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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.25 Canoas jun. 2007

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Impasses na prevenção de exploração sexual: as imagens do trabalho infantil

 

Dilemmas in preventing sexual exploitation: the images of child work

 

 

Marília Novais da Mata Machado*; Júnia Carine Cardoso da Silva**

Faculdade Novos Horizontes

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo retomou pesquisas realizadas anteriormente no Médio Vale de Jequitinhonha, Minas Gerais, pelo Projeto Pólos de Cidadania, com vistas à prevenção da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. De especial importância foram as entrevistas realizadas com 34 jovens apontados por entidades como vítimas de abuso ou de exploração sexual. O foco do artigo foi a questão do trabalho infanto-juvenil. Buscou-se demonstrar a importância central das significações imaginárias sociais que os jovens criam para o trabalho que realizam. Essas imagens subjetivas atuam na construção de suas identidades, na forma como vêem seu meio social, na disponibilidade de saírem da situação de exploração sexual, no consentimento ou rejeição da exploração econômica. São, assim, elementos importantes a serem considerados nas ações de prevenção à exploração sexual.

Palavras-chave: Exploração sexual de crianças e adolescentes, Trabalho infanto-juvenil, Imaginário social, Médio Vale do Jequitinhonha.


ABSTRACT

The article revisited research works previously carried out in the Medium Jequitinhonha Valley, Minas Gerais, Brazil, by the Focus of Citizenship Program, aiming the prevention of children and teenagers’ commercial sexual exploitation. Especially important were the interviews with 34 young subjects pointed out by social organizations as having being sexually abused or exploited. The article’s main focus was on the issue of child work, trying to demonstrate the relevance of the social imaginary meanings of the work created by the youth. These subjective images seem to be central for the development of the young people’s identity, for their environment appreciation, for their availability to get out from sexual exploitation situations and for their reception or rejection of economic exploitation. These images are thus important elements for actions preventing sexual exploitation.

Keywords: Children and teenagers sexual exploitation, Child work, Social imaginary, Medium Jequitinhonha Valley.


 

 

Introdução

Com sede na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, o Programa Pólos de Cidadania dedica-se a trabalhos de pesquisas e intervenções, todos voltados à efetivação dos direitos humanos. Em 2004, financiado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, o programa concluiu um diagnóstico no Médio Vale Jequitinhonha (UFMG, 2004) detectando na microrregião a ocorrência de exploração sexual de crianças e adolescentes. Um segundo projeto foi então formulado: Criança e adolescente em situação de risco: geração de renda como alternativa de prevenção à exploração sexual. A idéia de que a pobreza está na base da exploração encontra-se implícita no título. Esse projeto recebeu também financiamento da Secretaria dos Direitos Humanos e, homenageando a data nacional de luta contra a exploração sexual, ganhou mais uma denominação: Projeto 18 de maio.

O presente artigo retoma parte dos dados da pesquisa-ação então conduzida em sete municípios do Vale &– Araçuaí, Comercinho, Itaobim, Medina, Padre Paraíso, Ponto dos Volantes e Virgem da Lapa. O embasamento teórico foi o pensamento de Santos (2005), especialmente a ênfase na cidadania, subjetividade e emancipação. A metodologia de abordagem da população foi inspirada em Thiollent (1981, 1985).

Informações sobre o projeto e relatórios parciais são encontradas em Gustin e cols. (2005), UFMG (2005) e UFMG (2006). Além dessas fontes, este artigo utiliza, sobretudo, as entrevistas feitas com 34 jovens informantes supostamente vítimas de exploração, segundo membros de entidades locais que os indicaram. Um resumo dos resultados obtidos com essas entrevistas é apresentado em Machado e cols. (2006), artigo em que se descrevem, também, as dificuldades de realizar as entrevistas, os instrumentos de coleta de dados (roteiro semi-estruturado e formulário de questões fechadas) e procedimentos de tratamento de entrevistas (análises do discurso e do conteúdo).

O trabalho do Programa Pólos de Cidadania prossegue no Vale. Membros da equipe do Projeto 18 de Maio, em colaboração com ongs, outras entidades civis e órgãos do poder público, dedicam-se à formação de grupos e associações de artesanato, teatro e música, incentivando a participação de toda a população na prevenção à exploração sexual.

Não resta dúvida quanto à correção do primeiro diagnóstico. A pobreza é uma característica da região, cujos habitantes se enquadram na descrição de Singer (2003, p. 11) dos “pobres ‘antigos’”, que são aqueles “que há décadas vivem de bicos, do comércio ambulante, de trabalhos sazonais, da prestação de serviços que não exigem qualificação, que incluem a prostituição, a mendicância e assemelhados”.

As famílias dos entrevistados, como mostraram as pesquisas, são formadas por gente que nunca teve emprego estável, de carteira assinada, com seguro-desemprego, seguro-saúde e plano de carreira, fazendo parte do chamado exército de reserva do capitalismo cujo trabalho, quando existe, é precário, temporário ou parcial, mas inserido na moderna sociedade de consumo. Gente realmente necessitando que alguma geração de renda ocorra na região. Os próprios entrevistados preenchem a descrição já feita por V. Faleiros (2004, p. 63): “são os explorados economicamente que acumulam, na maioria, a condição de explorados sexualmente”.

Aqui, defronta-se com uma dificuldade atravessando o projeto. A proposta é criar “geração de renda”, o objetivo preventivo do Programa Pólos de Cidadania estando bem claro. Mas, gerar renda para quem? Para os pais que já saíram da região em busca de trabalho? Para os padrastos tão comumente violentos? Para as mães que, na ausência de outros trabalhos, têm a ensinar a prostituição como forma de sustento? Para os clientes e aliciadores da exploração que se acobertam no cotidiano das cidades? Como gerar renda que beneficie diretamente as crianças e adolescentes prostituídos, sem incorrer em trabalho infantil? Como, gerando renda na região, alcançá-los diretamente?

Citando novamente Singer:

Os pobres raramente podem se dar ao luxo de ficar “desempregados”. Os pobres ficam “parados” quando a procura por seus serviços cessa, mas eles não podem permanecer nesta situação muito tempo. Se não conseguem ganhar a vida na linha de atividade que vinham dedicando, tratam de mudar de atividade ou de região, caso contrário correm o risco de morrer de fome. Os pobres não são diretamente atingidos pelas mudanças que a Terceira Revolução Industrial e a globalização estão provocando nas relações de produção, embora o aumento de seu número, em função do empobrecimento de parte dos desempregados, sobretudo dos que ficam sem trabalho por longos períodos, agrave a concorrência nos mercados informais, em que os pobres oferecem seus serviços (Singer, 2003, p. 31)

Também as crianças pobres não podem parar, estão igualmente procurando ganhar a vida no mercado informal, tentando escapar à fome. Por isso exercem trabalhos perigosos e entram em situação de exploração sexual. Embora, no Vale, haja as que estão interessadas no consumo supérfluo de roupas e adornos, que são minoria entre as entrevistadas, como se verá adiante, boa parte delas toma a atividade de prostituída como equivalente a trabalho. E o valorizam. Sabem que seus pais, mães e avós, ainda crianças, “pegaram na enxada” e têm orgulho disso. Eles esperam delas que, o mais cedo possível, sejam capazes de se sustentarem.

 

Método

O que se busca demonstrar neste artigo é que tanto os meninos como as meninas supervalorizam o trabalho. Aprenderam a fazê-lo. No limite, entram de coração aberto na construção civil e na prostituição, atividades citadas como “as piores formas de trabalho infantil” na Convenção número 182 da OIT, Organização internacional do trabalho1 . Isso evidentemente coloca um impasse a ser ultrapassado na prevenção à exploração sexual: como lidar com as construções subjetivas que as crianças e adolescentes criaram a respeito do trabalho, com as imagens que têm dele, com o convencimento do acerto das atividades que realizam e isso sem cooptar com trabalho infantil ou com exploração sexual?

Ao lado de todas as determinações econômicas, sociais, geográficas e políticas que jogaram as crianças do Vale em trabalhos perigosos como lavra e construção ou indignos como prostituição, há um imaginário enganoso atuando: aquele que vê qualquer trabalho como nobre. Um programa preventivo, se voltado a inverter a rota2 , tem que agir igualmente sobre esse imaginário.

Retomam-se, então, as 34 entrevistas realizadas com os jovens, duas delas com meninos. Analisa-se com cuidado a entrevista de E., garoto de 15 anos que se orgulha de seu trabalho na construção civil. Procura-se, com isso, entender como é construída essa imagem de supervalorização do trabalho. E. a expressa livremente, pois, diferente das crianças prostituídas, não vê por que silenciá-la. Depois, analisa-se a imagem do serviço doméstico realizado pelas meninas e a alternativa que as crianças e adolescentes encontram para cair fora dessa atividade: o trabalho de “venda do corpo”, como dizem.

A entrevista de E.

A análise do discurso de uma entrevista requer apreender o ganho do entrevistado ao concedê-la, o que vem a ser o grande eixo articulador do seu discurso. Nem sempre é possível detectar o ganho, mesmo depois de uma dúzia de leituras. Não foi o caso de E. (Entrevista 8 &– 15 anos), que inaugurou sua fala com a questão do trabalho. Em torno desse tema se articula todo o material discursivo restante: sua relação com o tio, o padrasto, suas expectativas de ser registrado pelo pai ausente, sua percepção dos não trabalhadores, seu namoro, seus projetos para o futuro, sua vida escolar e seu lazer. O trabalho permite a E. se sentir completo, honesto, boa pessoa e demonstrar isso ao entrevistador. Ele não tem a menor idéia de que vem sendo economicamente explorado pelo tio (pois evidentemente ele não é um aprendiz). E. não sabe que é vítima de trabalho infantil perigoso3 :

Trabalho ajudando meu tio... / Pintura assim... /Ele pinta e eu, faço as reformas. Aí eu já ganhei muito dinheiro assim já... / E o meu pai que trabalha assim, tal, meu padrasto, eu chamo de pai já, que, normal. Trabalha assim, ajuda a minha mãe, meus irmãos...

A importância dos ferimentos que lhe marcam o corpo em conseqüência do trabalho pesado são minimizados, reduzidos a quase nada:

Nunca fui pro hospital. E Graças a Deus, nunca caí tamém não. Nunca / hospital, num aconteceu acidente comigo. / Nunca aconteceu acidente comigo. Não / né? (rindo). Todo mundo pensa assim... / Esses machucadinho assim pode sê né, eu cortei o pé, assim... / Machuca o dedo (rindo). Já é normal... / Sempre assim eu, tenho mais cuidado com essas coisa assim, tem uns que num tem cuidado, vai, vai pulá o muro, vai pula / né? Eu já não, só /. Tiro um pulo assim, mais um pulo baixo né, mais... / Acho que é bestage tira um pulo alto, vai e machuca...

Seu trabalho compensa a falta de registro de nascimento com o nome do pai (e, aqui, ele conhece a lei, sabe que tem direito a esse registro). O trabalho, elemento central de sua identidade, o distingue dos que não são tão boas pessoas, os ladrões:

Igual minha prima aí, minha prima já tem um recurso, né, o padrinho dela já conversô com ela e tal... o pai dela já é registrado, é o pai dela e tal.... o pai dela normal. Por causa eu penso assim: a pessoa registrada, se não dá, dá muita treta né? Muita coisa... dái chamá minha mãe, minha mãe num tem tempo./ Aí num dá não... Eu mesmo penso assim: trabalhano, dentro de um tempo eu tenho minhas féria, né? Minhas coisa assim, intão, eu num penso assim igual essas pessoa assim, tem umas pessoas assim, no mundo de hoje, tem umas pessoas assim que... ah, roba um poquinho ali, vai pensá que vai tê mais, né? Vai robano, mais e mais, pensano que vai tê mais, chega um tempo que vai ficá cum nada! / Quem trabalha vai tê. Num tem direito. Trabalho que seu dinheiro nasce/ num tem direito de toma, os cara aí que roba assim, conheço um cara lá em frente a minha casa...

Embora E. reconheça o valor do estudo e queira prosseguir na escola, ele a abandona por causa do trabalho. Evidentemente não sabe que é contra isso que existe o Peti, programa de erradicação do trabalho infantil (compreendido por poucos na região e desaprovado por muitos), nem que sua mãe, padrasto e tio, ao facilitarem-lhe o trabalho, estão na contramão do Estatuto da criança e do adolescente (Eca) e das recomendações da OIT, que lhe garantem o direito à educação:

Agora no, no outono eu quero istudá, istudá no outono pra mim vê se eu passo. Tamém tenho o objetivo de segundo grau né, por que segundo grau hoje em dia, num tê o segundo grau, num pode arrumá um serviço bom. Bom não, tem vez que dá procê ganhá até um dinheiro aqui nessa cidade. Lá pra fora num sei, ganhá um dinheiro bem / cê tem que tê uma faculdade né? Mais... de segundo grau pra cima... aí istudá é... arrumá um serviço assim, eu passo pra noite né, estudo à noite e trabalho de dia... Meio ho, que é, no caso eu vô tá est, tô... trabalhano de tarde, que num tá dano pra istudá de tarde, que eu sô de menor ainda, a minha escola ainda num dexa eu istudá à noite. /Eu trabalho à tarde... estudo à tarde.../ De manhã eu tamém trabaio./ De manhã e à tarde. Mais, é num dá pra estudá nem de manhã, nem de tarde, só dá de noite, de noite eu sô de menor ainda... Aí num dá pra estudá, tem que esperá. / Um ano dá pra... dá pra estudá.

Nas poucas horas de lazer, E. tenta compensar a falta de escola:

Tipo assim, eu... casa da minha tia, assistindo televisão assim, escuto um som e tal... pego um livro assim e vô lê, pra mim, pra num... tem uns que, fica muito tempo sem lê, vai que... depois num consegue lê bem, eu já pego um livro e vô lê, tal... Vô pra minha casa, tal... Aí quando chega no dia de trabalhá assim eu já... normal, normal.

O trabalho preenche o cotidiano de E., deixando-lhe apenas alguns momentos para ver a namorada, para o estudo e para se manter em dia com os acontecimentos do mundo. Junto à descrição de seu cotidiano, E. reafirma ao entrevistador que é boa gente, comparando-se com outros não tão bons:

Assim, quando eu tô trabalhano, meu tio vai assim, me chama, aí eu acordo &– trabalho com ele, né? Aí acordo de manhã cedinho, vô trabalhá, aí eu chego de tarde assim, venho imbora, pra casa de minha tia. Aí eu encontro com minha namorada lá, que ela mora lá, firmeza... Aí no outro dia já... já penso assim, “Vai sê, amanhã vai sê outro dia... tomara que num seja, será um, dia assim, bem bão. Que as veiz vai sê, útil, outro dia bom”. Aí fico assim, aí fico pensano assim, quando o serviço acabá, parecê mais um... pra ir mais né, nunca acabá assim, tal, né? / esquecê minhas aula, pra num esquecê minhas aula, é uma coisa que eu num posso esquecê né?/ Eu pego livro, leio livro, fico na cama as vezes escuto um som, assisto só a TV pra sabê como é que tá a situação assim. Lê um jornal, né, as coisas assim. / Pra sabê como é que tá... tem vá, vários amigo meu, que num assiste, que num assiste nada assim e tal, os cara assim num acredita no quê que a gente fala não, a gente fala: “Tal e tal, aconteceu isso”, num acredita, num assiste a televisão, num... num informa ninguém não, num sabe informá... meu dia-à-dia tá assim, assim hoje.

A cidade em que mora é também vista da ótica do trabalho:

Eu gosto daqui assim, por que.... que eu... trabalho aqui né, eu trabalho e eu nasci aqui, eu acho a cidade boa assim.

Seu trabalho/identidade lhe permite sonhar com o futuro, quando a casa e o casar virão juntos. O trabalho é também garantia de fazer uma boa escolha da parceira, de obter a fidelidade da futura esposa e de escapar de experiências indesejadas:

O que eu sonho mais, o sonho que eu tenho mais assim, é de / né, sonho que tem mais, que tem mais, eu guardo / é tê minha família né, e minha família, vê minha mãe assim e tudo... a família do meu irmão assim bem felizes, e tê a minha tamém feliz assim, tê meus filho né, minha casa... primeiramente né, minha mulhé e meus filho... aí tem uns colega meu assim que fala assim: “Ah num sonho, num penso isso não!”. Eu falo assim: “Ó, tem que se pensá...”
Ah, tê namorada assim é bom né, tá namorando firmeza assim... quem pensa no seu futuro tal, como é que vai sê... aí cê, pensano assim, vai que daí certo mesmo né? Cê qué sua família assim e tal... lá em casa eu penso! Tem pessoa que já fala assim: “Ah, num penso nisso não!” Eu já penso, tê minha ca, primero eu penso em tê minha casa, pra depois eu mi casá./ Tem umas que pensa em já casá sem tê nada. Mais... num dá certo... morá e casa /. Aí eu penso no meu futuro, na minha, minha... Eu penso assim, positivo né, tem uns que pensa negativo, aí sempre dá errado, a minina... fica, tipo assim família assim, a minina vai e caça outro né, a minina fica / com otros, aí num dá certo. Mui, muitas pessoa aí eu conheço assim, já morreu né, minina assim, minina assim, namorada assim sabe?/ Num joga bem com a namorada, sabe? Aí ela vai e trai ele e tal./ Queima o cara, mata o cara, por causa da namorada... / Posso procurá uma menina firmeza já, uma minina que eu sei né, que num vai caçá com outro e tal, ou que ela tá namorando com outro, hoje em dia cê tem que pro, procurá pra namorá que as veiz .../ que por exemplo, cê pega uma mina de um ladrão da área aqui, cê tá, cê... pode procurá seu caixão que...
Eu penso em namorá até um certo tempo né, mais, certo tempo assim a gente qué se casá assim... / Eu já penso. Já, a pessoa assim, igual eu, comecei trabalhá assim, mais pequeno né, já pensa mais né? Ainda mais d’eu trabalhá assim né, é bem engraçado assim, pensa...

Vê-se, assim, que E. quer o entrevistador vendo-o como virtuoso e bem pensante. Acha que faz essa boa figura porque tem um trabalho que supervaloriza. Trabalho infantil, ilegal, mas idealizado por ele e, possivelmente, pela mãe, tio, tia, vizinhos. Possivelmente, suas imagens do trabalho são compartilhadas por muitas outras pessoas na região.

De outro lado, a situação idealizada de trabalhador permite a E. ter o maior desprezo pelas meninas sexualmente exploradas que, segundo ele, são culpadas da própria desgraça além de, eventualmente, desgraçarem também os caminhoneiros que lhes dão carona. Do jeito que fala, parece que sabe muitas coisas a respeito delas. Julga muito, condena muito. Nesse caso, também, é possível que seja porta-voz de um imaginário social local que se tem delas. Sua fala, manifestação evidente da “dupla moral, permissiva para o homem e restritiva para a mulher, contribui para a discriminação e para a representação do feminino como demoníaco que se encarna nas prostitutas” (V. Faleiros, 2004, p. 55). Veja-se a entrevista:

Tem várias minina, isso aí, tem umas que é firmeza, tem umas que num é... / Tem umas minina aqui que... tem namorado já e se envolve com os cara, cata os amazonas aqui que... / uns cara que... se fosse ocê envolvê com alguma mina deles... / Cê pode... que eles procura mesmo, sabe? Matá pessoas. Eles são encrenqueiro, tipo assim, é o de lá e o de cá... /
Igual uma mina aqui mesmo, tava aqui veno, a galera conversano mais ela e tal, tá, aí ela: “Amanhã eu vô pegá carona, vô lá pro Bonde do Forró” Eu falei: “É...” / Aí ela falô comigo: “Eu vô pegá carona!” Aí L. escutô: “Num faiz isso não...”. Hoje em dia tá muito assim, pega carona e tal, caminhonero que num é carona mais segura né... ela, ela caba com a própria vida né? Igual aqui, as mina num tá importano com isso não, num é direita não, mais algumas já tem cabeça... / Tem umas que num tem não... umas pensa assim: “Ah, eu vô, vô pra lá e volto” né, tem umas, tem umas que: “Ah não, vai que acontece alguma coisa...” Aí num vai.... Pra mim assim é... pra elas num tá não, mas pra mim...
Elas pensa que vai sê divestido. Que vai sê divestido né/ vai que é um cara maldoso, né, que, é... Vai que a família num gosta disso tamém.
Aí é, a mina desvaloriza. Essas coisa assim. Pegá carona assim, na pista... / Tem umas que pensa assim: “Vô ganhá um dinheiro”. / Elas vão ganhá um dinheiro. Mais num tá usano a ca, o juízo pra sabê o quê que vai, vai fazê, né? Pensa que vai sê fácil...
Pensa assim, / assim mesmo, pensa que vai sê fácil. Aí.../ os cara assim... tem muita mulhé perto de minha rua que já morreu. /Umas treis assim, pegano carona... / Indo pra outra cidade, aí acontece acidente, essas coisa assim. Se envolveno, elas mesma prejudica um caminhoneiro que aí... prejudica elas mesmo, sabe? Os dois fica prejudicado... / Aí o ca, o caminhonero pede, faiz tudo, vai nas idéias delas, vai que pede, perde o controle, né, intão, bate o caminhão... / Ou ela, eles faze alguma coisa com ela... / Várias mulhé assim lá onde minha casa morreu assim, de grade de caminhão assim, que bateu ni carreta... / Acontece acidente./ Elas mesma que... faz... essas coisa assim acontecê que eles, que elas incentiva né? Elas chama o caminhonero pra ir, os caminhoneiro esquece as coisa, vai conversá com o caminhonero muito né, e num pode conversá, dirigino né? Acontece isso, / aqui já morreu umas treis.../ Ainda, as mulhé hoje em dia ainda num repara isso né, tem umas que num repara não, tem umas que pode olhá, quase já morreu né, com essas coisa assim... É, hoje em dia elas num tá se importano... / Ontem mesmo me falô assim: “Hoje eu vô pegá carona!” Chegá lá eu vô pagá a entrada né, elas pega carona pra num pagá ônibus... mais vai vê, o dinheiro que ela vai pagá, pode sê que sai uma vida dela, pode sê que não, né?
Conheci algumas, só que já... foi já... ela foi, todas que eu já conheci já se foi. / Tem vez que algumas assim que eu, que eu vejo assim eu... converso com ela e tal, eu falo pra num ficá assim, né, essas coisa assim e tal. A minina mesmo que eu fiquei, teve uma mina que eu fiquei, ela falô um negócio comigo um dia que ia fazê isso, eu falei com ela se ela fazesse isso eu num queria nem papo com ela mais, que a mina, legal, “Num faiz isso não, e tal, isso aí vai sê pior pra você, vai prejudicá você”. / Eu conversei com ela. Mais tem muitas mina aí que tá fazeno isso ainda.
Tem umas que tem sorte, tem umas que vai, num acontece nada, aí volta. / Aí segue num certo tom né, que ninguém /, vai acontecê isso com ela. Esses, hoje em dia cê tem que, cuida direito. Tem uns caminhonero, uns caminhonero assim que já, hoje em dia num tá pensano, na vida dos outro assim não, né? Tá, mais pensano assim no deles. Um /, se fosse um caminhonero eu num tava nem, num parava não, parava não, se não acontece essas coisa né? É que, tipo assim... sexo assim a gente /, todo mundo gosta. / Normal, assim, se eu fosse, se eu fosse caminhonero assim eu nem parava não, e se parasse assim é pior, aí que a gente fica incentivando, põe na cabeça... Tem umas mesmo que é safada, umas que já vai, já vai... na conversa. Aí, aqui, até que, até que é mais poco do que alguns lugar. / Aqui é mais poco./ Esses lugar assim, mesmo Pontos dos Volante, Padre Paraíso, lugar assim é demais, né? / Ponto dos Volante mesmo é um lugar assim que, desses que tem mais. Daqui da, que / aqui perto. Medina tem, mais eu acho que não muito, que... lá já é lugar já né, que... tem promotor, e tal. Aí já pensa, que lá, lá por perto já avista, né? / Aí elas pega aí né, pega mesmo carona, sabe, vê que tem umas que vai pra lá, pega carona e vem pra cá./ Eu encontrei umas pegano carona.

E. não trata de forma diferente os meninos prostituídos. Eles são igualmente objetos de seu desprezo, vistos como portadores de um selo de desqualificação. O entrevistador pergunta se há também meninos que vão para a pista:

Tem é... / Tê tem, mais é... né, já é viado. / Vão, e muito! Tem um... uns deiz... / Que eu conheço aqui. Tem uns deiz que eu conheço aqui, que eu já vi. A gente já, conhece assim, de ouvi falano né, mais, por exemplo, nem converso não, por causa do terror (rindo), terror tipo assim, raiva, num gosto não, vi conversá comigo eu fico calado, essas coisa não (rindo), num gosto não, essas coisa assim não... Eu tenho raiva assim que eu tenho um primo sabe, um primo que mora lá no centro, aconteceu essas coisa com ele. / Aí já / essa coisa... já, num gosto mesmo, desse tipo assim. Vai acontecê comigo só se Deus mudá minha vida mermo... comigo num acontece não... / Home assim, menino assim, que é home mermo num faz isso não. / Só esses home assim de trabalhador, né, assim, de, que tem um ônibus de escola, num é carona, é tipo uma carona, mais é lá é normal, essas pessoa que trabalha, até mulhé pega, só que é, é normal né, ônibus de escola, a mulhé, pai de família, pega, essas pessoa assim.

O trabalho doméstico

Se para os meninos da região são oferecidos trabalhos pesados na construção, na lavra, como carregador ou longas jornadas em bares, para as meninas, como reza a tradição, são oferecidos empregos domésticos. Desde muito cedo o trabalho doméstico faz parte do cotidiano delas. Entre os 34 entrevistados, 28 afirmaram ter realizado serviço em casa. Os 34 dedicam uma média diária de duas horas ao trabalho doméstico, dado apurado a partir da questão do formulário: “Faz algum tipo de trabalho em casa? Qual (quais)? Quantas horas por dia?” Os depoimentos a seguir confirmam o exercício da atividade. Novamente, está-se diante de trabalho infantil pesado e banalizado no imaginário dessas crianças. Elas não têm a menor idéia de que são vítimas de um crime:

Eu acordo 7 horas, e, vou arrumar casa, ajudar mamãe. (Entrevista 14 &– 16 anos)
Todo dia eu arrumo casa. (Entrevista 15 &– 15 anos)
Eu faço de tudo, minha mãe só lava roupa. (Entrevista 6 &– 13 anos)
Quem cuida da casa é eu e minha tia. (Entrevista 22,12 anos)
Eu levanto, lavo louça, depois vou arrumar a casa, né, depois eu faço almoço, lavo a louça do almoço (ri), novamente, e aí, fico com a tarde, e aí só a noite que eu vou fazer janta novamente, e aí... dormir. / Seis horas de trabalho, no máximo. Seis horas. É pouco. / Meu marido me ajuda um pouco também. Ele dá muita força. (Entrevista 31 &– 16 anos)
Minha mãe deixava a minha irmã comigo. Eu tinha seis anos. / Gosto de... de ficar sozinha em casa prá mim arrumar casa, prá ficar limpa. / Só que eu não gosto quando eu tô arrumando a casa e fica aquele tanto de gente passando prá lá prá cá. E eles não limpa os pé lá em casa não. Dá uma raiva, minina! (Entrevista 7 &– 13 anos)
Tenho que cuidar dele (referindo-se ao filho). Lavo louça, arrumo casa, lavo roupa, é, lavo roupa, faço almoço e depois do almoço eu cuido de tudo de novo, arrumo a comida e tal, é... e, de tarde, às vezes eu vou jogar futebol. / [Trabalho] oito horas, né? Com meu filho... (Entrevista 32 &– 17 anos)
Eu faço um almoço lá em casa, e tal... / E, assim, eu fico muito folgada em casa. Eu arrumo casa, fico cansada, durmo. (Entrevista 23 &– 14 anos).
Aí quando dá umas 4:00 horas eu já começo a fazer janta prá dá no outro dia, coloco na geladeira daí no outro dia pega e esquenta./ Ah, tem dia que eu gosto da minha comida tem dia que não. (Entrevista 27 &– 13 anos)
Eu acordo seis horas / eu tenho que lavá vasilha prá deixar limpo prá minha mãe. Aí acordo seis horas, tomo café, faço o que eu tem de fazê. / [Faço] faxina lá em casa... (Entrevista 10 &– 17anos)

O serviço doméstico é também a primeira, freqüentemente a única, alternativa de trabalho fora de casa. Às vezes é aguardada com ansiedade, demonstrando mais uma vez uma valorização extrema do trabalho infantil:

Mãinha falou que nós estamos precisando de trabalhar. / Em casa de família! / Eu mais ela tava até trabalhando mas aí nós fomos pra escola. / [Gostamos de] arrumar casa, lavar roupa, arrumar vasilha e olhar bebê. / Eu gosto. / Eu amo! (Entrevista 28 &– 15 anos)

Comumente, na região, entretanto, predomina a falta total de alternativa, o que leva as jovens a idealizarem trabalhos como secretária, vendedora e cabeleireira:

Um serviço aqui eu não arrumo. / Cê não acha um serviço. (Entrevista 5 &– 20 anos)
Porque eu num tenho um trabalho bom, né, não tenho nada. Não posso ajudá minha mãe que eu, bem que eu queria ajudar ela, num posso. (Entrevista 19 &– 19 anos)
Num tenho nada assim pra mim faze não. / A vida é essa: num tem um emprego, num tem nada./ Então... é muitas aí que luta, né, que num tem um emprego, que... (Entrevista 21 &– 17 anos)
Ela é secretária. Nossa, se eu tivesse um emprego desse eu era feliz! Nó, eu procurei emprego, eu num achei nenhum! / O pessoal trabalha muito e eu tenho vontade de trabalhar tamém. (Entrevista 23 &– 14 anos).
Aqui não tem nada pra gente fazer. / Se tivesse alguma coisa pra gente fazer! (Entrevista 25 &– 15 anos)
Mas tem tantas alternativas sem entrar [na prostituição], tem, porque não procura um trabalho, é mais fácil do que fazer isso [vender o corpo]. (Entrevista 27 &–13 anos).
Eu não faço nada. Tava é procurando serviço, sabe? Só que minha mãe não arruma pra mim. (Entrevista 30, 15 anos)
Eu penso em trabalhar. / Não em qualquer lugar entendeu, porque tem lugar que né sei lá não dá pra ir, tipo assim eu ter um emprego não é, tipo assim, para me prostituir e tudo mais, entendeu, ter um emprego fixo, estudar trabalhar em uma loja, tipo assim ter um horário fixo, entendeu, e muito menos trabalhar na casa dos outros, entendeu, as pessoas ficar me olhando sei lá não sinto bem, a pessoa ficar me mandando faça isso, faça aquilo eu não gosto. / Gostaria de trabalhar em algum lugar entendeu, numa loja, nesses lugares assim. Entendeu? (Entrevista 6 &– 13 anos)
Se você for aqui numa loja, que nem que fui na rua toda, procurar serviço, elas falam que não tem! / Porque, tipo assim, é só pra pessoas de nível maior pra trabalhar na loja. (Entrevista 25 &– 15 anos)
Gosto [de mexer no cabelo]. / É mais... às vezes nós num faz isso [fazer trancinhas no cabelo] assim não, sabe? De vez em quando, assim. Num é direto não, mais... agora tem muita gente, assim, que gostô, sabe? / Aí fica muita gente pidino pra nós fazê e dá trabalho isso aqui pra colocá. / Nós tem interesse, sabe, [em trabalhar como cabeleireira] mais, assim, é muito difícil, assim, nós sair pra fora, num sei porquê e ela tem criança também e eu sô de menor, tamém, é ruim, sabe, assim. (Entrevista 21, 17 anos)

Como nenhuma alternativa se apresenta, resta-lhes serem empregadas domésticas, profissão exercida também por algumas de suas mães. O salário mensal, na região, para esse trabalho, variam entre R$30,00 e R$100,00, comumente sendo de R$40,00. Ressentimentos, hostilidades de lado a lado, amarguras, violências e humilhações sujeitam as jovens, confirmando os achados de Le Guillant (2006), na França da primeira metade do séc. XX. Elas encontram também situações nas quais são dominadas e têm que ser submissas. Encontram, igualmente, as “antecâmaras da prostituição”, como já citado por Le Guillant (2006, p. 248) e confirmado nos depoimentos das entrevistadas:

Eu lavava louça assim, sabe? Aí ele [o patrão] começava a me alisá... teve um dia que eu briguei também aí ele só me deixava trancada, num deixava sair. / Eu trabalhei uns quatro méis na casa da mulhé, a mulhé num me pagou. Aí eu fiquei grávida, aí ela me pôs pra fora, sabe? / Todas menina que fica lá, de menor, ele já teve relação. (Entrevista 1 &– 16 anos)
Já trabalhei de babá na casa da, da muié ali, vindo nessa rua aqui vira. / Ganhava 100,00. (Entrevista 22 &– 12 anos).
Olha, elas [meninas que vão pra pista] trabalharam, assim... Casa de família, entendeu? /Normalmente em casa de família, ni loja. (Entrevista 23 &– 14 anos).
Eu tava trabalhando aí na casa de uma... de uma mulher aí, só que eu saí./ Fazia tudo, arrumava a casa, fazia tudo/ Ah, eu acho que eu fiquei lá uns 4 dias só./ Eu mesma [consegui o emprego]. / Só que não deu certo não/ Por causa da mulher do homem, ela é muito nojenta/ Que ela quer mudar as coisas assim. / Ela queria mandar em mim, só que eu não aceitei / Ah, mandar lá fazer as coisas dela lá. Tinha dois dias que eu tava, tipo morando com, com o homem lá, aí. Ela já chegou querendo mandar nas coisas lá. Queria mandar em mim. Aí eu tinha as hora de sair. Aí ela pegou e mudou tudo. / Morava, morava lá, dormia lá c’os meninos./ C’os meninos. Dois gêmeos e uma menina [de 10 ano]. (Entrevista 24 &– 14 anos)
Eu já trabalho [como doméstica] na casa de minha irmã né? / A maioria [das mães das meninas prostituídas] aqui é de doméstica. (Entrevista 25 &– 15 anos).
Trabalho com minha tia. / Trabalho em várias casas. / Desde 12 anos. / O que eu mais gosto de fazer é trabalho na casa de gente. (Entrevista 29 &– 14 anos)

Le Guillant, ocupado especialmente com a psicopatologia do trabalho, chama a atenção para os efeitos do ressentimento que só esporadicamente têm conseqüências graves:

De qualquer modo, apesar do grande número de queixas apresentadas pelas domésticas em relação a suas condições de vida e de trabalho, assim como aos patrões, são raros os efeitos concretos de tal manifestação. As empregadas domésticas “ficam folgadas”, como se diz, “roubam na conta da feira”, implicam com o patrão, cospem na comida e, sobretudo, “pedem uma semana de licença” quando estão enfaradas. A possibilidade de dar um fim ao conflito quando este se personaliza e sai fora de controle, limita consideravelmente na prática a intensidade dos rancores, o número de reações violentas e de manifestações psicopatológicas. (Le Guillant, 2006, p.258)

Como não há outro trabalho na região, a saída, talvez única, para o fim do conflito para as jovens do Vale do Jequitinhonha é a “venda do corpo” na auto-estrada e em alguns outros pontos, atividade que tem vantagens financeiras sobre o trabalho de doméstica (percebem, num programa na pista, entre R$10,00 e R$20,00, o que quer dizer que cinco programas no mês correspondem ao montante recebido por trinta dias de trabalho doméstico; são elas próprias que fazem esses cálculos).

A entrada em situação de exploração sexual

A opção pela situação de exploração sexual as livra, pelo menos temporariamente, da submissão total a um patrão, embora as coloque, também, sujeitas a humilhações, ressentimentos, hostilidades, violências e amarguras. As entrevistadas deixam bem claras as vantagens pecuniárias:

Teve época que ela [a irmã prostituída] chegava lá em casa com uns setenta reais numa noite. (Entrevista 5 &– 20)
A gente... ó, por exemplo, se ocê, se ocê trabalhar, o mínimo que cê pode ganhar é cinqüenta reais. Cinqüenta reais não dá... / É... por mês. Pra arrumar, passar arrumar... é... arrumar, pra lavar, passar, cozinhar, fazer tudo. Às vezes, até pra olhar minino. (Entrevista 7 &– 13 anos)

Não há dúvida de que a maioria das entrevistadas entra na situação de exploração sexual comercial por necessidade de ordem econômica, como se vê nos depoimentos abaixo (observe-se que raramente se fala da prostituição na primeira pessoa; esse ocultamente é objeto de outro artigo):

É, eu acho que é dificuldade / por causa de dinheiro. (Entrevista 1 &– 16 anos)
O que fez ela [a irmã] ir até a pista foi a falta ‘de ter recurso’. / As pessoa precisa sobreviver. / E não é um dinheiro fácil, entendeu? (Entrevista 5 &– 20 anos)
Algumas vão porque gostam outras por necessidade. / Tem pessoas que são pessoas que prostitui prá mantê sua vida, meninas que, inquanto taria numa iscola prá aprendê, prá no dia de amanhã sê alguém hoje vivem na pista, intendeu? / Tem pessoas que faz prá vivê, tem pessoas que faz por não pensá direito, e tem pessoas que faz prá se sustentá, faz isso por sê preciso. (Entrevista 6 &– 13 anos)
Qué vê, muitas pessoas aqui não tem emprego, muitas pessoas... aqui não tem, não tem emprego, sabe? Aí eles acha assim, uma pessoa que veve sozinha, qué vê, uma minina que num tem marido nem nada nem filho, aí eles acham assim: ‘Ah, essa daí é de qualqué um, então eu vô chamá ela’. Aí elas precisam e vão. Eu acho que começa assim./ Mas só que veve nessa vida porque tem umas que precisa, né, porque tem filhos, então num, num há comida, porque já são de maiores, né, tem filhos e tudo. Otras tem casos até que vão prá pista, sabe, se prostituí, por causa de dez, vinte reais, essas coisas assim. (Entrevista 17 &– 22 anos)
Tem hora que ela faz isso, sabe? Prá ajudá os filho dela. Porque, tipo assim, o pai de T., ele é preso. O pai desse mulequim aí, ó. (Entrevista 19 &– 19 anos)
Porque tem algumas que vão pa pista prá pegar carona por necessidade, entendeu? (Entrevista 23 &– 14 anos)
A noite na pista / elas fala assim que é horrível, mas elas tem que ir, porque não tem dinheiro... (Entrevista 25 &– 15 anos)
Mas, tem gente que faz isso mesmo porque precisa né? / É, de dinheiro, né, tá passando dificuldade. / Daí tem gente mesmo que faz isso por fazer mesmo. / E tem as que vão porque precisam de dinheiro. (Entrevista 27 &– 13 anos)
Precisava ganhá dinheiro, né? / Tem várias garotas aí na pista. / Só que a maioria, uns fala: ‘Ah elas faz por dinheiro, prá curtir’. &– Não, cê pode pará e pensá, várias faz prá se sustentá. Tem cabeça fraca, que em vez de procurá um serviço, em vez de procurá outra coisa, elas preferem fazê isso, entendeu? / Tem pessoas que faz prá se sustentá, faz isso por sê preciso. (Entrevista 30 &–15 anos)

Muito mais raros são os depoimentos apontando outras razões para se prostituírem: comprar roupas, adornos e calçados ou simplesmente por prazer (observa-se novamente que o discurso é quase sempre indireto):

Assim, ter um que comprar uma roupa, entendeu? Compra fiado e tá chegando o dia pa pagar”. E aí num tem dinheiro, ‘Vamo na pista’. Quando pede a mãe delas, a mãe delas num tem... Elas vão lá... Vão prá pista e pega. Ou então pode ser... quando quer ir em festa, num tem dinheiro. Naquela noite que tem uma festa... Naquela noite que eles vão numa festa eles arruma dinheiro./ E deve ser pra entrar na festa, sabe? / E ela se prostitui porque ela gosta de ter, assim... farto, um churrasco na casa dela. / Aí ela vai lá, se prostitui, pega esse dinheiro e depois vai pra festa... / Vai numa festa, faz escovinha no cabelo, lava o cabelo...Vai à boate, faz churrasco, nossa! Cê come carne até... até falar chega! Bebe cerveja, pão... Aí rola, entendeu? (Entrevista 23 &– 14 anos)

Eu ía compra umas roupas. (Entrevista 24 &– 14 anos)

Prá ter, prá comprar as coisas, prá / coisa de luxo./ Comprar roupa mesmo, assim pode ficar até um bom tempo com a que tem né, com as que têm, se ver que quer roupa nova, ficar mais bonita né, daí vai querer dinheiro mesmo assim. (Entrevista 27 &– 13 anos)

Eu acho que elas gosta! Porque sente prazer fazendo isso! (Entrevista 2 &– 15 anos)
Por que elas gosta, e por que recebe mais fácil. / Que além delas sentir prazer ainda ganha grana. (Entrevista 13 &– 16 anos)

Tem gente que... que faz isso prá se divertir mesmo. / Deve ser porque não tem nada pra fazer né. Nenhum divertimento. (Entrevista 27 &– 13 anos)

Tanto social quanto individualmente, a venda do corpo não é solução. Mas seu caráter explícito de substituição a outras atividades remuneradas atesta que se trata de um trabalho, mesmo sendo “horrível”, como uma delas diz. E porque é horrível, difícil e perigoso é trabalho valorizado pelos que o executam.

 

Discussão

Há uma diferença fundamental entre a fala de E. e a das meninas com relação às atividades que realizam. Enquanto E. alardeia seu trabalho, obviamente se orgulha dele, sente-se um homem de verdade por exercê-lo, vê-se próximo ao mundo dos adultos e se esquece até que a razão pela qual o executa é econômica, as meninas estão longe de apresentarem uma imagem positiva do que realizam. Ao contrário, raramente gostam do serviço de doméstica e quanto ao de prostituídas simplesmente o camuflam. Sabem que é atividade que tem que ser exercida na clandestinidade e tentam silenciar sobre ela. A esse respeito, ver Machado (2006) que, com base nas mesmas entrevistas, demonstrou a existência de um círculo vicioso que compreende fofoca, estigma, silêncio, exploração, as meninas silenciando numa tentativa imaginária de escaparem ao estigma da prostituta e seu silêncio favorecendo a exploração, protegendo os clientes e os aliciadores, permitindo que todos, nas cidades, fechem os olhos à situação.

Essa diferença entre o discurso de E. e o das meninas, entretanto, não obscurece as semelhanças, responsáveis pelas significações imaginárias sociais positivas que eles atribuem ao trabalho infantil perigoso ou indigno.

(a) Em primeiro lugar, suas respectivas atividades se sustentam na situação de extrema pobreza em vivem. Tanto E. quanto as meninas estão inseridos em relações de trabalho extremamente frágeis e imersos na mesma cegueira quanto à exploração de que são vítimas. Isso está claro nas falas de E. sobre sua atividade na construção civil e nas falas das meninas quanto ao trabalho doméstico. Caso coloque-se entre parêntesis a referência explícita à atividade sexual na frase de E. Faleiros (2004) citada abaixo, e se atente à relação exploração x condições e trajetórias de vida, a frase se aplica igualmente a E. e às meninas:

As instituições (governamentais, não governamentais, internacionais), profissionais, pesquisadores e estudiosos da exploração sexual vêm questionando o termo prostituição de crianças e adolescentes, por considerarem que estes não optam por esse tipo de atividade, mas que a ela são levados pelas condições e trajetórias de vida, induzidos por adultos, por suas carências e imaturidade emocional, bem como pelos apelos da sociedade de consumo. Neste sentido, não são trabalhadores do sexo, mas prostituídos, abusados e explorados sexualmente, economicamente e emocionalmente. (E. Faleiros, 2004, p. 78-79)

(b) Em segundo lugar, como já apontado também na frase acima, não houve uma escolha verdadeira pelo trabalho, de um de outras. Circunstâncias de suas vidas, poucas alternativas regionais, modelos parentais frágeis os induziram aos trabalhos que exercem. Suas falas, registradas neste artigo, deixam ver toda a miséria em que vivem.

(c) Um e outras constroem sua identidade em torno do que fazem, ele a auto imagem de uma pessoa digna, elas a de trambiqueiras, nojentas (Machado e cols, 2006), mas também, como E., a de cabeça boa: “Eu sô muito cabeça”. (Entrevista 12 &– 16 anos).

(d) Finalmente, todos vêem mérito no fato de estarem ganhando a própria vida, tornando-se independentes dos adultos que os sustentaram, mesmo às custas de um trabalho indigno. Não é demais relembrar alguns segmentos de discurso: “Várias faz prá se sustentá.” (Entrevista 30 &–15 anos). “Vão pa pista por necessidade, entendeu?” (Entrevista 23 &– 14 anos). “Elas tem que ir, porque não tem dinheiro...” (Entrevista 25 &– 15 anos).

 

Conclusão

As significações imaginárias sociais criadas para o trabalho pelas crianças e adolescentes expostos a abusos e exploração sexual, no Médio Vale Jequitinhonha, são apenas uma parte da questão, mas que não pode ser ignorada.

Essas imagens positivas para atividades perigosas e indignas e o próprio trabalho infantil constituem, como tudo mais que se passa num território, onde nada ocorre isoladamente, ingredientes a serem levados em conta. Outros ingredientes seriam pobreza, violência e medo. São elementos a serem trabalhados num programa plural de erradicação do trabalho infantil (que inclui o trabalho das crianças na prostituição). Um programa plural envolveria escolas, famílias, ongs, órgãos privados e do poder público.

As imagens estão no discurso de crianças e adolescentes particulares, mas dizem respeito a um contexto mais amplo, à situação do Vale, à situação econômica do país (que não provê postos de trabalho suficientes para seus jovens, como demonstrado estatisticamente por Pochmann, 2001), à crise do trabalho internacional.

Sempre é bom lembrar que a subjetividade, especialmente nos aspectos aqui tratados &– apego ideológico ao trabalho, valorização irrestrita dele &– constitui também um entrave à prevenção da exploração sexual de crianças e adolescentes a ser vencido, não apenas no Vale, mas na sociedade brasileira como um todo, especialmente entre os pobres.

Nesse sentido, ter escutado a fala de crianças e adolescentes, ter sabido que elas, como seus pais e avós, supervalorizam todo e qualquer trabalho, foi importante. Saber que elas estão em busca de alternativas melhores é também positivo. Saber que, no limite, já se sentem incapazes de sonhar (Machado e cols., 2006), tamanha a dureza de suas vidas, mostra a urgência de buscar, com elas, novos imaginários, novas soluções, novos trabalhos, dignos e seguros. Essas informações são também importantes para entidades públicas e privadas que atuam, ora com indiferença, ora com rigidez extrema, no sentido de erradicar exploração sexual comercial e trabalho infantil: que se escute esse imaginário infantil; que se busquem, com as crianças, outras orientações, outras formas de viver e de se representar.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail:marilianmm@terra.com.br

Recebido em agosto de 2006
Aceito em março de 2006

 

 

* Marília Novais da Mata Machado é Doutora em Psicologia pela Universidade de Paris Norte, Paris XIII; professora da Faculdade Novos Horizontes
** Júnia Carine Cardoso da Silva é bolsista de Iniciação Científica da Faculdade Novos Horizontes
1 A Convenção número 138 da OIT, de 1973, em vigor desde 1976, trata da abolição do trabalho infantil. A respeito da idade mínima para a admissão em emprego ou trabalho, regula: “não será inferior à idade de conclusão da escolaridade compulsória ou, em qualquer hipótese, não inferior a 15 anos”. (Art. 2o, item 3). No que diz respeito à construção civil e à prostituição: “Não será inferior a dezoito anos a idade mínima para admissão a qualquer tipo de emprego ou trabalho que, por sua natureza ou circunstância em que é executado, possa prejudicar a saúde, a segurança e a moral do jovem” (Art. 3o, item 1); “As disposições dessa Convenção serão, no mínimo, aplicáveis a: mineração e pedreira; indústria manufatureira, construção (...)” (Art. 5o, item 3)
A Convenção no 182 da OIT, de 1999, em vigor desde 2000, trata da proibição das piores formas de trabalho infantil e ação imediata para sua eliminação: “O termo criança aplica-se a toda pessoa menor de 18 anos” (Art. 2o); “A expressão as piores formas de trabalho infantil compreende: (...) (b) utilização, demanda e oferta de criança para fins de prostituição, produção de material pornográfico ou espetáculos pornográficos; (...) (d) trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são susceptíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança” (Art. 3o). A convenção não diz diretamente que prostituição é trabalho, mas sugere que se possa tratá-la como tal. As duas convenções foram ratificadas pelo Brasil
2 “Invertendo a rota” é a denominação de um projeto de enfrentamento da exploração sexual infanto-juvenil realizado no estado de Goiás
3 O sinal de barra ( / ), nas citações, marca interrupções na fala do entrevistado devidas a turnos de fala com o entrevistador, pedaços inaudíveis ou incompreensíveis e mudanças de assunto. Mudança de linha significa que houve outro assunto intercalado. Parágrafos significam volta ao mesmo assunto em outra parte da entrevista. As transcrições das falas buscam conservar todos os sinais da oralidade

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