Acessibilidade / Reportar erro

HEIDEGGER E A APREENSÃO FENOMENOLÓGICA DA CONSCIÊNCIA RELIGIOSA

HEIDEGGER AND THE PHENOMENOLOGICAL APPREHENSION OF THE RELIGIOUS CONSCIOUSNESS

RESUMO

Trata-se aqui de detalhar o exame fenomenológico que Heidegger opera sobre a consciência religiosa. Na obra Fenomenologia da Vida Religiosa, a análise heideggeriana das Epístolas Paulinas serve para, acima de tudo, demonstrar o devido uso do método fenomenológico. Na obra em questão, Heidegger clarifica as características primordiais da vida religiosa ao detalhar a postura existencial de Paulo de Tarso. Portanto, o artigo visa examinar a postura metodológica heideggeriana quanto ao estudo do fenômeno da religiosidade a fim de demonstrar que a descrição fenomenológica da vivência místico-religiosa cristã serve como momento crucial na obra de Heidegger por anteceder as teses presentes em Ser e Tempo (1927).

Palavras-chave:
Heidegger; Fenomenologia; Religião; Teologia

ABSTRACT

The paper details Heidegger’s phenomenological exam of religious consciousness. In The Phenomenology of Religious Life, the Heideggerian analysis of the Pauline Epistles serves, above all, as a way to demonstrate the proper use of the phenomenological method. In this case, Heidegger clarifes the primordial characteristics of religious life by detailing Paul of Tarsus’s existential stance. Therefore, we explain the Heideggerian methodological stance regarding the study of religion and demonstrate that the phenomenological description of the Christian mystical-religious experience serves as a crucial moment in Heidegger’s philosophy because it precedes that which is found in Being and Time (1927).

Keywords:
Heidegger; Phenomenology; Religion; Theology

Introdução

A obra Fenomenologia da Vida Religiosa (2014) constitui o volume 60 da Gesamtausgabe heideggeriana e consiste em uma compilação formada por textos de Heidegger e de anotações de seus alunos que giram em torno da análise fenomenológica da religião. O artigo concentra-se no curso ministrado entre os anos de 1920 e 1921, no qual Heidegger expõe o método fenomenológico e o aplica às Epístolas Paulinas. Desse modo, como veremos em detalhes, a preocupação nuclear de Heidegger ao analisar a postura existencial cristã é, acima de tudo, demonstrar o uso do método fenomenológico e sua capacidade de elucidação da vida fática. Ao lidar com as questões práticas e éticas do contexto do cristianismo primitivo a partir da hermenêutica do texto de Paulo de Tarso, Heidegger visa elucidar aquilo que ele chama de experiência originária da religiosidade.

O objetivo de Heidegger, em suma, é apresentar uma “investigação fenomenológica da consciência religiosa” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 289), de tal modo que a vida fática que subjaz o fenômeno religioso seja tomada “em sua compreensão fenomenológica originária” (idem). Em outras palavras, trata-se de demonstrar, a partir da análise das Epístolas Paulinas, o tipo de vivência fenomenológica que caracteriza o ethos cristão originário para, desse modo, elucidar a postura religiosa em geral e, consequentemente, o Dasein.

Há uma dupla importância no estudo desta obra: não só ela serve como exemplo ímpar para o entendimento do método fenomenológico e daquilo mais tarde aprofundado em Ser e Tempo (1927), como ela representa, simultaneamente, o ápice e o término da pesquisa heideggeriana sobre a fenomenologia da religião propriamente dita. É claro que Heidegger nunca deixa de mencionar questões acerca da vivência religiosa em suas obras ulteriores, porém, é somente aqui que o tema ganha preponderância. Outro ponto a ser notado é que a obra visa, em última instância, à apresentação do uso devido do método fenomenológico no âmbito da consciência religiosa, ou seja, “Deve-se separar de maneira precisa: o problema da teologia e o problema da religiosidade” (ibid., p. 295). Para Heidegger, a atitude fenomenológica em relação à religião não deve lidar com questões de cunho teológico. Como diz Caruzo (2013)CARUZO, M. A. “Religião sem Deus: contribuição do jovem Heidegger para a filosofia da religião”. Revista Sacrilegens, Juiz de Fora, Vol. 10, Nr. 1, pp. 33-45, 2013., a fenomenologia religiosa que Heidegger opera “parte da religiosidade, dada na experiência originária da vida fática, e não nos constructos teórico-dogmáticos, e nessa experiência a especulação acerca de Deus e sua natureza não cabem” (Caruzo, 2013CARUZO, M. A. “Religião sem Deus: contribuição do jovem Heidegger para a filosofia da religião”. Revista Sacrilegens, Juiz de Fora, Vol. 10, Nr. 1, pp. 33-45, 2013., p. 44). A análise do cristianismo primitivo na figura de Paulo, portanto, não é teologia nem história da religião, mas apenas um meio para se fazer fenomenologia, como fica claro em uma carta para Elisabeth Blochmann, na qual Heidegger confrma seu foco investigativo à época: “Meu próprio trabalho está muito concentrado, principal e concretamente, em: problemas fundamentais da metódica fenomenológica” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 325). Uma fenomenologia da religião, então, dispensa disputas sobre provas lógicas do teísmo ou teses acerca da necessidade de um primeiro motor imóvel etc. No papel de fenomenólogo, Heidegger argumenta que, ao se estudar a religiosidade, “O ponto de partida para a filosofia é a experiência fática da vida” (ibid., p. 15, grifo do autor). Com isso, o que interessa é a religião como vivência e não como conjunto de teses teológicas.

No que se segue, não temos a intenção de oferecer nem uma interpretação dogmática ou teológica-exegética, nem tampouco um estudo histórico ou uma meditação religiosa, mas oferecer tão-somente uma introdução à compreensão fenomenológica. [...] O método teológico está fora de nossas considerações. (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 61)

Partindo daí, a descrição fenomenológica da consciência religiosa chega mesmo a dispensar a postulação da existência de Deus. Para Heidegger, a postura filosófica por excelência deve ser ateia, daí sua recusa de qualquer filosofia que tenha como intuito a defesa de uma dada visão religiosa. Sobre a filosofia cristã, por exemplo, é conhecido seu posicionamento quando afirma que “não existe algo assim como uma filosofia cristã: uma filosofia cristã é pura e simplesmente um ‘ferro de madeira’” (Heidegger, 2008, p. 77). Desse modo, a análise fenomenológica apropriada pressupõe um ateísmo metodológico.

Em sua questionabilidade radical, que se coloca sobre si mesma, a filosofia tem de ser principalmente ateísta. Justamente por causa de sua propensão fundamental, não pode arrogar-se o direito de ter de definir a Deus. Quanto mais radical ela for, tanto mais determinadamente ela é um afastar-se (weg von) dele, portanto, precisamente na execução radical desse ‘afastar-se’, é um junto ‘a ele’ próprio e difícil. No mais, não pode ficar especulando a respeito, mas tem sua própria coisa a fazer. (Heidegger, 2011, p. 219)

Esse distanciamento metodológico, como detalharemos a seguir, é crucial para entendermos a atitude fenomenológica heideggeriana na investigação do fenômeno da religiosidade. Dito isso, o artigo – dividido em duas partes – visa, em primeiro lugar, expor o método fenomenológico a partir do exame heideggeriano da consciência religiosa e, por fim, demonstrar a descrição fenomenológica da vivência místico-religiosa cristã a partir das Epístolas Paulinas.

I.

Segundo Alves e Teles (2017)ALVES, M. A., TELES, A. K. “Fenomenologia e Religião: uma leitura do livro ‘Fenomenologia da Vida Religiosa’ de Heidegger”. Ekstasis: revista de hermenêutica e fenomenologia, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nr. 21, pp. 06-11, 2017., “O que Heidegger apresenta realmente a seus alunos no curso de Freiburg não é uma fenomenologia da religião, mas uma fenomenologia da vida fática” (p. 10, grifo dos autores), isto é, o discípulo de Husserl discute a Wesen do fenômeno da facticidade ao aplicar o método fenomenológico no detalhamento da experiência existencial cristã: “O importante para Heidegger não é o momento da experiência de Deus, mas a compreensão própria do ser daquele que possui esta experiência religiosa” (ibid., pp. 10-11, grifo dos autores). Para tanto, Heidegger oferece-nos uma exegese da Epístola aos Gálatas e das duas Epístolas aos Tessalonicenses a fim de examinar não a existência do Deus específico atrelado a tal vivência, mas a religiosidade originária enquanto tal. O caráter ético-existencial da vida fática de um cristão no contexto do cristianismo primitivo, pois, revela-nos a própria consciência religiosa em geral. Porém, antes de chegarmos à análise heideggeriana propriamente dita, vejamos sua exposição do método fenomenológico.

Em Os Problemas Fundamentais da Fenomenologia (2012b), Heidegger afirma que “querer aspirar a uma filosofia científica é uma incompreensão, pois a visão de mundo filosófica deve ser naturalmente científica” (Heidegger, 2012b, p. 15). É com isso em mente que se deve compreender que a análise fenomenológica das Epístolas Paulinas ou de qualquer outro tópico que interesse à fenomenologia sempre pauta “o aspecto científico da esfera da vivência” (id., 2014, p. 289). Ao apontarmos a defesa heideggeriana do caráter científico do fazer-filosofia não fazemos de modo gratuito, pois essa é a definição mesma da filosofia segundo o Heidegger da década de 1920 e devemos tê-la em mente ao tratarmos das questões de fenomenologia da religião. Isso não quer dizer que filosofia e ciência sejam equivalentes, mas que a filosofia deve ser cientificamente embasada. A filosofia, portanto, deve adotar uma conduta que esteja em harmonia com a ciência e “levar em conta os resultados das diversas ciências e empregá-los na construção da imagem de mundo e na interpretação do Dasein; ela deve ser científica, na medida em que realiza rigorosamente a formação da visão de mundo segundo as regras do pensamento científico” (id., 2012b, p. 16). Partindo dessa acepção, Heidegger pode definir – apoiado na ciência – o caráter primordial do fenômeno religioso, a saber, os conteúdos místicos da consciência: “A psicopatologia e a etnologia mostram que o fenômeno primordial de todas as religiões é a mística, a vivência de unidade com Deus” (id., 2014, p. 27). Tal unidade, quando incorporada de fato, encaminha a consciência fenomênica ao sagrado ou divino, entendido aqui, em termos gerais, como o aspecto transcendental que fixa as bases existenciais do verdadeiro, do ético e do belo: “O sagrado só pode ser determinado pelo compêndio de normas lógicas, éticas e estéticas” (ibid., p. 300). Com isso, é notável que, no período que precede qualquer formalização teórica ou institucional de uma religião, predomine a vivência mística em que se percebe, por exemplo, “a ausência de nomes para Deus” (ibid., p. 301). Portanto, a consciência religiosa em seu período, digamos, embrionário, diz respeito à admissão do verdadeiro, do bom e do belo pela via mística que atinge o transcendental. O conteúdo místico da consciência religiosa, portanto, significa a fundamentação de uma Weltanschauung, isto é, uma cosmovisão que, posteriormente, encontrará na institucionalização da religião sua formalização.1 1 William James, um dos diversos autores citados por Heidegger durante a preleção que aqui estudamos, também assume essa mesma posição na obra Varieties of Religious Experience: A Study in Human Nature (1902), reforçando assim a análise heideggeriana: “Pode-se dizer verdadeiramente, creio eu, que experiências religiosas individuais possuem sua raiz e seu centro em estados místicos de consciência” (James, 2002, p. 294). Tais estados místicos, diz James, podem ser atingidos de diversas formas: revelação, rituais, meditação, penitência e até mesmo pelo uso de substâncias químicas modificadoras de consciência. No entanto, seja qual for a via de acesso, o resultado geral é, de certo modo, invariável: a experiência mística consiste no vislumbre daquilo que fundamenta o Ser em suas variadas instâncias, abrindo caminho para a instauração de uma Weltanschauung e de um ethos.

A experiência de conteúdos místicos, então, é suficiente para descrever a consciência religiosa? Heidegger afirma que “A autonomia da vivência religiosa e de seu mundo deve ser vista como uma intencionalidade totalmente originária, com um caráter de exigência totalmente originário” (ibid., pp. 306-307), entretanto, apesar de sua originalidade, a postura religiosa continua a ser mais um dos aspectos da vida fática, forçando-nos a abranger a investigação. E é nisso que reside a peculiaridade do estudo heideggeriano. O filósofo alemão busca na apreensão fenomenológica da consciência religiosa um meio de demonstrar como o uso do método estabelecido por Husserl é capaz de desvelar a facticidade do Dasein. Como diz Caruzo, Heidegger “busca na religião mesma, isto é, na experiência fática da vida religiosa, elementos para construir sua filosofia. Os elementos para sua filosofia são dados pelos relatos religiosos” (Caruzo, 2013CARUZO, M. A. “Religião sem Deus: contribuição do jovem Heidegger para a filosofia da religião”. Revista Sacrilegens, Juiz de Fora, Vol. 10, Nr. 1, pp. 33-45, 2013., p. 40). Heidegger, pois, busca compreender a vivência originária da temporalidade a partir da consciência religiosa. Daí que, antes de qualquer definição do que seja o fenômeno religioso, Heidegger quer compreender a vida concreta do Dasein enquanto-ser-religioso, isto é, “Primeiro é preciso que se examine a religião em sua realidade factual antes de acercar-se dela com uma determinada visão filosófica” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 31). Portanto, para além do aspecto místico, a compreensão da vivência religiosa se dá no exame da facticidade.

Pensar a existência humana como Dasein (Heidegger, 2015), como se sabe, significa afastar-se das descrições ocidentais clássicas que definem o homem a partir, por exemplo, do cogito cartesiano, da racionalidade aristotélica, do livre-arbítrio como dom divino agostiniano etc. Deve-se, na verdade, partir do fato de que “A experiência da vida é mais do que a mera experiência de tomada de conhecimento” (ibid., p. 15). Como fenomenólogo, Heidegger assume que “O ponto de partida e o escopo da filosofia é a experiência fática da vida” (ibid., p. 20), pois, para o filósofo de Messkirch, “‘fenomenologia’ [...] deve significar, para nós, o mesmo que filosofia” (ibid., p. 10). Com isso, qualquer categorização prévia do fenômeno religioso é, por princípio, incoerente com o método fenomenológico, já que a investigação do ser-aí deve, na medida do possível, dispensar definições que, de antemão, direcionem a apreensão da facticidade. O que a vida religiosa nos revela, portanto, é o próprio caráter pré-reflexivo de apreensão do mundo efetivada pelo Dasein que, como diz Heidegger a seguir, deve ser compreendida como uma intencionalidade que fundamenta um conjunto de vivências.

Conceitos como “psíquico”, “conjunto de atos”, “consciência transcendental”; problemas como o relacionado ao “conjunto corpo e alma” – todos eles não representam mais nada para nós hoje. Eu experimento a mim mesmo na experiência fática da vida ou como conjunto de vivência, ou como conglomerado de atos, não como qualquer coisa de eu-objeto em sentido determinado, mas naquilo que faço, no que me acompanha e sucede, no que me faz padecer, em meus estados de depressão e elevação, entre outros. Eu mesmo, em momento algum, experimento meu eu em separado, mas já sou e estou sempre preso ao mundo circundante. Esse autoexperimentar-se [Sich-Selbst-Erfahren] não é uma ‘reflexão’ teórica, não é uma ‘percepção interior’ entre outras, mas experiência do mundo próprio [...] Esse autoexperimentar-se é o único ponto de partida possível para uma psicologia filosófica na medida em que, em geral, seja possível postulá-la. (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., pp. 17-18, grifo do autor)

A religião não é um ato operado por uma mente calculante ou racionalizadora. Ela não é uma categoria a ser definida para, posteriormente, servir como critério de classificação de seitas, instituições, textos, rituais, práticas etc. Tais coisas obviamente fazem parte de um estudo historiográfico ou antropológico das religiões, mas a análise propriamente filosófica, isto é, fenomenológica – já que “A fenomenologia mesma não é uma ciência prévia da filosofia, mas a filosofia mesma” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 25) – pretende compreender a vivência mesma da postura existencial assumida por um indivíduo ou grupo: “a história das religiões presta um auxílio prévio importante, embora todos os seus resultados e conceitos necessitem de uma destruição [Destruktion] fenomenológica” (ibid., p. 70, grifo do autor). Quando detalharmos a hermenêutica heideggeriana das Epístolas Paulinas, tal metodologia ficará mais clara. Por ora, continuemos a demonstrar o tipo de investigação que a fenomenologia de origem husserliana adotada por Heidegger proporciona à investigação da vida fática e como a consciência religiosa pode por ela ser compreendida.

A fenomenologia deve, inicialmente, abster-se de categorias que possam vir a deturpar o fenômeno a ser descrito. Apesar de ainda estarmos no âmbito da descrição do método, vejamos como Heidegger define a postura que se deve adotar para a análise do cristianismo primitivo que veremos detalhadamente mais adiante:

A compreensão fenomenológica não consiste primeiramente numa introjeção do que deve ser compreendido [...] Metodologicamente, procede-se de uma maneira mais segura quando se coloca formalmente a determinação fundamental. Deixam-se os conceitos intencionalmente numa certa instabilidade, para então assegurar sua definição no curso da consideração fenomenológica mesma. Nesse sentido, colocamos inicialmente como determinação da religiosidade cristã originária o seguinte: 1) A religiosidade cristã originária consiste na experiência fática da vida [...] 2) A experiência fática da vida é histórica. (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 74, grifo do autor)

Em outras palavras, a instabilidade de conceitos significa que, em um primeiro momento, Heidegger advoga pelo esforço da simples descrição do ponto de vista existencial cristão (facticidade e historicidade). O que se pretende atingir com isso é o detalhamento da experiência fenomênica para além de qualquer categorização prévia, ou seja, “A genuína filosofia da religião não surge de conceitos previamente elaborados da filosofia da religião, mas, sobretudo, de uma determinada religiosidade – para nós, a cristã – seguida pela possibilidade de sua apreensão filosófica” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 111). Não se trata, portanto, de pensar o que seja religião para, em seguida, encontrar os traços de tal categoria no exame de exemplos particulares, como o cristianismo. A atitude fenomenológica deve, na medida do possível, reconstruir o horizonte hermenêutico que brota da adoção ou construção de uma determinada Weltanschauung, como no caso de Paulo de Tarso.2 2 John D. Caputo, um dos principais filósofos heideggerianos a continuar a estudar o fenômeno da religião, deixa transparecer sua influência quando define a religião de modo análogo ao alemão: “Por ‘religioso’, quero dizer a estrutura básica da experiência humana [...] Não limito a religião a algo confessional ou sectário, como ser um muçulmano ou um hindu, um católico ou protestante, embora apresso-me a acrescentar que as grandes religiões do mundo são importantes e sem elas perderíamos rapidamente de vista categorias religiosas e práticas, o que significa que nós perderíamos algo básico. E mais uma vez, precisamos nos lembrar, o sentido religioso da vida nunca significaria apenas uma coisa para todos, como se tivesse algum tipo histórico comum, estrutura universal, transcendental. Procuro me livrar de pensar desse jeito sobre qualquer coisa” (Caputo, 2001, p. 9). Para uma recente compreensão da leitura de Caputo acerca de Heidegger no âmbito da fenomenologia da religião, Cf. Ullrich. “On Caputo’s Heidegger: A Prolegomenon of Transgressions to a Religion without Religion” (2020). Desse modo, o intuito heideggeriano é, acima de tudo, fazer uma fenomenologia religiosa que aponte para a vivência ou intencionalidade temporal que provém de uma dada postura existencial. A análise da consciência religiosa, pois, é um meio de colocar o método fenomenológico em prática, a fim de desvelar a temporalidade constitutiva do Dasein, ou seja, trata-se aqui da tese nuclear aprofundada mais tarde em Ser e Tempo. Como diz Caruzo (2013)CARUZO, M. A. “Religião sem Deus: contribuição do jovem Heidegger para a filosofia da religião”. Revista Sacrilegens, Juiz de Fora, Vol. 10, Nr. 1, pp. 33-45, 2013.,

Quando o filósofo [Heidegger] trata da religião seu objetivo é acessar fenomenologicamente a experiência originária daquele que vive a religiosidade e, em última análise, não são os desdobramentos da experiência religiosa que o interessa, mas a vivência originária da temporalidade. Isso corresponde à coerência interna ao pensamento heideggeriano, à tentativa de não acessar a religião por meio de um arcabouço teórico pré-elaborado. (Caruzo, 2013CARUZO, M. A. “Religião sem Deus: contribuição do jovem Heidegger para a filosofia da religião”. Revista Sacrilegens, Juiz de Fora, Vol. 10, Nr. 1, pp. 33-45, 2013., pp. 43-44).

O lema husserliano (‘voltar às coisas mesmas’) é seguido à risca pelo seu mais notório pupilo quando se lê a indagação seguinte: “Voltemo-nos para a vida religiosa ela mesma, de um modo metodológico autêntico e puro: quais são as camadas de fundo, as formas, as mobilidades que surgem aí? Como se constitui essa vida?” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 291). A investigação, pois, concentra-se no fenômeno e não naquilo que se pretende extrair via categorias preestabelecidas. O ponto, então, é sobre a instância do real a ser descrita e apreendida pelo método fenomenológico, a saber, a experiência fenomênica da temporalidade a partir de uma dada religiosidade. Com isso, Heidegger diz que não devemos pensar em termos de objeto [Objekt] e objeto [Gegenstand] do fenômeno religioso, já que uma investigação fenomenológica de fato, no fundo, deve perseguir a instância existencial original que fundamenta o próprio conteúdo religioso, isto é, “será preciso começar, de modo puro e livre de prejulgamentos, junto a mobilidades fundamentais e sua gênese motivacional: as realizações de um ‘eu posso’ totalmente originário” (ibid., p. 292). Este ‘eu posso’ originário que serve como gênese existencial de uma consciência místico-religiosa é perceptível na vivência cristã de Paulo que, por sua vez, transparece em suas epístolas. Daí que é precisamente em tais escritos que uma fenomenologia da religião deve se concentrar.

O ‘eu posso’ originário da vida fática é o que interessa a Heidegger, e as cartas paulinas, como veremos, confrmam aquilo descrito por Merleau-Ponty na Fenomenologia da Percepção: “Originariamente a consciência é não um ‘eu penso que’, mas um ‘eu posso’” (Merleau-Ponty, 1999MERLEAU-PONTY, M. “Fenomenologia da Percepção”. São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 192). A descrição do caráter deste ‘eu posso’ antepredicativo ou pré-reflexivo da intencionalidade originária da vida fática é precisamente o núcleo da fenomenologia enquanto tal. Assim como na descrição – presente em Ser e Tempo – da esfera não representacional que caracteriza o uso de utensílios, uma fenomenologia da vida religiosa aproxima-se dessa vivência originária que fundamenta o Umwelt de um ser-no-mundo, ou seja, não a internalização de modelos que visam representar um ‘lá fora’, mas a própria instauração de um campo ou horizonte fenomenológico. Como diz ainda Merleau-Ponty, “o mundo fenomenológico não é a explicitação de um ser prévio, mas a fundação do ser” (ibid., p. 19). O conteúdo religioso, portanto, constitui mais uma das esferas comportamentais que servem como demonstrativo da relação existencial primordial do Dasein.

Se a fenomenologia de Heidegger quer compreender a facticidade por meio da consciência religiosa, quais seriam, então, os indícios formais a serem explicitados? Ainda no âmbito do cristianismo primitivo, Heidegger diz: “é necessário entender a posição fundamental [Grundhaltung] da consciência cristã segundo o sentido de conteúdo [Gehaltsinn], o sentido de referência [Bezugssinn] e o sentido de realização [Vollzugssinn]” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 62). A busca dos três sentidos de tais indícios é o que estabelece, segundo Heidegger, o percurso do método adotado, no qual o sentido de realização ganha destaque.

O método – longe do sentido cartesiano do termo – é o dos indícios formais. Dos três sentidos contidos nos indícios formais – a saber, o sentido de referência, sentido de conteúdo e sentido de realização – é relevante no pensamento heideggeriano destacar o sentido de realização que leva em conta a historicidade em sua dinâmica. [...] O que importa é referir-se à vida mesma (Caruzo, 2013CARUZO, M. A. “Religião sem Deus: contribuição do jovem Heidegger para a filosofia da religião”. Revista Sacrilegens, Juiz de Fora, Vol. 10, Nr. 1, pp. 33-45, 2013., p. 35, grifo do autor).

Os três sentidos, como se pode imaginar, revelam-se pela postura cristã expressa nas Epístolas Paulinas, ou seja, “Todos os conceitos devem ser entendidos a partir do contexto da consciência cristã” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 62). Dito isso, vale ressaltar que, mesmo ao operar um direcionamento formal em sua investigação (com a introdução dos três sentidos mencionados), Heidegger continua a respeitar os preceitos metodológicos da fenomenologia, pois pensar os sentidos de conteúdo, de referência e de realização da consciência cristã não restringe a investigação fenomenológica, apenas indica as esferas intencionais a serem descritas. O que importa, então, é desvelar a conduta existencial geral que surge a partir de tais sentidos.3 3 Devido ao escopo do artigo, detalharemos apenas o sentido de realização. Para um melhor aprofundamento dos três indícios ou indicações formais comentados acima, Cf. HEIDEGGER, M. “Grundprobleme Der Phanomenologie (Wintersemester 1919/1920): 58” (2010).

Essas três direções de sentido (sentido de conteúdo, de referência e de realização) não estão colocadas simplesmente umas ao lado das outras. “Fenômeno” é uma totalidade de sentido segundo essas três direções. A “fenomenologia” que é a explicação desta totalidade de sentido, fornece o ‘λόγος’ dos fenômenos, ‘λόγος’ em sentido de ‘verbum internum’ (não no sentido de logicização). (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 58)

Se o objetivo é descrever o λόγος que surge da vivência originária, percebe-se a inocuidade no uso, por exemplo, de descrições do fenômeno religioso como algo ‘racional’ ou ‘irracional’. Utilizar esse tipo de dicotomia para descrever uma religião ou prática religiosa simplesmente não faz sentido dentro de uma metodologia fenomenológica. Compreender o ponto de vista da consciência religiosa é tentar descrever os sentidos existenciais que fundamentam o comportamento adotado por um indivíduo ou compartilhado por um grupo. Taxar uma experiência mística individual, um ritual ou um texto como racional ou irracional já se configura como um exame que paira sobre o fenômeno ao invés de descrevê-lo do modo mais fdedigno possível: “Atualmente é comum [na história das religiões] atuar com a oposição do par categorial racional e irracional. [...] A compreensão fenomenológica, a partir de seu sentido fundamental, está situada completamente fora dessa oposição” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 71). Como aponta Heidegger, até mesmo a teologia cai em tais erros.

A teologia – especialmente a protestante – sob o influxo do desenvolvimento das ciências históricas do século XIX, tem produzido trabalhos histórico-literários sobre as formas literárias do Novo Testamento. Devemos esperar investigações posteriores com expectativa, embora o ponto de partida esteja totalmente errado tanto historiográfica como fenomenologicamente. É costume aproximar-se das coisas totalmente a partir de fora, situando o conjunto dos escritos neotestamentários dentro da literatura universal para, a partir deles, poder analisar suas formas. Contudo, pode bem ser que as formas do Novo Testamento não difram em nada da literatura contemporânea e, por esta razão, não se deveria proceder assim. Para a análise do caráter epistolar, deve-se partir unicamente da situação paulina e do como da motivação necessária para a comunicação epistolar. A partir do fenômeno fundamental da proclamação, deve-se analisar o conteúdo da proclamação, sua temática e seu caráter conceptual. (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 73)

Em outras palavras, “se por um lado a filosofia não é uma historiologia (ou historiografia) e tampouco teologia, sua ação deve se pautar em outro elemento que não seja o tipológico nem a revelação” (Caruzo, 2013CARUZO, M. A. “Religião sem Deus: contribuição do jovem Heidegger para a filosofia da religião”. Revista Sacrilegens, Juiz de Fora, Vol. 10, Nr. 1, pp. 33-45, 2013., p. 36). O elemento crucial a se pautar, pois, é o fenomenológico. Não se nega, obviamente, a utilidade e a necessidade subsequente das categorizações provenientes das investigações de diferentes áreas do saber (psicologia, sociologia, história, teologia e antropologia), porém, já que a fenomenologia pode ser compreendida como esse eterno recomeço da fundamentação das bases metodológicas e conceituais de uma investigação,4 4 Daí Heidegger associar o esforço husserliano à postura socrática de indagação e exortação: “A verdadeira questão prévia do sentido da terminologia conceptual filosófica não foi mais colocada desde os tempos de Sócrates” (Heidegger, 2014, p. 79). a perquirição dos conteúdos religiosos originários significa a própria descrição da temporalidade que constitui a vivência originária da intencionalidade em seu sentido existencial pré-reflexivo. Desse modo, a análise do cristianismo primitivo de que ora tratamos não é peremptória. O que nos leva ao comentário que Heidegger oferece sobre Ernst Troeltsch, “o representante da filosofia religiosa atual de maior destaque” (ibid., p. 23). Apesar do evidente grau de respeito que Heidegger presta a Troeltsch, a investigação do teólogo trata de percorrer exatamente o percurso que Heidegger nos sugere evitar: “No fundo o que importa a Troeltsch é a metafísica da religião, as demonstrações da existência de Deus. Porém, a demonstração da existência de Deus não é algo originariamente cristão, mas algo que depende da conexão do cristianismo com a filosofia grega” (ibid., p. 30, grifo do autor). Note que, ao tentar definir o cristianismo pela sua metafísica, Troeltsch comete o equívoco de inseri-lo no âmbito do helenismo. Com isso, efetivar uma investigação fenomenológica do cristianismo forçanos a examinar a vivência fenomênica em sua, digamos, crueza, pois, como Heidegger deixa claro, as Epístolas Paulinas não significam a instauração de uma teologia propriamente dita, mas a propagação de uma posição existencial fundacional, algo que obviamente envolve ponderações teológicas, todavia, não constituem seu sentido de realização nuclear ou primordial.5 5 Posteriormente, como se sabe, a incorporação do neoplatonismo efetuada por Agostinho e do aristotelismo por Tomás de Aquino transformaram o cristianismo de tal modo que sua fundamentação teológico-filosófica ganha uma robustez inigualável. Como diz Heidegger, “Por sua aliança com a filosofia antiga, este [o cristianismo] alcançou uma posição vigorosa” (Heidegger, 2014, p. 31). Entretanto, para que fque claro, não se trata de afirmar que o cristianismo eventualmente se tornou um sistema filosófico propriamente dito. Apesar de todos os aspectos racionais e sistemáticos do pensamento teológico-cristão, persiste a linha – por mais tênue que seja – que divide a expressão religiosa da expressão filosófica ou, como diz Heidegger, “Nenhuma religião genuína deixa-se capturar filosoficamente” (ibid., p. 307, grifo do autor). Toda religião, portanto, parte da preponderância da fé. Por mais que elementos filosóficos sejam internalizados ou elaborados, sempre haverá um núcleo dogmático que, por definição, afasta o pensamento religioso da postura filosófica (o que, obviamente, não impede pessoas religiosas de estarem na vanguarda do pensamento filosófico ou científico). No caso do cristianismo, o núcleo dogmático, é claro, consiste na figura de Jesus Cristo e seu caráter divino: “O escândalo da cruz: este é o autêntico elemento fundamental do cristianismo, diante do qual só pode haver fé ou não fé, credulidade ou incredulidade” (ibid., p. 65).

Tentar colocar em parênteses toda a carga do debate teológico ocidental é pressuposto para uma descrição adequada da consciência religiosa, pois, antes de qualquer coisa, “Deve-se demonstrar a experiência religiosa fundamental e, perseverando nela, deve-se compreender a conexão de todos os fenômenos originários dela” (ibid., pp. 66-67), ou seja, somente após um exame do caráter fenomênico que envolve uma dada experiência fenomênica religiosa é que nos achamos aptos para uma categorização positiva de tudo aquilo que jorra de tal vivência originária. Heidegger, como dito, defende o caminho inverso de Troeltsch, pois “Sua [Troeltsch] meta é elaborar uma definição essencial e cientificamente válida de religião” (ibid., p. 23), enquanto que o filósofo pretende apenas descrever a vida fática e o conteúdo místico da consciência para daí então pensar em algo que possa vir a ser chamado de religião. Tal postura fenomenológica, na qual conceitos são momentaneamente dispensados para que não haja um enquadramento da vivência cristã em categorias genéricas preestabelecidas, pode ser compreendida pela tese que Heidegger apresenta sobre a escatologia cristã, da qual trataremos em detalhes mais à frente. Facilmente conectável à mística judaica e outras manifestações religiosas do Oriente Médio, Heidegger, no entanto, sugere que a examinemos de modo singular:

O fenômeno escatológico é considerado histórico-objetivamente na exegese. Costuma-se afirmar que os homens teriam acreditado de antemão de que o fim do mundo estava iminente (milenarismo). Por volta de 120 dC, isso cessou e, mais tarde, o milenarismo renascerá nos movimentos milenaristas medievais e no adventismo moderno. Afrma-se que as ideias milenaristas são determinadas pelo tempo histórico, como se, a partir disso, não tivesse nenhum valor de eternidade. Procura-se provar as ideias escatológicas segundo sua fliação. Por conta disso é-se reconduzido ao judaísmo tardio, inclusive mais adiante, até o velho judaísmo e, finalmente, até as representações veterobabilônicas e irânicas antigas a respeito da destruição do mundo. Com isso acredita-se “ter explicado” Paulo, desprendido de toda vinculação eclesiástica, isto é, acredita-se ter estabelecido o modo no qual Paulo pensava. (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 99)

Dito de outro modo, o método fenomenológico recomenda que se compreenda qualquer fenômeno por meio de uma descrição direta que suspenda o uso das categorias dos paradigmas disponíveis, pois a atitude natural (no sentido de Husserl) é prejudicial em uma análise preambular. Lembremos que uma verdadeira postura fenomenológica nos diz que “Trata-se de descrever, não de explicar nem de analisar. […] É a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é” (Merleau-Ponty, 1999MERLEAU-PONTY, M. “Fenomenologia da Percepção”. São Paulo: Martins Fontes, 1999., pp. 1-3). Desse modo, não podemos tentar compreender fenomenologicamente a escatologia cristã traçando paralelos com outras cosmovisões. Fazer uma fenomenologia da vida religiosa significa adentrar em uma dada facticidade temporal que coloca em parênteses outras manifestações análogas. Novamente, é Merleau-Ponty, em seu prefácio seminal da Fenomenologia da Percepção, que nos esclarece: “a fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua ‘facticidade’” (ibid., p. 1). Somente após a efetivação de tal postura é que, enfim, pode-se partir “para uma consideração de atitude compreensiva e histórico-objetiva” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 199) na qual a escatologia cristã se torna, afinal, passível de categorização, sendo inserida assim em uma dada generalização. O crucial aqui, percebe-se, é que, mesmo com a categorização efetivada posteriormente, a descrição do fenômeno encontra-se inegavelmente mais enriquecida e, com isso, a compreensão que parte da descrição fenomenológica é capaz de estabelecer, em bases mais seguras, o caráter idiossincrático daquilo estudado (no caso, a escatologia cristã pregada por Paulo), permitindo a assimilação da originalidade da vida fática do Dasein enquanto cristão, além de admitir e recomendar o recomeço perene da análise. Como diz Heidegger,

É necessário fixar especialmente uma coisa: que a extração de “conceitos” e de “conteúdos representacionais” e até mesmo sua comparação com os contemporâneos ou os precedentes (greco-helenísticos, judeo-israelitas) são, em princípio, erradas. É um saber em aparência autenticamente científico, porém sobrecarregado pela pressuposição capital de que na experiência cristã trata-se de “conteúdos representacionais”, de “conceitos”. [...] Não devemos adotar a atitude de encontrar coisas ou mera justaposição de coisas e ordená-las todas de acordo com o esquema de nosso pequeno sentido comum. Justamente o ‘caráter’ é o decisivo; mas o importante é – e isso é precisamente o que convém ser mostrado pela investigação fenomenológica – compreender o complexo fenomenológico peculiar da ‘experiência fática da vida’ e, especialmente, o complexo da experiência cristã da vida. (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 119)

Seja a compreensão do complexo da experiência cristã ou da experiência judaica; seja a análise do caráter pré-reflexivo da intencionalidade no uso de um martelo ou a descrição do ser-para-a-morte do Dasein, o que importa para Heidegger é o exame da vida fática. Portanto, vejamos, enfim, o uso do método fenomenológico na análise das Epístolas Paulinas.

II.

Como já está claro, o objetivo geral de Heidegger é “Entender fenomenologicamente Paulo e sua proclamação apostólica e obter dela os complexos de sentido fundamentais da vida cristã” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 115, grifo do autor). Trata-se de expressar fenomenologicamente a vida fática por meio da experiência existencial de uma consciência religiosa específica, ou seja, “a religiosidade cristã reside na experiência fática [...] Desejamos compreender isso a partir da proclamação apostólica de Paulo” (ibid., p. 117, grifo do autor). Veremos, pois, que tipo de apostolado foi efetuado por Paulo para, desse modo, termos um vislumbre de sua fenomenologia religiosa, já que “Tão logo o ‘como’ e o sentido realizador da proclamação apostólica sejam determinados, a proclamação ficará esclarecida no essencial” (ibid., p. 74), ou seja, ocupamo-nos aqui de responder o seguinte: “Que é a realização missionária em sua direção fundamental, em seu motivo e tendência?” (ibid., p. 125, grifo do autor).

Para a compreensão da consciência cristã, Heidegger delimita seu exercício hermenêutico, dada a magnitude do material que compõe o Novo Testamento: “Nossa consideração submete-se a uma só restrição: só se levam em conta as epístolas paulinas” (ibid., p. 11, grifo do autor). Mesmo assim, não são todas as epístolas que Heidegger examina. Das quatorze, apenas três são estudadas pelo alemão: Gálatas e as duas dirigidas aos Tessalonicenses. A partir delas, Heidegger visa “Situar a missão apostólica dentro da vida do mundo compartilhado com os outros” (ibid., p. 117, grifo do autor). Tal ângulo proposto é de suma importância, já que Heidegger percebe o diferencial apostólico de Paulo justamente em sua profunda conexão com as comunidades primitivas cristãs às quais se dirige. Paulo não é apenas um pregador, mas alguém que forma e/ou fortalece comunidades, tornando-se parte integrante delas. Esse é o diferencial crucial de Paulo, pois, em um primeiro momento, poder-se-ia confundi-lo com um orador sapiencial qualquer tão comum à época, pois, ao lermos a Epístola aos Gálatas, diz Heidegger, podemos facilmente nos deparar “com alguns dados que parecem sugerir que Paulo prega uma doutrina e lança exortações como um pregador cínico-estoico ambulante daquela época. Não há nada de especial no modo de sua exposição” (ibid., p. 71). Porém, apesar de traços semelhantes em determinados trechos ou posições, é evidente o salto qualitativo presente no apostolado paulino, pois o contexto situacional que brota entre Paulo e as comunidades é algo de inteiramente original e é precisamente tal situação comunal que o filósofo pretende examinar e apontar como peculiar: “‘Situação’ [Situation] é tomada por nós aqui enquanto termo fenomenológico. [...] Na linguagem corrente, ‘situação’ possui o sentido do estático em si; este sentido secundário deve ser eliminado” (ibid., pp. 81-82). Uma Situation fenomenológica, no fundo, diz respeito ao mundo-compartilhado [Mitwelt], isto é, ao plano simbólico-místico dos primeiros cristãos que fundamenta sua experiência [Erfahrung]. O termo Erfahrung, vale ressaltar, indica a experiência fática das comunidades cristãs como algo que ultrapassa ‘conceitos’ ou ‘representações’. Na verdade, Erfahrung “designa um acontecimento exterior, mas que é apropriado por quem o experiencia. Não há divisão entre sujeito e objeto na experiência. Portanto, ela é ativa e passiva ao mesmo tempo” (Kirchner; Julião, 2016KIRCHNER, R., JULIÃO, C. C. “A fenomenologia da religião heideggeriana e a explicação fenomenológica da Epístola aos Gálatas”. Revista Eletrônica Correlatio, São Bernardo do Campo, Vol. 15, Nr. 1, pp. 171-193, 2016., p. 175). É tal duplicidade ativa/passiva que ocorre na experiência fática pré-reflexiva e que Heidegger visa descrever.

Ao analisar a consciência cristã, Heidegger aponta que “Uma dificuldade é que não podemos nos colocar no lugar de Paulo a partir de nossas representações” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 80). Desse modo, sutilezas linguísticas e temáticas nos textos paulinos devem ser aquilo pelo qual a experiência fenomênica cristã originária se revela. Por exemplo, “Na Epístola aos Gálatas, Paulo encontra-se em luta contra os judeus e os judeus-cristãos. Por isso, deparamo-nos com a situação fenomenológica da luta religiosa [...] É necessário ver Paulo... na luta entre ‘lei’ e ‘fé’” (ibid., p. 62, grifo nosso). A oposição entre lei e fé é tão proeminente nesta epístola que uma devida hermenêutica desvela que Paulo está voltado para a fundação de uma religiosidade distinta e não para uma simples pregação ética direcionada aos gálatas: “Não é a salvação dos gálatas que se intenciona, mas que o cristianismo originário se fundamente a partir de si mesmo sem olhar para as formas religiosas anteriores como a do farisaísmo judaico” (ibid., p. 63). Há na epístola, de ponta a ponta, um claro conteúdo de fissura com o judaísmo. É comum pensar o cristianismo como uma espécie de judaísmo reformado, mas Heidegger, ao reconstruir a vivência fenomênica cristã originária, insiste no caráter de rompimento. Paulo, em suma, visa à “Ruptura total com o passado anterior, com toda concepção não cristã da vida” (ibid., p. 63), pois, em sua experiência fenomenológica como apóstolo de Cristo, é incorporado o pressuposto existencial de que “O tempo presente já alcançou seu fim e com a morte de Cristo já começou uma nova era” (ibid., p. 63). Uma nova era, logo, exige uma nova postura, um novo ethos.

Apesar do esforço de Paulo em advogar por um conteúdo místico tão díspar em comparação ao judaísmo, Heidegger lembra que “a vivência religiosa não é teórica” (ibid., p. 296). Em outras palavras, “é errônea a ideia de um sistema teológico em Paulo” (ibid., p. 66), seu intuito não é o de apresentar uma doutrina teológica completa, mas apontar um novo tipo de conduta existencial fundada na figura de Cristo, aquele que representa não a mera negação da lei, mas sua ultrapassagem: “Considerando que Cristo identificou-se com a lei, a lei morreu com ele” (ibid., p. 64). Daí que, segundo Heidegger, “as doutrinas essenciais de Paulo […] são e permanecem vinculadas ao como, à vida; não se trata de uma doutrina especificamente teórica. [...] a ressurreição e o reconhecimento do filho de Deus como Senhor são a condição fundamental da salvação” (ibid., p. 104, grifo do autor). Há, digamos, um caminho feito ao caminhar na obra apostólica paulina, já que “Seu método demonstrativo não é, de modo algum, uma conexão puramente teórica de fundamentações” (ibid., p. 101), algo que, novamente, entra em harmonia com o tipo de direcionamento investigativo proposto por William James que, em Varieties of Religious Experience, dispensa as análises teológicas das religiões para se concentrar em cartas e textos autobiográficos de pessoas religiosas, a fim de demonstrar o núcleo místico-fenomênico das religiões: “Eu acredito que o sentimento [feeling] é a fonte mais profunda da religião, e que fórmulas filosóficas e teológicas são produtos secundários, como traduções de um texto para outra língua” (James, 2002JAMES, W. “Varieties of Religious Experience: A Study in Human Nature”. London & New York: Routledge, 2002., pp. 333-334). Com isso, percebe-se que a Epístola aos Gálatas refete a virada existencial (não exatamente focada em discussões teológicas) de um ex-judeu que não está tentando atualizar sua Weltanschauung, mas divulgar um novo tipo de consciência religiosa, ou seja, Paulo “chegou ao cristianismo por uma experiência originária e não por uma tradição histórica” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 63). Tal tipo de experiência originária, portanto, deve ser considerado como a fundamentação de toda e qualquer religiosidade por conta de seus desdobramentos existenciais, o que leva Heidegger a adotar um tipo de descrição que toma a religião como uma cosmovisão [Weltanschauung], algo que, reiteramos, evidentemente está próximo daquilo descrito nas obras de autores como William James (2002)JAMES, W. “Varieties of Religious Experience: A Study in Human Nature”. London & New York: Routledge, 2002. e Wilhelm Dilthey (2019)DILTHEY, W. “Selected Works, Volume VI: Ethical and World-View Philosophy”. Princeton: Princeton University Press, 2019.. Ao detalhar as ‘teses’ paulinas, Heidegger toma-as como a fundação de uma religião porque elas constituem uma cosmovisão, ou seja, uma postura existencial que se concretiza pela razão prática. Não é algo a ser demonstrado per se, mas observado nas consequências.

Essas “teses” não podem ser demonstradas, mas devem ser verificadas na experiência fenomenológica, que é algo distinto da experiência empírica. As determinações fundamentais são então hipotéticas: “caso sejam válidas, então o fenômeno apresenta-se como tal e tal”. Primeiramente, consideramos a proclamação apostólica de Paulo. Se ela representa um fenômeno religioso fundamental, deve-se obter dele uma referência a todos os fenômenos religiosos fundamentais. Na realização e por meio da realização, o fenômeno alcança sua explicação. (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 74)

A melhor maneira de demonstrar univocamente que o apostolado paulino é um fenômeno religioso originário se dá na análise das Epístolas aos Tessalonicenses. Fazer isso significa “voltar à experiência originária e compreender o problema da explicação religiosa” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 65), o que nos força a indagar: “Onde começa o fenomenológico?” (ibid., p. 80). O fenomenológico, isto é, a vida fática enquanto tal, é inseparável do “originariamente histórico” (idem). É apenas na vivência fática que se pode compreender o que é a consciência religiosa e não na análise teológica de escrituras sagradas. Com isso, Heidegger aponta um possível estorvo para o objetivo em questão: “Dificuldade: só um homem religioso pode compreender a vida religiosa, pois nos outros casos ele não teria dados autênticos” (ibid., p. 291). Porém, o alemão logo rejeita tal objeção ao defender que “A compreensão fenomenológica originária [...] traz consigo as possibilidades de ingresso nos diversos mundos da vivência e das formas” (idem). Apesar de todas as óbvias limitações na compreensão da vivência cristã primitiva, a hermenêutica das epístolas é capaz de fornecer-nos dados autênticos que podem reproduzir o ponto de vista fenomenológico dos primeiros cristãos. Heidegger pretende adentrar o mundo-compartilhado [Mitwelt] de Paulo e dos tessalonicenses que, evidentemente, nos é inacessível em termos representacionais, mas passível de compreensão via hermenêutica do texto paulino. Desse modo, o primeiro ponto a ser explanado é o tipo de conexão que há entre Paulo e os tessalonicenses.

Inicialmente, transparece o fato de que, “Ao escrever, Paulo os vê como aqueles em cujas vidas ele mesmo entrou” (ibid., p. 83). Se pensarmos em Paulo de modo histórico-objetivo, o principal apóstolo do cristianismo, como observado acima, aparentemente não passará de mais um pregador entre tantos outros do Oriente Médio, mas a diferença de sua pregação é a genuína correlação estabelecida com os cristãos do período primitivo: “Se expusermos isso histórico-objetivamente, Paulo aparecerá como missionário, que fala como um pregador ambulante comum, sem maiores alardes” (ibid., p. 78). No entanto, Paulo estabelece um outro tipo de relação com esses homens de tal modo que se chega ao ponto em que “A vida de Paulo depende da firmeza da fé dos tessalonicenses. Ele se entrega totalmente ao destino dos tessalonicenses” (ibid., pp. 86-87), ou seja, não há aqui aquele tipo de pregador itinerante tão abundante na Antiguidade; não se trata de um homem que oferece teses éticas a pessoas diversas ao mesmo tempo que mantém uma distância segura que o deixe apartado daqueles que o ouvem; ao contrário, o destino de Paulo confunde-se com o dos tessalonicenses. Sua própria vida está conectada aos desdobramentos de tal comunidade: “os tessalonicenses são para ele esperança” (ibid., p. 87). Tal postura, entre outras coisas, ajuda a compreender a gigantesca influência evangelizadora do antigo judeu de Tarso. Nós estamos lidando aqui com uma figura inegavelmente distinta, alguém que expressa em sua conduta um compromisso existencial inabalável para com a comunidade de Tessalônica, algo expresso em diversas partes da epístola em questão: “Essas passagens deixam ressoar como os tessalonicenses são para Paulo, porque ele mesmo e eles estão mutuamente unidos a seu ter-se-tornado” (ibid., p. 83). Esse vínculo conduz Heidegger a afirmar que, “para Paulo, os tessalonicenses possuem uma importância absoluta” (ibid., p. 87), pois a continuidade e o fortalecimento da fé nas comunidades primitiva são, digamos, o combustível que Paulo necessita para dar continuidade à missão de fundação de uma nova religiosidade.6 6 Lembremos que a Epístola aos Gálatas e a primeira Epístola aos Tessalonicenses são os escritos mais antigos de Paulo. Há ainda discussão sobre qual teria sido a primeira carta redigida, porém, é inquestionável que ambas marcam o início de seu período missionário e traduzem bem o caráter do cristianismo primitivo.

Heidegger deixa claro que a escolha das Epístolas Tessalonicenses se justifica por elas permitirem a compreensão do grau de conexão que havia entre Paulo e os primeiros cristãos. A consolidação da fé é crucial para a continuidade da atividade apostólica, fazendo que uma postura cristã surja desse estreito laço, o que comprova a observação heideggeriana de que Paulo não é um pregador isolado ou um guru errante, mas uma figura mística fundante que, em conjunto com os primeiros féis, constrói uma fenomenologia religiosa compartilhada, pois, segundo Heidegger, é característico da vida fática o estar-com [Mitsein], a partilha de pressupostos existenciais, linguísticos etc. Como diria Merleau-Ponty, “O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade” (Merleau-Ponty, 1999MERLEAU-PONTY, M. “Fenomenologia da Percepção”. São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 18). Nessa esteira, Heidegger diz que “Os tessalonicenses são pessoas de um saber ainda imaturo, de modo que ele (enquanto apóstolo) deve querer que também eles o saibam” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 129). Como se vê, não há em Paulo elemento algum de cunho gnóstico ou esotérico, pois o objetivo é o estabelecimento de laços comunitários profundos pela clarificação e disseminação da fé cristã. Desse modo, não há distanciamento, mas predomínio do estar-com [Mitsein], algo que ultrapassa o modus operandi dos demais pregadores da época. No fundo, o que os une é a “experiência cristã da vida” (ibid., p. 84), experiência esta que, no tempo de Paulo, está marcada por uma “tribulação absoluta” (idem), a saber, a Parusia ou Segundo Advento. O período que antecede o retorno de Cristo é, invariavelmente, tempo de sacrifício, algo que une Paulo às comunidades primitivas pela sua visível autenticidade na incorporação do martírio cristão, como veremos.

Após a compreensão da relação entre Paulo e os tessalonicenses, vejamos a situação do apóstolo: “Qual a situação na qual se encontra Paulo ao escrever a Epístola aos Tessalonicenses? Como os experiencia Paulo? Como lhe é dado o mundo compartilhado na situação da escrita da epístola?” (ibid., p. 78, grifo do autor). Heidegger quer detalhar “A posição fundamental de Paulo” (ibid., p. 65), algo que só pode ser compreendido ao lembrarmos que, à época da escrita da carta, a crucificação de Cristo ainda é recente (cerca de duas décadas apenas). Partindo daí, é forçoso admitir que “Paulo encontra-se em luta” (ibid., p. 65), ou seja, há um caráter de urgência na sua condição existencial porque a própria existência enquanto tal assumiu outra forma, dada a morte e ressurreição do Logos encarnado. Em outros termos, “Paulo tem pressa porque o fim dos tempos já chegou” (ibid., p. 64). E sua pressa, é importantissímo ressaltar, é colossal, já que “Também Paulo aguardava a parusia antes da sua morte” (ibid., p. 103). Com isso, percebe-se que o ethos cristão já nasce em um contexto de premência no qual toda ação está permeada pela antecipação ou esperança de uma pós-vida que, ao que tudo indicava, chegaria a qualquer momento, como um ladrão à noite.7 7 Primeira Tessalonicenses 5:2. Desse modo, a hermenêutica do texto paulino revela-nos que “A estrutura da esperança cristã, que é na verdade o sentido referencial da parusia, é radicalmente distinta de todas as expectativas” (ibid., p. 91, grifo nosso), afastando ainda mais os cristãos dos judeus e da cultura romana, revelando assim o caráter de perseguição atrelado aos adeptos desta nova religiosidade e a caracterizando como tal: “Não há segurança alguma para a vida cristã; a contínua insegurança é também o que caracteriza as significações fundamentais da vida fática. O inseguro não é casual, mas necessário” (ibid., p. 93). O caráter da escatologia cristã, pois, não é por acaso, a vida fática religiosa está amarrada ao originariamente histórico. O entrelaçamento de Paulo com os tessalonicenses, portanto, representa, além de tudo, a adoção de uma postura existencial radical que coloca a própria vida em risco. Ser cristão significa assumir uma vida de perigo iminente. Não é uma relação qualquer a de Paulo com a comunidade de Tessalônica, mas, digamos, um pacto de vida ou morte, ou melhor, um pacto de uma vida de tribulação em troca da salvação eterna. Com isso, Paulo urge para que os tessalonicenses “permaneçam vigilantes e sóbrios” (ibid., p. 94), pois a vida terrena (que então já significava a espera pelo retorno de Cristo) deve ser encarada com afição e esperança contínua. Daí que, para Heidegger, “o cristão não sai do mundo” (ibid., p. 106), quer dizer, sua vivência como tal deve assumir uma característica de celeridade, isto é, viver como se cada dia fosse o período fulcral da conquista de sua salvação: “A temporalidade comprimida é constitutiva da religiosidade cristã: um ‘ainda não’; não resta tempo algum para protelar. Os cristãos devem ser de tal modo que os que possuem uma esposa a tenham como se não a tivessem etc.” (ibid., p. 107, grifo do autor). A afição da existência cristã fundamenta uma intencionalidade temporal condizente com uma prática realizadora ou salvadora, isto é, “somente aquele que vive a temporalidade de maneira realizadora pode entender a eternidade” (ibid., p. 105). Somente a verdadeira experiência terrena cristã pode desvelar a eternidade, o que fica claro na situação específica de Paulo: “Paulo vive numa peculiar tribulação que lhe é própria como apóstolo, na expectativa do retorno do Senhor. [...] A partir dela, cada instante da sua vida é determinado. Ele está continuamente sob uma afição, apesar da alegria como apóstolo” (ibid., p. 87). No entanto, nem todos os féis de Tessalônica compreenderam a mensagem paulina, obrigando-o a redigir uma segunda epístola.

Compreender a mensagem cristã (ou de qualquer religiosidade) significa reunir as manifestações particulares de uma posição existencial geral e conectálas à experiência originária. Cada instante da experiência fenomênica deve estar carregado de significância religiosa, pois aquele que de fato incorpora uma nova Weltanschauung faz da inteireza de sua vida uma materialização do conteúdo místico que fundamenta tal religiosidade: “Tudo fazer com religião, não a partir da religião. Como uma música santa, a religião deve acompanhar todo o fazer da vida” (ibid., p. 306, grifo do autor). Porém, Paulo percebe um descompasso entre a mensagem de sua primeira epístola e o comportamento adotado por alguns dos tessalonicenses. Partindo daí, Heidegger visa elucidar “a repercussão da Primeira Epístola” (ibid., p. 95). Alguns tessalonicenses, por entenderem que o fim se aproxima e não resta nada mais a fazer, “deixam de trabalhar e se deixam levar pela ociosidade”, convertendo-se assim “num peso para os demais” (ibid., p. 96). Essa ociosidade seria o motivo de, na segunda Epístola, Paulo indicar os sinais do Segundo Advento a fim de reverter tal estado de apatia que teria se apossado de diversos tessalonicenses. Cabe destacar que essa diferenciação entre as epístolas, como se sabe, é o centro de uma disputa ainda viva sobre a autenticidade da segunda carta, pois, supostamente, haveria uma discordância inconciliável sobre o momento da Parusia. Enquanto que na primeira epístola Paulo diz que o fim virá quando menos se espera, a segunda detalha os sinais que indicam a proximidade do dia do julgamento, dando a entender que o apocalipse estaria longe. Heidegger opta por não adentrar em meandros desse debate, preferindo ater-se à seguinte breve afirmação: “Não entraremos na questão da autenticidade nem na questão da exegese. Somente a partir de uma incompreensão é possível discutir a autenticidade da Segunda Epístola aos Tessalonicenses” (ibid., p. 95). Para Heidegger, então, não há dúvida sobre a autenticidade do texto. Afrmar que há uma mudança na mensagem paulina seria não compreender que Paulo, na verdade, está apenas reforçando a mensagem do primeiro texto. Ao invés de usar a descrição dos sinais do apocalipse como uma maneira de dizer que o fim dos dias ainda tarda e, com isso, ajudar os ociosos a retomarem sua vida diária, Paulo, na verdade, quer transmitir aos tessalonicenses que a urgência da época é precisamente aquilo que deve reforçar a vida fática do cristão, mesmo que os sinais ainda não tenham surgido. Como diz Heidegger, “Não há aqui [segunda epístola] uma diminuição, mas uma multiplicação de tensão em cada uma das expressões” (ibid., p. 97), algo que, para o filósofo alemão, serve como mais um “indício de autenticidade” (ibid., p. 96).

Mesmo com a descrição dos sinais do Segundo Advento, a hermenêutica heideggeriana revela a incerteza do quando: “Paulo não pensa, em nenhum momento, em responder à questão pelo quando da parusia” (ibid., p. 95), pois, apesar de pensá-la como algo que aconteceria ainda em sua própria vida, Paulo é da posição de que “O quando é determinado pelo como do comportar-se, que por sua vez é determinado pela realização da experiência fática da vida em cada um de seus momentos” (idem). A própria vivência cristã terrena, portanto, é a resposta ao quando do apocalipse e não o abandono dos afazeres em favor da ociosidade ou da especulação; o fim dos tempos se concretiza na própria vivência, é algo que se apreende na medida em que se introjeta cada vez mais a condição cristã, daí a exigência de se viver com a esposa como se já não mais a tivesse etc. Em contrapartida, Paulo deixa claro que sinais existem e o cristão deve estar atento à sucessão das aparições. Esse escalonamento, evidentemente, se dá em maior grau na figura do anticristo: “O sentido da proclamação do anticristo é o seguinte: deve-se tomar o Anticristo como tal. [...] Pelo surgimento do Anticristo cada um já se terá decidido” (ibid., p. 99). É com a noção de anticristo que Heidegger harmoniza as epístolas. Compreender que o fim se aproxima não significa se entregar à inação, pelo contrário, a postura cristã deve ser efetivada justamente para que, quando os sinais se revelarem, a salvação já tenha sido conquistada. É dessa maneira que Paulo busca reverter o comportamento daqueles que tomaram sua primeira epístola como uma mensagem de que nada mais havia a se fazer, apenas esperar. Desse modo, cada tessalonicense deveria assumir a devida atitude cristã e conquistar a vida eterna antes do surgimento do anticristo, pois “O ‘esperar’ [Erharren] não é uma ‘expectativa’ [Erwarten] representacional” (ibid., p. 100), isto é, o Segundo Advento não significa a espera ociosa, mas ativa; a escatologia cristã, por consequência, está em harmonia com a postura diligente na vida terrena. A temporalidade cristã da vida terrena pressupõe o eterno, mas o aqui e o agora não são anulados e sim incorporados. A urgência faz da vida fática um período ativo, uma rejeição à inércia existencial. O verdadeiro cristão não se pauta pela “expectativa de um acontecimento que está meramente desprendido num futuro” (ibid., p. 102). A salvação dá-se no presente contínuo, pois a eternidade já é. É isso, em suma, que constitui a postura autêntica e o significado originário da escatologia cristã.

Ninguém pode dizer, nem os especuladores nem os charlatães, que “o dia chegou”, que “agora” está prestes a chegar, já que primeiro deve aparecer o anticristo. [...] Portanto, antes deve vir o anticristo, tempo da provação, da máxima necessidade e da decisão, da mais extrema possibilidade de escolha: isto ou aquilo [Entweder-Oder]. (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., pp. 138-139)

Mas e quanto à óbvia diferença entre as epístolas? A defesa, na primeira epístola, de uma Parusia que virá como um ladrão à noite não parece, para muitos especialistas contemporâneos, harmonizável com uma linha do tempo em que há uma enumeração de acontecimentos que precedem o Segundo Advento.8 8 Cf. MARTIN, D. B. “New Testament History and Literature” (2012). Heidegger, todavia, supõe que tais mudanças não transformam a essência da mensagem paulina, pois, como dito, a noção de que o apocalipse virá não pode interferir na vida fática do cristão, já que a salvação precede o dia do julgamento. Daí a importância que Heidegger coloca sobre o inevitável imbricamento e, concomitantemente, afastamento entre dogma e vida fática: “O dogma, enquanto possui conteúdo doutrinal separado e ressaltado epistemológico-objetivamente, jamais pode guiar a religiosidade cristã, mas, pelo contrário, a gênese do dogma só é compreensível a partir da realização da experiência cristã de vida” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 101). Desse modo, a escatologia cristã é algo a ser incorporado na vida fática não exatamente por ser algo que acontecerá no dia seguinte ou na próxima semana, mas por ser uma espécie de ‘fim da história’ incontornável pelo qual tudo que se passou ganha seu significado definitivo, estabelecendo, enfim, o sentido totalizante e fazendo da vida fática um período de atividade: “Como é, por exemplo, o escatológico? Não é nem abrangente nem comum, mas dominante de maneira inteiramente realizadora” (ibid., p. 132, grifo do autor). É pela peculiaridade de uma dada temporalidade existencial, portanto, que uma religiosidade é fundada.

Conclusão

A obra Fenomenologia da Vida Religiosa, de Martin Heidegger, encapsula um dos momentos cruciais do percurso heideggeriano: o uso do método fenomenológico para a compreensão da vida fática do Dasein via exame dos conteúdos místicos da consciência cristã individual. Heidegger, como vimos, está interessado em detalhar a vivência fenomênica religiosa a fim de expor o tipo de temporalidade que brota da intencionalidade originária associada aos estados místicos de consciência. No caso, o filósofo alemão trata de descrever o tipo de situação fenomenológica manifestada pelo apostolado de Paulo de Tarso para – por meio da análise hermenêutica das epístolas aos Gálatas e aos Tessalonicenses – esclarecer a originalidade do ministério paulino e, com isso, indicar o tipo de contexto e conteúdo religioso que brota no período de fundação daquilo que podemos chamar de religião. A análise do cristianismo primitivo na figura de Paulo serve, acima de tudo, como meio para demonstrar a proficuidade do método fenomenológico na descrição da vivência do Dasein, já indicando aquilo que, mais tarde, seria trabalhado de modo mais detalhado em Ser e Tempo. Como diria Merleau-Ponty, “todo Sein und Zeit nasceu de uma indicação de Husserl, e em suma é apenas uma explicitação do ‘natürlichen Weltbegrif’ ou do ‘Lebenswelt’ que Husserl, no final de sua vida, apresentava como o tema primeiro da fenomenologia” (Merleau-Ponty, 1999MERLEAU-PONTY, M. “Fenomenologia da Percepção”. São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 2).

  • 1
    William James, um dos diversos autores citados por Heidegger durante a preleção que aqui estudamos, também assume essa mesma posição na obra Varieties of Religious Experience: A Study in Human Nature (1902), reforçando assim a análise heideggeriana: “Pode-se dizer verdadeiramente, creio eu, que experiências religiosas individuais possuem sua raiz e seu centro em estados místicos de consciência” (James, 2002JAMES, W. “Varieties of Religious Experience: A Study in Human Nature”. London & New York: Routledge, 2002., p. 294). Tais estados místicos, diz James, podem ser atingidos de diversas formas: revelação, rituais, meditação, penitência e até mesmo pelo uso de substâncias químicas modificadoras de consciência. No entanto, seja qual for a via de acesso, o resultado geral é, de certo modo, invariável: a experiência mística consiste no vislumbre daquilo que fundamenta o Ser em suas variadas instâncias, abrindo caminho para a instauração de uma Weltanschauung e de um ethos.
  • 2
    John D. Caputo, um dos principais filósofos heideggerianos a continuar a estudar o fenômeno da religião, deixa transparecer sua influência quando define a religião de modo análogo ao alemão: “Por ‘religioso’, quero dizer a estrutura básica da experiência humana [...] Não limito a religião a algo confessional ou sectário, como ser um muçulmano ou um hindu, um católico ou protestante, embora apresso-me a acrescentar que as grandes religiões do mundo são importantes e sem elas perderíamos rapidamente de vista categorias religiosas e práticas, o que significa que nós perderíamos algo básico. E mais uma vez, precisamos nos lembrar, o sentido religioso da vida nunca significaria apenas uma coisa para todos, como se tivesse algum tipo histórico comum, estrutura universal, transcendental. Procuro me livrar de pensar desse jeito sobre qualquer coisa” (Caputo, 2001CAPUTO, J. “On Religion”. New York, NY: Thinking in Action, 2001., p. 9). Para uma recente compreensão da leitura de Caputo acerca de Heidegger no âmbito da fenomenologia da religião, Cf. Ullrich. “On Caputo’s Heidegger: A Prolegomenon of Transgressions to a Religion without Religion” (2020).
  • 3
    Devido ao escopo do artigo, detalharemos apenas o sentido de realização. Para um melhor aprofundamento dos três indícios ou indicações formais comentados acima, Cf. HEIDEGGER, M. “Grundprobleme Der Phanomenologie (Wintersemester 1919/1920): 58” (2010).
  • 4
    Daí Heidegger associar o esforço husserliano à postura socrática de indagação e exortação: “A verdadeira questão prévia do sentido da terminologia conceptual filosófica não foi mais colocada desde os tempos de Sócrates” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 79).
  • 5
    Posteriormente, como se sabe, a incorporação do neoplatonismo efetuada por Agostinho e do aristotelismo por Tomás de Aquino transformaram o cristianismo de tal modo que sua fundamentação teológico-filosófica ganha uma robustez inigualável. Como diz Heidegger, “Por sua aliança com a filosofia antiga, este [o cristianismo] alcançou uma posição vigorosa” (Heidegger, 2014HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014., p. 31). Entretanto, para que fque claro, não se trata de afirmar que o cristianismo eventualmente se tornou um sistema filosófico propriamente dito. Apesar de todos os aspectos racionais e sistemáticos do pensamento teológico-cristão, persiste a linha – por mais tênue que seja – que divide a expressão religiosa da expressão filosófica ou, como diz Heidegger, “Nenhuma religião genuína deixa-se capturar filosoficamente” (ibid., p. 307, grifo do autor). Toda religião, portanto, parte da preponderância da fé. Por mais que elementos filosóficos sejam internalizados ou elaborados, sempre haverá um núcleo dogmático que, por definição, afasta o pensamento religioso da postura filosófica (o que, obviamente, não impede pessoas religiosas de estarem na vanguarda do pensamento filosófico ou científico). No caso do cristianismo, o núcleo dogmático, é claro, consiste na figura de Jesus Cristo e seu caráter divino: “O escândalo da cruz: este é o autêntico elemento fundamental do cristianismo, diante do qual só pode haver fé ou não fé, credulidade ou incredulidade” (ibid., p. 65).
  • 6
    Lembremos que a Epístola aos Gálatas e a primeira Epístola aos Tessalonicenses são os escritos mais antigos de Paulo. Há ainda discussão sobre qual teria sido a primeira carta redigida, porém, é inquestionável que ambas marcam o início de seu período missionário e traduzem bem o caráter do cristianismo primitivo.
  • 7
    Primeira Tessalonicenses 5:2.
  • 8
    Cf. MARTIN, D. B. “New Testament History and Literature” (2012).

Referências

  • ALVES, M. A., TELES, A. K. “Fenomenologia e Religião: uma leitura do livro ‘Fenomenologia da Vida Religiosa’ de Heidegger”. Ekstasis: revista de hermenêutica e fenomenologia, Rio de Janeiro, Vol. 6, Nr. 21, pp. 06-11, 2017.
  • BÍBLIA. Português. “Bíblia King James 1611 de Estudo Holman”. Bv Books. 2020.
  • CAPUTO, J. “On Religion”. New York, NY: Thinking in Action, 2001.
  • CARUZO, M. A. “Religião sem Deus: contribuição do jovem Heidegger para a filosofia da religião”. Revista Sacrilegens, Juiz de Fora, Vol. 10, Nr. 1, pp. 33-45, 2013.
  • DILTHEY, W. “Selected Works, Volume VI: Ethical and World-View Philosophy”. Princeton: Princeton University Press, 2019.
  • HEIDEGGER, M. “Fenomenologia da vida religiosa”. Tradução de E. P. Giachini, J. Ferrandin e R. Kirchner. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2014.
  • Ferrandin e R. “Grundprobleme Der Phanomenologie (Wintersemester 1919/1920): 58”. Frankfurt: Ed. Verlag Vittorio Klostermann, 2010.
  • Ferrandin e R. “Interpretações fenomenológicas sobre Aristóteles; introdução à pesquisa fenomenológica”. Trad. E. P. Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
  • Ferrandin e R. “Marcas do caminho”. Trad. E. P. Giachini e E. Stein; rev. M. A. Casanova. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
  • Ferrandin e R. “Ontologia: (hermenêutica da faticidade)”. Trad. R. Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012a.
  • Ferrandin e R. “Os conceitos fundamentais de metafísica: mundo, finitude, solidão”. Trad. M. A. Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
  • Ferrandin e R. “Os problemas fundamentais da fenomenologia”. Trad. M. A. Casanova. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012b.
  • Ferrandin e R. “Ser e Tempo”. Petrópolis: Ed. Vozes, 10ª edição, 2015.
  • JAMES, W. “Varieties of Religious Experience: A Study in Human Nature”. London & New York: Routledge, 2002.
  • KIRCHNER, R., JULIÃO, C. C. “A fenomenologia da religião heideggeriana e a explicação fenomenológica da Epístola aos Gálatas”. Revista Eletrônica Correlatio, São Bernardo do Campo, Vol. 15, Nr. 1, pp. 171-193, 2016.
  • MARTIN, D. B. “New Testament History and Literature”. New Haven, CT: Yale University Press, 2012.
  • MERLEAU-PONTY, M. “Fenomenologia da Percepção”. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
  • ULLRICH, C. D. “On Caputo’s Heidegger: A Prolegomenon of Transgressions to a Religion without Religion”. Open Theology Journal, Minnesota, Vol. 6, pp. 241-245, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2021
  • Aceito
    26 Jul 2021
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG Av. Antônio Carlos, 6627 Campus Pampulha, CEP: 31270-301 Belo Horizonte MG - Brasil, Tel: (31) 3409-5025, Fax: (31) 3409-5041 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: kriterion@fafich.ufmg.br