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Conarius e memória na carta de 1 de abril de 1640 de Descartes a Mersenne

Conarius and memory in the letter from Descartes to Mersenne on April 1, 1640

DOCUMENTOS CIENTÍFICOS

Conarius e memória na carta de 1 de abril de 1640 de Descartes a Mersenne

Conarius and memory in the letter from Descartes to Mersenne on April 1, 1640

Marisa Carneiro de Oliveira Franco Donatelli

Professora doutora do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Santa Cruz. madonat@uesc.br

A carta, cuja tradução é aqui apresentada, situa-se no corpo da volumosa correspondência mantida entre Descartes e Mersenne que se inicia em 1629. Nesse mesmo ano, Descartes, instalado na Holanda, manifesta interesse pelo estudo da medicina. Sua primeira referência ao início dos estudos em anatomia pode ser encontrada na carta a Mersenne de 18 de dezembro de 1629. No ano seguinte, o filósofo mostra-se particularmente preocupado com a doença de Mersenne e declara a sua intenção de construir uma medicina "fundada em demonstrações infalíveis" (AT, I, p. 105-6). Esse projeto, à medida que Descartes avançava em seus estudos, foi sendo alterado, de forma a estruturar uma medicina que considerasse o homem como um composto corpo-alma, e não como puro mecanismo. Nessa concepção de medicina, questões concernentes à glândula pineal têm extrema importância, uma vez que, por meio dela, como será visto mais adiante, Descartes explica como nos movemos e como sentimos.

Na carta de 1 de abril de 1640, Descartes reporta-se a três cartas enviadas por Mersenne, sendo que a primeira trata das declinações magnéticas, a segunda da glândula pineal, da memória e da formação das marcas de nascença, e a terceira refere-se a assuntos variados. O ponto central da carta traduzida é a explicação sobre a glândula pineal e a memória que Descartes dá em resposta a uma carta de Meyssonnier, médico de Lyon, enviada por Mersenne, e que, por sua vez, é uma resposta à carta de Descartes de 29 de janeiro de 1640, na qual o filósofo faz uma série de esclarecimentos a respeito da glândula pineal como sede da alma.

O aspecto mais conhecido das posições defendidas por Descartes diz respeito à sua concepção de homem como um composto corpo-alma. Em outras palavras, o homem é considerado como um conjunto de interações entre o corpo (funções fisiológicas) e a mente (funções psíquicas). Nesse contexto, um importante objeto de estudo, na prática da dissecação, é o cérebro. O estudo da estrutura do cérebro é fundamental para Descartes, uma vez que em seu interior está situada "a sede do senso comum, isto é, do pensamento, e, por conseqüência, da alma", como ele afirma em carta a Mersenne de 24 de dezembro de 1640. Essa sede é identificada à glândula pineal (conarium): assim, essa glândula atuaria na intermediação entre as informações vindas do corpo e a alma, provocando as reações adequadas às situações, às quais cada uma dessas reações remete. Essa identificação da glândula pineal com a sede do senso comum está ligada a um assunto muito em voga nos tratados médicos da época: a localização das faculdades mentais num centro único do cérebro (cf. Donatelli, 1999).

Na teoria cartesiana, a glândula pineal está no centro da explicação dos movimentos e das sensações, que são explicados a partir do movimento dos espíritos animais e dos nervos que os transportam. Os movimentos dos músculos são explicados por meio da inserção dos espíritos nos nervos; tais movimentos são variáveis de acordo com a quantidade de espíritos que aí entram. A origem do movimento dos espíritos e do sangue encontra-se na ação do coração, em outras palavras, o princípio corporal dos movimentos de nossos membros consiste no fogo cardíaco que, segundo a concepção cartesiana, é mantido pelo sangue das veias1 1 Descartes, Les passions de l'âme, art. VIII (AT, XI, p. 333). . Os nervos podem ser considerados o eixo da teoria do movimento, pois funcionam como condutores. A respeito deles, Descartes faz três considerações. A primeira, referente à medula, que é a substância interna que se estende em forma de pequenos filetes, a partir do cérebro, de onde se origina, até as extremidades dos membros; a segunda diz respeito às membranas que envolvem esses filetes, contíguas às do cérebro, que são como condutos nos quais esses filetes estão encerrados; e a terceira concerne aos espíritos animais que são levados por esses condutos do cérebro para os músculos. Os filetes permanecem estendidos, de forma que se algo move uma parte de qualquer um deles, esse movimento será comunicado à parte do cérebro de onde vem.

Os objetos excitam movimentos nos nervos que os transmitem ao cérebro e daí retornam ao ponto afetado, provocando as sensações. Esses movimentos são involuntários, dependentes, portanto, somente dos espíritos animais nas ramificações nervosas que inflarão um músculo, enquanto o outro permanece desinflado. Assim, quando um corpo é afetado por um objeto qualquer, os pequenos filetes dos nervos, provenientes do interior do cérebro, são movidos por ele, e esse movimento é comunicado ao cérebro, isto é, esses filetes comunicam o movimento à parte do cérebro da qual procedem e, dessa forma, abrem as entradas de certos poros da superfície interna do cérebro; por esses poros os espíritos animais, que estão nas concavidades, vão para os nervos e músculos, fazendo com que o corpo se mova de alguma maneira. É dessa forma que Descartes nos fornece uma explicação dos estímulos exteriores que provocam os diferentes movimentos dos membros e compõem o mecanismo das percepções sensoriais.

Na base de todo o processo de locomoção e percepção do homem estão os espíritos animais, partículas produzidas por um processo de filtragem entre as partes mais sutis do sangue que são transportadas pelas carótidas. Por esse processo, somente as partes mais agitadas e mais sutis do sangue chegam às concavidades do cérebro. Dessa forma, os espíritos são produzidos no cérebro e daí vão para os nervos, que são considerados pequenos condutos por meio dos quais os espíritos escoam, possibilitando tanto a locomoção como a sensação.

A localização da glândula pineal é um ponto importante para a compreensão do papel preponderante que ela ocupa na fisiologia mecanicista cartesiana. Situada no centro do cérebro (como já é afirmado desde o Tratado do homem (1632?), passando pela Dióptrica, discurso V (1637), pela correspondência – principalmente a partir de 1640 – , chegando às Paixões da alma de 1649) e sustentada por artérias2 2 L'homme (AT, XI, p. 179); carta a Meyssonnier, 29.1.1640 (AT, III, p. 20). , o que possibilita sua mobilidade, Descartes afirma que essa localização anatômica a torna muito especial, uma vez que ela dá as condições de unificar as sensações que chegam duplicadas dos órgãos do sentidos até a superfície do cérebro.

Quanto à memória,3 3 Esse assunto é tratado em vários textos, tais como L'homme, Description du corps humain e Méditations métaphysiques (cf. Draaisma, 1999, p. 220-3). Descartes constrói uma teoria fisiológica, na qual a teoria mecânica da percepção desempenha papel fundamental. Os objetos, ao excitarem o corpo, conforme foi afirmado, deixam vestígios na superfície do cérebro4 4 Cf.; L'homme (AT, XI, p.177-9); carta a Meyssonier, 29.1.1640 (AT, III, p.19-20). comparáveis às dobras que podem ser feitas no papel (a Meyssonier, 29.1.1640). Desta forma, são traçadas figuras na superfície do cérebro que se relacionam com os objetos, com intensidade variável. Os espíritos animais transportam a informação, depositando-a na substância do cérebro, e estão na base dos traços deixados na parte interna do cérebro que constitui a sede da memória para Descartes (AT, XI, p. 177). Esse processo de formação das imagens na superfície pode ser pensada da seguinte maneira: a glândula tem a superfície convexa e o cérebro tem a superfície côncava. Assim como num espelho, os espíritos são refletidos da imagem formada na glândula; imagem que possui uma estrutura geométrica traçada pelos poros (pequenos canais) que compõem a superfície do cérebro. Os raios incidem na superfície côncava do cérebro e passam para a superfície convexa da glândula, onde a imagem é defletida, dirigindo a resposta dos espíritos, como num processo de refração. Dessa forma, os espíritos "têm força (...) de dobrar e dispor diferentemente os pequenos filetes" (AT, XI, p. 177), que constituem essa parte do cérebro, "e as diferentes aberturas dos tubos por onde passam, de modo que traçam, assim, figuras que se relacionam às dos objetos" e, dessa forma, deixam traços que se conservam de tal modo que as figuras podem ser formadas de novo, sem a necessidade da presença do objeto (AT, XI, p. 178). A referência às espécies encontrada nessa carta a Mersenne, segundo a qual a memória contém espécies, aparecerá mais tarde nas Meditações (1642), mais precisamente nas Quartas Respostas (AT, VII, p. 246; AT, IX, p. 191; cf. Aucante, 2000, p. 263-4), mas em nenhum dos dois textos há algum esclarecimento que ultrapasse o que se encontra no texto aqui traduzido, ou seja, a afirmação segundo a qual não há necessidade de relação de semelhança entre as espécies e as coisas que são o objeto da lembrança, como a tradição escolástica defendia, uma vez que elas passam a integrar a explicação mecânica que remete ao Discurso Quarto da Dióptrica. Essa abordagem leva ao distanciamento entre a concepção cartesiana de memória e aquela defendida pela tradição escolástica. Além dessa memória material, da qual os animais também são dotados, Descartes defende a existência de uma memória intelectual nos homens, que se volta para os conceitos. A questão da memória será abordada, de forma mais detalhada, na carta a Mesland de 2 de maio de 1644 (AT, IV, p. 110-20). Nessa carta, Descartes estabelece a distinção entre as duas modalidades de memória, associando a memória intelectual a vestígios deixados no pensamento e que independem das coisas materiais. Na explicação desse tipo de memória, não há como sustentar uma redução mecanicista, uma vez que os vestígios não são mais deixados no cérebro, como ocorre com as coisas materiais, mas no pensamento5 5 Cartas a Mersenne, 11.6.1640/6.8.1640 (AT, III, p. 84-5; p. 143). .

Um outro assunto, mencionado na carta a Mersenne, recorrente na obra cartesiana e muito comum no século XVII, diz respeito à formação dos sinais de nascença (marques d'envie). Segundo a explicação vigente, e que se encontra em vários textos de Descartes,6 6 Carta a Mersenne, 27.5.1630 (AT, I, p. 153); Generatio animalium (AT, X, p. 518); Partes similares, Excrementa et Morbi (AT, XI, p. 606); carta a Mersenne, 30.7.1640 (AT, III, p. 120); Dioptrique – discours V (AT, VI, p. 129). o sangue que alimenta o feto pode estar impregnado das idéias que estão na imaginação da mãe, formando os sinais no corpo do feto, ou, ainda, como é mencionado na Generatio animalium, a imaginação conturbada da mãe pode fazer com que o feto receba membros monstruosos, uma vez que, de acordo com a embriologia cartesiana, o movimento do coração é o responsável pela formação dos membros exteriores. Descartes menciona esse assunto como forma de estabelecer um paralelo com a urina dos hidrófobos. Segundo ele, não passa de invenção o relato segundo o qual a urina de pessoas mordidas por cães raivosos apresenta figuras de pequenos cachorros, porém se isso for confirmado, e desde que Meyssonnier informe que as tenha observado bem distintamente, esse caso pode ser comparado às marcas que as crianças recebem dos desejos das mães.

Em 1640, com o Discurso do método e os Ensaios publicados, com o tratado L'homme inacabado, e com as Meditações sendo impressas, Descartes já possui todos os elementos estruturantes de sua teoria médica, que será tema de muitas cartas até o final de sua vida. A defesa que Descartes faz, no Discurso, de uma filosofia prática que seja útil à vida, encontra sua última elaboração na definição da filosofia por meio da imagem da árvore que consta da carta-prefácio dos Princípios da filosofia. A utilidade está ligada aos ramos da árvore que constituem as ciências que se voltam para a vida. É assim que se caracteriza a medicina já afirmada no Discurso como o objetivo dessa filosofia prática, uma vez que a partir dos princípios da física chega-se a um conhecimento daquilo que é útil à vida, sendo que

"a conservação da saúde (...) é, sem dúvida, o primeiro bem e o fundamento de todos os outros bens desta vida" (AT, VI, p. 62).

Isso significa afirmar a primazia da medicina nessa busca por um aperfeiçoamento das práticas humanas. Para Descartes, a verdade teórica só tem valor à medida que se volta para a prática, ou seja, ela se apresenta com a finalidade de trazer benefício para o homem. A metafísica, dessa forma, aponta para uma prática, passando pela elaboração da física que mostra a sua aplicabilidade no desenvolvimento da mecânica, da moral e da medicina, isto é, no desenvolvimento de áreas ligadas à ação humana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Primária

2. Secundária

  • DESCARTES, R. Oeuvres de Descartes 12 vols. Ed. de C. Adam & P. Tannery. Paris, Vrin /Centre National du Livre, 1996. (AT)
  • _______. Opere scientifiche de René Descartes Ed. de G. Micheli. Turim, UTET, 1988.
  • AUCANTE, V. Descartes: écrits physiologiques et médicaux Paris, PUF, 2000.
  • DONATELLI, M. C. de O. F. "A fisiologia e as paixões em Descartes". In: Cadernos de História e Filosofia da Ciência, 9, 1-2, 1999, p. 7-31.
  • DRAAISMA, D. Die Metaphermaschine: eine Geschichte des Gedächtnisses. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1999.
  • 1
    Descartes,
    Les passions de l'âme, art. VIII (AT, XI, p. 333).
  • 2
    L'homme (AT, XI, p. 179); carta a Meyssonnier, 29.1.1640 (AT, III, p. 20).
  • 3
    Esse assunto é tratado em vários textos, tais como
    L'homme,
    Description du corps humain e
    Méditations métaphysiques (cf. Draaisma, 1999, p. 220-3).
  • 4
    Cf.;
    L'homme (AT, XI, p.177-9); carta a Meyssonier, 29.1.1640 (AT, III, p.19-20).
  • 5
    Cartas a Mersenne, 11.6.1640/6.8.1640 (AT, III, p. 84-5; p. 143).
  • 6
    Carta a Mersenne, 27.5.1630 (AT, I, p. 153);
    Generatio animalium (AT, X, p. 518);
    Partes similares, Excrementa et Morbi (AT, XI, p. 606); carta a Mersenne, 30.7.1640 (AT, III, p. 120);
    Dioptrique – discours V (AT, VI, p. 129).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2003
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