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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.27 Canoas jun. 2008

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

A seca enquanto um hazard e um desastre: uma revisão teórica

 

The drought while a hazard and a disaster: a theoretical review

 

 

Eveline Favero**; Vivien DieselI,***

I Universidade Federal de Santa Maria. Departamento de Educação Agrícola e Extensão Rural

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pretende-se situar através da revisão da literatura atual o fenômeno seca na discussão mais ampla sobre riscos, hazards e desastres, salientando sua relevância na perspectiva dos teóricos da mudança climática. A partir da classificação do fenômeno como um hazard e um desastre, apresentam-se suas características fundamentais do ponto de vista físico, diferenciando-o de escassez hídrica. A guisa de conclusão, faz-se indicações de possíveis desenvolvimentos teórico-práticos objetivando contribuir com a temática, a qual transpõe os aspectos da descrição física, uma vez se encontra diretamente relacionada ao fator humano. Desse modo, o desastre seca é do interesse também do campo da Psicologia, especialmente na área de atuação em desastres.

Palavras-chave: Pseca, Hazards, Desastres.


ABSTRACT

We intend to place through the review of the current literature the drought phenomenon in the wide discussion toward the risks, hazards and disasters, standing out their importance on the perspective of the climate changes theoretical. From the phenomena classification like hazards and disasters, we show their fundamental characteristics on the physical point of view, differentiating them from the water shortage. As a conclusion, there are indications of possible theoretical-practical developments being aimed to contribute to this subject development that leads to aspects of a physical description, being directly related to the human factor. This way, the drought disaster is of the Psychology camp interest too especially in areas where these disasters happen.

Keywords: Drought, Hazards, Disasters.


 

 

Introdução

Atualmente, tanto no âmbito social quanto científico, há uma crescente preocupação em relação aos impactos negativos dos desastres "naturais"1 e, dentre eles, a seca. Estudos atuais projetam cenários de maior ocorrência de extremos climáticos e de eventos intensos como secas, veranicos, vendavais, tempestades severas, inundações, etc., para as próximas décadas. De acordo com o documento do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (NAE, 2005), a base destas projeções encontra-se na mudança do clima que tem se manifestado nas últimas décadas por meio de um destacado aquecimento global2.

O mesmo documento refere que os países em desenvolvimento como o Brasil encontram-se mais vulneráveis à mudança do clima, em função de terem historicamente menor capacidade de responder a sua variabilidade natural:

O Brasil é, indubitavelmente, um dos países que podem ser duramente atingidos pelos efeitos adversos das mudanças climáticas futuras, já que tem uma economia fortemente dependente de recursos naturais diretamente ligados ao clima na agricultura e na geração de energia hidroelétrica. Também, a variabilidade climática afeta vastos setores das populações de menor renda como os habitantes do semi-árido nordestino ou as populações vivendo em área de risco de deslizamentos em encostas, enxurradas e inundações nos grandes centros urbanos. (NAE, 2005, p. 18)

No entanto, é importante salientar as ponderações que constam no Guia de Informações sobre Mudanças Climáticas (Mudanças Climáticas, 2002), ou seja, de que ainda não é possível quantificar com precisão os prováveis impactos futuros da mudança climática sobre qualquer sistema particular em tal e tal lugar. Isso se deve ao fato de que as projeções de mudança do clima em âmbito regional são incertas e o conhecimento dos atuais processos naturais e socioeconômicos são geralmente limitados, além de que muitos sistemas estão sujeitos a diferentes pressões interdependentes.

Porém, mesmo diante de um cenário de incertezas, autores como Yamin, Rahman e Huq (2005) referem que algumas conclusões preliminares recomendam um alto nível de atenção política para a mudança climática. Os autores entendem que tal mudança configura-se numa séria ameaça em curso para o bem-estar global e para o desenvolvimento, e que, especialmente, sobrecarrega o fardo daqueles que já são pobres e vulneráveis.

Em face dessas considerações, o presente artigo propõe-se, inicialmente, a situar a temática da seca no horizonte amplo de discussão teórica sobre riscos, hazards e desastres. Discute-se, então, a relevância da temática para o campo da Psicologia, uma vez que, a questão dos desastres envolve necessariamente a relação do homem com seu ambiente.

 

Riscos, hazards e desastres

A temática dos riscos, na literatura sobre desenvolvimento social, é abordada em diferentes trabalhos do Banco Mundial. Autores como Heitzmann, Canagarajah e Siegel (2002), Holzmann, Sherburne-Bens e Tesliuc (2003) e Hoogeveen, Tesliuc e Vakis (2005), por exemplo, em seus trabalhos partem do reconhecimento de que existe uma série de eventos de origem diversa, que podem ameaçar indivíduos, grupos ou até sociedades inteiras. Consideram que tais fatores, denominados riscos, necessitam ser mais bem conhecidos para que medidas apropriadas sejam tomadas, a fim de evitar a sua ocorrência, reduzir ou, ao menos, amenizar seus impactos sociais negativos.

Tais autores mencionam a existência de diferentes tipos de riscos: riscos naturais, riscos à saúde, riscos do ciclo-vital, riscos sociais, riscos econômicos, riscos políticos e riscos ambientais, classificando a seca enquanto um risco natural.

Para Hoogeveen e cols. (2005), os riscos diferem quanto a sua origem, podendo ser naturais (como inundações) ou resultantes da atividade humana (como os conflitos). Podem afetar indivíduos de maneira isolada ou não, nos âmbitos regional, nacional ou até internacionalmente, além de apresentarem-se com freqüência variável. Diferem ainda por seus impactos no bem-estar, podendo atingir dimensões catastróficas. Além disso, nem sempre é possível identificar qual é o evento de risco principal presente em determinado contexto, pois eles costumam acontecer concomitantemente.

O fenômeno seca enquanto risco natural é tradicionalmente estudado pela geografia. No entanto, atualmente vem ganhando a atenção crescente das ciências sociais bem como de outras áreas do conhecimento devido à relevância da temática.

De acordo com Marandola e Hogan (2004), para os geógrafos, "risco" refere-se a uma situação que está no futuro e que traz incerteza e insegurança. Assim, há regiões de risco ou regiões em risco. Já, hazard é um evento natural socialmente danoso, o fenômeno em si, que surge do contínuo processo de ajustamento entre o sistema humano e eventos naturais. Então, estar em risco é estar suscetível à ocorrência de um hazard, de um evento com potencial para danos sociais (Marandola & Hogan, 2004).

Embora a Teoria dos Hazards, desenvolvida do ponto de vista geográfico, enfatize seus aspectos naturais, o modelo de análise sistêmico derivado da Ecologia Humana, reconhece que os hazards são elementos do ambiente físico, prejudiciais para o homem: "Um hazard constitui uma ameaça para a sociedade. Pode-se dizer que um hazard existe somente porque as atividades humanas se encontram expostas a forças naturais. Portanto, um hazard é composto de uma dimensão natural e uma dimensão social" (Mattedi & Butzke, 2001, p. 09).

Para Mattedi e Butzke (2001), os hazards, na perspectiva física e humana, podem ser definidos como uma complexa rede de fatores físicos que interagem com a realidade cultural, política e econômica da sociedade. Eles têm sido classificados e ordenados de acordo com processos desencadeadores: meteorológicos, hidrológicos e geológicos. Porém, mesmo agrupados, possuem pouca similaridade entre si. Por exemplo, seca e inundação são da mesma categoria (hazards hidrológicos), no entanto, suas origens, formas de manifestação e impactos são bastante diferenciados.

Os estudos dos hazards nos remetem à temática dos desastres. A Teoria dos Desastres enfatiza especialmente os aspectos sociais, no que diz respeito aos efeitos da ocorrência de um hazard. De acordo com Mattedi e Butzke (2001), por desastre entende-se a realização de um hazard, ou seja, um desastre é o acontecimento de um evento danoso, o qual pode ser súbito, inesperado ou extraordinário. Em termos sociológicos, o termo reporta-se a um acontecimento, ou a uma série de acontecimentos, que alteram o modo de funcionamento rotineiro de uma sociedade.3 No que diz respeito aos aspectos teóricos "o estudo dos hazards refere-se à análise dos efeitos potenciais provocados pela interação de fatores físicos e humanos, enquanto a Teoria dos Desastres resulta da análise dos efeitos reais provocados pela eclosão do fenômeno" (Mattedi & Butzke, 2001, p. 15).

A importância dos estudos dos desastres não está apenas em sua dimensão natural, mas principalmente por suas conseqüências num contexto social específico, uma vez que, quando um mesmo fenômeno ocorre em contextos sociais diferenciados acaba por ocasionar também diferentes resultados (catastróficos ou não). Assim, "um desastre exprime, invariavelmente, a `materialização da vulnerabilidade social' em desastres, por isso o agente desastre não pode ser considerado como um fator externo ou independente do contexto social" (Pelanda, citado por Mattedi & Butzke, 2001, p. 13). Outros autores também enfatizam este aspecto:

O aumento do número de desastres nos últimos anos, face a condições geofísicas relativamente estáveis, indica que o aumento da vulnerabilidade está intimamente conectado com o crescente processo de subdesenvolvimento e de marginalização social: desastre é visto como resultado da interface de uma população marginalizada e um ambiente físico deteriorado. (Susman & cols., citados por Mattedi & Butzke, 2001, p. 14)

Vale salientar que, um evento geofísico extremo quando não afeta atividades humanas, não constitui, de acordo com Mattedi e Butzke (2001), um hazard. O que o caracteriza é, especialmente, seu potencial para causar danos no contexto social. Sendo assim, as teorias dos hazards e desastres buscam explicar a relação de interdependência que se estabelece quando um evento físico potencialmente destrutivo (dimensão natural) atinge um contexto social vulnerável (dimensão social).

 

A seca enquanto um hazard e um desastre

Primeiramente cabe diferenciar seca e escassez hídrica. Esta última pode ser ocasionada pela seca, no entanto, ao contrário desta, pode ser também artificialmente criada. A escassez é, segundo Pereira, Cordery e Iacovides (2002), um desequilíbrio temporário da oferta de água, que pode ser devido à sobre-exploração de águas profundas e superficiais, à degradação da qualidade da água associada, freqüentemente, com o inadequado uso do solo e com o comprometimento da capacidade de armazenamento de água do ecossistema.

A escassez hídrica é comumente definida como uma situação na qual a disponibilidade de água em um país ou em uma região está abaixo de 1000 m3 por pessoa por ano (Pereira & cols., 2002). No entanto, segundo os autores, muitas regiões no mundo experimentam escassez muito mais severa, vivendo com menos de 500 m3 por pessoa por ano. Porém, uma disponibilidade de 2000 m3 por pessoa por ano já pode indicar que uma região está com estresse hídrico, desde que sob essas condições as populações enfrentem grandes problemas quando uma seca ocorre (escassez natural) ou quando a escassez é artificialmente produzida (desertificação e problemas de gestão de recursos hídricos). Ainda, a escassez não se refere apenas à quantidade, mas também a indisponibilidade devida à qualidade da água.

A seca, por sua vez, é um desequilíbrio temporário na disponibilidade de água. Porém, o desequilíbrio causado pela seca é sempre natural, embora a ação do homem possa intensificá-lo.

Conceitualmente, a seca,

[...] consiste numa persistente precipitação abaixo da média, com freqüência, duração e severidade incertas, devido à imprevisibilidade ou dificuldade de se prever sua ocorrência, resultando na diminuição da disponibilidade de água e na redução da capacidade de armazenamento do ecossistema. (Pereira & cols., 2002, p. 06)

Pereira e cols. (2002) reconhecem que é difícil adotar um conceito que descreva bem o fenômeno seca. Alguns autores preferem adotar uma definição operacional para distinguir entre secas hidrológicas, agrícolas e meteorológicas, o qual focaliza, usualmente, num indicador variável de interesse primário, que pode ser a precipitação (seca meteorológica), umidade do solo (seca agrícola), desempenho do fluxo dos rios ou níveis de água do solo (seca hidrológica e seca da água do solo). Assim, é comum que os agrônomos usem a palavra seca para definir uma condição de estresse hídrico que afeta o crescimento e o rendimento de cultivos agrícolas.

Outras características deste hazard são importantes de serem salientadas. Segundo Pereira e cols. (2002), as secas caracterizam-se por seu início lento e são usualmente reconhecidas somente quando estão totalmente estabelecidas. Costumam ser de longa duração e afetar grandes áreas. Tais características geralmente têm implicações importantes, pois dificultam a implantação de estratégias de minimização de seus impactos.

A seca é um hazard porque é um evento natural socialmente danoso, de ocorrência imprevisível quanto ao seu início e seu término bem como quanto a sua severidade e de recorrência reconhecida. Ela é considerada um desastre porque corresponde à falência no regime de precipitação, causando perturbação no abastecimento do ecossistema agrícola e natural, bem como em outras atividades humanas (Pereira & cols., 2002).

Os impactos sociais da seca podem ser diversos e podem lhe dar a proporção de um desastre, além de que seu início lento e final indefinido tornam difícil selecionar medidas defensivas e ações reparadoras. Pereira e cols. (2002) colocam que quando uma enchente ocorre muitos sinais são óbvios e medidas oportunas podem ser tomadas, usualmente com o suporte da opinião pública, pois o desastre é facilmente reconhecido por todos. No caso de uma seca os elementos do desastre tornam-se evidentes muito tarde, somente quando o fenômeno já está instalado. Além disso, tais impactos perduram por um longo tempo após a seca ter terminado, particularmente quando há despreparo para lidar com ela, podendo levar o desastre a tomar a dimensão de uma catástrofe (calamidade).

Desse modo, um melhor conhecimento deste hazard hidrológico torna-se essencial para o desenvolvimento de ferramentas que possam prever seu início e fim e planejar, de maneira oportuna e apropriada, medidas para se lidar com ele.

 

A psicologia e o estudo dos desastres

O estudo dos desastres pela psicologia está atualmente situado nos campos da Psicologia Ambiental e, mais especificamente, da Psicologia das Emergências e dos Desastres.

A Psicologia Ambiental enquanto disciplina, vêm buscando enfatizar teoricamente a influência do ambiente nas pessoas, bem como a influência destas no ambiente, seja este último construído ou natural (Bell, Greene, Fisher & Baum, 2001). Desse modo, no que tange aos desastres a relação homem x ambiente é de fundamental importância, uma vez que existe entre ambos uma relação de reciprocidade.

A Psicologia dos Desastres, por sua vez, envolve as diferentes esferas de atuação do psicólogo nas situações de ocorrência de emergências e desastres, no estudo dos seus impactos psicológicos nos indivíduos e grupos, bem como, no trabalho de prevenção a desastres e no auxílio às vítimas de modo a reconstruir suas vidas no pós-desastre. Enquanto área do conhecimento, embora recente no Brasil, contempla uma ampla bagagem de investigações e construtos teóricos que datam desde princípios do século XX, e que evoluíram de estudos descritivos e individuais para trabalhos de corte sociológico e estatisticamente significativos, até propostas de técnicas específicas de intervenção (Álamo, 2007).

Embora possam ser encontrados na literatura trabalhos na área dos desastres datando do início do século XX, foi nos anos 50 que surgiram os primeiros estudos de enfoque sociológico e psicossocial. Tais pesquisas têm tratado no âmbito individual e social, das conseqüências psicológicas relativas às calamidades, demonstrando que os desastres podem causar estresse emocional, dentre outras conseqüências negativas na saúde mental dos afetados (Coêlho, 1997). Para Vitaliano e cols., citados por Coelho (1997), os desastres deveriam ser interpretados como estressores coletivos devido ao número de envolvidos nas conseqüências dos seus impactos.4

Por desastre, na perspectiva psicológica, compreende-se "um transtorno grave, ecológico e psicológico, que excede a capacidade da comunidade afetada para enfrentar o evento" (World Health Organization, WHO, citada por Coêlho, 1997, p. 64). Estas considerações indicam que ao se avaliar a exposição a estressores como os desastres, deve-se levar em conta tanto o trauma individual baseado em perdas pessoais, quanto a extensão em que uma comunidade foi destruída ou afetada.

Embora, prevaleça de um modo geral no estudo dos desastres a sua dimensão física, ou seja, os impactos sociais decorrentes da magnitude de um evento, teóricos como Bell e cols. (2001) destacam que as conseqüências de um desastre, especialmente as psicológicas, estão estreitamente relacionadas à percepção dos indivíduos e grupos, relativa ao evento em si. Isso não significa que o estresse gerado por um desastre não esteja relacionado às restrições impostas por este, bem como às dificuldades de convivência e adaptação ao problema, mas que para que o processo de estresse se inicie é necessário ocorrer uma percepção cognitiva de que há uma ameaça, sendo esta suficiente para desencadear uma resposta de estresse mesmo que o evento físico nunca aconteça (Bell & cols., 2001). Assim, um dado evento ambiental pode ou não ser um estressor em todas as circunstâncias, e em iguais circunstâncias ele pode ser um estressor para um determinado indivíduo enquanto para outros não.

Para Bell e cols. (2001), existem três formas de avaliar cognitivamente um desastre, as quais determinam o modo como indivíduos e grupos reagem a ele: a avaliação pode ter seu foco nas perdas - em geral perda rápida de recursos está relacionada com estresse traumático, de acordo com Hobfoll, citado por Bell e cols. (2001), -, ou dizer respeito a perigos futuros (a disponibilidade para antecipar dificuldades potenciais permite prevenir sua ocorrência, mas pode causar uma experiência antecipatória de estresse), ou ainda a avaliação poderá considerar o estressor como um desafio, o que levará o indivíduo a manter o foco na superação deste.

Desse modo, a forma de perceber um fenômeno e reagir a ele depende de fatores psicológicos individuais (recursos intelectuais, motivações, experiências prévias), de aspectos cognitivos relativos ao fenômeno em si (percepção sobre a possibilidade de controle sobre o estímulo, previsibilidade, intervalo de tempo até a manifestação do impacto), de variáveis ambientais e sociais, entre outras (Bell & cols., 2001).

Destaca-se ainda que a percepção de possibilidade de controle é um importante moderador do estresse, possibilitando um sentimento de capacidade de reagir adequadamente, prever eventos e determinar o que irá ocorrer. A informação prévia sobre o evento, por sua vez, aumenta a percepção de controle deste e reduz a avaliação de ameaça feita quando o estressor é experimentado (Bell & cols., 2001).

No que diz respeito às respostas psicossociais frente aos desastres, Coêlho (1997) coloca que algumas investigações têm mostrado que uma multiplicidade de variáveis estão envolvidas no êxito com o qual os indivíduos e grupos enfrentam os estressores resultantes dos desastres, tais como a exposição a estressores, a vulnerabilidade e os recursos psicológicos e sociais que possuem.

Variáveis como as citadas anteriormente são apresentadas no modelo psico-epidemiológico descrito por Vitaliano e cols., citados por Coelho (1997), no qual o estresse é definido como uma resposta biopsicossocial relacionada à exposição a estressores, assim como a fatores moderadores. Quanto a estes últimos, na exposição aos desastres dois grupos de variáveis têm sido identificados: vulnerabilidade, ou seja, características individuais e sociais que fazem os indivíduos mais susceptíveis a incidentes estressantes e ao estresse, (como, por exemplo, herança genética e pertencer a algum grupo de risco) e recursos, tais como, suporte social e coping5, de acordo com Coêlho (1997). A autora destaca que o suporte social, do ponto de vista de diferentes teóricos, pode modificar a relação entre estressores e estresse. Se ele for adequado, possui propriedades preventivas, enquanto que se ele for inadequado, pode ser um fator de risco para enfermidades. Os estudos têm evidenciado, também, que as redes de apoio social podem funcionar como fonte de informação e mediação de modo a facilitar o processo de gerenciar desastres, já que, de acordo com Freitas e Montero (2003) nelas se produz o intercâmbio contínuo de idéias, serviços e modos de fazer, de maneira que as pessoas encontram nelas apoio e refúgio além de recursos, o que pode ser de grande relevância no enfrentamento de situações extremas como desastres.

Já, os recursos psicológicos referem-se aos estilos psicológicos e cognitivos individuais e às respostas de comportamento. O coping é considerado entre os investigadores como um grupo de ações usadas para lidar com o estresse, que inclui tanto a avaliação da situação, quanto a avaliação dos recursos disponíveis para lidar com ela. A nova tendência das investigações é de analisar coping como um processo que se modifica de situação para situação, muito mais do que como uma característica estática (Coêlho, 1997).

No Brasil, estudos como os de Coêlho, Adair e Mocellin (2004), além de Favero (2006) e Krum (2007) evidenciam que indivíduos e grupos afetados por desastres naturais acabam por desenvolver algum tipo de resposta psicológica. O primeiro, realizado no Estado do Paraíba, encontrou níveis significativamente mais elevados de ansiedade e estresse emocional nos indivíduos residentes na área da seca em comparação com os que habitam em área não afetada pelo desastre (Coêlho & cols., 2004). No entanto, não houve incidência de estresse pós-traumático na população afetada pela seca, como os autores já presumiam.

O segundo estudo, realizado na zona rural do município de Frederico Westphalen-RS, identificou a vivência de sentimentos de desproteção, impotência e insegurança pelas famílias afetadas pelas freqüentes secas, originados pelo despreparo e a falta de recursos para lidar com as inúmeras perdas ocasionadas pelo fenômeno (Favero, 2006). É importante salientar que as famílias estudadas consideraram a ajuda de familiares, vizinhos e do próprio Estado como um importante fator de amenização para os impactos da seca, ou seja, o suporte social é evidenciado como um aspecto favorável no enfrentamento do desastre.

Na mesma direção, o terceiro estudo, relativo às respostas emocionais de indivíduos de uma comunidade gaúcha afetados por um tornado, resultou no estabelecimento de categorias de coping que incluíram busca por suporte social, resolução de problemas, evitação, apoio na religião e busca por significado diante da experiência do evento, fatores estes considerados fundamentais na amenização do sofrimento vivenciado pelos sobreviventes do desastre (Krum, 2007).

Somando-se aos estudos mencionados, encontram-se na literatura sobre desastres pesquisas relativas a desastres ambientais induzidos pela ação humana, como os desastres tecnológicos, por exemplo. Dentre eles, destaca-se um estudo de caso de vazamento de óleo que trouxe conseqüências significativas e de longa duração a nativos e pescadores comerciais do Alasca, ao que Gill (2007) denominou de "impactos sociais de natureza crônica" (p. 01). Tal denominação se deve ao fato de que dezessete anos após o desastre que ocorreu em 1989, ainda persistiam danos ecológicos combinados com impactos crônicos de cunho cultural, psicológico, social e econômico e que continuavam a afetar a comunidade que dependia diretamente dos recursos naturais danificados pelo vazamento de óleo, ou seja, da atividade de pesca. Dentre as conseqüências mais significativas do desastre estão os altos níveis de estresse nos indivíduos afetados e a fragmentação social da comunidade quando comparados a outros grupos que habitam a mesma região e que não tiveram suas atividades afetadas pelo vazamento. Tais resultados se devem especialmente ao declínio das condições econômicas das famílias pela perda de recursos e a demora do Estado em liberar dinheiro para indenizar a vítima (Gill, 2007).

Embora, estudos revelem que a ocorrência de um desastre de qualquer natureza e em qualquer situação seja suficientemente significativa para gerar instabilidade na vida das pessoas, pelo fato de perturbar diretamente suas atividades cotidianas (Thornburg & cols., 2007), é comum que indivíduos ou comunidades afetados declarem-se despreparados frente à ocorrência de um evento dessa magnitude, de modo que suas conseqüências acabam sendo geralmente graves a ponto de se tornarem crônicas, vindo a afetar diferentes esferas da vida das famílias como a psicológica, a social, a econômica e a cultural, por exemplo.

Cabe observar que muitas das pesquisas relativas às reações psicológicas aos desastres referem-se às situações de grande impacto social. No que diz respeito à seca, por suas características de lentidão ao se instalar, as respostas psicológicas dos indivíduos a ela, bem como as atitudes sociais, acabam por se diferenciar em relação aos outros desastres. Nesse sentido, necessita-se ainda de estudos que possam demarcar tais diferenciações, de modo que as intervenções no campo da psicologia em situações de desastres possam também se dar de modo diferenciado.

Para compreender melhor a situação dos indivíduos expostos a seca, faz-se necessário considerar que o grau de estresse efetivamente vivenciado e sua persistência resultará não apenas do evento em si, mas de uma combinação de fatores que inclui a vida pessoal e social, bem como o grau de dependência das condições climáticas para o desenvolvimento de suas atividades econômicas e rotineiras. Bosch (2004) salienta que a agricultura (natural), por si só, é uma ocupação estressante devido a fatores como a dificuldade de controlar as condições climáticas, podendo ainda o seu potencial estressor ser elevado pelas condições de seca.

Em um estudo realizado no Nebraska (EUA) por Bosch (2004) ficou constatado que durante períodos de secas prolongadas ocorrem mudanças na relação entre os casais de agricultores, especialmente no que diz respeito à comunicação. O homem passa a conversar menos com sua esposa e surgem sintomas de estresse e depressão principalmente naquele indivíduo que é o chefe da família. As secas forçam as famílias a tomarem decisões como abandonar plantações, migrar ou fazer empréstimos. As gerações mais novas têm mais dificuldades financeiras para enfrentar períodos prolongados de seca, o que faz com que comumente migrem para buscar trabalho nas grandes cidades.

Tais dados ilustram que os desastres como a seca podem afetar a condição psicológica dos agricultores, trazendo conseqüências em sua vida pessoal e social, o que justifica que a psicologia venha a dedicar-se ao estudo não apenas daqueles desastres de grande impacto social, mas também daqueles que se instalam lenta e silenciosamente como a seca, e que nem por isso são menos devastadores.

 

Considerações finais

A partir do que foi exposto, ao se tratar da temática da seca, adentra-se necessariamente na discussão sobre riscos, hazards e desastres. Nesse contexto, são encontrados estudos que descrevem tanto as características físicas dos riscos naturais, bem como enfatizam o potencial danoso dos hazards ao interagirem com o ambiente social, como a perspectiva dos geógrafos. Somando-se a eles, a Teorias dos Desastres, desenvolvida do ponto de vista sociológico, trata dos impactos reais da ocorrência de um hazard em determinado contexto social, sendo que tais impactos sociais não dependem apenas das características físicas do fenômeno (como intensidade, duração e freqüência), mas também da vulnerabilidade do contexto social em que eles ocorrem.

Já, outro conjunto de estudos chama a atenção para os fatores psicológicos que se encontram envolvidos nos desastres, o que faz desta temática também de interesse para o campo da psicologia.

Apesar da importância da temática da seca para a psicologia, uma vez que esta pode infligir sofrimento psicológico nos indivíduos e grupos expostos ao fenômeno, especialmente os mais vulneráveis, ainda não se encontra vasta discussão na literatura, em relação aos outros desastres. Tais achados talvez possam ser explicados pelo que Pereira e cols. (2003) destacam, de que por ser um desastre que se instala lentamente, a seca acaba por não causar tanto impacto social como uma enchente, por exemplo. Desse modo, a atenção ao desastre fica mais restrita a esfera econômica, já que as perdas agrícolas são as que adquirem maior saliência durante e após a ocorrência do evento. No entanto, a seca é um desastre que resulta em uma cadeia de privações para os afetados, e conseqüentemente, em intenso sofrimento psicológico.

Acredita-se que com o surgimento da área da psicologia das emergências e dos desastres no Brasil, tais estudos venham a ser estimulados, de modo a contribuir com o desenvolvimento da mesma e a oferecer subsídios para políticas no campo de prevenção e intervenção em desastres.

Por fim, há que se desmistificar a concepção ainda em voga de que os desastres ditos "naturais" fogem totalmente ao controle humano. Ainda que estes sejam relativamente imprevisíveis e que humanamente não se consiga evitar sua ocorrência o que leva os afetados a sensação de perda de controle, sabe-se que a dimensão de suas conseqüências (catastróficas ou não) depende e muito das ações do homem sobre o ambiente, as quais podem e devem contribuir para reduzir sua vulnerabilidade social aos riscos ambientais. Conhecendo tal realidade, a psicologia não poderia deixar de oferecer sua valiosa contribuição, juntamente com outros campos do saber envolvidos na temática, na tarefa de construir comunidades humanas mais seguras bem como auxiliando-as no enfrentamento e recuperação frente a situações extremas.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: evelinefavero@yahoo.com.br

Recebido em maio de 2007
Aceito em dezembro de 2008

 

 

** Eveline Favero: psicóloga; mestre em Extensão Rural (UFSM).
*** Vivien Diesel: engenheira florestal; professora adjunta do Departamento de Educação Agrícola e Extensão Rural.
1 De modo a diferenciar quanto à sua origem, pode-se denominar como desastres naturais aqueles resultantes da ocorrência de hazards, ou seja, eventos físicos perigosos (fenômenos naturais como secas, tornados, furacões, etc.) em áreas de interesse humano. No entanto, nem todos os desastres são naturais. Muitos deles são originados pela ação humana no ambiente, como os desastres tecnológicos, por exemplo, que ao afetar o ecossistema (plantas, animais incluindo os humanos, e demais recursos naturais) são denominados de desastres ambientais. Vale lembrar que, mesmo quando considerados naturais, muitos desastres só chegam à proporção de uma catástrofe devido à intervenção humana inadequada no ambiente, o que torna este mais vulnerável a eventos danosos.
2 A temperatura média global do planeta elevou-se 0,6 a 0,7 graus Celsius (ºC) nos últimos 100 anos, com acentuada elevação desde a década 1960-70. Há um razoável consenso de que o aquecimento global observado nos últimos 100 anos é provavelmente explicado principalmente pelas emissões antropogênicas dos Gases de Efeito Estufa (GEE) e não por eventual variabilidade natural do clima (Houghton e cols., in NAE, 2005).
3 O desastre como fator de alteração dos ritos de uma sociedade é abordado em trabalho recente de Thornburg, Knottnerus e Webb (2007).
4 É importante mencionar que autores como Bell e cols. (2001) colocam que as "conseqüências" de médio e longo prazo de um desastre nem sempre são negativas na medida em que sua ocorrência pode determinar o aumento da solidariedade social, por exemplo. Entende-se que tais observações tornam o estudo dos desastres especialmente instigante.
5 Autores como Antoniazi, Dell'Aglio e Bandeira (1998) e Yunes (2003) colocam que a palavra coping é geralmente utilizada no original em inglês para referir-se a esforços cognitivos e comportamentais para lidar com demandas específicas de situações adversas e avaliadas como sobrecarregando ou excedendo os recursos pessoais. A palavra é geralmente mantida em seu original em inglês, pelo fato de não ser encontrada outra que ofereça o mesmo sentido em português. Coping pode significar "lidar com", "enfrentar" ou "adaptar-se a".
* O artigo deriva da dissertação de mestrado intitulada “A seca na vida das famílias rurais de Frederico Westphalen-RS” de autoria de Eveline Favero, Curso de Pós-Graduação em Extensão Rural/UFSM.

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