Fenomenologia e Teoria dos Sistemas: reflexões sobre um encontro improvável1

João Carlos Correia
Universidade da Beira Interior


Índice

Introdução

Em meados do século anterior, com elevada sofisticação intelectual e abundante fundamentação filosófica, Alfred Schutz e Talcott Parsons deram origem a duas correntes fundamentais na abordagem da sociabilidade: a Sociologia Fenomenológica e a Teoria dos Sistemas. Reflectindo as influências de Edmund Husserl, Bergson e Weber, no caso de Schutz, e de Hegel e Durkheim, no caso de Parsons, as divergências entre os dois autores incluíam diferentes concepções no que respeita ao sujeito (ou actor social), à acção social e à fundamentação das normas porque a mesma se orienta.

Depois de alguns equívocos iniciais marcados pela gentileza mútua, o debate entre os dois autores decorreu, de modo mais explícito, através da troca de correspondência, culminando num diálogo de surdos em que ambos reconheciam a existência de divergências dificilmente superáveis. Ao longo deste texto, para além da necessária apresentação dos pontos considerados fundamentais dos respectivos empreendimentos teóricos, dá-se conta das divergências entre ambos, visíveis nalgumas das suas obras mais importantes, e também na correspondência que trocaram. Porém, mais do que a análise da correspondência, onde, por razões evidentes, não se chegou a desenhar uma análise sistemática das diferenças e semelhanças, interessa-nos sobretudo mostrar como na obra se detectam as marcas de um encontro que, logo à partida, estava marcado pela impossibilidade do seu sucesso, ao menos no que toca em relação ao consenso ou mesmo à simples complementaridade dos projectos. A correspondência é a fase visível, explícita e notória, das dificuldades que se verificavam nos pontos de vista teóricos dos próprios autores. Detrás das observações de Schutz e das recusas de Parsons em tomar nota das mesmas, há motivos teóricos profundos: diferentes concepções sobre a ordem social, sobre a formação dos consensos e sobre as relações entre os indivíduos e as normas. Assim, defende-se a existência de uma problemática relacionada com a integração social (menos explícita no caso de Alfred Schutz) que pode originar um campo de investigação no âmbito da Teoria Social e da Teoria Política.

Parsons e Schutz: um esboço de caracterização

A urgência de um reconhecimento

Alfred Schutz e Talcott Parsons podem apresentar-se, em meados do século passado, como o verso e o reverso do devir da Teoria Social, prosseguindo modos de teorizar que viriam a repercutir-se em diversos seguidores2. A história do encontro e do debate que ocorreu entre ambos, no início da década de 40, está marcada por mal entendidos. Equivocados pelos elogios mútuos iniciais, a apreciação global das principais obras, lidas agora à luz de um contexto em que se conhecem as consequências teóricas dos pressupostos que defenderam, tornam clara a impossibilidade do entendimento que ainda buscaram. Necessariamente, é desejável validar de um outro modo mais atento a controversa presença destes autores no panorama intelectual do século que findou:

a) Desde logo, Schutz sofre de um esquecimento, a nosso ver, enigmático. Em Portugal, além de escassos ensaios, de referências em Teses de Doutoramento, ou de algumas teses elaboradas em Faculdades de Filosofia, ainda são poucos os que efectuaram estudos sistemáticos sobre este autor. Apesar de se tratar de alguém que levou por diante um interessante projecto de fundamentação fenomenológica da sociologia compreensiva, tentando desenvolver uma teoria da acção social, investigar a natureza da intersubjectividade e da construção social do conhecimento e tendo permitido a fundamentação teórica de correntes tão influentes como a Etnometodologia de Garfinkel3; o$^{ }$pensamento de Goffman e de Giddens4, ou a obra de Peter Berger e de Thomas Luckmann5, a verdade é que ainda não vieram a luz do dia investigações aprofundadas nem sequer traduções portuguesas. Será que o percurso intelectual heterodoxo daquele que Husserl convidou para seu assistente, o coloca numa pátria de ecletismo pouco frequentada pelos investigadores das disciplinas que cultivou (Filosofia e Ciências Sociais)?6 Será que o carácter fragmentado da sua obra marcada pela impossibilidade de um percurso académico a tempo inteiro ainda condiciona a recepção da sua obra?

b) Parsons, por seu turno, parece ser vítima de um exorcismo intelectual. Não apenas pôde exercer um distinto e influente lugar académico como quase controlou a sociologia anglo-saxónica, conquistando a hegemonia na comunidade científica. O resultado é que os exageros levados a efeito no sentido de promover a emancipação dos tiques do funcionalismo parecem ter conduzido ao esquecimento do peso intelectual que Parsons detém nas obras de influentes contemporâneos como Alexander, Luhmann e Habermas7. Mais ainda: parece ter-se caído num relativo desdém por um trabalho que evidencia uma patente sofisticação e refinamento intelectual. De certa forma, os vícios do funcionalismo tornaram polémica a referência a esta corrente. Muitos esquecem que Parsons construiu uma Teoria Social elaborada e que o estrutural-funcionalismo é apenas uma das facetas do seu percurso.

c) Se os autores parecem conhecer um momento de relativo confinamento à periferia dos centros académicos e de reflexão, mais ainda tal acontecerá com o debate entre eles. Trata-se, a nosso ver, de um erro. O carácter visivelmente oponível dos seus pressupostos e das consequências teóricas e práticas que estes encerravam constitui uma forma de um iluminar o pensamento de outro. À luz de um e de outro, percebemos o que distingue as Teorias Interpretativas das Ciências Sociais das perspectivas mais acentuadamente marcadas pela herança de Durkheim e pela tradição filosófica em que este se funda, desde Hobbes e Hegel até Comte. Compreendemos as diferentes concepções de Ciência Social que motivam cada um destes trabalhos onde ainda ressoam as grandes polémicas sobre o método verificadas no século XIX alemão, de tal modo que o debate ``Parsons - Schutz ``é um dos importantes momentos de controvérsia sobre a Epistemologia das Ciências Sociais. Compreendemos o papel que a Fenomenologia de Husserl desempenha na descrição do mundo da vida e como a percepção das múltiplas realidades sociais é algo que se torna dificilmente conciliável com o estrutural - funcionalismo e a sua enfatização, por vezes excessiva, da ordem e da integração. Compreendemos que em Schutz ainda ecoa a forte dívida para com Husserl e consequentemente com uma fenomenologia que ainda acredita num homem capaz de coincidir absolutamente consigo mesmo8. Compreendemos que a atenção às estruturas subjectivas da consciência como modo de explicação do encontro entre a consciência e o mundo social articulada com a ideia weberiana de acção subjectivamente significativa exige ainda uma atenção especial ao sujeito individual e uma concepção de intersubjectividade que implica a participação activa dos sujeitos na construção e actualização da dimensão normativa da sociabilidade. Compreendemos que a mesma atenção conferida por Parsons através da teoria voluntarista da acção e da referência a Weber conheceu, de forma lenta mas que já se vislumbrava nos seus trabalhos iniciais, um percurso de enfatização da componente normativa. Finalmente, compreendemos que há uma leitura que remete para a Política e para a Ética que nunca foi desenvolvida por Schutz e que está muito mais explicitada em Parsons. Esta leitura pode, no caso de Schutz, ser encontrada nos interstícios da sua análise da fragmentação do mundo da vida social em múltiplas realidades e, inclusivamente, permite uma compreensão interessante de fenómenos como os das identidades e de conceitos como o de reificação9. Tal leitura é evidentemente pouco compatível com a preocupação normativista, integradora e consensualista que marca, apesar do seu refinamento, o trabalho de Talcott Parsons.

Do lado de Alfred Schutz, encontra-se a abertura aos estudos microssociológicos, a enfatização do mundo da vida quotidiano, as interacções face-a-face, a valorização dessas interacções na negociação e actualização das normas sociais, o desenvolvimento da herança de Husserl e de Weber de um modo que definiria o estilo e a metodologia das principais correntes da sociologia compreensiva.

Do lado de Parsons, contabiliza-se a ``grande teoria'', a atenção às macroestruturas, a insistência na interiorização das normas como um factor de escolha dos fins e dos meios que caracterizam a acção racional, a preocupação com a harmonia e a integração societárias, o lento afastamento em relação à assumida herança weberiana para, em seu lugar, colocar um esquema teórico de muito mais forte cariz durkheimiano em resposta ao problema hobbesiano.

Alguns elementos sobre a obra de Alfred Schutz

Entre os contributos fundamentais de Schutz, conta-se a incorporação dos conceitos de ``mundo da vida'' e de ``atitude natural'' na Teoria Social com a qual se abre a porta à introdução das interacções face-a-face como objecto privilegiado de estudo. Graças aos desenvolvimentos introduzidos pela Sociologia de inspiração fenomenológica, a sociabilidade ganha uma nova configuração, passando a ser entendida como um conjunto de relações interpessoais e de atitudes pessoais que, ainda que dependendo de padrões aprendidos, são pragmaticamente reproduzidas na vida quotidiana.

Os conceitos de ``mundo da vida'' e da ``atitude natural'', nucleares na sociologia de inspiração fenomenológica, têm a sua origem em Husserl e serão objectos de uma exposição sistemática de Alfred Schutz, que pretende aplicá-los como um contributo para uma fundamentação rigorosa de uma Ciência Social compreensiva.

Na análise fenomenológica do papel activo da consciência na constituição de objectos da experiência, Husserl insistiu na existência de estruturas subjectivas que não eram passivamente postas em jogo pela experiência sensorial mas, antes, intervinham, decisivamente, nos actos de percepção e na elaboração do conhecimento. O real só tem sentido na consciência10.

No decurso desta aproximação ao domínio da constituição subjectiva, Husserl procedeu a uma distinção fundamental entre a atitude natural e a redução fenomenológica. A expressão ``atitude natural'' foi usada para designar os termos e o modo pelo qual percebemos, interpretamos e agimos no mundo em que nos encontramos. Orientada por considerações de natureza pragmática, a atitude natural envolve a suspensão da dúvida acerca de saber se as coisas são como parecem ou se a experiência passada será ou não um guia válido para o futuro. Na atitude natural, quem percepciona acredita que as coisas são como lhe aparecem ou, pelo menos, procede a uma suspensão de qualquer dúvida que possa ter acerca disso. O sujeito assume, até uma evidência em contrário que não terá de ser de natureza científica, que o seu entendimento das circunstâncias é adequado. O actor, consequentemente, pressupõe que as acções, que foram bem sucedidas em condições similares precedentes, continuarão a ser bem sucedidas na situação presente.

O reverso da atitude natural é a ``dúvida cartesiana'', que, cepticamente, nega a objectividade da percepção, a adequação do conhecimento ou a utilidade da experiência passada. Porém, não é este o tipo de dúvida que tem lugar na redução fenomenológica. A redução transcendental - epoché - consiste na suspensão do juízo sobre o mundo, não no sentido cartesiano, mas no sentido da tentativa de regressar ao carácter prioritário da consciência, aquém do momento em que o mundo se oferece como um pré-dado existente na sua evidência. Na redução fenomenológica, o investigador limita-se a suspender a sua crença, por exemplo, na existência objectiva dos objectos da percepção com vista a examinar como é que eles são experimentados como objectivamente existentes. A tarefa a que Husserl se propõe é a suspensão da crença no mundo exterior, quer como ela é ingenuamente vista por qualquer um na vida quotidiana, quer como ela é interpretada por filósofos e cientistas. Graças à epoché, o sujeito encontra-se livre do seu entrave mais íntimo e secreto: a consideração do mundo como um pré-dado, alcançando a absoluta autonomia em relação ao mundo e à consciência que dele possui. Através desta operação, em lugar de se regressar às coisas, retorna-se à consciência que se tem do mundo, ou seja, a uma correlação essencial entre a consciência e as coisas11. De um certo modo, há uma reflexão sobre o próprio acto da percepção. Os objectos percebidos são assim encarados como um produto de uma complexa série operações pré-predicativas, inconscientes e automáticas, em que cada percepção de um objecto determinado é referida a uma variedade de experiências prévias de outros objectos semelhantes e dos objectos em geral.

A partir daqui adivinha-se um conjunto de direcções possíveis que a pesquisa fenomenológica podia tomar. Uma das direcções era o empreendimento husserliano de estabelecer uma fundação indubitável para todo o conhecimento humano através da análise da sua constituição pelos actos subjectivos da consciência. Outra via procurava estabelecer as relações entre conhecimento científico e o conhecimento vulgar. Esta via, desenvolvida pelo próprio Husserl nas suas últimas obras, reforçava o ponto de vista segundo o qual toda a reflexão humana se baseia no Lebenswelt, o mundo da experiência vivida e teve alguns dos seus protagonistas mais interessantes nalguns trabalhos de Merleau-Ponty12 e em Aron Gurvisch e Alfred Schutz.13

Desenvolvendo as intuições de Husserl, Schutz considerou a atitude natural como uma suspensão da dúvida em relação à objectividade do mundo14, aplicando de modo minucioso, este tipo de atitude e o modo de conhecer que lhe é próprio em relação à sociabilidade. A epoché fenomenológica convida a pôr entre parênteses o mundo objectivo para atender ao âmbito da consciência em que aquele se oferece como vivência da subjectividade _ ignorando todos os juízos acerca da existência do mundo exterior com o fim de alcançar a esfera da evidência absoluta. A atitude natural, ao contrário, contém uma tese implícita na qual se aceita o mundo como existente15, tal como ele se dá, na sua evidência.16 Schutz apropria-se da conceptualização de Husserl para caracterizar espécie de naivité constitutiva da possibilidade de percepção do mundo e, em especial, do mundo social. ``Na atitude natural eu sempre me encontro a mim próprio num mundo que tenho por garantido e evidentemente ``real'' em si mesmo''17. Ela é ``uma postura que reconhece os factos objectivos, as condições para as acções de acordo com os objectos à volta, a vontade e as intenções dos outros com quem tem de se cooperar e lidar, as imposições dos costumes e as proibições da lei, e assim por diante.'' Assim, ``a atitude natural é caracterizada menos pelo realismo do que pela ingenuidade do realismo, ou seja, pelo facto que o indivíduo se encontra diante do objecto sem se interrogar sobre o sentido da sua objectividade''18.

A atitude natural desenvolve-se por parte da generalidade dos actores sociais que actuam no mundo da vida (Lebenswelt). Este é outro dos conceitos que constituíram a pedra de toque do impulso fenomenológico detectado no campo da sociologia. O conceito surge inicialmente na obra de Husserl, referindo-se ao mundo da evidência e da experiência quotidianas por oposição ao mundo quantificado da ciência moderna. Husserl refere-se-lhe como ``aquele que nos é verdadeiramente dado como perceptível, o mundo da experiência real ou possível''.19 Constitui-se como integrando um tipo de verdades situadas, ``prático-quotidianas.''20 Nesse mundo, os actores são ``considerados na certeza da experiência, anteriormente a qualquer constatação científica, seja ela psicológica, sociológica ou outra''21. 'É apresentado como o ``mundo das evidências originais'', entendidas enquanto diversas da evidência objectiva e lógica, relacionada ao ponto de vista teórico da ciência da natureza científico-positiva22.

Alfred Schutz compreendeu bem o alcance da caracterização husserliana, e o interesse da mesma para a sua formulação da Teoria Social. ``O mundo da vida é simplesmente toda a esfera das experiências quotidianas, direcções e acções através das quais os indivíduos lidam com seus interesses e negócios, manipulando objectos, tratando com pessoas, concebendo e realizando planos''23. Trata-se de ``um mundo intersubjectivo comum a todos nós, no qual não temos um interesse teórico mas um interesse eminentemente prático''24. Este é o mundo ``em que nos encontramos em cada momento da nossa vida, tomado exactamente como se apresenta a nós na nossa experiência quotidiana.''25 Ou ainda de um outro modo mais explícito, que terá consequências claras para a discussão epistemológica nas Ciências Sociais: ``pelo mundo da vida quotidiano deve ser entendida aquela província da realidade que o simples adulto normal toma por garantida na atitude do senso comum.''

A atitude natural que os actores sociais empreendem no mundo da vida tem um estilo cognitivo próprio. Desde logo, caracteriza-se pela máxima atenção à vida no sentido em que o Sujeito evita mergulhar no fluir interior da consciência. Ao invés de um tempo interior, próprio da consciência, a temporalização no mundo da vida quotidiana implica que o fluxo das experiências vividas se organize a partir de um ``aqui e agora'', perfeitamente delimitado, em direcção ao passado e ao futuro, como uma corrente de unidades intencionais. Nesse sentido, Schutz foi um estudioso da experiência do tempo: a durée, ou tempo interior da experiência subjectiva, um conceito analisado por Bergson e que William James também desenvolveu através de uma ideia de corrente de consciência em oposição ao tempo exterior ou ``tempo cósmico'' medido pelos relógios26. No mundo quotidiano, na atitude natural, à medida que vamos vivendo nas nossas experiências, vamo-nos esquecendo da própria subjectividade, avançando cada vez para mais longe da possível reflexão27. Ou seja, ``a atenção à vida (attention à la vie) impede-o de mergulhar na intuição da duração pura''28. Schutz recupera a distinção que Bergson29 faz ``entre viver dentro da corrente de consciência e viver dentro do mundo do espaço e do tempo (...) Na vida quotidiana, enquanto age e pensa, o Ego vive ao nível da consciência do mundo do tempo e do espaço''30. Podem-se, assim, imaginar diversos graus de tensão da consciência em função dos interesses da nossa vida, representando a acção o nosso interesse maior, o grau máximo de atenção , e o sono a nossa total falta de interesse31.

Neste mundo de evidências a atitude natural evoca uma forma de espontaneidade que se traduz na acção em e sobre o mundo exterior e num interesse por este de natureza eminentemente prática. Com efeito, `` o actor no mundo social experimenta-o primeiro como um campo de actuais e possíveis e só secundariamente como objecto de pensamento''32.

Finalmente, a intersubjectividade oferece-se como um pré-requisito para toda a experiência humana imediata no mundo da vida33. Para Schutz, a intersubjectividade significa que estamos envolvidos uns para outros não como objectos mas como sujeitos. Encontramo-nos a agir e a falar uns com os outros num contexto similar de comunicação. A sociologia não pode separar os factos da sua natureza intersubjectiva. ``Eu tomo simplesmente por adquirido que outros homens além de mim, existem no meu mundo (...) o meu mundo da vida não é privado mas intersubjectivo; a principal estrutura da sua realidade é ser partilhado (...) Da mesma forma que é evidente para mim, dentro da atitude natural, que eu posso até certo ponto obter conhecimento acerca das experiências vividas pelos meus semelhantes - por exemplo os motivos dos seus actos - também eu assumo que o mesmo se passa reciprocamente com eles em relação a mim''34. Nesta perspectiva, a realidade só se pode entender estabilizada na sua identidade graças à ``reciprocidade de expectativas'', de acordo com a qual os actores chegam a um entendimento intersubjectivo em que colocam entre parênteses as suas diferenças de experiências para as considerarem como idênticas. Cada uma das pessoas envolvidas lida com a característica de uma dada situação raciocinando como se, no caso de estar no lugar de outrem, vivesse a situação comum a partir da sua perspectiva . De modo mais ou menos ingénuo, acredita-se que aquilo que faz sentido para cada um de nós faz sentido para todos os outros. De modo idêntico, parte-se do princípio que os meus actos dirigidos aos restantes serão entendidos do mesmo modo que os actos dos restantes dirigidos a mim35.

O esforço de Schutz no sentido da obtenção de um impulso fenomenológico para as Ciências Sociais só pode finalmente ser entendido no âmbito de um frutífero diálogo com Max Weber. Schutz forma grande parte dos seus pressupostos teóricos que manterá com admirável coerência numa Europa Central onde ecoam de forma vincada as disputas epistemológicas sobre as Ciências Sociais. Dilthey, Rickert ou Max Weber confrontavam-se com o aparecimento de novas ciências - as Ciências do Espírito (Geisteswisenchaften) - nas quais se tornava cada vez mais difícil defender a pura e simples aplicação dos métodos das Ciências Naturais. Os métodos de estudo empregues começavam a deixar de ser os de tipo empíricos ou causais porque se percebia que era necessário compreender as totalidades espirituais em que determinados eventos se verificavam. O ponto de vista assumido por Schutz torna-se claro quando nos confrontamos com os grandes dilemas fundadores da sociologia. De um lado, tem-se uma posição subscrita por Durkheim, numa linha que remonta a Comte , a qual pretende explicar e descrever como é que os indivíduos estão associados independentemente das suas concepções e necessidades, e, do outro, encontramos uma outra posição assumida por Weber e Simmel segundo a qual é preciso perceber a intersubjectividade, os significados mutuamente atribuídos às diferentes acções dos indivíduos para que possamos compreender as dinâmicas sociais. Este último caminho enfatiza a noção de verstehen, graças à qual procuramos compreender o sentido atribuído pelo outro às suas acções, em detrimento do ercklären que procura estabelecer leis regulares que, à semelhança das ciências exactas, expliquem os fenómenos humanos. Em Weber, não basta que uma acção possa ser interpretada por um agente em termos de motivo cujo sentido possa ser comunicado a outrem. É ainda preciso que a noção de cada agente tenha em consideração a do outro quer para se opor a ela, quer para entrar em composição com ela: ``A acção social (...) é uma acção em que o sentido visado pelo sujeito ou sujeitos está referida à conduta de outros, orientando-se por ela no seu desenvolvimento.''36 Ao invés de Durkheim, que explicitamente defende a coercibilidade e exterioridade dos factos sociais - os quais devem ser tratados como coisas - Weber enfatiza a ideia de acção subjectivamente significativas. Schutz abraçará esta concepção de Sociologia compreensiva, procurando aprofundá-la através da investigação de Husserl relativa as estruturas significativas da consciência. Nesse sentido, o seu esforço é a conciliação da objectividade da ciência social com a subjectividade da experiência humana.

Pode-se adequadamente conceber a sociologia de Weber como individualista e subjectivista. O seu individualismo pode afirmar-se não porque negue o carácter colectivo de conceitos como o de ``Estado'' mas porque entendia que este tipo de conceitos era susceptível de ser reduzido às acções compreensivas dos indivíduos. Nos seus trabalhos sempre enfatizará o significado subjectivo das acções sociais. Isto não invalida a possibilidade de uma ciência da sociedade, para o qual contribui com o conceito de ``tipos ideais'' entendidos como constructos delineados para atender a propósitos investigativos levados a efeito à luz de problemas específicos e bem delimitados. Estes elementos individualistas e subjectivistas interessaram principalmente a Alfred Schutz, o qual pretendia definir o mundo social como uma realidade construída pelos homens no decurso da sua actividade prática.

Breve presentação da obra de Talcott Parsons

Talcott Parsons introduziu, de modo muito consistente e conceptualmente fundamentado, um conjunto de novos problemas sociais com o seu livro The Structure of Social Action. A obra era, preponderantemente, uma apresentação das teorias de quatro grandes referências das Ciências Sociais (Weber, Durkheim, Pareto e o economista Marshall) com as quais o público americano estava escassamente familiarizado37. Da leitura destes autores, empreendida com grande sofisticação intelectual, resultavam duas ideias fundamentais que coincidem também com as áreas de reflexão em que será mais visível a sua incompatibilidade com a obra de Schutz. Por um lado, entendia-se que nenhuma ciência pode ser construída com base em puros dados empíricos, postulando, deste modo, um novo ênfase na reflexão teórica38. Assim, afirmava-se contra um empirismo ingénuo, solidamente enraizado, que considerava o progresso científico como uma simples acumulação de descobertas de factos, afirmando que uma teoria científica era uma variável independente no desenvolvimento da ciência 39. Por outro lado, considerava-se que, ao longo da obra dos autores estudados, se encontrava um leque de problemas que confluíam naquilo que ele considerava ser a teoria voluntarista da acção. Assim, a conclusão central para que convergia a obra destes cientistas sociais consistia no estabelecimento da orientação normativa como uma estrutura indispensável e constitutiva da acção social.

Ao longo do seu livro, Parsons considerou que as unidades básicas do sistema de acção social eram os actos, tal como as partículas eram as unidades do sistema mecânico clássico40. Um acto era logicamente composto por um actor, o seu agente; um fim, ou seja, um futuro estado de coisas que se pretendia atingir com esse mesmo acto; a situação em que o actor age, e que difere nalguns traços básicos do estado de coisas para o qual a acção é orientada, o fim41. Procurava-se, deste modo, construir um quadro de referência que remetia, de forma analógica, para as categorias do espaço e do tempo, com base nas quais Kant formulava a fundamentação básica da possibilidade da mecânica newtoniana.

Duas consequências provinham desta forma de pensamento: em primeiro lugar, resultava daqui que a acção implicava um determinado esforço, uma vez que um fim é sempre um estado de coisas futuro relativo à situação actual o qual só pode ser realizado graças à ultrapassagem de determinados obstáculos supervenientes. Por outro lado, uma acção assim considerada parecia só poder resultar, primordialmente, do ponto de vista subjectivo do autor. Trata-se de uma particularíssima análise do ponto de vista subjectivo que jaz no próprio coração da teoria voluntarista parsoniana. A verdade, porém, é que. conforme se viria a verificar, a importância conferida à norma matizava a importância dada ao actor.

Com efeito, para Parsons, entre os elementos constituintes dos actos estabelecia-se um certo modo de relação, segundo a qual, na escolha de meios alternativos para um fim, desde que a situação permita alternativas, há uma orientação normativa da acção42.

Insurgindo-se contra a concepção positivista-utilitarista, em que a acção é vista como uma adaptação ao meio ambiente, Parsons defende a acção como um esforço que implica uma tensão entre os planos normativo e condicional, isto é, uma certa avaliação normativa que não esquece a necessidade de adequação dos meios com vista a fins, às condições em que o actor se encontra. Enfatizando-se um ponto de vista puramente positivista, a acção seria completamente determinada pelas condições inerentes à situação, pelo que a distinção entre meios, dependentes do actor, e condições, independentes do autor e intrínsecas à situação em que este se encontra, fica, de certo modo, sem sentido, já que a acção acaba por se reduzir à adaptação racional às condições. O papel activo do actor é restringido à compreensão da situação e à previsão do curso do seu devir. Para Parsons, torna-se, mesmo do ponto de vista estritamente positivista, imaginar como é possível ao actor errar se não existe outra determinante além das condições. Qualquer falha na aplicação da norma racional só pode, assim, ser explicada através de duas possíveis palavras: ``ignorância'' ou ``erro''43. Quanto ao ponto de vista idealista, traduzir-se-ia no esquecimento das condições e na enfatização do que se considera ser a norma correcta. No idealismo, não há nada nas condições da acção que seja considerado em termos de prevenir o cientista ou o teórico contra o cometimento de um erro. Na medida em que as relações causais subsistissem entre elementos da situação, o actor está condicionado já que a realização do fim depende do tomar em conta estas relações. Porém, no idealismo há lugar apenas para relações com o ideal para o qual a acção é orientada44. ``Enquanto o tipo de teoria voluntarista envolve um processo de interacção entre elementos normativos e condicionais, no pólo idealista o papel dos elementos condicionais desaparece, da mesma forma que, em correspondência, no pólo positivista desaparece o elemento normativo''45 Neste sentido, Parsons entende que a sua teoria voluntarista da acção permite uma tensão entre a dimensão normativa e a dimensão condicional oferecendo uma ponte entre estas duas tradições irreconciliáveis46.

Assim, nesta linha, a normatividade ganha uma certa preponderância mitigada pelo reconhecimento das condições de acção. Ao nível da escolha dos fins, a teoria voluntarista considera que o fim da acção é produto de um sistema de valores. Ao nível da escolha dos meios, considera que os padrões normativos, mais do que outros expressos na aplicação racional do conhecimento cientificamente válido, podem constituir a base em que o curso da acção é escolhido.

Resulta daqui uma ideia que conduziria Parsons no sentido da atenção particular que conferiria, ao longo da sua obra, à integração normativa. De Durkheim, Parsons extrai a ideia de que a integração social resulta da subscrição de normas e de valores comuns, os quais podem ser interiorizados de modo a tornarem-se constitutivos na formação dos objectos desejados. É, de certa forma, por aqui, que entra a importantíssima referência a Hobbes, ao nível da descrição das condições últimas da vida social. Em Hobbes, como o Homem é guiado acima de tudo pela pluralidade das suas paixões, o bem identifica-se com aquilo que ele deseja. 47 Os desejos humanos são aleatórios, pelo que na ausência de qualquer controlo restritivo o Homem adoptará ao seu fim mais imediato os meios que considerar mais eficazes. Com efeito, a escassez de determinados bens conduz a que dois ou mais homens possam desejar aquilo que não podem ambos ter. Em face da pluralidade de desejos humanos e de uma ``igualdade de esperança'' - ou seja em face do facto de que todos podem sentir iguais expectativas na obtenção dos mesmos fins, emerge um problema: trata-se daquilo a que Parsons chama de ``problema da ordem'' ou seja, da necessidade de uma orientação normativa relativa ao grau de atendibilidade dos vários fins desejados48. Como para levar por diante os fins desejados, o Homem carece do reconhecimento e do serviço de outros homens, terá de recorrer à força e à fraude, não se vislumbrando na concepção estritamente utilitarista o que quer que seja que possa obstar à utilização destes meios49. A conclusão de Parsons, em face da perspicaz descrição de Hobbes, passa pela entendimento de que uma solução para o problema da ordem jamais será encontrada num plano estritamente utilitário: uma sociedade puramente utilitária é caótica e instável, porque na ausência de limitações no uso dos meios, particularmente a força e a fraude, tenderá para uma luta ilimitada pelo poder. Na verdade, Hobbes limita-se a ser, na perspectiva de Parsons, um bom exemplo para a caracterização das consequências da visão utilitarista do mundo.

O olhar de Parsons pela obra de Marshall, Durkheim, Weber e Pareto tende para uma mesma ideia fundamental: trata-se de formular uma concepção que passa pela introdução de atitudes valorativas e por um sistema de valores comuns. Implica, por isso, através de percursos intelectuais vários, uma ultrapassagem de uma enfatização pura e exclusiva da norma de racionalidade. Em Pareto, valoriza-se a fixação de um fim último que não é logicamente dedutível através de uma norma de racionalidade intrínseca; em Durkheim detecta-se um passo importante para uma posição conforme à teoria voluntarista da acção e que implica a constituição de um sentido de obrigação moral que passa pela interiorização de valores; em Weber, saúda-se a existência de uma tipologia dupla da racionalidade, que abre as portas à consideração da eficiência mas também da legitimidade50.

A enfatização do problema da ordem normativa, que emerge de The structure of social action e nas obras seguintes, conduz a um certo afastamento de Weber Aceitando a as influências provenientes da Biologia e da Antropologia (nomeadamente da leitura que Radcliff-Brown faz de Durkheim), o conceito de acção tornar-se-á, segundo o próprio Parsons, cada vez mais durkheimiano e menos weberiano51. No fundo, para Parsons, o que permite a resolução do problema hobbesiano passa pela interiorização das normas - um processo em que intervém, claramente, as influências tutelares de Durkheim e Freud. A ideia hobbesiana, segundo a qual as paixões humanas resultariam claramente num conflito social endémico, leva Parsons a entender que a resposta a este problema não é solucionável no quadro da mera coordenação dos interesses dos indivíduos. A solução implica a interiorização das normas. Através deste processo, é possível aos actores sociais adoptar valores padrão que limitariam o domínio dos fins a que poderiam aspirar e dos meios que poderiam empregar para atingir esses fins. Para definir os padrões de valor Parsons começa com uma situação idealizada:

a) os actores partilham expectativas comuns quanto ao desempenho de papéis;

b) estas expectativas estão integradas num sistema de valores mais vasto que também é partilhado;

c) quer as expectativas quer os valores são interiorizados.

Neste contexto, os agentes cooperarão entre si num padrão coordenado de actividade por três razões básicas: a) encontram-se comprometidos com o curso de acção esperado ou prescrito, porque cada um de per si o interiorizou como mais adequado ou apropriado; b) interiorizaram outros valores relacionados, que podem ser ameaçados se existir uma falha em levar por diante as exigências que a situação apresenta e c), têm receio que outros os punam por não agirem adequadamente, frustrando expectativas ou perdendo estima, amor e aprovação. Nesse sentido, postula-se um teorema da acção institucionalizada, graças ao qual qualquer padrão de actividade tenderá a cristalizar ao longo do tempo, até porque qualquer tentativa de desvio em relação às expectativas padronizadas originará consequências desvantajosas. Este teorema providenciará no sentido de o actor ficar positivamente motivado para cooperar com outros, agindo de acordo com as necessidades institucionais. É, pois, através da interiorização de valores comuns que um sistema de interacções sociais pode ser estabilizado.

As divergências Parsons - Schutz

Desde 1937 até 1940, Alfred Schutz, que elaborara um texto de recensão crítica do trabalho de Parsons, dirigiu-se-lhe várias vezes no sentido de se encontrarem. O encontro realizou-se, mas correu da pior forma, pois Parsons via no texto de Schutz uma crítica ao seu trabalho. Schutz, por seu turno, dizia que apenas pretendia clarificar algumas das suas dificuldades no entendimento do trabalho de Parsons52.

Os desencontros entre Parsons e Schutz são muito frutíferos no que respeita aos desenvolvimentos posteriores dos trabalhos dos dois autores e dos seus seguidores. Schutz insistirá várias vezes em que jamais, como suspeitou Parsons, pretendia proceder a uma revisão do seu trabalho chegando mesmo a dizer que estava de acordo com grande parte da obra e lamentava se, por alguma vez, ou por alguma razão ou outra, o seu interlocutor se sentiu induzido a modificar os alicerces básicos do seu sistema.53 Apesar desta gentileza, na mesma correspondência encontram-se interpelações directas sobre pontos de discordância evidentes.

Podem-se aduzir algumas hipóteses para explicar a diferença de percepção entre Schutz, os seus seguidores e o próprio Parsons sobre a magnitude das divergências.

Uma explicação geralmente aceite diria respeito à vontade de Schutz de encontrar um interlocutor intelectual na Sociologia americana. Parsons seria relativamente óbvio pela sua profunda ligação com a tradição europeia e por ser, de certo modo, o representante mais proeminente de uma orientação investigativa que se reclamava de inspiração weberiana. Com efeito depois do encerramento do diálogo com Parsons, Schutz abordou meios intelectuais americanos através, sobretudo, dos círculos fenomenológicos, designadamente na Revista Philosophy and Phenomenological Research, de Marvin Farber. A maior parte do seu trabalho ganharia uma decisiva inspiração na recepção crítica da Fenomenologia e, só passados alguns anos, com o conhecimento crescente da sociologia americana, em especial do Pragmatismo, começaria a ser conhecido entre as Ciências Sociais54.

Uma segunda explicação, aduzida por Thomason, seria o facto de Schutz ocupar um terreno intermédio entre a objectividade e o rigor lógico dos esquemas e procedimentos científicos e o mundo do senso comum em grande parte subjectivamente fundado e apenas intuitivamente apreensível. Parece-nos que esta posição de Burke Thomason não está devidamente fundada. Para além de nem toda a correspondência indicar neste sentido - já que existem interpelações directas entre os dois autores em que se revelam divergências claras nesta matéria - ,constata-se, na obra de ambos os autores, substância para uma vastíssima fonte de discrepâncias. Aliás, se Schutz ocupasse um terreno intermédio - o que é de todo bastante improvável - o mesmo não se poderia dizer de Parsons. Schutz pretende estabelecer uma relação activa entre a percepção intersubjectiva do mundo quotidiano e as ciências sociais. Isto traduz-se, em relação ao seu oponente/interlocutor, em substanciais diferenças de metodologia científica que não são facilmente compatíveis com ecletismo científico.

Nesse sentido, parece mais legítimo aceitar a explicação de Wagner, segundo a qual Schutz terá lido de forma incorrecta as intenções de Parsons, vislumbrando neste uma tentativa de correcção de Weber que passava por uma abordagem onde a psicologia social e a fenomenologia desempenhariam um papel importante55.

Na verdade, uma leitura de muitos dos ensaios schutzianos e da vasta obra de Parsons evidenciam uma mais do que provável fricção profunda entre o pensamento da sociologia de inspiração fenomenológica e a teoria parsoniana da acção. Referimo-nos, em primeiro lugar, a orientações metodológicas completamente divergentes sobre as relações entre a Ciência Social e o mundo do conhecimento vulgar e, em segundo lugar, às consequências que estas orientações comportam para a concepção de integração social e de relações entre os agentes e as normas. Ora estas duas áreas revelaram-se fundamentais nas discussões que atravessaram o século passado entre as duas teorias e os seus seguidores.

Divergências epistemológicas: abordagem subjectiva

Parsons nunca estendeu a sua rejeição do positivismo na análise social aos métodos das ciências positivas, considerando mesmo em The structure of social action, que existe um núcleo metodológico comum a todas as ciências empíricas, qualquer que seja o seu objecto de estudo. O conhecimento racional é um todo orgânico56. Nesse sentido, todas as ciências merecedoras desse nome procedem à integração das observações empíricas discretas em conceitos teoréticos dotados de abstracção, expressando-se através de leis gerais analíticas. Por exemplo, a mecânica newtoniana tinha como ponto de partida a observação de corpos em queda ou de bolas rolando em planos inclinados. Estas observações jamais poderiam ter fornecido as bases para a elaboração das leis sobre a gravitação universal, a não ser que se expressassem em termos de conceitos abstractos e analíticos como sejam ``massa'', ``aceleração'', etc. Ou seja, a abstracção conceptual em relação ao concreto é uma condição teorética essencial para a formulação de leis científicas. Embora as ciências sociais analisem fenómenos subjectivos, não se podem excluir deste padrão geral de desenvolvimento científico. Deste modo, para Parsons não há conhecimento empírico que não seja conceptualmente formado. Toda a referência a dados puros dos sentidos, experiência pura ou a corrente de consciência, não é apenas descritiva da experiência em si mas uma questão de abstracção metodológica, legítima e importante para certos fins, mas de todos os modos, abstracção57. Para se expressar como uma ciência, capaz de formular resultados através de leis dotadas de generalidade, a sociologia tem de passar pela fase crucial de desenvolvimento conceptual em que os elementos analíticos sejam desenvolvidos como os meios de exprimir os resultados da observação sociológica.

Na investigação sociológica, apenas se obterão, em primeira instância, colecções de observações discretas semelhantes às experiências isoladas que o físico vai anotando no seu diário. Com o fim de dar origem a leis gerais científicas, é preciso decompor essas unidades discretas em componentes que as integram ou seja em elementos analíticos. Da mesma forma em que um corpo físico é descrito como tendo uma certa massa, velocidade, etc., um acto deve ser descrito como tendo um certo grau de racionalidade, desinteresse, etc. ``É a estes atributos gerais de um fenómeno concreto relevantes dentro do enquadramento de um determinado quadro de referência descritivo, e a certas combinações deles, que se aplicará o termo elementos analíticos''58. Verificar-se-á que cada observação compreenderá uma combinação específica dos valores de um ou mais elementos analíticos. Estes elementos analíticos não deixam de ser uma abstracção, uma vez que se referem a uma propriedade geral: a massa de um corpo, tal como a racionalidade de um acto, nunca podem ser observados empiricamente como tais 59. Por seu lado, é uma experiência universal da ciência que estes elementos analíticos, uma vez claramente definidos, apresentarão determinados modos uniformes de relação, os quais serão chamados ``leis analíticas''60. A observação é fundamental mas a ciência sociológica só emerge quando as observações consideradas de per si forem decompostas em elementos constitutivos susceptíveis de integrarem leis universais. Este predomínio da concepção objectivista da ciência social não impedirá Parsons de apresentar uma leitura relativamente acolhedora do conceito de verstehen (compreensão) através do qual ele tenta introduzir na teoria da acção um elemento normativo. Porém, a dimensão subjectiva fica largamente reduzida à interiorização das normas.

A abordagem à Teoria Social formulada por Schutz, tinha tido lugar na sequência dos grandes debates levados a efeito durante o Século XIX, na Alemanha, sobre a natureza e a metodologia das Ciências Sociais. O seu primeiro estudo - Der Sinnhafte Aufbau der sozialen Welt, publicado em Viena em 193261 - já constituía uma leitura sobre os pressupostos metodológicos de Weber feita à luz de uma conceptualização fenomenológica. Neste trabalho, como aliás em toda a sua obra, Schutz insistiu em que o mundo social era susceptível de ser interpretado pelos seus membros como significativo e inteligível em termos de categorias sociais, o que abria a porta à possibilidade de uma relação entre a Ciência Social e o conhecimento vulgar dos agentes sociais

Para fundamentar este ponto de vista Schutz, em ``Concept and Theory Formation in the social sciences'' insistiu em três pontos fundamentais. Em primeiro lugar, defendeu a distinção entre ciências naturais e ciências sociais com base no facto de que as segundas lidam com acontecimentos e relações pré-interpetadas e, como tal, significativas para os actores evolvidos. Em segundo lugar, argumentou que os processos compreensivos são procedimentos centrais para que os actores sociais possam interpretar significativamente o mundo. Finalmente, defendeu o método da compreensão enquanto abordagem da subjectividade do actor como um método indispensável para as ciências sociais. Com efeito, ``o mundo da natureza, tal como é explorado pelos cientistas naturais não significa nada para as moléculas, átomos e electrões. Mas o campo de observação do cientista social - a realidade social - tem um significado especial e uma estrutura relevante para os seres vivos, agindo e vivendo nele. Através de constructos do senso comum eles pré-seleccionaram e pré-interpretaram este mundo que eles experimentam como a realidade do seu dia a dia. É isto que determina o seu comportamento motivando-o''62.

Aplicando este raciocínio à observação científica, Schutz concluía mesmo que esta actividade está permeada por relações de compreensão entre os agentes, antecipando-se às conclusões que Karl Otto Apel, 20 anos mais tarde, elaboraria sobre está matéria: ``o postulado que explica e descreve o comportamento humano em termos de uma observação empírica controlável revela-se curto perante a descrição e explanação do processo pelo qual o cientista B controla e verifica as pesquisas e conclusões do cientista A. Para fazer isso, B tem que saber o que A observou qual era o objectivo da sua investigação, porque ele pensou o facto observado como digno de ser observado, isto é relevante para o problema científico em causa, etc. Este conhecimento é vulgarmente chamado de compreensão''63.

Assim, para Schutz a compreensão (verstehen) é fundamental, seja na vida quotidiana quando interpretamos as acções uns dos outros, seja na ciência social, quando onde o nosso objectivo é chegar a uma compreensão significativa da realidade social que, simultaneamente, tenha algum significado aos olhos do conhecimento partilhado no mundo da vida. Se o mundo social surge como uma matriz de actividade interpretada pelos participantes com recurso a constructos intersubjectivamente válidos, Schutz opina que a sua influência na acção social não pode ser ignorada pelos cientistas sociais. Estes podem criar constructos de segunda ordem, que originam modelos tipificados de estudo da acção social.

Nesse sentido, na sua apreciação da obra de Parsons no decurso da fracassada correspondência entre ambos, Schutz arguiria que Parsons se esquiva a demonstrar a razão pela qual a referência ao ponto de vista subjectivo é um pré-requisito para a teoria da acção64. Schutz irá mais longe. Dirá que Parsons tem uma intuição correcta segundo a qual uma teoria da acção ficaria sem significado sem a apreciação do ponto de vista subjectivo. Porém, acusa Parsons de não seguir esse ponto de vista até às suas últimas consequências. Nesse sentido, argumenta que Parsons substitui os eventos na mente do actor por uma observação apenas acessível ao observador, confundindo a observação objectiva dos fenómenos objectivos com os próprios fenómenos objectivos65. Na resposta, Parsons não podia ser mais claro: ``os fenómenos científicos só podem ser descritos quando descritos e analisados por um observador'' 66 Nesse sentido, o ponto de vista subjectivo ganha, em Parsons, uma dimensão puramente lógica.

Controvérsias sobre a ordem social

Parsons: a orientação normativa

O uso parsoniano da interiorização social e a sua insistência no papel motivacional das normas e dos valores, constituía um modo de solução do problema hobbesiano e uma tentativa firme de resposta às questões relacionadas com a possibilidade de coordenação social dos projectos individuais dos agentes. Como viria a ser substancialmente assinalado, partindo de um enquadramento teórico que começava com uma certa consideração do ponto de vista subjectivo do actor, Parsons acabava por chegar a uma análise completamente externa das normas e dos valores encaradas como determinantes da conduta.

Em Parsons, a dimensão subjectiva da acção fica reduzida à mera interiorização do enquadramento normativo. A forma como a sua conceptualização evolui, indicia, apesar da referência enfática ao papel de Weber, que a resposta da teoria voluntarista da acção e, em especial do estrutural-funcionalismo, ao problema da diversidade, se manifesta através da formulação de uma ideia de integração social e de formação de consenso fundada especialmente nas formulações de Durkheim.

As concepções que apontam para um estado de anarquia e de ``guerra de todos contra todos'' (que será superado, para em, seu lugar, se instaurarem o equilíbrio e o consenso social), remontam a Hobbes e à sua asserção segundo a qual ``é um preceito ou regra geral de toda a razão que o homem se deve esforçar pela paz''. Detecta-se, ao longo da obra de Hobbes, um rigor lógico que o coloca ao mesmo tempo nas correntes contraditórias designadas por jusnaturalismo ou do direito natural, e por positivismo jurídico. Preceitua-se que acção justa no estado civil é aquela conforme a lei que deriva da vontade do soberano, o que remete para uma concepção formal de direito na base da qual a justiça consiste na observância da ordem jurídica positiva, qualquer que seja o seu conteúdo. Prescreve-se a existência de um Estado Absoluto assente na monopolização da produção do Direito pela eliminação de todas as fontes que não sejam a lei. Por outro lado, considera-se a existência de uma lei natural como ditame da razão. Como é que é possível o carácter absoluto do Estado se a vontade do soberano deve obedecer à lei natural? Na opinião de Bobbio, a explicação do paradoxo reside na especificidade do conceito hobbesiano da razão. A razão, em Hobbes, não é a faculdade com a qual aprendemos a verdade evidente dos primeiros princípios. Tem um conteúdo utilitário e finalista: serve para distinguir o que é conveniente e inconveniente para alcançar a paz, concebida como fim supremo pela lei natural. A lei natural é aquele ditame da razão que sugere ao homem que se quer a paz , deve obedecer em tudo à lei positiva. Ao contrário da maioria dos jusnaturalistas, o fundamento contratualista do Estado, em Hobbes, serve para garantir a ausência de limites ao seu poder. Ou seja, enquanto para os outros jusnaturalistas a naturalis ratio ou recta ratio é o bem, para Hobbes a lei natural prescreve a procura da paz. Desta lei fundamental, considerada como primeiro princípio da razão prática, derivam as restantes leis. Fundamenta-se este ponto de vista numa concepção fortemente pessimista sobre o estado original que precede o contrato: ``os homens não retiram prazer algum da companhia de outros homens (e, sim, pelo contrário, um enorme desprazer) quando não existe um poder capaz de os manter a todos em respeito.''67 A justiça só é passível de ser realizada no Estado Civil, pois ``onde não há poder comum e não há lei, não há injustiça. Na guerra [de todos contra todos que é típica do estado natural], a força e a fraude são as virtudes cardeais. A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito''68. Pelo contrário, após a realização do pacto intersubjectivo entre os homens, é um preceito ou regra geral da razão que todo o homem se deve esforçar pela paz. A integração social ganha uma força coactiva em que a vontade dos sujeitos se reduz à obtenção da paz. O homem concorda em desistir da sua liberdade natural em favor da autoridade soberana que, em troca, garante a sua segurança.

Este percurso é fundamental para uma certa linha da sociologia. Em Durkheim, (uma das principais influências que Parsons cita quanto à fase do seu percurso que classifica como ``estrutural-funcionalista'') a possibilidade de realização da felicidade humana é olhada, prioritariamente, sob o ponto de vista da integração social e da formação de um consenso69. Encontra-se em Durkheim, principalmente quando aborda o suicídio e a divisão do trabalho, uma questão de acentuado recorte hobbesiano: quais os mecanismos que permitem aos indivíduos integrarem-se na sociedade? Ou seja, como é que sociedades, que prezam tanto o individualismo, se podem proteger contra as pretensões egoísticas dos seus membros e alcançar um mínimo de consenso? Ou, de outro modo, como é que a autonomia do indivíduo é compatível com a existência social? Para este autor, a ausência da acção moderadora da norma conduz a um estado de anomia ao qual devem ser atribuídos ``(...) os conflitos incessantemente renovados e as desordens de toda a espécie de que o mundo económico nos dá um triste espectáculo.''70A intervenção da consciência colectiva, entendida como ``conjunto de crenças e de sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade (....) independente das condições particulares em que os indivíduos se encontram''71, entendida como possuindo uma natureza ``diferente dos estados de consciência individual''72, constitui um dos contributos fundamentais de uma perspectiva que privilegia uma visão pacificante, na qual as partes só têm sentido quando entendidas em simultâneo com o todo orgânico73. A consciência colectiva é distinta das consciências individuais. Com efeito, ao agregarem-se, as almas individuais dão origem a uma individualidade psíquica de novo género.74 Como observa Luhmann, ``em Durkheim, moralidade e solidariedade são gémeas''75.

Encontramo-nos perante uma visão que concebe a sociedade como um todo, mais do que em termos de uma pluralidade ou de um conflito entre diferentes grupos e forças sociais. Perspectiva-se a defesa de uma sociedade onde o indivíduo participará na energia colectiva pela realização da sua função: ``o imperativo categórico da consciência moral está em vias de tomar a forma seguinte: põe-te em estado de desempenhar utilmente uma função determinada''76. Nessa medida, defende-se uma articulação entre o todo e as partes, pela qual a liberdade é, ela própria, produto de uma regulamentação: ``Não posso ser livre senão na medida em que outrem é impedido de beneficiar da superioridade física, económica ou outra de que dispõe para sujeitar a minha liberdade. ``77 Coerente com a tentativa de encontrar uma forma lógica de descrever a interpenetração entre indivíduo e sociedade, o seu modelo compreende uma dinâmica dos factos sociais que enaltece o sujeito apenas como plenamente realizável no todo. Deste modo, o indivíduo só pode conseguir a sua realização, aceitando o seu papel e a sua função no interior do sistema da divisão de trabalho.

O consenso social imaginado por estas reflexões de linhagem hobbesiana privilegia a ordem como um ponto de partida, pressentindo no conflito e na dissidência uma fonte de desprazer e de sofrimento que ameaçam a própria possibilidade de relações sociais estáveis. A hiperbolização da sociedade, como algo que vive em si, dotada de uma facticidade e uma exterioridade incontornáveis, transformam a força coactiva do consenso social numa minimização do papel transformador e activo do agente social.

O pensamento de Parsons, uma das faces mais visíveis deste ponto de vista que tende a enfatizar o consenso, dedica a maior parte do seu esforço analítico à exploração das razões que podem justificar a estabilidade e a durabilidade das estruturas sociais. Norbert Elias comenta, a propósito dos excessos do funcionalismo: ``temos que imaginar o rio como estático antes de dizermos que ele corre''78. Mais uma vez à maneira de Hobbes, o problema que persegue Parsons é o da forma de coordenar a pluralidade de fins perseguidos pelos diversos sujeitos, continuando a manter a ordem social, sem que surja a guerra de todos contra todos. A grande questão, intuída em The structure of social action, é, mais uma vez, a de como é possível a ordem quando o homem é basicamente destrutivo e competitivo. Nessa medida, desde The structure of social action, só a orientação normativa pode garantir a Parsons o mínimo de ordem e de harmonia requerida para a manutenção da sociedade como uma colectividade e para sustentar a possibilidade de evitar o caos. Assim, a institucionalização de normas e de valores comuns e a sua interiorização pelos indivíduos membros de uma dada sociedade é a chave que se tornará determinante ao longo do seu trabalho para a compreensão da ordem social. O esforço teórico de Parsons traduz-se, em larga medida, na redução da acção social a um processo no interior do qual é garantido que as interacções tendem a restabelecer a harmonia e o consenso, proporcionando a integração no sistema79. O problema da legitimidade é especialmente reduzido à transformação das expectativas sociais em exigências legítimas à luz dos padrões normativos vigentes. Um sistema ``tem de ter uma aprovação suficiente dos seus actores adequadamente motivados para agir de acordo com as exigências dos seus papéis, positivamente na realização das suas expectativas e, negativamente, quanto à abstenção de comportamentos demasiado disruptivos, isto é, desviantes''80. Devem-se evitar os compromissos com padrões culturais normativos que ``não assegurem um mínimo de ordem'' ou que dêem origem `` a exigências impossíveis por parte das pessoas, que gerem desvio e conflito a um nível incompatível com um mínimo de condições de estabilidade e de desenvolvimento ordenado.''81 Toda a mudança, nesse sentido, é rapidamente catalogada como desvio. Todas as reclamações particulares são olhadas como uma ameaça clara à capacidade integradora do sistema. Talcott Parsons não hesita em classificar de fundamentalistas as posições teóricas que expressam uma ``resistência à generalização de valores''82. A falta de adequação dos indivíduos às normas morais integradoras, designada por anomia, é classificada como a antítese polar da institucionalização plena ou mesmo como ``o colapso da ordem normativa''83. Com base numa desconfiança em relação aos movimentos sociais, qualquer criticismo imanente surge, na verdade, como reprovável. A comunidade societária ``é considerada como um corpo corporativo de cidadãos que empreendem relações consensuais com a sua ordem normativa''84. A abordagem conceptual de Parsons em relação à comunidade societária centra-se na ideia de integração, promovendo a partilha de um sistema de crenças comuns entre os participantes da interacção85. Assim, ``a ordem normativa ao nível societário contém uma solução para o problema de Hobbes - isto é, impedir que todas as relações humanas degenerem até ao ponto de uma guerra de todos contra todos.'' 86 Nesse sentido, ``a função primária desse subsistema integrador é definir as obrigações de lealdade à comunidade societária, tanto para os participantes como um todo, como para as diferentes categorias de status e papéis diferenciados no interior da sociedade''87. Considera-se, pois, que a teoria individualista tem enfatizado exageradamente ``o interesse pessoal'' pelo que o problema mais imediato para a maioria dos indivíduos no caso de conflito ``é o ajustamento das obrigações entre lealdades competitivas''88Virando as costas às possibilidades normativas que resultavam dos movimentos sociais, vislumbrando em todos o mesmo ``delírio fundamentalista'', esta teoria acaba por conduzir à ideia de que só a geração de novas formas de influência pode levar a um consenso normativo que provenha recursos capazes de integrarem a comunidade societária.

Este trabalho seria dificilmente compatível com o de Schutz sobretudo pela sua imensa oposição a uma concepção subjectivista e individualista. Com efeito, as diferenças de concepção ao nível da Teoria Social e da Metodologia das Ciências Sociais implicavam juízos sobre o papel do actor social que no caso de Schutz, possibilitavam uma aproximação à contingência e à entropia insuportáveis para uma visão funcionalista.

A questionação moral, ética ou política parece arredada do universo teórico de Schutz. Com efeito, este não pretende fazer qualquer apologia desta ou daquela forma de estar no mundo mas apenas descrevê-la. São relativamente escassas as referências de Schutz dos quais se possam inferir a existência de um posicionamento explícito ao nível de questões com repercussão na praxis.

A insistência na atitude natural pode mesmo induzir em erro e parecer a apologia de um certo espírito despido de intenções críticas. O assunto pode ser abordado de vários modos. A verdade é que em toda a abordagem do mundo da vida está implícita uma certa ideia de crítica que alguns já consideravam remontar a Husserl.89 A crítica ao cientismo generalizou-se de um modo que estaria presente durante quase todo o século XX através de Weber, de Luckács e da Escola de Frankfurt. Com Habermas, o mundo da vida seria mesmo objecto de uma abordagem essencialista na qual se diagnostica a existência de dois domínios sociais - ``sistema'' e ``mundo da vida'' - que se diferenciam consoante a racionalidade que predomine em cada um deles seja comunicacional ou instrumental 90. Do ponto de vista do mundo da vida, focam-se os elementos da razão prática, enquanto o ponto de vista do sistema enfatizam-se os elementos relacionados com a acção teleológica e a razão instrumental. No mundo da vida prevalecem mecanismos de intercompreensão e de consenso, enquanto no sistema prevalecem os mecanismos de troca e de poder.

Porém, como Lévinas já intuíra numa observação dirigida a Heidegger91, o próprio mundo da vida pode ser um lugar de reificação. Ora, a verdade é que Schutz, sem nunca ter feito uma extensa abordagem ética ou política, deixou um percurso aberto à reflexividade no seio desse mundo, abrindo portas que Parsons fechava. O individualismo metodológico e a sua abertura à subjectividade e à pluralidade de modos de conhecer no seio do mundo da vida tinham consequências noutros planos. Geravam uma concepção de acção social que era incompatível com o determinismo normativo.

Com efeito, a sociologia de inspiração fenomenológica abordou de frente a questão da particularidade, reconhecendo, de modo explícito, a existência do fenómeno que hoje entendemos como pluralização dos mundos da vida. ``Cada um percebe o mundo e as coisas dentro do mundo desde o particular ponto de vista em que está colocado em cada momento, e também desde determinados aspectos e perspectivas que variam na dependência do ponto de vista.''92 O conhecimento próprio da atitude natural na quotidianeidade ``traz a sua evidência em si próprio - ou em vez disso, é tido como pressuposto na falta de evidência em sentido contrário. É um conhecimento de receitas certas para interpretar o mundo social e para lidar com pessoas e coisas, de forma a obter em cada situação, os melhores resultados possíveis com o mínimo esforço, evitando consequências indesejáveis''93. Com efeito, a atitude natural tem uma premissa de confiança na permanência das estruturas do mundo que ganha especial sentido quando pensada em relação à sociabilidade: ``eu confio que o mundo tal como tem sido conhecido por mim permanecerá e que consequentemente o acervo de conhecimentos obtidos dos meus sucessores e formado pelas minhas próprias experiências continuará a preservar a sua validade fundamental''94. Neste sentido, é admissível concluir pela existência na atitude natural - pragmática, realista e carente de reflexividade - de uma certa forma de conhecimento que implica uma aceitação que é susceptível de ser equacionado à luz daquilo que uma certa tradição do pensamento considerou como sendo a reificação95. A atitude natural e o conhecimento do senso comum implicam que ``o processo constitutivo é inteiramente ignorado, enquanto que a objectividade constituída é perfeitamente tida por adquirida''96. Embora Schutz nunca tenha utilizado o termo ``reificação'', é legítimo sustentar que a atitude cognitiva analisada no mundo da vida o conduz a identificar a objectividade como ``constituída'' e como tal dependente de processos subjectivos. Simultaneamente, conduz à ideia de que as pessoas reificam sempre que ignoram essa constituição, tomando a objectividade por garantida. Há uma espécie de ``congelamento'' do qual depende o esquecimento do papel activo das consciências dos agentes sociais. Esta análise não implica, tal como acontece na tradição marxista, uma condenação, a adopção de uma atitude crítica em relação aos processos de reificação tal como sucede na obra de Luckács ou de Adorno. Pelo contrário, está implícita a ideia que, de certo modo, este esquecimento dos processos activos de constituição é indispensável para uma integração social bem sucedida. Sem esta dose de interpretação, que implica um certo grau de reificação e até de inautenticidade, os actores sociais perderiam o contacto com um mundo partilhado de significados que tornam possível a sociabilidade. De certa forma, como constituintes, os actores sociais são potencialmente intérpretes. Porém, sem a partilha de significados comuns, o mundo social ganharia um estado de devir permanente e a diversidade da vida seria uma porta aberta para uma entropia dificilmente suportável. Com efeito, toda a actividade da consciência é uma actividade tipificadora na qual cada experiência do actor ocorre dentro dum horizonte de familiaridade e pré-conhecimento. A percepção própria do senso comum é efectuada com base em tipos. ``Estruturamos o mundo de acordo com tipos e relações típicas entre tipos.'' 97

Porém, da mesma forma que Schutz chama a atenção para este aspecto passivo do estilo cognitivo do mundo da vida e da atitude natural, também destacou a dimensão subjectiva da constituição. Ora, ao fazê-lo introduz uma larga margem para abrir as portas à contingência social.

Com efeito, Schutz reconheceu que o mundo da vida traz, em si, mais do que a realidade quotidiana e recorreria a William James e ao seu conceito de ``sub-universos'' para se referir às províncias de significado finito, a cada uma das quais corresponde um particular estilo cognitivo98. Com o termo ``províncias de significado finito'', Schutz está a definir horizontes de significação plurais, onde determinadas proposições são aceites enquanto não entrarem em conflito com outros pensadas ao mesmo tempo. Entre estas contam-se o sono, a experiência estética, a fantasia, o mundo da ciência, o mundo da arte e o mundo das crenças religiosas. A atenção de Alfred Schutz à multiplicidade de realidades, a consciência da existência de grupos diversificados, a atenção dedicada ao papel do outro, do estrangeiro e do marginal são elementos centrais do seu pensamento, contribuindo para a possibilidade de compreensão reflexiva dos mecanismos de formação do estilo cognitivo interior de cada grupo99. A multiplicação de experiências, bem como a possibilidade de as observar de uma outra perspectiva demonstra que os consensos sobre a realidade social estabelecidos em cada grupo interno são, cada um por si, afinal um entre outros possíveis. Com o faz questão de precisar Thomason, mesmo no universo da fantasia ou da demência (o caso de Don Quijote), Schutz abstém-se de formular qualquer argumento ontológico sustentando o mundo da realidade quotidiana como o mundo autenticamente real100.

O reconhecimento explícito de uma certa contingência inerente aos mundos da vida deixa em aberto o caminho da reflexividade como um elemento essencial de superação do seu carácter coercivo. É nessa medida que Schutz não hesitará mesmo em afirmar que ``o que está para além de qualquer questionamento até agora pode ser sempre posto em questão''101. Com efeito, ``o que é tido por garantido não forma uma província fechada, articulada inequivocamente e claramente arranjada. O que é tido por garantido dentro da situação predominante no mundo da vida está rodeado de incerteza'' 102Os actores sociais agem com base nos saberes adquiridos nas suas histórias efectivas, ou seja, de acordo com as suas situações biográficas determinadas. Estas sempre enfatizam determinadas possibilidades de acção em detrimento de outras, tornando os actores e os intérpretes cegos para outros possíveis que podiam preencher as suas vidas. Porém, se a realidade é como é, não é porque tem de ser assim - porque dispõe de uma qualquer propriedade ontológica - mas sim graças a um consenso que se estabelece na vida quotidiana. Isto será claramente assumido por Schutz num dos seus textos mais marcantes, a propósito de uma experiência tão radical como a loucura: `` o que é a loucura o que é o juízo num universo que é a soma de todos os nossos sub-universos?''103 Nem o senso comum de Sancho nem a loucura de Quijote merecem condenação. Se existem processos subjectivos de construção da realidade social, então ela reside sempre num consenso contingente que pode sempre ser substituído por outro possível 104.

Evidentemente, pode-se dizer que se está perante um estilo intelectual, um método e uma atitude. Porém, dificilmente se pode ignorar que resultam possibilidades para pensar a contingência e a reflexividade da experiência do sujeito moderno, de um modo em que a constante erosão que se verifica contemporaneamente na estabilidade e na permanência dos mundos da vida e das províncias finitas de significado pode ser compreendida de forma incompatível com a consensualidade apriorística definida pelo funcionalismo.

Ao longo deste texto, fomos, pois delimitando duas áreas em que se verifica a ausência de concordância e a existência de duas linhas dificilmente conciliáveis.

Em primeiro lugar, a dívida de Alfred Schutz com Husserl e Weber tornava incompatível uma fenomenologia que sublinhava o carácter intersubjectivo e interpretativo da sociabilidade com uma Teoria dos Sistemas que afirmava o predomínio da normatividade social sobre o indivíduo.

Em segundo lugar, a dívida teórica de Schutz conduz à dificuldade em compatibilizar a permanência de um certo individualismo com a concepção que Parsons tinha da comunidade societária. Esta segunda linha explica a existência de uma política por detrás deste movimento fenomenológico a qual é incompatível com a concepção sistémica centrada numa espécie de harmonia sublinhada e enfatizada à partida.



Notas de rodapé

...avel1
O texto integral foi publicado na Revista Filosófica de Coimbra (Março de 2003)
... seguidores2
Cfr. Elizabeth Suzanne Kassab, The Theory of Social Action in the Schutz-Parsons Debate, Friburg, Editions Universitaires, 1991. Sobre o mesmo tema, pode ver-se Alfred Schutz, ``The social world and the theory of social action '' in Alfred Schutz, Collected Papers II: Studies in social theory, The Hague, Martinus Nijoff, 1976, pp. 3-19.
... Garfinkel3
Cfr. H. Garfinkel, Studies in ethnometodology, Cambridge, Polity Press, 1984.
... Giddens4
Cfr. Anthony Giddens, New rules of sociological method, London, Hutchinson & Co, 1960; cfr, Erving Goffman, Frame analisys, Harmondsworth, Penguin Books, 1975.
... Luckmann5
Peter Berger e Thomas Luckmann, A construção social da realidade, Petrópolis, Vozes, 1973 ( Orig: The social construction of reality, 1966).
... Sociais)?6
Como lembra Arvid Brodersen na Nota do Editor introdutória ao segundo volume dos Collected Papers de Alfred Schutz, ``uma lição que Schutz aprendeu cedo na vida e continuou a ensinar até ao fim foi a necessidade de basear qualquer teoria social sobre uma fundamentação filosófica. Desde o princípio ele encontrou a base para a sua própria filosofia em Husserl mais do que em qualquer outro, mas também em Bergson, William James, Georg Simmel, Max Scheler e outros'' (Arvird Brodersen, Editor's Note in Alfred Schutz, Collected Papers II: Studies in social theory, The Hague, Martinus Nijoff, 1976, 18.)
... Habermas7
Sobre a presença que Parsons continua a ter nas obras destes autores ler Richard Münch, ``Teoría parsoniana actual: en busca de uma nueva síntesis'' in Anthony Giddens, Jonathan Turner e outros, La teoría social hoy, Madrid, Alianza Editorial, 1990. Devem também consultar-se as obras dos autores citados nomeadamente J. C Alexander, Neofunctionalism, Beverly Hills, Sage, 1985; Habermas, Théorie du agir communicationel, Paris, Fayard, 1987 além de diversas obras de Luhmann onde as referências a Parsons são explícitas.
... mesmo8
cfr. Emmanuel Lévinas, Descobrindo a existência com Husserl e com Heidegger, Lisboa, Piaget, 1997, p. 61.
...ao9
Tal leitura já se adivinha nalguns ``sintomas'' : termos conhecimento da existência de trabalhos de autores por todo o mundo que lêem Schutz à luz das noções de cidadania multicultural e da crítica ao universalismo abstracto. De conhecimento directo, podemos citar a obra de Burke Thomason, Making sense of reification, London, MacMillan Press, 1982 onde se procede, de forma mais ou menos clara, a este tipo de leitura.
...encia10
cfr. Lévinas, Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger, op. cit., p. 63.
... coisas11
Cfr. Edmund Husserl, La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantal, Paris, Gallimard, 1967, p. 172.
... Merleau-Ponty12
O trabalho mais explícito e significativo neste domínio será ``O Filósofo e a Sociologia'' in Maurice Merleau Ponty, Signos, São Paulo, Martins Fontes, s/d., pp. 105-121.
... Schutz.13
Evidentemente, podíamos citar uma outra direcção, radicalmente nova, que foi abruptamente introduzida por Heidegger. Porém, a Hermenêutica Filosófica fica fora do âmbito da análise deste trabalho.
... mundo14
Cfr. Alfred Schutz, ``William James's concept of the stream of thought phenomenologically interpreted'' in Collected papers, vol. III, The Hague, Martinus Nijoff, 1975, pp. 5-6.
... existente15
``Na nossa vida quotidiana (...), aceitamos sem questionar a existência do mundo exterior, o mundo de factos que nos cerca. Na verdade, pode ser que duvidemos de qualquer datum desse mundo exterior, pode ser até que desconfiemos de tantas experiências desse mundo quantas vezes quisermos; mas a crença ingénua na existência de algum mundo exterior, essa ``tese geral do ponto de vista natural'' vai subsistir, imperturbável.'' Ibid., p. 5.
...encia.16
cfr. Alexandre Morujão, Mundo e intencionalidade, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1961, p. 43.
... mesmo''17
Alfred Schutz e Thomas Luckmann, The structures of life-world, Evanston, Northwestern University Press, 1995, 4.
... objectividade''18
Emmanuel Lévinas, Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger, op. cit., p. 36.
...ivel''.19
Edmund Husserl, La crise..., op. cit. p.. 57
...atico-quotidianas.''20
Ibid, p.150
... outra''21
Ibid., p. 119.
...ifico-positiva22
Cfr. Ibid., pp. 145-146.
... planos''23
Helmut Wagner, ``Introdução'' in Helmut Wagner (ed.), Fenomenologia e relações sociais - Colectânea de textos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Editora, p. 16.
...atico''24
Alfred Schutz, ``O mundo da atitude natural'' in Helmut Wagner (ed.), Fenomenologia e relações sociais, op cit, p. 73.
... quotidiana.''25
Aron Gurwitsch, ``Introduction'' in A. Schutz, Collected papers, Vol. III, Haya, Martinus Nijhoff, 1975, p. xi. Alfred Schutz e Thomas Luckmann, The structures of life-word, op. cit., p.3.
...ogios26
Cfr. Helmut. Wagner, ``A abordagem fenomenológica da sociologia'' in Helmut Wagner (ed.), Fenomenologia e relações sociais, op. cit., p. 16. e A. Schutz, ``William James: concept of the stream of thought phenomenologically interpreted'' op. cit., pp. 2-4 .
...ao27
Cfr. Ibid., p.5.
... pura''28
Alfred Schutz, ``Bases da fenomenologia'', in Helmut Wagner (ed.), Fenomenologia e Relações Sociais, op. cit., p. 61.
... Bergson29
Bergson teve igualmente uma importância relevante em Schutz, havendo autores como Burke Thomason que lhe atribuem mesmo uma importância superior à obra de Husserl no conjunto das suas influências. Cfr. Burke Thomason, Making sense of reification, op. cit., pp.17-18.
...co''30
Alfred Schutz, ``Bases da fenomenologia'', op. cit., p. 61.
... interesse31
Cfr. Ibid., p.68.
... pensamento''32
Alfred Schutz, ``The Stranger: an essay in social psychology'' in Collected Papers II, The Hague, Martinus Nijjoff, 1976, p. 92.
... vida33
Cfr. Alfred Schutz, ``The problems of transcendental intersubjectivity in Husserl'', in Collected papers, vol. III, op. cit., p. 82.
... mim''34
Alfred Schutz e Thomas Luckmann, The structures of life-world, op. cit., p.4.
... mim35
Cfr. Alfred Schutz, ``Social world and social action'' in Collected papers, vol. II, op. cit., p. 15.
... desenvolvimento.''36
Max Weber, Economía y sociedad, México, Fondo de Cultura Económica, 1964, p. 5.
... familiarizado37
Talcott Parsons, ``Introduction to the paperback edition'', in Talcott Parsons, The structure of social action, New York, The Free Press, 1968, VIII.
...orica38
Talcott Parsons, ``Introduction'', ibid., p. IX.
...encia 39
Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 7.
...assico40
Cfr. Talcott Parsons, Ibid.op. cit, p. 43.
... fim41
Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 44.
...ao42
Cfr.Talcott Parsons, Ibid. op. cit. p., 44.
... ``erro''43
Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., pp. 64-66.
... orientada44
Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 483.
... normativo''45
Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 82.
...aveis46
Cfr. Talcott Parsons, Ibid .op. cit., p. 486.
... deseja.47
Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 89.
... desejados48
Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 93.
... meios49
Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. p. 2.
... legitimidade50
Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., pp. 178-301 ; pp. 301 ; 451 ;
... weberiano51
Cfr. Talcott Parsons, ``Introduction'', op. cit., p. XI.
... Parsons52
Richard Grathoff, The theory of social action, ; the correspondence of Alfred Schutz and Talcott Parsons, Indiana University Press, Bloomington, 1978 p. 98.
... sistema.53
Richard Grathoff, Ibid. op. cit., pp. 97-98.
... Sociais54
Cfr. Burke Thomason, Making sense of reification, op. cit., p. 30-31.
... importante55
Helmut Wagner citado por Fred Kernstin, ``Editor's Preface'' in Alfred Schutz ``The Problem of Racionality in the social world'', Collected Papers IV, Drodrecht, Boston and London, Kluwer Academic Publishers, 1996. O quarto volume dos Collected Papers foi editado após a morte de Helmut Wagner, importante estudioso de Schutz, ao qual Ilse Schutz entregara um conjunto de inéditos com este objectivo, cerca de vinte anos depois da publicação dos três primeiros volumes. Wagner ainda surge como editor.
...anico56
Cfr.Talcott Parsons, The structure of social action, op. cit, p. 21; p .28.
...ao57
Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 28.
...iticos''58
Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 34.
... tais59
Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p. 35.
...iticas''60
Cfr. Talcott Parsons, Ibid. op. cit., p.36.
... 193261
Utiliza-se neste artigo a tradução de 1967. Alfred Schutz, Phenomenology of social world, Evanston, Illinois, Northwestern University Press, 1967 (Trad: George Walsh e Fr. Lehnert).
... motivando-o''62
Alfred Schutz, ``Concept and theory formation in the social sciences'' in Alfred Schutz, Collected Papers, Vol. I, The Hague, Martinus Nijjoff, 1962, p. 59.
...ao''63
Alfred Schutz, ``Concept and theory formation in the social sciences'', op. cit., p. 53
...ao64
Richard Grathoff, Theory of social action, op. cit., p. 36
... objectivos65
Ibid., op. cit. p. 36.
... observador''66
Talcott Parsons, Structure of social action, op. cit., p. 88.
... respeito.''67
Thomas Hobbes, Leviatã, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1995, p. 111.
...irito''68
Ibid., p. 113.
... consenso69
cfr. Émile Durkheim, A divisão do trabalho social, vol. 2, Lisboa, Presença, 1977, pp. 9-34.
...aculo.''70
Ibid., p. 9.
... encontram''71
Ibid., p. 99.
... individual''72
Émile Durkheim, As regras do método sociológico, Lisboa, Editorial Presença, 1987, p. 17.
...anico73
Nesse sentido, Durkheim torna claro que os motivos do seu trabalho se relacionam com a questão das ``relações entre a personalidade individual e a solidariedade social.'' Émile. Durkheim, A divisão do trabalho social., vol. 1, p. 49.
...enero.74
Cfr Ibid., pp. 102-103.
...emeas''75
Niklas Luhmann, The differentiation of society, New York, Columbia University Press, 1982. p. 7.
... determinada''76
Ibid., p. 56.
... ``77
Ibid., p. 10.
... corre''78
Norbert. Elias, Introdução à sociologia, Lisboa, Edições 70, 1980, p. 125. Elias acrescenta: ``Foi-se tão longe na direcção oposta (à da conceptualização da mudança) que líderes teóricos da sociologia, como por exemplo Talcott Parsons, consideram a estabilidade ou a imutabilidade como características normais de um sistema social, e a mudança apenas como consequência de perturbações do estado normal de equilíbrio das sociedades.''
... sistema79
Não será por acaso que Talcott Parsons começa a introdução ao primeiro capítulo de O sistema das sociedades modernas com uma espécie de declaração de filiação: ``Este livro tem muitas raízes intelectuais. Talvez a mais influente seja o idealismo alemão que vai de Hegel a Marx e Weber. Embora hoje esteja em moda ridicularizar a glorificação que Hegel fez do Estado Prussiano, na verdade desenvolveu uma teoria complexa da evolução societária geral e a sua culminação no Ocidente moderno(...)'' Talcott Parsons, O sistema das sociedades modernas, São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1974, p. 11.
... desviantes''80
Talcott Parsons, The social system, New York, The Free Press, 1964, p. 27.
... ordenado.''81
Ibid., pp. 26-27.
... valores''82
Talcott. Parsons, O sistema das sociedades modernas, op.cit., p. 122.
... normativa''83
Ibid., p. 81.
... normativa''84
Ibid., p. 24.
...ao85
Cfr .Talcott Parsons, The social system, op.cit., pp. 325-332.
... todos.''86
Talcott Parsons, O sistema das sociedades modernas, op.cit., p. 23.
... sociedade''87
Ibid., p. 24.
... competitivas''88
Idem Ibidem.
... Husserl.89
Segundo Bragança de Miranda, trata-se de uma tradição que, de certo modo, remonta ao próprio Husserl. O mundo da vida seria a instância dos valores por oposição ao universo da ciência, ou melhor do reducionismo cientista degradado transformado em projecto de dominação do mundo. (José Augusto Bragança de Miranda, Analítica da actualidade, Lisboa, Vega, 1994, pp. 54-55).
... instrumental90
Com efeito, em Habermas estabelece-se, uma diferença entre: ``1) o enquadramento institucional de uma sociedade ou mundo vital sócio-cultural, e 2) os subsistemas de acção racional relativa a fins que se incrustam nesse enquadramento. Na medida em que as acções são determinadas pelo marco institucional são ao mesmo tempo dirigidas e exigidas mediante expectativas de comportamento, sancionadas e recíprocas. Na medida em que são determinadas pelos subsistemas de acção racional-teleológica, regulam-se por modelos de acção instrumental ou estratégica.'' (Jürgen. Habermas, Ciência e técnica como ideologia, Lisboa, Presença, 1987, p. 60) Urge, assim, detectar as instâncias de resistência, as esferas aonde existe uma outra lógica em nome da qual seja possível defender a utopia de uma sociedade sem restrições à comunicação. A resistência à penetração dos universos sistémicos desloca-se para o horizonte de interacção e para o mundo da vida sócio-cultural: a racionalização ao nível do mundo da vida sócio-cultural implicaria a extensão da comunicação isenta, enquanto ao nível dos sistemas de acção racional implicaria o aumento das forças produtivas e a extensão do poder de disposição da técnica.
... Heidegger91
Lembramo-nos, por associação de ideias, desta passagem de Lévinas em que este nos alerta para o facto de que a reificação não é apenas o primado da técnica como Heidegger ( e com ele, todo o marxismo romântico, primordialmente de Marcuse), parece pensar: ``quando Heidegger deplora a orientação da inteligência para a técnica mantém um regime de poder mais desumano que o maquinismo e que talvez não tenha a mesma origem que ele. (Heidegger não tem a certeza de que o nacional-socialismo provém da reificação mecanicista dos homens e que não assente num enraizamento grosseiro e numa adoração feudal dos homens subjugados pelos senhores e mestres que os comandam''). V. Lévinas, Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger, op. cit., p. 167.
... vista.''92
Aron Gurwitsch, ``Introduction'', op. cit., p. xiii; p. xv.
...aveis''93
Alfred Schutz, ``O cenário cognitivo do mundo da vida'', in Helmut Wagner, (org.), Fenomenologia e relações sociais, op, cit., p. 83.
... fundamental''94
Alfred Schutz e Thomas Luckmann, Structures of life-world, op. cit., p. 7.
...ao95
Segundo Frédéric Vandenberghe que historiou o conceito, apesar da palavra reificatio não aparecer em qualquer dicionário latino, deriva da contracção dos termos ``res'' e ``facere'' e pode ser definida pela transformação física ou mental de algo numa ``coisa'', que originalmente não era, ou seja, a tendência a objectificar o que é dinâmico. Em suma, pode referir-se a ``um tornar-se coisa'' de algo que não é, por direito, uma coisa. Ou seja, a reificação consiste em atribuir ilegitimamente uma facticidade, uma fixidez, uma externalidade, uma objectividade, uma impersonalidade, uma naturalidade, em suma, uma ``coisidade'' ontológica julgada inapropriada. (Cfr. Frédéric Vandenberghe, Une histoire critique de la sociologie allemande, Paris, La Découverte/Mauss, 1996 pp. 25-28), Nesse sentido, a reificação social tem a ver com o funcionamento relativamente autónomo dos sistemas da cultura e da sociedade modernas, e com a sua transformação em verdadeiros cosmos fechados, funcionando independentemente da vontade dos indivíduos. cfr..Ibid., p. 38. Na medida em que a reificação significa a determinação do indivíduo pelo exterior, pelas macroestruturas da ordem material, significa, pois, a sabotagem da liberdade individual. cfr..Ibid., p. 220.
... adquirida''96
Alfred Schutz, Phenomenology of social world, op. cit., p. 82.
... tipos.''97
Alfred Schutz, ``Type and edos in Husserl's late philosophy'' in Collected papers, vol. III, op. cit., pp. 94-95.
... cognitivo98
Alfred Schutz e Thomas Luckmann, Structures of life-world, op. cit., p. 21-22.
... grupo99
Desde logo, devem referir-se nesta matéria textos fundamentais de Schutz como ``The homecomer'' (Collected papers, vol. II, pp. 106-119) aonde se procede à descrição da estranheza da situação sentida quando do regresso a casa vindo da frente de guerra; ``On multiple realities'' ( Collected papers, vol. I, op. cit., pp. 207-259); ``Don Quijote and the problem of reality'' onde o problema das realidades múltiplas é retomado (Collected Papers, vol. II) ; e até ``The well informed citizen'' (Collected Papers, vol. II, op. cit., pp. 120-134), onde o carácter fluído e susceptível de ser sobreposto e alterado do sistema de relevâncias é demonstrado.
... real100
Burke Thomason, Making sense of reification, op. cit., p. 110.
...ao''101
Alfred Schutz, ``Type and edos in Husserl's late philosophy'' in Collected papers, vol. III, op. cit., p. 231.
... incerteza''102
Alfred Schutz e Thomas Luckmann, The structures of life -world, op. cit., p. 9.
... sub-universos?''103
Alfred Schutz, ``Dom Quijote and the problem of reality'' in Collected Papers, II, op. cit., pp. 157-158.
...ivel 104
.Nesse sentido, apontam os esforços desenvolvidos num notabilíssimo texto por Peter Berger para estabelecer as semelhanças entre Musil - O Homem sem Qualidades - e Schutz, à luz do seu texto ``On Multiple realities''. Nessas semelhanças, Berger encontra dois traços fundamentais: uma abertura essencial a todos os modos possíveis de experiência e uma reflexividade persistente na observação do mundo. Peter Berger, ``The problem of multiple realities: Alfred Schutz and Robert Musil'' in Maurice Natanson (Ed.) , Phenomenology and social reality: essays on memory of Alfred Schutz, The Hague, Martinus Nijjoff, 1970, pp. 213-233.