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Lógica, experiência e autoridade na carta de 15 de setembro de 1640 de Galileu a Liceti

Logic, experience and authority in the letter from Galileo to Liceti on September 15, 1640

DOCUMENTOS CIENTÍFICOS

Lógica, experiência e autoridade na carta de 15 de setembro de 1640 de Galileu a Liceti

Logic, experience and authority in the letter from Galileo to Liceti on September 15, 1640

Pablo Rubén Mariconda

Professor Associado do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, coordenador do Projeto Temático "Estudos de filosofia e história da ciência" da FAPESP. ariconda@usp.br

A carta, da qual publicamos aqui a tradução, faz parte da correspondência mantida entre Galileu Galilei e Fortunio Liceti durante 1639 e 1640, na qual se desenvolve uma polêmica acerca da luz secundária ou luz cinérea da Lua, observada quando esta se encontra na fase crescente. Já em 1610, annus mirabilis, por ocasião do anúncio das primeiras observações telescópicas no Sidereus nuncius, Galileu adiantara sua explicação para a ocorrência da iluminação secundária da Lua (cf. E. N., III, p. 72-5). Essa mesma explicação seria retomada no Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo,1 1 Todas as referências ao Diálogo serão feitas usando o formato da edição brasileira de 2001, isto é, indicando entre colchetes as páginas do volume VII da Edizione Nazionale delle opere di Galileo Galilei. O mesmo procedimento foi utilizado na tradução da carta, indicando entre colchetes as páginas do volume XVIII da Edizione Nazionale. Todas as demais referências a passagens de outras obras de Galileu serão feitas à Edizione Nazionale por meio da abreviação E.N. seguida do número do volume em algarismos romanos e do número das páginas. em [92] da Primeira Jornada, quando Galileu apresenta a sexta congruência entre a Terra e a Lua, a saber, que elas se iluminam mutuamente refletindo a luz do Sol; e a seguir, de [112] a [124], onde Galileu discute e explica, com base nessa congruência, o problema da iluminação lunar, expondo claramente sua tese de que a luz secundária da Lua é devida ao reflexo dos raios solares pela superfície terrestre. Apesar da plausibilidade e correção da explicação dada por Galileu, os filósofos tradicionalistas continuaram a inventar os mais variados subterfúgios para contradizê-lo, como Fortunio Liceti, um peripatético declarado, que publica em 1639 um livro intitulado De lapide bononiense (Sobre a pedra bolonhesa), no qual atribui a luz secundária da Lua a minerais fosforescentes e a uma dispersão da luz solar pelo ar ambiente lunar, questionando ao mesmo tempo a correção da explicação de Galileu. Instado pelo príncipe Leopoldo de Medici, na carta de 11 de março de 1640 (cf. E. N., XVIII, p. 165), a emitir seu parecer e a responder às críticas que lhe eram dirigidas por Liceti, Galileu responde, em 31 de março de 1640, "do meu cárcere de Arcetri", com uma longa carta de mais de 50 páginas, endereçada ao príncipe Leopoldo. Essa carta fulgurante, conhecida sob o título de "Sopra il candore della luna" ("Sobre o candor da Lua") (cf. E. N., VIII, p. 489-542), ditada por Galileu a seu jovem assistente Vicenzo Viviani, seria seu último documento científico, no qual ele, então cego, reconstruía na memória o conjunto de suas observações lunares.

Contudo, a carta a Liceti de 15 de setembro de 1640 é relativamente independente do conteúdo da polêmica sobre o candor lunar, embora não lhe seja quanto ao fundo metodológico ou a uma certa "perspectiva disciplinar" que Galileu opõe à filosofia peripatética tradicional então praticada nas universidades, da qual Liceti é um representante declarado e destacado. Naquela polêmica, esta carta constitui, por assim dizer, o epílogo metodológico. Seu assunto é, portanto, de ordem geral, de modo que tem uma relevância em si, independentemente do resultado da polêmica acerca da iluminação secundária da Lua. A carta constitui fundamentalmente um pronunciamento metodológico sucinto de Galileu, no qual ele resume sua crítica ao princípio de autoridade na filosofia natural, em particular, suas restrições à autoridade de Aristóteles. Enquanto documento em que se expõe a visão galileana do método (dos procedimentos científicos), a carta a Liceti, na qual se opera a crítica à autoridade na filosofia natural, pode ser comparada com a carta a Benedetto Castelli de 21 de dezembro de 1613, na qual se opera a crítica à autoridade teológica. Ambas se inserem no conjunto de documentos de Galileu contra o princípio de autoridade e a favor da liberdade de pesquisa científica (cf. Mariconda & Lacey, 2001).

Mas o que motiva Galileu a fazer esse pronunciamento a respeito da autoridade de Aristóteles na filosofia natural? Ou, mais precisamente, dado o teor do documento que estamos analisando, qual é o motivo do pronunciamento avaliativo da contribuição de Aristóteles para a ciência? O que leva Galileu a avaliar a contribuição do próprio Aristóteles, o inventor da lógica e da exigência empirista de confronto das conclusões demonstrativas com a experiência?

Tendo enviado ao príncipe Leopoldo sua carta sobre o candor da Lua, esta passa a circular em cópias manuscritas, de abril a junho, divulgando a resposta de Galileu às críticas formuladas por Liceti. Este reclama, na carta de 8 de junho de 1640, de não ter recebido uma cópia diretamente enviada por Galileu, que providencia então para que Liceti receba uma cópia autorizada. Finalmente, após ter tomado conhecimento do teor da resposta a suas críticas, Liceti reclama de Galileu em 3 de agosto de 1640, mostrando-se ofendido pelo ataque movido à sua reconhecida profissão peripatética, acusando-o de adesão cega à autoridade de Aristóteles e de servir-se erradamente de seus preceitos dialéticos. Nos termos cordiais de Liceti:

"Tampouco me conduz a desviar-me da amizade sincera e cordial, que sempre professou ter comigo, aquela última estocada, na qual diz sua justificação proceder contra quem se serviu erradamente da filosofia peripatética, pois não quero que por quatro palavras pungentes se extinga o tesouro de uma antiga amizade, fundada sobre a base da virtude" (E.N., XVIII, p. 222).

Evidentemente, Liceti conhece a posição de Galileu com relação à filosofia universitária oficial e não concorda ser classificado como pertencente àquilo que Galileu denomina em O ensaiador (1623) de "o bando de estorninhos" (E.N., VI, p. 236-7), que são aqueles seguidores que se submetem cegamente à autoridade de Aristóteles, pois, ao contrário, ele é um peripatético sério que não pretende estar distorcendo a doutrina de Aristóteles. De certo modo, Liceti se ofende com a crítica e a acusação de Galileu porque as considera como externas, feitas por quem é alheio à profissão peripatética ou não é especialista de Aristóteles, não estando, por isso, habilitado a julgar a adequação à doutrina de Aristóteles das posições por ele defendidas. Ao fazer isso, isto é, ao deixar subentendida a noção de especialista, distinguindo a abordagem externa e a abordagem interna, Liceti, sem o perceber, deixa o flanco aberto para o ataque, que acontece na resposta de Galileu de 25 de agosto:

"Quanto à outra, que V.Sa. chama estocada, de ter eu escrito estar respondendo a quem erradamente usou a doutrina peripatética, isto me é dito porque, contra todas as razões do mundo, sou imputado como impugnador da doutrina peripatética, enquanto professo e estou seguro de observar mais religiosamente os ensinamentos peripatéticos, ou para dizer melhor, aristotélicos, que muitos outros que me despacham indignamente como averso à boa filosofia peripatética; e porque aquilo acerca do bem discorrer, argumentar, e das premissas deduzir a necessária conclusão é um dos ensinamentos que nos foi admiravelmente dado por Aristóteles na sua Dialética, enquanto eu veja das premissas deduzir conclusões que com essas não têm conexão e que, por isso, afastam-se da doutrina aristotélica, se eu as emendar e reindereçar, penso poder com mérito estimar-me melhor peripatético, e que mais destramente se utiliza daquela doutrina da qual outros se tenham erradamente servido" (E.N., XVIII, p. 234).

O velho Galileu continuava com o mesmo espírito ágil e perspicaz de sempre. Retoricamente, a resposta de Galileu é perfeita. Aproveita a distinção suposta por Liceti e o flanco deixado em aberto para passar da crítica externa, que é como Liceti a toma, para a crítica interna, isto é, operada do ponto de vista dos próprios preceitos aristotélicos. Com efeito, Liceti se ofende porque como diz Galileu "sou imputado como impugnador da doutrina peripatética" e, portanto, mostra entender a crítica como externa; mas Galileu, num movimento inesperado para Liceti, considera-se aristotélico por ser um seguidor dos preceitos lógicos de Aristóteles concernentes, como diz significativamente, ao "bem discorrer, argumentar, e das premissas deduzir a necessária conclusão". Portanto, sua crítica é agora interna, ou antes, sempre o fôra, embora Liceti não o percebesse, e a questão muda repentinamente de caráter ou põe às claras o caráter que sempre teve, pondo em discussão o que significa ser aristotélico. É melhor seguidor de Aristóteles aquele que segue seus preceitos de método ou aquele que se aferra a todos e a cada um de seus ditos, mesmo quando estes estão em flagrante conflito com os procedimentos dialéticos?

A resposta de Liceti de 7 de setembro é significativa. Ela mostra que ele acusa o golpe. Primeiramente, pede moderação e respeito na condução do debate, de modo que a disputa científica entre ambos não seja amargada pelas mordacidades e invectivas de Galileu, tal como a presente de acusá-lo de servir-se erradamente da lógica de Aristóteles, sem ter, segundo Liceti, o direito de fazê-lo.

"E assim como nas suas oposições eu não quero reconhecer espécie alguma de amargura, mas aquela doçura de doutrina que nas contradições de Sócrates soíam provar seus discípulos, assim também desejaria que V.Sa. nas minhas não pusesse com sua imaginação nada de amargo, não tendo eu posto aí outra coisa que o doce de um puro desejo de descobrir a verdade, para manutenção da qual me ensinou Aristóteles dever-se contradizer não apenas os amigos, mas refutar até mesmo as próprias opiniões, anteriormente abraçadas e tidas em apreço. Ao empregar sempre termos de veneração, devidos não menos à nossa antiga amizade que à sua clara fama de um dos maiores matemáticos de nosso século, procurarei não me deixar vencer: na doutrina, pois, ser-me-á caro ser recolocado na reta via do verdadeiro, quanto me pudesse agradar não me ter jamais dela desviado; acerca do que deixarei o julgamento à ingenuidade dos especialistas" (E.N., XVIII, p.244-5).

Como se vê, Liceti entendeu a questão endereçada por Galileu em sua carta anterior e, por isso, opta por declarar-se seguidor de Aristóteles quanto ao procedimento metódico, porque isto é o que faz dele um seguidor inteligente de Aristóteles, isto é, alguém capaz de usar criticamente os ensinamentos lógicos aristotélicos; o que é enfaticamente expresso por Liceti como tendo aprendido de Aristóteles, para satisfazer "o puro desejo de descobrir a verdade", "dever-se contradizer não apenas os amigos, mas refutar até mesmo as próprias opiniões, anteriormente abraçadas e tidas em apreço". Ao mesmo tempo, Liceti acaba revelando o que estava por trás do sentir-se inicialmente ofendido, pois após reconhecer que se pode ter inadvertidamente afastado da "reta via do verdadeiro", remete o julgamento aos especialistas. Como se isso não bastasse, mostra-se, no parágrafo imediatamente seguinte, surpreso com a resposta de Galileu, como se fingisse não ter acabado de responder à questão sobre o sentido de ser seguidor de Aristóteles ou não ter percebido que Galileu, ao declarar-se aristotélico, movia-lhe uma crítica interna.

"Que V. Sa. professe não contradizer a doutrina de Aristóteles, é-me muito grato, assim como (para dizê-lo com liberdade) é-me muito novo, parecendo-me decorrer de seus escritos o contrário; mas pode acontecer que neste particular eu me engane, com muitos outros que têm o mesmo parecer" (E.N., XVIII, p. 245).

Não poderíamos talvez pensar, em benefício de Liceti, que sua surpresa fosse também a expressão da convicção de que Galileu falava apenas retoricamente? Não seria a reinvindicação de ser discípulo de Aristóteles uma simples posição taticamente assumida num debate? Não era a obra de Galileu claramente anti-aristotélica?

A carta que aqui publicamos contém a resposta de Galileu. O principal assunto nela desenvolvido é claro: avaliar a contribuição de Aristóteles para a constituição do método científico e caracterizar com precisão o sentido em que se pode afirmar ser seu seguidor, garantindo, por assim dizer, o direito de ter endereçado a Liceti a crítica de servir-se erradamente dos preceitos de Aristóteles, os quais são, na visão de Galileu, exatamente aquilo em virtude do qual se pode julgar a pertinência ou não do epíteto de "aristotélico". A resposta de Galileu, como uma leitura da carta comprova, amplia os termos do debate, dando a Liceti uma simples, porém contundente, lição sobre o método científico.

Em virtude do pronunciamento metodológico nela contido, a carta a Liceti insere-se no âmbito da crítica de Galileu ao princípio de autoridade, a qual é recorrente em sua obra, encontrando-se, de início, no plano da polêmica teológico-cosmológica de 1613-1616, dirigida para a limitação da esfera de competência e de atuação da teologia sobre todas as demais disciplinas científicas. Depois da condenação de Copérnico, em 1616, a crítica ao princípio de autoridade passa do plano teológico para o científico, que era então o da filosofia natural, combatendo na esfera da filosofia universitária oficial, seja em O ensaiador (1623), seja no Diálogo (1632), a autoridade da qual Aristóteles é investido pelos seus seguidores chamados peripatéticos.2 2 Cf. a nota 6 da Segunda Jornada do Diálogo, para uma organização da estrutura da crítica de Galileu ao princípio de autoridade; cf. também Mariconda, 2001. Nosso documento encontra-se inserido neste último plano, onde ocupa um lugar singular.3 3 Drake reconhece esse lugar singular, não apenas para nossa carta, mas para toda a correspondência com Liceti: "de qualquer modo, a correspondência entre Galileu e Liceti permanece uma espécie de testamento de Galileu concernente às relações entre a ciência como ele a concebia e a filosofia tal como era professada, e merece ser estudada como nenhuma outra parte da correspondência" (Drake, 1988, p. 531). Ele, sem dúvida, exagera na singularidade e importância da correspondência de Galileu com Liceti. A correspondência do período 1613-1616, com, entre outras, as cartas a Castelli e a Cristina de Lorena, é mais importante e tem um significado intelectual na esfera eclesiástica de decisão. Ainda assim, concordo com a idéia de que a polêmica e correspondência com Liceti é uma espécie de testamento científico de Galileu, no qual a carta que estamos publicando corresponde à parte metodológica do testamento. Esse mesmo parecer é reiterado por Geymonat que dedica um lugar de destaque à carta a Liceti em seu apêndice sobre o método (cf. Geymonat, 1984). Avaliada nesse contexto, a carta de Galileu repete posições e argumentos já empregados por ele em outras obras4 4 Para as referências, cf. as notas 4 a 7 da carta. com maior elaboração e precisão, com a única exceção, entretanto importante, de um novo argumento anti-autoritário, que é responsável pela singularidade acima apontada e da qual trataremos no devido tempo.

Então, no que assenta a autoridade de Aristóteles? Em uma formulação simples e direta: em seguir a lógica e a experiência na construção do conhecimento científico; em seguir um método racional para a avaliação dos argumentos científicos. Isso seria proceder aristotelicamente. Ou, em outros termos, a autoridade de Aristóteles assenta, de uma parte, no fato de ter sido o inventor da lógica; em particular, de ter chegado a uma caracterização precisa da dedução, ou seja, ao conjunto de preceitos lógicos que permitem avaliar se um argumento procede concludentemente, de modo a poder ser dito dedutivo ou, na expressão característica de Galileu: de suas premissas seguir-se necessariamente a conclusão. De outra parte, Aristóteles também é o proponente do princípio empirista de comprovação do conhecimento científico pela experiência e disso também decorre sua autoridade. Por isso, para Galileu, ser aristotélico significa "filosofar em conformidade com os ensinamentos aristotélicos, procedendo com aqueles métodos e com aquelas suposições e princípios verdadeiros nos quais assenta o discurso científico".

Ora, Galileu de maneira constante, sem variação de nomenclatura, afirma que o método científico, que é acessível à razão natural (sentidos, discurso e intelecto), está constituído por demonstrações necessárias (matemáticas) e experiências sensíveis; e é significativo que os dois aspectos acima apontados como característicos da contribuição de Aristóteles coincidam com o que Galileu considera serem os dois componentes fundamentais do método: a matemática e a experiência.

Detenhamo-nos em cada um desses componentes tal como apresentados na carta a Liceti, para deixar explícito seu caráter metodológico e seu alcance anti-autoritário.

O primeiro componente tratado por Galileu, após caracterizar o sentido metodológico de "seguidor de Aristóteles", é a lógica. A posição, nesse caso, é inequívoca. Galileu concede a Aristóteles a invenção da lógica, que é tomada como uma doutrina que trata da "forma do corretamente argumentar". Essa forma é caracterizada na mesma linha da carta anterior, como "deduzir das premissas concedidas a necessária conclusão". A lógica é, então, entendida por Galileu como uma teoria da argumentação dedutiva. Tanto é assim que Galileu afirma a seguir "ter aprendido das inumeráveis demonstrações matemáticas puras" segurança no demonstrar, usando este último conceito no sentido claro de dedução. Entretanto, ao mesmo tempo em que Galileu concede a lógica a Aristóteles, nega ter aprendido com ele a demonstrar ou, se se preferir, afirma ter aprendido a deduzir nas demonstrações matemáticas. As duas afirmações de Galileu encerram, portanto, um contraponto, sob o qual fica subentendida a crítica. Galileu distingue entre a teoria lógica da dedução e a prática dedutiva matemática: a lógica é uma teoria da dedução, na qual se formulam os preceitos que devem ser satisfeitos por todo argumento que se pretenda dedutivo; a matemática é uma prática da dedução, na qual se faz uso efetivo de argumentos dedutivos. Isso significa, por um lado, que as demonstrações matemáticas devem conformar-se aos cânones lógicos estabelecidos por Aristóteles, os quais são, por outro lado, impotentes para determinar como se chega às demonstrações matemáticas. Em suma, Galileu delimita muito estritamente a lógica aristotélica ao estabelecimento das condições de dedutibilidade que devem ser satisfeitas por todo argumento que se pretenda dedutivo, mesmo os argumentos matemáticos.

O contraponto serve, portanto, ao propósito de estabelecer sucintamente, numa crítica subentendida, o limite da silogística e do método científico aristotélico. Como diz Galileu no Discorsi:

"a lógica ensina a conhecer se os argumentos e as demonstrações já feitas e encontradas procedem concludentemente; mas que ela ensine a encontrar os argumentos e as demonstrações, nisso verdadeiramente eu não acredito" (E.N., VIII, p. 175).

Ao restringir os procedimentos da inferência científica a uma teoria da argumentação dedutiva, Galileu se afasta da idéia cara ao círculo aristotélico paduano de que a Dialética de Aristóteles não se limita à lógica dedutiva, que fornece os princípios pelos quais se sistematiza ou se expõe o conhecimento, mas contém também o conjunto de procedimentos (não-dedutivos) que permitiriam chegar ao estabelecimento dos primeiros princípios das disciplinas científicas particulares. Afasta-se também da tendência dominante no século XVII, com Bacon e Descartes, de reformar o Organon; reforma que mantinha, entretanto, a acepção ampla da lógica como um método de invenção ou descoberta. O vínculo que Galileu estabelece entre lógica e matemática com base na teoria da dedução tornar-se-á dominante na ciência moderna, mostrando-se mais profícuo do que as tentativas na direção de um método de invenção.

Passemos agora ao segundo componente ou, como diz Galileu em nossa carta, ao "preceito estimadíssimo de Aristóteles", a saber, o preceito de "antepor a experiência a todo discurso humano". É evidente que o preceito corresponde a um princípio empirista, pois é interpretado como uma exigência de confirmação pela experiência das teorias e explicações científicas. Trata-se, em um sentido claro, de uma exigência de controle pela experiência das concepções matemáticas alcançadas pela razão natural.

Esse mesmo preceito é introduzido, em [57] da Primeira Jornada do Diálogo, por Simplício e discutido, em [75]-[76], por Salviati. Em geral, Galileu insiste reiteradamente na instância observacional genericamente proposta pelos seguidores de Aristóteles, usando o princípio do empirismo para voltar, de certo modo, contra os aristotélicos suas próprias armas. As descobertas astronômicas, em particular, produziam toda uma série de fatos da experiência que o próprio Aristóteles, se estivesse vivo, não teria podido deixar de levar em conta. Entretanto, em nenhuma das várias passagens em que Galileu move sua crítica, seja em O ensaiador, seja no Diálogo, ele expressa com tanta clareza, como aqui, o papel de antídoto que o princípio empirista possui no limitar a autoridade.

Esse aspecto é responsável pela singularidade já apontada de nosso documento. Nele, Galileu se apropria da formulação tímida de Liceti na carta de 7 de setembro para transformá-la em um efetivo argumento anti-autoritário. No Diálogo, por exemplo, o papel das experiências sensíveis está articulado em torno do princípio empirista de Aristóteles, o qual recebe a formulação: "a experiência sensível deve ser anteposta a qualquer discurso fabricado pelo engenho humano". Aqui, na carta a Liceti, o aspecto crítico do princípio, tal como interpretado por Galileu, é ressaltado, pois "antepor a experiência a qualquer discurso" é tomado como um preceito

"há muito tempo anteposto ao valor e à força da autoridade de todos os homens do mundo, da qual V. Sa. mesma admite que não só não devemos ceder à autoridade dos outros, mas devemos negá-la a nós mesmos, toda vez que encontramos que o sentido nos mostra o contrário".

Fica evidente que a parte do método referente às experiências sensíveis, expressa pelo preceito de "antepor a experiência a todo discurso", serve para limitar o recurso à autoridade por parte da escola peripatética. É o escrutínio crítico pela experiência que torna o método científico livre de toda e qualquer autoridade, até mesmo daquela do autor do método que permite tal escrutínio. Além disso, a carta a Liceti deixa claro que a oposição de Galileu a Aristóteles é antes cosmológica e física do que propriamente metodológica. Por isso, aqueles que aderem ao princípio de autoridade, pretendendo "que o bem filosofar seja receber e sustentar qualquer que se queira das afirmações e proposições escritas por Aristóteles, afastam-se da interpretação correta de seus preceitos lógicos e empíricos, abandonando-os em proveito de pontos doutrinais que muitas vezes mostram-se contrários àqueles mesmos preceitos de método.

A autoridade de Aristóteles não está, portanto, baseada em nenhum ponto doutrinário, seja cosmológico, como a centralidade e imobilidade da Terra, seja físico, como a teoria do movimento ou a teoria da causalidade, mas na estipulação de um método, de um procedimento racional de certificação da concludência dedutiva dos argumentos e de comprovação das conclusões dedutivas pela experiência. Ser aristotélico significa então proceder de acordo com os preceitos lógicos e empíricos propostos por Aristóteles e não erradamente, como fazem os que se dizem peripatéticos, aferrando-se a pontos doutrinais do Filósofo, porque então prestam cegamente assentimento a muitas conclusões que se mostram falsas, segundo seus próprios procedimentos metódicos. A autoridade de Aristóteles é, portanto, inócua, porque ele é o inventor daqueles procedimentos de método que tornam o juízo científico imparcial e, portanto, autônomo com relação à autoridade de todos os homens do mundo, mesmo a do próprio inventor do procedimento.

Liceti se surpreendera porque, de certo modo, considerara retórica a posição de Galileu. Nós não a consideramos retórica; mas, nesse caso, ela não concederia muito a Aristóteles? Não lhe concederia surpreendentemente o método científico ou, pelo menos para Galileu, seus preceitos mais fundamentais? Por que a surpresa? Afinal, Galileu concede a Aristóteles exatamente aquilo que o afasta de Platão, a saber, a necessidade de uma fundamentação lógica da matemática, com a delimitação precisa do conceito de dedução, subtraindo-a do contexto místico em que o neoplatonismo a colocara; e o método empírico, com a admissão de que a realidade é inerente ou subjacente ao que nos é revelado pela experiência, e não transcendente e pertencente a um mundo ideal como no platonismo que relega a experiência ao mundo cambiante das opiniões.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Primária

GALILEI, G. Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei. 19 vols. Ed. de A. Favaro. Florença, Barbèra Editore, 1933. (E.N. )

_______. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano. Trad., introd. e notas de P. R. Mariconda. São Paulo, Discurso Editorial/FAPESP, 2001. (Diálogo)

2. Secundária

DRAKE, S. Galileo. Una biografia scientifica. Bolonha, Il Mulino, 1988.

GEYMONAT, L. Galileo Galilei. Turim, Einaudi, 1984.

MARICONDA, P. R. "O Diálogo e a condenação". In: GALILEI, Galileu. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo. Trad., introd. e notas de P. R. Mariconda. São Paulo, Discurso Editorial/FAPESP, 2001, p. 15-70.

MARICONDA, P. R. & LACEY, H. "A águia e os estorninhos: Galileu e a autonomia da ciência". In: Tempo social, 13, 1, 2001, p. 49-65.

ROGER, J. Les sciences de la vie dans la pensée française au XVIIIe siècle. Paris, Albin Michel, 1993.

  • GALILEI, G. Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei 19 vols. Ed. de A. Favaro. Florença, Barbèra Editore, 1933. (E.N.
  • _______. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano. Trad., introd. e notas de P. R. Mariconda. São Paulo, Discurso Editorial/FAPESP, 2001. (Diálogo)
  • DRAKE, S. Galileo Una biografia scientifica Bolonha, Il Mulino, 1988.
  • GEYMONAT, L. Galileo Galilei Turim, Einaudi, 1984.
  • MARICONDA, P. R. "O Diálogo e a condenação". In: GALILEI, Galileu. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo. Trad., introd. e notas de P. R. Mariconda. São Paulo, Discurso Editorial/FAPESP, 2001, p. 15-70.
  • MARICONDA, P. R. & LACEY, H. "A águia e os estorninhos: Galileu e a autonomia da ciência". In: Tempo social, 13, 1, 2001, p. 49-65.
  • ROGER, J. Les sciences de la vie dans la pensée française au XVIIIe siècle. Paris, Albin Michel, 1993.
  • 1
    Todas as referências ao
    Diálogo serão feitas usando o formato da edição brasileira de 2001, isto é, indicando entre colchetes as páginas do volume VII da
    Edizione Nazionale delle opere di Galileo Galilei. O mesmo procedimento foi utilizado na tradução da carta, indicando entre colchetes as páginas do volume XVIII da
    Edizione Nazionale. Todas as demais referências a passagens de outras obras de Galileu serão feitas à
    Edizione Nazionale por meio da abreviação E.N. seguida do número do volume em algarismos romanos e do número das páginas.
  • 2
    Cf. a nota 6 da Segunda Jornada do
    Diálogo, para uma organização da estrutura da crítica de Galileu ao princípio de autoridade; cf. também Mariconda, 2001.
  • 3
    Drake reconhece esse lugar singular, não apenas para nossa carta, mas para toda a correspondência com Liceti: "de qualquer modo, a correspondência entre Galileu e Liceti permanece uma espécie de testamento de Galileu concernente às relações entre a ciência como ele a concebia e a filosofia tal como era professada, e merece ser estudada como nenhuma outra parte da correspondência" (Drake, 1988, p. 531). Ele, sem dúvida, exagera na singularidade e importância da correspondência de Galileu com Liceti. A correspondência do período 1613-1616, com, entre outras, as cartas a Castelli e a Cristina de Lorena, é mais importante e tem um significado intelectual na esfera eclesiástica de decisão. Ainda assim, concordo com a idéia de que a polêmica e correspondência com Liceti é uma espécie de testamento científico de Galileu, no qual a carta que estamos publicando corresponde à parte metodológica do testamento. Esse mesmo parecer é reiterado por Geymonat que dedica um lugar de destaque à carta a Liceti em seu apêndice sobre o método (cf. Geymonat, 1984).
  • 4
    Para as referências, cf. as notas 4 a 7 da carta.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2003
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