como a do alemão Karl Ludwig Michelet (1836)MICHELET, K. L. “Examen critique de l'ouvrage d’Aristote intitulé Métaphysique”. Paris: J. A. Mercklein, 1836.. Um ponto de partida para a discussão dos livros que podem ser considerados como pertencentes ao projeto “original” da “Metafísica” é a informação presente num catálogo antigo das obras do Estagirita, o catálogo de Hesíquio, no qual é mencionada uma “Metafísica” em dez livros; muitos comentadores, sugestionados por essa informação - que por si só não é decisiva -, especularam sobre essa hipotética “Metafísica” em dez livros. É quase universalmente reconhecido o misplacement de α, ou seja, o fato de ele não poder pertencer, pelo motivo já mencionado, à série original de livros da “Metafísica”. Restaria ainda discutir, no que concerne a Metaph. α, se se trata de um livro autêntico ou não; em caso positivo, a que tipo de projeto ele serviria (quiçá uma introdução à Física); para uma discussão aprofundada, cf. Berti (2011b)______. “A função de Met. Alpha elatton na filosofia de Aristóteles”. In: BERTI, Enrico (ed.), 2011b. pp. 256-288.. Pairam sobre K sérias dúvidas acerca de sua autenticidade. Já Δ é frequentemente considerado um livro autônomo, espécie de catálogo (parcialmente) metafísico de termos. Por fim, Λ foi considerado por muitos (Bonitz, Jaeger, Ross e outros tantos que os seguiram) um tratado independente, enxertado posteriormente na obra. Chegar-se-ia, destarte, ao aspirado número de dez livros. Para uma sóbria discussão da questão, remetemos ao capítulo intitulado ‘The Metaphysics and its constituent books’, capítulo que pertence a uma obra ainda não publicada em mídia impressa - “The Aim and the Argument of Aristotle’s Metaphysics” -, mas cujo extensíssimo rascunho foi disponibilizado no site da Humboldt-Universität zu Berlin. Citamos esse trabalho do seguinte modo: MENN, título do capítulo, página. Para as listas antigas das obras de Aristóteles, cf. Moraux (1951)MORAUX, P. “Les listes anciennes des ouvrages d’Aristote”. Louvain: Éditions Universitaires de Louvain, 1951..
  • 7
    A esse respeito, escrevem Michel Crubellier e Pierre Pellegrin: “Le livre suivant (Γ) s’inscrit assez nettement dans la continuité de B, puisqu’il se présente explicitement comme la discussion et la résolution de deux de ces apories, la deuxième et la quatrième [...]”, Crubellier; Pellegrin (2002, pp. 322)CRUBELLIER, M.; PELLEGRIN, P. “Aristote - Le philosophe et les savoirs”. Paris: Éditions du Seuil, 2002..
  • 8
    Acerca da estrita conexão dos livros B e A, escreve Stephen Menn (the Metaphysics and its constituent books, pp. 1): “Metaphysics B is closely connected with A, to which it explicitly refers back three times (995b4-6, 996b8-10, 997b3-5), in such a way as to leave no doubt that A and B are intended as parts of a single treatise beginning with A”.
  • 9
    A palavra “ontologia”, apesar de ser formada a partir de étimos gregos, não integra o Grego Antigo vernacular. De acordo com o Historisches Wörterbuch der Philosophie (verbete Ontologie, v. 6, pp. 1189), o termo teria sido empregado pela primeira vez no século XVII por Rudolph Göckel (Rodolphus Goclenius) em seu Lexicon philosophicum. Cf. Goclenius (1964)GOCLENIUS, R. (1613) “Lexicon philosophicum, quo tanquam clave philosophiae fores aperiuntur”. Frankfurt: Matthias Becker. Hildesheim: Georg Olms, 1964..
  • 10
    “Per Aristotele la definizione più appropriata della filosofia prima è scienza delle cause prime, scienza dei principi. Se dovessimo trovare una parola italiana, la scienza dei principi dovremmo chiamarla archeologia, perché in greco il principio si dice ἀρχή, ma purtroppo la parola "archeologia" viene adoperata per indicare altre cose, cosi potremmo chiamarla "protologia", per dire scienza dei primi, e in ogni caso non c'è bisogno di una parola. Certo, essa è, può anche essere ontologia e, se volete, anche teologia, ma non si riduce né all'ontologia né alla teologia, bensi è ricerca delle cause prime e dei principi di tutti gli enti [...]”, Berti (2006, p. 78)BERTI, E. “Strutura e Significato della Metafisica di Aristotele”. Roma: Edusc, 2006..
  • 11
    Desejamos ressalvar que se deve usar de extrema cautela ao empregar termos como “ontologia” e “teologia” para nos referirmos a Aristóteles, sob pena de distorcer gravemente o seu pensamento. De nossa parte, estamos persuadidos de que a ciência preeminente que é desenvolvida na “Metafísica” deve culminar num exame do(s) motor(es) suprassensíveis, e, nesse sentido apenas, esta ciência tem caráter “teológico”. Sendo assim, sustentamos que a investigação desenvolvida na obra desemboca, depois dum longuíssimo percurso, em considerações acerca de ente(s) que Aristóteles qualifica como divino(s). Pois bem, se este fato faculta-nos chamar semelhante investigação de “teológica” (como, aliás, o próprio Aristóteles o fez), isso certamente não significa que ela seja stricto sensu uma teologia, se por “teologia” se entende necessariamente aquele tipo de disciplina intelectual que foi cultivada para aperfeiçoar a compreensão do objeto mais eminente das grandes religiões monoteístas.
  • 12
    Os números entre colchetes foram introduzidos por nós.
  • 13
    Trata-se do comparativo de superioridade do adjetivo ἀρχική. Modificamos aqui, como em muitos outros lugares, a tradução de Lucas Angioni que tomamos por base neste trabalho, tendo decidido traduzir “ἀρχικωτέραν” por “soberana” ou, ainda, “a [ciência] que mais governa”; ressaltamos, porém, que essa opção com toda a certeza não é única, nem, necessariamente, a mais correta. Ver discussão a seguir, na nota 26.
  • 14
    Os números entre colchetes foram introduzidos por nós.
  • 15
    O Aquinate também faz uma leitura que pressupõe que a noção de causa esteja implícita no argumento em tela: “Sed quantum ad investigationem naturalium proprietatum et causarum, prius sunt nota minus communia; eo quod per causas particulares, quae sunt unius generis vel speciei, pervenimus in causas universales”, “Mas no que diz respeito às investigações de propriedades e causas naturais, são conhecidas primeiro coisas menos comuns, porque descobrimos causas universais por meio de causas particulares que pertencem a um gênero ou espécie.” Tomás de Aquino (1950, I, lectio 2, n. 46, grifo nosso)TOMÁS DE AQUINO. “In duodecim libros Metaphysicorum Aristotelis expositio”. Editado por M. R. Cathala e R. M. Spiazzi. Torino: Marietti, 1950.. No mesmo sentido, ver também Reale (2005, v. 3, p. 13)______. “Metafísica - ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale”. Tradução para o Português de M. Perine. São Paulo: Loyola, 2005..
  • 16
    Ou ainda, para contemplar itens de diferentes espécies dentro de um mesmo contexto causal: uma fonte de calor (e luz) pode ser tanto causa da germinação de plantas quanto dos movimentos que informam a matéria de animais elementares.
  • 17
    Há de se notar que a referência dos termos “deus” e “divino” é bastante ambígua nos textos aristotélicos. Sabe-se que o filósofo considera todos os seres supralunares como sendo, lato sensu, divinos; esse grupo inclui os astros e planetas, mas também os motores celestes. Por vezes, entretanto, Aristóteles usa o termo “deus” de forma bem mais restrita, referindo-se somente aos entes imateriais ou, mais especificamente, ao primeiro motor imóvel.
  • 18
    Também Alexandre parece sugerir que a passagem já implique uma referência aos primeiros e mais simples entre todos os entes, isto é, ao(s) deus(es). Cf. Commentarius In Libros Metaphysicos Aristotelis, pp. 10-11.
  • 19
    Como vimos, o corpus ostenta certa ambivalência no que tange ao termo “divino”. Mas, ainda que, por hipótese, não se faça menção aqui aos motores imateriais, mas apenas aos astros, que são supralunares, porém sensíveis, a explicação ainda se sustentaria. Como dissemos, também os astros são divinos para o Estagirita, e seus regrados movimentos determinam o ciclo das estações e todas as demais alterações meteorológicas às quais estão necessariamente submetidos todos os seres do mundo sublunar. Desse modo, poder-se-ia afirmar que os planetas, seres distantes da sensibilidade (no sentido de remotos, afastados de nossa experiência sensorial pedestre), são causas, e causas bastante universais, de diversos fenômenos que acometem todos os seres sublunares.
  • 20
    Aristóteles não usa, literalmente, o correspondente em grego do verbo “conhecer”; ele emprega, ao contrário, uma fórmula um tanto idiossincrática: ἡ τῶν αἰτιῶν θεωρητικὴ µᾶλλον, que poderíamos traduzir, ao pé da letra, como “a [ciência] mais contempladora das causas”. Seja como for, o filósofo quer dizer, sem dúvida, que essa ciência, que sabemos ser a σοφία, conhece as causas mais (ou melhor) do que as demais ciências, havendo, ademais, a implicação de que tal ciência seja teorética - θεωρητική -.
  • 21
    Em rigor, a passagem em tela contém explicitamente apenas a premissa maior (M2), seguida duma glosa. A premissa menor (m2) e a conclusão (C2) estão, pois, somente implícitas. Mas isso não nos deve admirar, pois na maior parte de Metaph. A2, 982a20-982b10, isto é, todo o trecho em que Aristóteles argumenta em favor das seis concepções anteriormente elencadas (Metaph. A2, 982a4-19) acerca da σοφία e do σοφός, ele só emprega o termo “σοφία” uma única vez, no início da passagem (Metaph. A2, 982a20). Em suma, em toda essa argumentação o filósofo simplesmente presume que se esteja falando da σοφία, eximindo-se, assim, da obrigação de citá-la nominalmente a cada passo.
  • 22
    A expressão θεωρητικὴ µᾶλλον também sugere que a σοφία seja uma ciência teorética, como, de resto, se sabe desde Metaph. A1.
  • 23
    Os termos gregos que equivalem a “conhecimento” e “cognoscível” aqui empregados são, respectivamente, “ἐπιστήµη” e “ἐπιστητός”. Preferimos, neste caso, seguir a opção do tradutor, por causa do jogo linguístico entre “conhecimento” e “cognoscível”, que seria impossível manter se optássemos por traduzir “ἐπιστήµη” por “ciência”. Mas, como veremos adiante, é importante ter em mente quais são os termos originais empregados aqui por Aristóteles.
  • 24
    Sugerimos que a expressão “τὰ πρῶτα καὶ τὰ αἴτια” seja interpretada como sendo equivalente à noção de causas primeiras (ou princípios). Para a justificação dessa posição, ver discussão a seguir.
  • 25
    “Ab; an πρῶτα αἵτια legendum est? ad hunc enim locum refert 996b13”. Jaeger (1957)JAEGER, W. “Aristotelis Metaphysica - recognovit brevique adnotatione critica instruxit W. Jaeger”. Oxford: Clarendon Press, 1957. (Coleção Oxford Classical Texts)., p. 5.
  • 26
    Trata-se do superlativo do termo ἀρχική, que, de acordo com o Liddel-Scott-Jones, tem os seguintes significados: (a) principesca, real; (b) afeita ao comando; (c) soberana; (d) relativa aos princípios, primitiva, original. Para verter esse termo, alteramos um pouco a opção original de Angioni, cuja tradução temos por base neste trabalho, tendo preferido a tradução “soberano”. Há, é claro, outras possibilidades de tradução, que contemplam diferentes acepções do termo, e é provável que Aristóteles esteja jogando aqui com pelo menos alguns dos múltiplos sentidos da palavra.
  • 27
    Escreve, por exemplo, Colle (1912, p. 28)COLLE, G. “La Métaphysique, livre Ier - traduction et commentaire par Gaston Colle”. Louvain: Institut Supérieur de Philosophie de l’Université de Louvain, 1912. (Coleção Traductions et Études).: “On ne saurait s’exprimer d'une manière plus elliptique, car la science qui connaît la fin n’est hiérarchiquement supérieure à toutes les sciences qui si la fin qu'elle connaît c’est la fin suprême de l’ensemble des choses. Il est vrai que cet élément se retrouve facilement dans le texte qui suit. Car Aristote ajoute que la fin c’est dans les choses particulières le bien, et pour l’ensemble des choses le plus grand bien dans la nature entière, c’est-à-dire le bien suprême. On peut donner au syllogisme la conclusion suivante qu’Aristote néglige de formuler: Donc la science qui connaît le bien suprême est la plus haute sagesse”. Ver também Reale (2005, v. 3, pp. 14-15)______. “Metafísica - ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale”. Tradução para o Português de M. Perine. São Paulo: Loyola, 2005. e Ross (1958, v. 1, pp. 121-122)ROSS, W. D. “Aristotle’s Metaphysics: a revised text with introduction and commentary by W. D. Ross”. (Oxford: Clarendon Press, 1958)..
  • 28
    Surge aqui, porém, um problema. Como observou Ross (1958, v. 1, pp. 121-122)ROSS, W. D. “Aristotle’s Metaphysics: a revised text with introduction and commentary by W. D. Ross”. (Oxford: Clarendon Press, 1958)., quando se compara a passagem da “Metafísica” que acabamos de analisar (Metaph. A2, 982b4-7) com as famosas primeiras linhas da “Ética a Nicômaco”, patenteia-se que Aristóteles usa aproximadamente o mesmo argumento para provar, na “Metafísica”, a supremacia da σοφία e, na “Ética”, a supremacia da πολιτική [ἐπιστήµη] sobre todas as demais ciências. Ora, como explicar semelhante inconsistência entre esses dois importantes textos aristotélicos? Essa é, de fato, uma questão bastante complexa, de modo que nos seria impossível dar a ela o tratamento adequado sem exceder em muito o escopo do presente trabalho. Para uma apresentação do problema, bem como uma excelente proposta de solução, remetemos a Menn (The strategy of progressive definition and the argument of A1-2, passim).
  • 29
    Desejamos ressalvar que a descrição da sabedoria como uma busca da γένεσις, ainda que do universo inteiro, não necessariamente exprime de modo adequado o projeto “metafísico” do próprio Aristóteles. O Estagirita certamente emprega semelhante terminologia para fazer menção ao tipo de investigação praticada por aqueles que classificamos como pré-socráticos, cujos esforços serão perquiridos nos capítulos subsequentes do livro A.
  • 30
    Embora seja essa uma minudência, consideramo-la de suma importância, pois, como dissemos, se coubesse apenas a deus o privilégio de deter tal ciência, então todo o projeto da σοφία traçado até aqui viria abaixo. É, portanto, crucial a ressalva que Aristóteles faz por meio do termo µάλιστα. É com certa surpresa, pois, que constatamos que esse pormenor tenha escapado a todos os comentadores que pudemos consultar.
  • 31
    Menn (The strategy of progressive definition and the argument of A1-2, passim).
  • 32
    A continuação do texto aristotélico deixa perfeitamente claro que Aristóteles esteja aqui equacionando causas com princípios, fato unicamente explicável se compreendermos que Aristóteles esteja falando de causa - αἵτιον - pensando em causa primeira, e causa primeira seja equivalente a princípio - ἀρχή -.
  • 33
    Para um balanço da profícua posição de Berti, cf. Cecílio (2014)CECÍLIO, G. C. A. “Sobre a Questão da Unidade da Ciência Preeminente na Metafísica de Aristóteles - O Panorama Exegético Contemporâneo”. Synesis (UCP), Vol. 6, 2014, pp. 119-125..
  • 34
    Argumenta Menn (Wisdom as περὶ ἀρχῶν: expectations of the ἀρχαί and the competing disciplines, 2) de modo muito pertinente que a noção de ἀρχή inclui a de não-dependência: o que é absolutamente primeiro não pode, por força, depender de outrem. Ora, certamente a causa material primeira depende ontologicamente (isto é, para ser) da forma, jamais existindo separadamente desta. Disso se segue, trivialmente, que a matéria-prima, pace Berti, não pode ser qualificada como ἀρχή. Ademais, a causa primeira material jamais poderia constituir um princípio universal, uma vez que, segundo Aristóteles, nem todos os seres são materiais. Logo, a causa primeira material, ainda que seja um princípio explicativo, não é capaz de ser um princípio explicativo universal, pelo simples fato de existirem entes imateriais, para os quais a matéria-prima ou mesmo os elementos materiais mais básicos não são, de modo algum, princípios nem causa.
  • 35
    Se estas são doutrinas de Platão ou se são, exclusivamente, doutrinas de outros membros da Academia, não faz diferença para os objetivos deste trabalho.
  • 36
    E aqui cabe uma sutil, porém importantíssima, distinção. Dizer que a ciência preeminente não tem por objeto todas as causas primeiras não significa, forçosamente, que no próprio ato de expor tal ciência o filósofo não trate de outros “candidatos” relevantes ao posto de causa suprema. Talvez seja este o caso de Metaph. ZH: cabe a Aristóteles, enquanto está ainda pavimentando o caminho de sua ciência das causas primeiras, investigar quais sejam as verdadeiras causas formais, para, talvez, concluir que não faz sentido falar duma suposta série de causas formais, cada vez mais genéricas, nos moldes acadêmico-platônicos. Este pode ser o caso também de Metaph. MN como um todo: para demonstrar quais são os verdadeiros princípios, e, portanto, os objetos próprios duma ciência preeminente “arqueológica”, também importa provar que as propostas filo-matemáticas dos acadêmicos para uma ciência dos princípios são falidas precisamente porque não conduzem a princípios reais. Isso significa, é bom que fique claro, que boa parte da Metafísica consistiria numa empresa negativa, a saber, desqualificar as propostas de ciências dos princípios - ἀρχαί - que concorrem com a própria proposta aristotélica, isto é, desconstruir as ciências supremas defendidas por φυσικοί, pitagóricos e, principalmente, pelos concorrentes mais temíveis, Platão e os acadêmicos. Mas somos de parecer que aceitar o caráter negativo ou “dialético” de grandes seções da obra seja um preço justo a se pagar por uma proposta de ciência preeminente capaz de devolver o mínimo de unidade à Metafísica.
  • 37
    Que Γ desempenhe tal função é algo explicitamente defendido não apenas por Menn (The “methodological” aporiai and the program of Metaphysics Γ and following, passim), mas também por Allan (1983, p. 90-92)ALLAN, D. J. “A filosofia de Aristóteles”. Lisboa: Editorial Presença, 1983.: “Mas tanto ‘causa’ como ‘princípio’ são termos relativos, incompletos até que se estabeleça qual a segunda entidade de que são causa ou princípio. Tendo isto em consideração, Aristóteles aborda subsequentemente a natureza da filosofia por uma segunda via. Descreve-a como um estudo desinteressado e contemplativo do Ser, bem como de atributos pertencentes ao Ser enquanto tal. [...] Não há qualquer contradição entre a afirmação de que a sabedoria busca as primeiras causas e a afirmação de que se trata de uma análise do Ser. As primeiras causas são o que o filósofo procurará indagar, ao passo que o Ser enquanto Ser será o seu objeto de contemplação, para usar uma imagem. As duas fórmulas exprimem, não concepções rivais acerca da natureza da filosofia, mas sim dois aspectos bastante consistentes e na verdade mutuamente complementares da respectiva operação”.
  • 38
    O prof. Marco Zingano espertou a minha atenção para uma objeção concernente à função motora desempenhada pelos motores imóveis de Λ, que pode ser descrita como se segue: aquilo que os motores imóveis supostamente moveriam são as esferas celestes e os planetas que nelas estão “incrustados”. No entanto, no De Caelo o filósofo estabelece que tais planetas e esferas são compostos de éter, um quinto elemento primordial para além dos mais conhecidos fogo, ar, água e terra. O éter é, sem dúvida, um elemento especial, sendo responsável pela eternidade que distingue o mundo supralunar. No entanto, o éter compartilha uma característica com os demais elementos: também ele é dotado dum movimento natural, nomeadamente, o movimento circular em torno da Terra, isto é, do centro do universo. Ora, se tal é o movimento natural do éter e, conseguintemente, dos corpos por ele constituídos, a própria existência de motores celestes parece tornar-se supérflua: os planetas e esferas celestes mover-se-iam em círculos por força de sua natureza etérea e não por ação de motores imóveis e imateriais, e não há nada no De Caelo que desminta semelhante conclusão. Essa parece, prima facie, ser uma objeção fatal à existência dos motores imóveis de que falam a Física e, especialmente, o livro Λ da Metafísica. No entanto, também essa dificuldade pode ser superada pelo intérprete benevolente. Realmente, é falso dizer que os motores imóveis movem simpliciter as esferas celestes; mas há muitos aspectos do movimento espontâneo do éter que dão espaço para a existência dos motores celestes. Em primeiro lugar, por que as esferas têm de se mover num determinado sentido, por exemplo, com determinada angulação e não outra? E todas as esferas giram com a mesma angulação ou com angulações diferentes? Ademais, com que velocidades giram as esferas? São tais velocidades constantes ou variáveis? E se trata das mesmas velocidades para todas as esferas, ou não? Em suma, há uma enorme gama de fenômenos que não podem ser explicados unicamente pelo fato de as esferas serem compostas de éter, exigindo-se, portanto, uma explicação adicional. Em suma, pode-se afirmar que os motores imóveis parecem cumprir a importante função de ordenar o movimento das esferas celestes (mesmo que não as movam simpliciter), uma ordenação tão complexa que não pode ser explicada meramente com apelo à matéria dessas esferas. Para uma breve, porém aguda, discussão do problema em tela, remetemos a Menn (From eternal motion to its ἀρχή, 4-6).
  • 39
    Em Λ, Aristóteles afirma explicitamente a radical dependência de todo o universo - ὁ οὐρανὸς καὶ ἡ φύσις - do primeiro motor imóvel: “Portanto, é de um princípio desse tipo que depende o céu e a natureza”, Metaph. Λ7, 1072b13-14. No que tange, contudo, à explicação de como exatamente se daria tal influência, Aristóteles é atrozmente elíptico. Mas o fato de o Estagirita ser, por vezes, excessivamente elíptico não é algo que surpreenda qualquer leitor assíduo do corpus. Diante de tais embaraços, cremos ser o dever do intérprete suplementar a laconismo de certos trechos com o que o filósofo diz em outros lugares. Neste caso, os textos mais relevantes são o De Caelo e o De Generatione et Corruptione. No De Caelo Aristóteles explica a quantidade e o funcionamento das esferas celestes, e também dá indicações da influência dos movimentos dos astros sobre a natureza como um todo: “Disso [do céu] dependem, para os demais seres (para uns de modo mais exato, para outros de modo mais indeterminado), o ser e o viver”, Cael. I9, 279a28-30, tradução nossa. No De Generatione et Corruptione o Estagirita detalha as fases do ciclo de transformações dos quatro elementos primordiais uns nos outros, ciclo no qual o quente e o frio, duas das qualidades sensíveis fundamentais, desempenham um papel crucial. Nesse tratado Aristóteles defende ainda que a causa motora primeira da geração e da corrupção seja o sol, oferecendo para isso uma explicação plausível (considerandose o quadro geral de sua cosmologia). O movimento do sol ao redor da Terra determina o aquecimento e o resfriamento cíclico de certas regiões; mas como o frio e o quente são qualidades definitórias dos quatro elementos primordiais (fogo, ar, água e terra), o ciclo do dia e da noite e, de modo mais importante, o ciclo das estações causa a transformação dos elementos, a qual, por sua vez, impacta decisivamente sobre toda a geração e corrupção.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Set 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2019
  • Aceito
    29 Ago 2019
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