O tema da alegria no Qohélet tem recebido respostas divergentes na história da pesquisa. De um lado, marcou época o artigo de Whybray, que entende a alegria como tão fundamental no livro que este poderia ser definido como um grande convite a ela. Segundo Whybray, os contextos em que o tema ocorre mostram as ideias principais a ele correlacionados: a alegria é um dom de Deus e, dada a brevidade da vida, deveria ser valorizada, sobretudo frente ao desconhecimento do que ocorrerá no futuro. Os textos que mencionam a alegria seriam orientações práticas para o comportamento e apresentariam uma visão positiva da vida e de como conduzi-la, ultrapassando o mal que existe e que Deus misteriosamente deixa no mundo1.
A tal visão “otimista” do livro contrapõe-se a compreensão, desenvolvida de modo paradigmático por Schoors, segundo a qual a alegria seria, para Qohélet, como que um narcótico que visaria contrabalançar os males da existência e distrair da perspectiva da morte2. Uma visão mais moderada compreende o livro como um “áspero processo contra a felicidade”, considerada sem sentido. Mesmo os poucos textos que valorizam e mesmo convidam à alegria nada mais seriam do que a tentativa de conseguir superar momentaneamente uma existência marcada pelo sofrimento e pelo vazio3.
O presente estudo procura abordar esse tema e lançar alguma luz sobre como compreender as menções de alegria no livro. Para tanto, focaliza basicamente a raiz śmh, que está na base tanto do substantivo quanto das formas verbais. Parte-se de uma questão: em sua primeira ocorrência (2,1-2), a alegria (śimhāh)4 é rejeitada e caracterizada como fugaz, passageira, vã (hebel); na última vez em que é mencionada (11,7-10), no entanto, é recomendada5. Já uma primeira percepção indica que em 2,1-2 não se trata só de alegria, mas da mesma em conjunto com o riso (śehôq), termo que não retorna em 11,7-10. Poder-se-ia supor, então, que a rejeição de 2,1-2 se deva ao fato desta ligação entre as duas realidades, e isso tanto mais que nas passagens em que a raiz śmh ocorre sem tal conexão a alegria é considerada positivamente (2,10.26; 3,12.22; 5,18-19; 9,15; 9,7). Com isso, pretende-se investigar os textos em que os dois termos –alegria e riso– encontram-se unidos (2,1-2; 7,3-6; 10,19), para, em seguida, melhor entender a exortação final (11,7-10). A partir daí será possível tecer considerações também sobre os textos que consideram positivamente a alegria. Isto será feito considerando as passagens em seus respectivos contextos, pois somente com a consideração dos termos e seu uso é possível uma compreensão adequada de seu valor.
Através desta abordagem, busca-se compreender mais adequadamente o pensamento do livro, tão marcado por colocações por vezes (aparentemente) contraditórias. Renuncia-se aqui a uma aproximação que descure as dificuldades que os textos apresentam, numa harmonização artificial; igualmente, considera-se o texto tal qual foi transmitido na tradição massorética mais atendível (na base do Códex Leningradense)6, na base de que, se “Qohélet usa as contradições como lentes através das quais ver a vida”, “é apropriado, então, que usemos suas contradições como o ângulo de abordagem de seu pensamento”.
1 Qo 2,1-2
Os versículos iniciais do capítulo 2 incluem-se dentro do trecho que, em ficção literária, apresenta reflexões de Salomão, figura paradigmática da sabedoria israelita (1,12). O limite final dessas reflexões é controvertido, podendo ser visto em 2,11, dada a mudança de tema no versículo seguinte (a sabedoria), ou em 2,25, pelo tom conclusivo do mesmo, ou ainda em 2,26, que continua a linha de pensamento dos versículos anteriores. O fato de 3,1 introduzir novo assunto, com novas observações e reflexões, que também em estilo diferem bastante do que precede, torna mais plausível esta última possibilidade.
Após a auto-apresentação em 1,12 e considerando a síntese presente em 2,22-26, pode-se considerar 1,13–2,21 como o corpo do texto7. Qo 1,13-18 aponta os elementos mais significativos da experiência do autor na ficção de Salomão. As tarefas que os homens realizam são avaliadas como hebel (v. 14); o homem não consegue mudar a realidade (v. 15). Sua própria dedicação à sabedoria é “busca do vento” (ra'yôn rûah: v. 17), pois a ciência traz como consequência maior conhecimento do sofrimento (v. 18)8.
Após a exposição do princípio de 1,18, o texto de 2,1 introduz nova reflexão. O pseudo-Salomão se auto-convida a experimentar a alegria. Os vv. 2-10, que seguem, desenvolvem os expedientes usados na busca da felicidade: o riso (v. 2), o vinho (v. 3), a realização de grandes obras (vv. 4-10). A partir do v. 11 tem lugar a avaliação da experiência, que, por sete vezes, afirma sua fugacidade (é hebel: 2,11.15.17.19.21.23.26)9. Esta é sua avaliação global da experiência, pesando nela também a fadiga e o esforço por conseguir o que se procura. É possível que a avaliação negativa se refira não à alegria em si, mas a seus motivos10. Contudo, o fato de que já de início o sábio concluíra que tudo isso é hebel (2,1), expondo de antemão uma conclusão, sem indicar as razões, eleva-a a categoria de princípio. Sendo a primeira menção da alegria no livro, tal constatação ganha em importância, pois pode servir ao leitor de orientação para a leitura dos textos que, sobre este assunto, virão a seguir11.
Como uma meditação interior, o autor pensa consigo mesmo (lēb), desdobra-se, dirigindo-se a si mesmo em segunda pessoa. O “vamos” inicial (lekāh-nā’) dá o tom, mostrando que o autor procura animar-se a fazer uma nova experiência. O contexto do livro, que apresenta um Qohélet temente a Deus (5,7; 7,18; 12,13), exclui que aqui se tratasse da busca do prazer por si mesmo (Pr 21,17); antes, é a procura de um sentido para a vida, como se depreende da pergunta: “para que serve?” (ma-zōh ‘ōśāh: v. 2). Ele procura provar, examinar12 se a alegria (śimhāh) e a felicidade (ţôb)13 respondem às interrogações que já desde o início do livro se evidenciavam. Estes dois termos em paralelo expressam duas faces da vida. O primeiro diz respeito a uma alegria que se expressa externamente, muitas vezes numa celebração festiva14. O segundo, o bem em todas as dimensões15. A avaliação é, no entanto, negativa: mesmo todo prazer e riqueza (vv. 3-10) não preenchem as expectativas humanas16.
O v. 2 retoma o termo “alegria”, agora aproximado de “riso” (śehôq)17, orientando assim o texto no sentido de satisfação e contentamento. A avaliação negativa é repetida: o riso é “loucura” (mehôlāl), aquilo que sai da sensatez e do equilíbrio18; a alegria nada oferece que possa trazer verdadeiro proveito. Ou seja, embora concretamente experimentada, é também uma felicidade ilusória, enquanto é incapaz de responder aos questionamentos do autor.
Os versículos seguintes, ao ilustrarem este princípio, descrevem os prazeres que Salomão pôde vivenciar. Mesmo sendo lícitos19, chega-se à mesma conclusão do início (v. 11). Tais palavras tornam claro que o autor reflete sobre a possibilidade de se encontrar um gozo que não seja hebel. A morte, implícita em alguns momentos de suas considerações (vv. 16.18.21.26), faz do prazer algo fugaz, relativiza mesmo estes momentos. Qohélet busca alegria, mas não pode garanti-la como algo perene20: esta é, aqui, a raiz de sua insatisfação e, por isso, de sua avaliação negativa de qualquer esforço por consegui-la21.
2 Qo 7,3-6
O tema da alegria ligada ao riso retorna em 7,3.6. Os versículos situam-se na unidade 7,1-14, que responde à questão colocada em 6,12 sobre o que é “bom” para o homem (mî-yôdēa’ ma-ţôb lā’ādām). A resposta se desenvolve com uma série de provérbios entremeados de reflexões próprias que tematizam o que é realmente “bom”, “melhor” (min … ţôb). Nesses versículos a raiz ţwb ocorre 10 vezes, sendo 7 vezes em forma comparativa (“melhor do que”: v. 1.2.3.5.8[2 vezes].10), o que marca sua importância.
As palavras iniciais são dominadas pela oposição entre alegria e dor (vv. 1-6)22. Com a menção da violência e do suborno, que pode estar retomando a adulação dos néscios23 mencionada no v. 5, o v. 7 faz uma ponte entre essa perspectiva e a que segue a partir do v. 8 e que toca prevalentemente assuntos da vida social (soberba, cólera, riqueza, tempos favoráveis ou desfavoráveis).
Com a avaliação do bom nome como superior a um bom perfume, ao óleo perfumado (šemen), o v. 1 valoriza o reconhecimento social adquirido na vida24. Os pontos de comparação podem ser considerados sob diversas perspectivas, sendo a mais imediata a de que tanto o bom nome quanto o perfume agradam os circunstantes e se difundem. A valorização do bom nome é sentença comum à sabedoria (Jó 30,8; Pr 10,7; 22,1) e enquanto o perfume rapidamente se dissipa, o bom nome tem em si mais longa permanência25, sendo-lhe, por isso, superior.
A relação desta comparação com a que a segue –”melhor o dia da morte do que o dia do nascimento”– abre, contudo, novas perspectivas para sua compreensão. O ponto de analogia não é claro. Seria possível entendê-lo no sentido de que só pela morte a boa fama se fixa, sem perigo de ser perdida26. Qohélet usaria o provérbio para mostrar como a vida é sempre insegura. A relação do nascimento com o óleo perfumado mencionado no início do versículo poderia ter sido motivada pelo fato que, na antiguidade, o óleo era utilizado medicinalmente para o neonato27; tal emprego, porém, não é testemunhado na Escritura. Outra possibilidade seria relacionar o perfume à alegria, à celebração, à festa e, com isso, ao dia do nascimento28. Por outro lado, como o perfume passa rapidamente, assim o nome, mesmo se superior a ele, também acaba passando, não perdura, pois não se pode garantir que ficará na memória das gerações subsequentes (1,11; 2,16)29. Com isso, o livro mostraria a transitoriedade do bom nome; como a vida é fugaz, assim também o bom nome. Porém, seria possível acrescentar-se a isso outro motivo pelo qual o dia da morte é melhor que o do nascimento: porque o bom nome é resultado de uma vida de realizações e isso só é alcançado com o passar dos anos. Por fim, para o sábio, o dia da morte é melhor que o do nascimento porque, diante da morte, o ser humano seria levado a refletir sobre o sentido da existência30.
Tal pensamento é corroborado pelo versículo seguinte, que dá continuidade a esta reflexão. São postos em comparação dois momentos da vida humana e a conclusão é que o luto é melhor do que banquetes e festividades, porque leva o sábio a refletir (wehahay yittēn ‘el-libbô). A morte mostra a brevidade da vida, enquanto a festa cria condições para o homem se deixar absorver pelo momentâneo, propicia ao homem distrair-se da realidade da existência, na ficção de uma felicidade duradoura. Para Qohélet, a vida é breve, passageira, e a morte é o destino de todos: “nisso está o fim de todo homem” (hû’ sôp kol-hā’ādām). Qohélet renúncia, assim, a uma visão superficial e propugna que a vida deve ser vivida tendo em consideração o definitivo31.
O v. 3 concretiza a oposição entre luto e festa com nova colocação de um par antagônico: pesar (ka'as)32 e riso. Na linha dos ditos anteriores, trata-se do confronto entre um riso superficial e frívolo33 e a reflexão ponderada. A consideração do sofrimento leva a mente (lēb) a avaliar com mais propriedade os eventos da vida. Diferentemente de certos textos sapienciais (Jó 33,29-30; 36,21; Pr 3,11-12), o escopo aqui não é propriamente o de mostrar que a dor pode levar à purificação e ao progresso espiritual34, mas sim o de evidenciar como a existência humana realmente é e como ela deve ser considerada.
O mesmo pensamento retorna no v. 4, ao pôr em relevo que o verdadeiro sentido das coisas não se encontra na aparência. Aqui são confrontados diretamente alegria/dor e estultícia/sabedoria. Para Qohélet35, sendo o sábio aquele que reflete, que sabe ponderar os fatos e agir conforme esta avaliação, cabe ao néscio uma avaliação negativa. O néscio carece de ponderação e se prende ao imediato e aos aspectos exteriores, não considerando a realidade mais profunda das coisas. Nesse contexto, a alegria é questionada por que está ligada à estultícia e se opõe à reflexão.
Isso cria a ponte para o dito seguinte: o elogio dos néscios é desprovido de valor, pois não é fruto de uma atenta consideração dos fatos. Nesse sentido, é melhor ser repreendido pelo sábio do que ser aprovado pelos estultos36. Na mesma linha, o riso dos néscios pode ser estrepitoso como o crepitar de gravetos ao fogo37, mas passa rapidamente e nada significa: é vazio, sem consistência, é hebel.
3 Qo 10,19
O v. 19 se localiza numa pequena unidade que gira em torno de questões de poder político. A menção do rei (vv. 16.17.20), dos príncipes (vv. 16.17) e do rico (v. 20) corrobora a interligação dos vv. 16-20, que tocam o tema do comportamento das classes dirigentes e influentes e suas consequências.
Os vv. 16-17 complementam-se mutuamente, numa estrutura de oposição entre lamentação (v. 16: ‘î) e felicitação (v. 17: ‘ašrê), de um lado, que corresponde ao antagonismo entre o governo de um rei imaturo (na'ar)38 e de um dirigente ponderado (ben-hôrîm)39, de outro. São descritos comportamentos contrastantes com referência ao comer e beber: a vida frívola e dissipada, sublinhada pela ironia de “comer (no sentido de banquetear-se) (já) desde a manhã” (v. 16) e sua contraposição com “no tempo (justo)”(bā’ēt: v. 17).
O versículo seguinte retoma um dito frequente da tradição sapiencial em referência à preguiça (Pr 20,4; 21,25; 24,30-31), mas que, no contexto, é aplicado à administração pública40. Por fim, com suas admoestações, v. 20 amplia o tema, indicando a prudência que deve ter o cidadão comum em expressar sua desaprovação acerca do comportamento dos que têm poder na sociedade. Supõe-se uma reação punitiva, o que reforça sua capacidade de controle e de retaliação.
Nesse contexto, riso e alegria (v. 19) têm forte valor negativo. Qohélet não vê problema no comer e beber (2,24; 3,13), quando ligados a uma vida laboriosa41. A crítica aqui é o desregramento e a irresponsabilidade42. Ligado à leviandade da classe política, o riso e a alegria do vinho expressam uma vida fútil, que leva à ruína da nação.
4 Qo 11,8-9
Os vv. 8-9 fazem parte da unidade 11,7–12,743, desenvolvida em dois momentos, centrados respectivamente na exortação a desfrutar a alegria (vv. 7-10) e na recordação dos tempos obscuros que virão (12,1-7).
Qo 11,7 serve de introdução ao conjunto, evocando duas realidades essenciais à vida e que lhe dão vigor e alegria: a luz e o sol (6,5; 7,11)44. Os dois termos que as qualificam, “doce” (mātôq) e “bom” (ţôb) estão em paralelismo e se completam mutuamente (Pr 9,17; 24,13). O sentido primeiro do termo (mātôq) concerne ao paladar, com a ideia do que é agradável45. Sobre esta base, é construído o sentido translato de algo que dá à vida sabor favorável, indispensável a uma vivência equilibrada. É nessa linha que, em Qo 5,11, o termo qualifica a tranquilidade do sono do trabalhador. Em 11,7, porém, além de traduzir a ideia de serenidade e bem-estar, carrega um componente físico, ao unir o paladar ao aspecto visivo da luz.
Em contraposição a esta primeira afirmação estão os “dias escuros” (yemê hahōšek) mencionados no versículo seguinte e que, na segunda parte do texto, são especificados como “dias maus” (yemê hārā’āh: 12,1) e evocados ainda por duas vezes no retorno da raiz hšk (12,2.3). Elementos do v. 7 são retomados nesta segunda seção do texto ainda na referência ao sol (12,2) e à ideia de criação da natureza e do ser humano por Deus (12,1.7).
O v. 8 continua o pensamento com uma frase que complementa o sentido do versículo anterior, ao mostrar a realidade da existência humana, composta não só de “luz” e “sol”, mas também de “dias escuros”. Suas duas primeiras frases (v. 8ab) preparam, com isso, de um lado, a exortação a desfrutar a vida (v. 9) e a afastar o que a pode lesar (v. 10), de outro, os segmentos 8cd antecipam os dias difíceis desenvolvidos em 12,1-7.
Os “dias escuros” são interpretados ou com referência à morte e ao xeol46 ou, em virtude da relação com 12,1-7, aos anos da velhice47. No entanto, mesmo se há uma dimensão futura48, o que se apresenta no v. 8 tem um caráter mais geral. Fala-se da vida humana, que, mesmo se pode ser longa e contar com dias felizes, está também entremeada de sofrimento, de modo que, nos momentos alegres, não se deve esquecer que há dias sombrios. Embora o verbo zkr crie uma ponte com 12,1-7, que desenvolve os sofrimentos da idade avançada, em si mesmo o versículo parece dever ser compreendido no sentido que, no decorrer da vida humana, dias de sol e dias obscuros se mesclam. Ou seja, a juventude não é simplesmente o tempo dos dias tranquilos. O v. 10 o confirma ao exortar o jovem a evitar a dor. O livro em seu conjunto dá também testemunho disso: a vida humana em seu conjunto –e não só o tempo da velhice– é marcada pela dor (2,23; 3,16; 4,1; 5,7)49, conhecimento este que faz parte já do patrimônio da sabedoria tradicional (Sl 90,10).
Mesmo se o v. 8 se conclui com a menção de que “tudo o que vem” (kol-šebbā; 3,22; 6,12; 8,7), tudo o que ocorre50, é hebel, o v. 10 mostra que os tempos da mocidade também o são. São efêmeros, passam51, e por si mesmos não garantem a tranquilidade e a alegria. A partir daí, por contraste, é desenvolvido o tema da velhice, esta sim feita predominantemente de momentos de limitação e de dor. Em outras palavras, o texto não trata da pura oposição juventude-velhice/alegria-dor, mas apresenta a avaliação, baseada na experiência, do que preponderantemente caracteriza cada uma dessas fases. Daí deriva o ensinamento de valorizar os anos em que predomina a ausência do pesar e do mal físico (v. 10ab)52.
Nesse contexto, sublinha-se o valor da exortação a alegrar-se (verbo śmh) e ser feliz (verbo yţb hifil), no v. 9. Os dois imperativos que os seguem descrevem como viver de modo a realizar isto. Primeiramente é indicado o modo positivo, com dois aspectos, interior e exterior: seguir o próprio coração e o que lhe apresentam os olhos (wehallēk bedarkê libbekā ûbemar’ê ‘ênêkā), ou seja, dar pleno espaço à realização de seus desejos (coração) na vida real (olhos)53. Tal exortação contraria a visão mais comedida encontrada em outras tradições, que, antes, inculcam uma vida mais austera (Nm 15,39; Jó 31,1.7; Sir 5,2; Is 57,17). O motivo já fora indicado no final do v. 8 e retornará no v. 10: a vida passa rapidamente, nada é seguro. Porém, para que esse ensino não seja entendido como a promoção de uma vida leviana, é dado um critério: o juízo de Deus paira sobre a vida humana54, de modo que mesmo o gozo da vida deve estar sob o olhar de Deus (Pr 23,19-21)55; sobre tudo pesa o juízo divino (Qo 3,14-15; 5,1-6)56 e por isso se deve ter sempre em mente como Deus avaliará as ações humanas57.
Em segundo lugar, o v. 10 aponta, de modo negativo, como viver a alegria e a felicidade encontrada na vida. Também aqui há os componentes interior e exterior: afastar o pesar do coração (ka'as millibbekā) e o mal corporal (rā’āh mibbeśārekā). E é igualmente acrescentado o motivo desses conselhos: porque a juventude58 é hebel. Este último termo aponta para a brevidade do tempo da mocidade, que passa como um sopro59.
Em síntese, no conjunto dos vv. 7-10, fica em evidência o tema do gozo da vida. A raiz śmh retorna duas vezes (vv. 8.9) e a cada uma delas está ligada a uma consideração: primeiro, a transitoriedade da vida; depois, a certeza do juízo de Deus sobre todos os atos humanos.
Visão de conjunto
A análise dos textos acima permite elencar alguns de seus elementos característicos concernentes ao tema aqui proposto.
No contexto de 2,1-2, a felicidade pretendida, embora sem se referir a prazeres ilícitos60, expressa o desejo de uma vida de bem-estar e despreocupação. Trata-se da busca de autoafirmação através de grandes obras, acúmulo de riquezas e dedicação à reflexão sapiencial (vv. 4-10). Tal intento, porém, não atinge seu escopo, é ilusório, pois mesmo todas as realizações não preenchem os anseios humanos, e o esforço por consegui-las acaba sempre sendo hebel. Riso e alegria são respectivamente loucura e inutilidade (v. 1).
Outra perspectiva é desenvolvida em 7,3-6 e 10,19. Qo 7,3 mostra que alegria e riso se contrapõem à reflexão; 7,4 fala da alegria do néscio; e 7,6, do seu riso, que é hebel. Aqui não se trata da alegria e do riso em si, mas enquanto ligados à falta de sabedoria. Assim caracterizados, não têm valor. Na mesma direção está 10,19, ao conectar riso e alegria à imaturidade, à futilidade e a uma vida desregrada. Nessas duas passagens, portanto, a crítica é feita a um determinado tipo de contentamento61.
Indo em outra direção, 11,7-10 exorta a gozar os momentos bons da vida, tendo em consideração que há também muitos dias desfavoráveis. A questão é enfocada a partir do aspecto da transitoriedade da alegria, de modo que cabe ao sábio valorizar os momentos felizes, considerando sempre, porém, o juízo divino. Nesse sentido, o texto responde às passagens anteriores, particularmente ao capítulo 262, ao indicar outra forma de alegria, não desvinculada do temor de Deus e por isso não ligada a frivolidades. Com efeito, o termo hebel, em 11,7-10, diferentemente de 2,1-2, não diz respeito à alegria, mas sim ao tempo da vida (v. 8), particularmente à mocidade que passa rapidamente (v. 10). Assim também em relação a 7,3-6 e 10,19, que mostram o prazer ligado à consideração insensata da vida em geral ou da condução dos negócios públicos em particular.
Essa interpretação é confirmada pela consideração dos outros textos do livro que mencionam a raiz śmh, seja como nome seja como verbo. Além dos textos estudados acima, a forma nominal ocorre ainda em 2,10.26; 5,19; 8,15 e 9,7; a forma verbal, em 2,10; 3,12.22; 4,16; 5,18 e 8,15. Com exceção de 4,16, que nega a satisfação com o novo rei (lō’ yiśmehû), as outras passagens afirmam positivamente a alegria. Nestas, a alegria ocorre em contexto que a relacionam ou com o trabalho e as próprias obras (‘āmāl/ma’aśeh)63 ou com o dom de Deus; por vezes, com os dois64. Em 2,10, o trabalho é ocasião e motivo de alegria65; em 3,22, as obras o são. Em 2,26, no contexto dos vv. 24-26, a alegria é tanto ligada ao trabalho como devida a Deus, mesmo se sobre ela paira o veredito do hebel. O mesmo ocorre em 3,12 (v. 13) e 5,18-1966. Em 8,15, valorizam-se os pequenos mas bons momentos de uma vida considerada como dom de Deus e que é vivida laboriosamente. Pensamento semelhante é exposto em 9,7: viver com contentamento as situações cotidianas, mesmo se a vida é hebel: esta é, para o homem, sua “porção na vida e no trabalho” (v. 9).
Em outras palavras, a ausência de contradição entre a desqualificação da alegria em 2,1-2; 7,3-6; 10,19 e a exortação a desfrutá-la em 11,7-10, é confirmada pelo contexto do livro. Trata-se de dois modos de vivenciar a alegria: um modo fútil e néscio ou, em contrapartida, um modo vivido sob a égide do juízo divino, que marca a atitude verdadeiramente sábia. A alegria que, ao menos momentaneamente, pode realmente saciar é possível para quem está dentro da condescendência divina (2,26; 9,7), que lhe permite gozar do fruto de seu trabalho (5,18-19). Embora passageira, esta alegria é boa67. Sabedoria e trabalho são elementos que baseiam a alegria68. Pois o sentido desta vida, enquanto é possível encontrá-lo, está em temer a Deus e submeter-se a seu juízo (5,7; 8,12; 12,13-14).
No clímax do último complexo do livro, 11,7-10 responde, assim, aos textos que mencionam a busca pela felicidade. Isso é evidenciado por sua relação particularmente com o contexto de 2,1-2, de modo de que a última menção da alegria no final do livro corresponde, por contraposição, à primeira. A retomada de vocabulário e temática o confirma. No texto inicial, a sabedoria é ligada à luz e a estultícia às trevas (2,13; 11,7-8), apela-se a não negar nada aos olhos e ao coração (2,10; 11,8-9) e, enfim, a não deixar passar em vão os bons momentos, pois a vida é transitória (2,3: os “dias contados”, aplicados em 11,9 à época da juventude).
Com isso, no livro do Eclesiastes, quando conjugada ao riso, a alegria é rejeitada, pois representa uma visão frívola e insensata da vida. Mesmo tocando temáticas em parte diversas entre si, as passagens de 2,1-2; 7,3-6 e 10,19 apontam nessa direção. A exortação final, que implica uma visão positiva da alegria, comprova indiretamente esta concepção por desvinculá-la do “riso” e colocá-la dentro da moldura do juízo divino (11,9). A hipótese, por vezes afirmada69, de dois tipos de alegria no livro –uma frívola, procurada sobretudo nas próprias obras, sem que Deus seja considerado, e outra ligada a uma vida simples, vista como dom de Deus–, pode ser considerada, mas com uma diferença: a concepção positiva da alegria não parece residir na consideração do dom de Deus, mas, mais propriamente, na moldura do temor de Deus, claramente presente no texto de 11,7-10.
É ainda de interesse considerar que o tema da alegria encontra-se em unidades que descrevem a realidade cotidiana. Diante da observação da vida e de sua avaliação sobretudo negativa, a alegria aparece como uma resposta a esse estado de coisas70. Nessa perspectiva, mesmo se o homem deve aproveitar os bons momentos, fica patente que ser feliz não está em seu poder: a felicidade só pode ser recebida, só pode ser um dom de Deus e é esse dom que ele valoriza e por isso o vivencia.
Isso não significa que a questão, para o livro, é ter domínio sobre a existência, sobre os momentos bons e maus. A insatisfação do sábio com os momentos alegres não se deve propriamente ao fato de o homem não ter controle sobre eles71, mas essencialmente à visão do pós-morte que transparece no livro, com a ideia do xeol, lugar onde a justiça de Deus não se realiza e para onde vão sem distinção justos e ímpios, sábio e néscios (3,19-21; 6,6; 9,3; Sl 6,6; 30,10; 88,6.11-13)72. Igualmente, as exortações a comer, beber e alegrar-se não são um simples contrapeso às agruras da existência, um modo de o homem ter ainda certo domínio sobre a vida73. Mesmo se a vida humana é hebel e a alegria é sempre fugaz, tais palavras derivam essencialmente de sua visão de Deus e de sua relação com a vida humana. Certamente tais exortações ocorrem em meio às observações e à reflexão sobre as limitações das experiências cotidianas. Não aparecem, porém, como um modo de apaziguar a insegurança existencial, mas, antes, se a alegria “vem da mão de Deus” (2,24), é um modo de experimentar a bondade que Ele oferece a seus fiéis (2,26). Nesse sentido, “os momentos de alegria são os pontos altos da nossa existência”74.
Considerações conclusivas
O percurso feito permite afirmar haver uma dupla avaliação da temática da alegria no livro, a qual depende do contexto em que ocorre. A consideração positiva da alegria se dá quando está ligada a uma vida de trabalho e a uma visão de que a ordem da existência provém de Deus. Trata-se então da alegria nos pequenos eventos do cotidiano; parcial, portanto, mas estimada como dom divino e vivida na moldura do temor de Deus. Uma alegria concretizada nos bens possuídos e em seu uso, em contraposição a uma vida dissipada e desregrada, que distrai o ser humano, impedindo-lhe a ponderação sábia sobre o sentido da existência.
Em síntese, o livro parece não afirmar nem negar o prazer, a satisfação e o gozo em si e por si mesmos, mas orienta a reflexão acerca de onde encontrar a alegria e de como vivenciá-la.
A distinção entre dois tipos de alegria, que provém do estudo exegético dos textos tratados, foi confirmada quando, ao final da pesquisa, deparamo-nos com o comentário ao livro Qohélet do Rabino Ari Friedman. Presente em suas explanações do sentido dos textos acima estudados, é sintetizada pelo autor ao tratar de Qo 2,2. Citando diversos comentaristas da tradição judaica, explica que não há uma contradição entre este texto e 8,15, que, respectivamente reprova e louva a alegria:
Os versículos estão falando de coisas diferentes: aqui o rei Salomão está falando de alegrias derivadas dos prazeres momentâneos, algo que não leva a nada. Já no versículo (8,15) o monarca trata sobre alguém que está feliz com seu quinhão material e com a alegria de atingir metas espiritualmente elevadas75.
Com isso, atesta-se a existência de duas conotações da alegria no livro, mesmo se a dimensão espiritual explicitada na leitura judaica não esteja tão clara na leitura exegética. Por outro lado, comprova-se como o estudo exegético pode caminhar junto com a leitura espiritual e moral dos textos.