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Cenografia, agenciamento e mundo ético na entrevista em Jogo de cena: uma abordagem discursiva

RESUMO

Entre a vasta produção de Eduardo Coutinho, destaca-se o documentário Jogo de cena (2007), celebrado como “objeto solar” da filmografia do cineasta, no qual a entrevista ocupa um lugar central. O objetivo deste artigo é refletir discursivamente sobre ela a partir de cenas de fala postas a circular em relação às escolhas estéticas e à materialidade do documentário; natureza da relação entrevistador-entrevistadas, marcada pela recusa a uma “suposta neutralidade” e produção de agenciamentos, cenografias e mundo ético. Para isso, são acionados conceitos basilares da Análise do Discurso, como interdiscurso, cenografia, agenciamento e ethos discursivo, conforme formulados por Dominique Maingueneau. Os resultados mostram que é possível estabelecer diálogos profícuos com os dispositivos metodológicos de Coutinho e conceitos da Análise do Discurso. A partir de uma aura mística do seu silêncio acolhedor, pode-se depreender um ethos respeitoso e atencioso do entrevistador em relação às falas das personagens.

PALAVRAS-CHAVE:
Análise do discurso; Documentário; Agenciamento; Cenas de enunciação; Ethos discursivo

ABSTRACT

Among Eduardo Coutinho’s vast production, the documentary Jogo de cena (2007) stands out and is celebrated as being the centerpiece of the filmmaker's filmography, in which the interviews occupy a central place. The purpose of this article is to reflect upon these interviews, discursively, based on: speech scenes put in perspective and in relation to the aesthetic choices and materiality of the documentary; nature of the interviewer-interviewee relationship, marked by the refusal of an “alleged neutrality” and the production of settings, scenographies, and ethical worlds. For this, we articulated basic concepts of Discourse Analysis, as theorized by Dominique Maingueneau, such as interdiscourse, scenography, setting and discursive ethos. The results demonstrate that it is possible to establish a dialogue between Coutinho’s methodological apparatus and concepts of Discourse Analysis. From a mystical aura of his welcoming silence, the interviewer’s respectful and considerate ethos in relation to the characters' speeches can be inferred.

KEYWORDS:
Discourse Analysis; Documentary; Setting; Scenography; Discursive ethos

Introdução

A entrevista ocupa um lugar central no documentário Jogo de cena (2007), de Eduardo Coutinho, considerado o “objeto-solar” da sua filmografia. Já utilizada pelo cineasta em trabalhos anteriores, alcança seu apogeu nesse filme, por aprofundar a experiência de linguagem, liberando-se a inventividade, a fabulação e a autoencenação. Tal prática, também é designada por Coutinho como “conversa, relação com o outro”.

O objetivo deste artigo é refletir como essa entrevista se constitui a partir da(s) (i) cenas de fala postas a circular; (ii) natureza da relação entrevistador-entrevistada e (iii) produção de agenciamentos, cenografias e mundo ético envolvidos nas entrevistas realizadas por Coutinho. O quadro teórico acionado é o da Análise do Discurso (AD), a partir dos conceitos de interdiscurso, cena de enunciação (cenografia) e ethos discursivo (MAINGUENEAU, 2008aMAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos [1984]. 2. ed. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2008a.; 2008bMAINGUENEAU, D. Problemas de ethos. In: POSSENTI, S.; SOUZA-E-SILVA, M. C. P. (org.). Cenas da enunciação. 2. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008b. p.55-73.; 2008cMAINGUENEAU, D. A propósito do ethos. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. (org.). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008c. p.11-29.), assim como outro mais recente, o de agenciamento (MAINGUENEAU, 2020MAINGUENEAU, D. Variações sobre o ethos. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2020.).

Convém registrar que, desde seus primórdios na década de 1960, a AD se inscreve na problemática das discursividades, com o entendimento de um plano discursivo que articule linguagem e sociedade, entremeado pelo contexto ideológico, de modo a consolidar uma alternativa de análise, mesmo que marginal, à perspectiva tradicional preconizada pela Análise de Conteúdo. Assim, ao postular que os discursos estão permanentemente submetidos à possibilidade de equívoco e de não compreensão, e que as interações humanas são marcadas pela opacidade e pelos efeitos múltiplos de sentido, a AD promove “um alargamento teórico, uma possibilidade outra, originada de um olhar diferenciado sobre as práticas linguageiras” (ROCHA; DEUSDARÁ, 2005, p.308ROCHA, D.; DEUSDARÁ, B. Análise de Conteúdo e Análise de Discurso: aproximações e afastamentos na (re)construção de uma trajetória. ALEA, v. 7, n. 2, p.305-322, jul.-dez. 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/alea/a/PQWYmTntpVgYYZdrbdnQbBf/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 03 jun. 2021.
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).

As premissas subjacentes a uma análise discursiva recusam veementemente uma suposta transparência da linguagem, um sujeito pleno de razão, um método rigoroso e objetivo, assim como a depreensão de sentidos realizada, a priori, em uma prática interpretativa de sistematização, encolhimento de heterogeneidades e contenção da dispersão dos sujeitos por um pesquisador neutro.

Em ressonância com tal perspectiva discursiva, as noções de transparência e opacidade também são questionadas no plano das materialidades fílmicas, pois,

Quando o dispositivo é ocultado em favor de um ganho maior de ilusionismo, a operação se diz de “transparência”. Quando o dispositivo é revelado ao espectador, possibilitando um ganho de distanciamento e crítica, a operação se diz de “opacidade” (XAVIER, 2008, p.6XAVIER, I. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.).

Nesse sentido, Jogo de cena materializa as condições que permitem desestabilizar os regimes de verdade com os quais os documentários operam, assumindo, ao contrário, uma perspectiva outra quanto ao processo de montagem do filme, de modo a pensar na produção de universos em aberto, produzidos no ato de filmar e dos quais se depreende uma reflexão sobre as imagens do mundo e suas formas de representação (COMOLLI, 2008COMOLLI, J.-L. Ver e poder – A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.).

Este estudo justifica-se dada a importância do gênero documentário para a interpelação do homem contemporâneo, sua identificação com determinadas posições de subjetividade construídas pelo filme, assim como uma compreensão mais clara dos meios audiovisuais e do aparato tecnológico na produção de eventos fílmicos dessa natureza, visto que se acentua na contemporaneidade o interesse pelo “real” em diversas formas de expressão artísticas e midiáticas, na produção de uma estética de conteúdo documental, em programas televisivos e jornalísticos, em planos-sequências tremidos e imagens de baixa qualidade registrados por microcâmeras, câmeras de vigilância, amadoras e de telefones celulares, que imprimem um “efeito de realidade” às suas produções (LINS; MESQUITA, 2008LINS, C.; MESQUITA, C. Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.).

Com relação à AD, um empreendimento desta natureza se reveste de relevância devido à carência de pesquisas que se debruçam sobre a temática do cinema-documentário, mediante um dispositivo teórico-metodológico de pleno direito dentro das ciências humanas e sociais, um conjunto de abordagens que pretende elaborar conceitos e métodos fundados sobre as propriedades empíricas das atividades discursivas (MAINGUENEAU, 2006MAINGUENEAU, D. Análise do Discurso: uma entrevista com Dominique Maingueneau. Revista Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL, v. 4, n. 6, p.1-6, mar. 2006. Disponível em: http://www.revel.inf.br/files/entrevistas/revel_6_entrevista_maingueneau_port.pdf. Acesso em: 03 jun. 2021.
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).

Finalmente, o “olhar discursivo” que se lança sobre o dispositivo metodológico de Coutinho, no qual se inscreve a entrevista, permite uma sinalização para a atividade de trabalho do pesquisador-entrevistador, ao tomar como central a interação e a produção das cenas enunciativas nas quais ambos se inscrevem. Trata-se, portanto, de uma operação que assume e apreende o sujeito na trama das relações sociais e culturais, sempre interpelado pela ideologia e afetado pelo inconsciente.

Nas seções a seguir, apresentaremos alguns aspectos do funcionamento discursivo do dispositivo fílmico de Coutinho em Jogo de cena, em que a entrevista assume um lugar central. Depois, procederemos à apresentação dos conceitos da AD acima referidos. Por fim, realizaremos uma análise de cena protagonizada pela atriz Fernanda Torres a partir das noções de cenas de enunciação, agenciamento e ethos discursivo.

1 As regras do jogo: o dispositivo fílmico de Coutinho

Dispositivo é isso, meus filmes começam dizendo que uma equipe de cinema foi a algum lugar, é sempre assim, eu não moro na favela Babilônia, não moro no Santa Marta, eu não moro no Master. Então, sempre o filme começa com as regras do jogo. O jogo é o filme e as regras são essas: no Nordeste, numa favela ou num prédio, tem uma equipe, tem um tempo e vamos ver o que acontece. Isso é dado inicialmente, sempre se trata de um filme, não é a vida na favela. Não é um filme sobre a religião na favela. É um filme sobre a equipe de cinema que vai ao morro conversar sobre religiosidade.

Eduardo Coutinho

Dispositivo, ou “prisão” – conforme definido pelo próprio Coutinho –, foi o termo utilizado para se referir aos seus procedimentos de filmagem, podendo ser tomado como um conjunto de regras e limites formais de tempo e lugar, que o documentarista impôs a si mesmo na consecução de seus filmes, a fim de alcançar um minimalismo estético e um condicionante ético, no qual “o discurso do entrevistado passa a ser o centro de sua atividade de linguagem, a fala de alguém sobre sua própria experiência, sem os clichês relativos à sua condição social” (XAVIER, 2013, p.181XAVIER, I. Indagações em torno de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a tradição moderna. Comunicação & Informação, Goiânia, v. 7, n. 2, p.180-187, jul.-dez. 2013. Disponível em: https://revistas.ufg.br/ci/article/view/24304. Acesso em: 26 jun. 2021.
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).

Em Jogo de cena, Coutinho suprime algumas ferramentas tradicionalmente associadas à atividade fílmica, como o sincronismo entre imagem e som, trilha sonora e narração over (sobreposição de vozes externas às imagens), além de imagens de cobertura, abrindo caminho para o documentário contemporâneo. Até então, no chamado documentário clássico, a voz que imperava era a de um locutor que não encontrava sua origem na experiência; era uma voz over ou “a voz de Deus” que narrava os fatos, de acordo com o que a imagem exibia. O locutor não era visto na cena, pois pertencia a um outro universo sonoro e visual não especificado, “dissolvendo o indivíduo na estatística que diz dos entrevistados coisas que eles não sabem a seu próprio respeito” (BERNARDET, 2003, p.16BERNARDET, J.-C. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Cia das Letras, 2003.).

Nessa tradição (anos 1950), essa voz provinha dos chamados “discursos de sobriedade” (ciência, educação, economia, política etc), que se legitimavam com base em uma autoridade de dizer-poder (NICHOLS, 2016NICHOLS, B. Introdução ao documentário. 6. ed. Campinas: Papirus, 2016.). Os entrevistados só falavam quando questionados e, quando o faziam, era para exemplificar o que estava sendo discutido no filme, por meio de uma “voz da experiência” que ressaltava algum aspecto de sua vida (rotina, trabalho, condições de vida etc). Em outras palavras,

O que informa o espectador sobre o “real” é o locutor, pois dos entrevistados só obtemos uma história individual e fragmentada – pelo menos, quando se concebe o real como uma construção abstrata e abrangente. Estabelece-se então uma relação entre os entrevistados e o locutor: eles são a experiência sobre a qual fornecem informações imediatas, o sentido geral, social, profundo da experiência e isso eles não têm acesso (no filme); o locutor elabora, de fora da experiência a partir dos dados da superfície da experiência, e nos fornece o significado profundo (BERNARDET, 2003, p.17BERNARDET, J.-C. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Cia das Letras, 2003.).

Foi somente a partir dos anos 1960 que o documentário passou a incorporar diálogos, por meio de depoimentos e entrevistas, como uma forma de garantir um estatuto de verdade ao que era dito, o que viria a caracterizar o gênero telejornalístico e documental.

Sendo assim, Eduardo Coutinho se tornaria um representante desse período. No entanto, ele foi além ao passar a trabalhar com histórias de vida de pessoas comuns, anônimas, oriundas de classes menos favorecidas economicamente, bem como a conduzir as entrevistas progressivamente a partir de procedimentos cada vez mais personalizados, que, em grande parte deles, era norteado pela adoção de um dispositivo geográfico e espacial, uma espécie de prisão criativa que valorizava o presente da tomada e visava impedir o filme de incorrer em generalizações (LINS, 2004LINS, C. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.).

Por explorar ao limite os depoimentos orais, o cineasta concebeu a entrevista de modo singular, fazendo o entrevistado se sentir mais à vontade e disposto a se abrir. Quanto ao tratamento das imagens, a câmera se posicionava fixa no entrevistado, alternando apenas os planos - com montagem fixa, foco único nas suas falas, quase nenhuma trilha sonora, voz over ou imagens externas.

Após esse processo e com a equipe técnica completa em cena, iniciava-se a entrevista. O cineasta inicialmente procurava mostrar ao entrevistado que já havia sido informado sobre acontecimentos interessantes de sua vida. Uma das possibilidades que usava era fazer referência a algum episódio anterior, pedindo mais detalhes sobre ele.

O entrevistado, ao perceber que havia um interesse genuíno por seu relato, esforçava-se por realizá-lo com vivacidade, em estado de profunda sintonia com o entrevistador. A palavra que surge dessa interação se transfigura em acontecimento irrepetível, único, associado a uma estética minimalista, marcada pelo agenciamento de poucos elementos visuais em cena.

Estes vão estar presentes no ato efetivo de filmagem: a câmera fixa no personagem, com alterações mínimas no enquadramento – entre o plano médio e o primeiro plano – realizadas com zoom: a cadeira para o entrevistado sob um fundo neutro, o microfone, o pano preto, o teatro vazio, utilizados para integrar a cena, na qual as posições do documentarista e do personagem já estavam previamente marcadas, sem imagens de fora que evidenciassem o que estava sendo dito.

O que viria a produzir múltiplos sentidos seria o despojamento radical do supérfluo, o ato de concentração em torno da potência da palavra. Essa opção de montagem se fazia pela crença de que a palavra seria o elemento mais visceral. Quando uma imagem aparecia, ela não podia ser considerada uma ilustração do que estava sendo falado, uma prova, ela também precisava contar algo. Assim, a imagem quando entrava não podia ser adjetiva (FIGUERÔA; BEZERRA; FECHINE, 2003FIGUERÔA, A.; BEZERRA, C.; FECHINE, Y. O documentário como encontro: entrevista com o cineasta Eduardo Coutinho. Galaxia, Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica, São Paulo, n. 6, p.213-229, out. 2003. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/1348. Acesso em: 25 jun. 2021.
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).

A equipe e a técnica tinham a função de favorecer a interação, o diálogo, a negociação, e Coutinho cuidava para que os elementos que viessem a perturbar as possibilidades de narração de seus personagens nos filmes anteriores fossem eliminados.

A câmera, por exemplo, não deveria se movimentar ao longo das conversas, que deveriam durar entre 40 minutos e uma hora; uma segunda câmera gravaria a entrevista, e deveria haver ainda os técnicos de som, luz e outros integrantes da equipe, criando uma ordem desorganizada ou uma desordem organizada instável que podia se quebrar a qualquer momento (LINS, 2004LINS, C. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.).

Algumas dessas características estão registradas no Quadro 1 a seguir:

Quadro 1
Quadro-síntese do método em Coutinho1 1 Características do cinema-documentário de Coutinho apresentadas em aula-palestra Masterclass, ministrada por João Moreira Salles, em outubro de 2019, no Itaú Cultural em São Paulo, na 47ª edição do Programa Ocupação – Eduardo Coutinho – Mostra do Instituto Itaú Cultural. O evento tinha como objetivo apresentar ao público a vida do artista homenageado, sua trajetória, processo de criação e obra.

A seguir, apresentamos alguns conceitos da Análise do Discurso, como cenas de enunciação (cenografia), ethos discursivo e agenciamento, desenvolvidos por Dominique Maingueneau (2020MAINGUENEAU, D. Variações sobre o ethos. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2020.; 2008aMAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos [1984]. 2. ed. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2008a.; 2008bMAINGUENEAU, D. Problemas de ethos. In: POSSENTI, S.; SOUZA-E-SILVA, M. C. P. (org.). Cenas da enunciação. 2. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008b. p.55-73.; 2008cMAINGUENEAU, D. A propósito do ethos. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. (org.). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008c. p.11-29.), que se relacionam ao modus operandi de Eduardo Coutinho em seu dispositivo fílmico.

2 Interdiscurso, cenografia, agenciamento e mundo ético na entrevista em Jogo de cena

Jogo de cena (2007), considerado um marco da sua filmografia, é o décimo documentário de longa-metragem de Eduardo Coutinho. O filme se passa integralmente no palco do Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro, no qual o cineasta ouviu mulheres desconhecidas a respeito de suas vidas, mas também atrizes famosas, que performaram os depoimentos em um processo de espelhamento enunciativo, ao embaralhar e/ou duplicar as falas das mulheres comuns com as suas próprias, conduzindo assim os espectadores a um território instável de dúvida a respeito da autenticidade dos relatos.

No filme, há três camadas de representação, a saber:

  1. Mulheres desconhecidas contam histórias sobre suas vidas.

  2. Atrizes famosas narram tais histórias como se fossem suas.

  3. Atrizes famosas narram as histórias de sua vida, misturando-as às das mulheres desconhecidas.

As entrevistas em Jogo de cena tinham como premissa maior a necessidade de o entrevistador se abster de qualquer julgamento moral diante da palavra das pessoas filmadas, permitindo que os autorretratos dessas interações não se relacionassem a tipologias de cunho sociológico, a estatísticas ou a possíveis teses do diretor sobre o universo fílmico no qual se inscrevia. Daí a importância de filmar em um espaço restrito, geográfica e temporalmente localizado, em uma locação única e, desse lugar, evocar um “geral”, mas que não necessariamente representasse uma única visão de mundo.

Adotando a forma de um “cinema de conversação”, escolhi ser alimentado pela fala-olhar de acontecimentos e pessoas singulares, mergulhadas na contingência da vida. Eliminei, com isso, até onde fosse possível, o universo das ideias gerais, com as quais dificilmente se faz um bom cinema, documentário ou não, e dos “tipos” imediata e coerentemente simbólicos de uma classe social, de um grupo, de uma nação, de uma cultura. O improviso, o acaso, a relação amigável, às vezes conflituosa, entre os conversadores dispostos, em tese, dos dois lados da câmera – esse é o alimento essencial do documentário que procuro fazer (COUTINHO apud OHATA, 2013, p.16OHATA, M. (org.) Eduardo Coutinho. São Paulo: Cosac Naif, 2013.).

Com a equipe técnica completa em cena, a entrevista era iniciada. O cineasta informava à sua entrevistada que já havia tido acesso a informações, a fatos interessantes de sua vida, frutos da pesquisa prévia realizada pela equipe de produção do filme. Uma das possibilidades a serem acionadas era fazer referência a algum desses episódios anteriores, pedindo mais detalhes sobre eles. Estabelecia-se, desse modo, uma rede de formulações anteriores, um já-dito que recuperava um passado e o atrelava ao momento presente, um jogo de retomadas pelas “antecipações que fazemos do que achamos que pensa e vai dizer nosso interlocutor” (LINS, 2004, p.108LINS, C. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.).

É possível perceber que, ao inscrever a entrevista neste jogo de retomadas, de discursos anteriores, o cineasta já atuava sob a égide do interdiscurso, conceito central da AD, o qual postula que os discursos não nascem deles mesmos, mas se relacionam a uma longa cadeia anterior de discursos já produzidos e que manteriam relações entre si.

Há instigantes similaridades entre o trabalho desenvolvido pelos analistas do discurso e aquele realizado por Eduardo Coutinho em Jogo de cena. Explorar as similaridades e/ou ressonâncias que se estabelecem entre estes dois campos de saberes é o que nos propomos a realizar, mais especificamente, lançando um olhar discursivo sobre o documentário a partir de alguns conceitos da Análise do Discurso.

Assumir que o interdiscurso tem primazia sobre o discurso significa considerar que a unidade de análise com a qual trabalha o analista do discurso não sejam os discursos em si mesmos, mas a relação interdiscursiva que se instaura entre eles, concebidos desde sempre em uma relação dialógica, ou seja, entranhados na sua gênese. Nesse movimento, passa-se a considerar a existência de uma memória interdiscursiva (MAINGUENEAU, 2008aMAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos [1984]. 2. ed. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2008a.).

Desde o princípio, a entrevista em Jogo de cena afirma-se como um espaço de trocas entre discursos, ou seja, é onde ela se dá. E será nesse espaço que se produzirão efeitos de sentido relativos ao outro, à dedicação integral às experiências narradas e, principalmente, ao não julgamento de valor ao que é dito: “Aí se define uma identidade radical entre construção de personagem e conversa, outros recursos sendo descartados” (XAVIER, 2013, p.180XAVIER, I. Indagações em torno de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a tradição moderna. Comunicação & Informação, Goiânia, v. 7, n. 2, p.180-187, jul.-dez. 2013. Disponível em: https://revistas.ufg.br/ci/article/view/24304. Acesso em: 26 jun. 2021.
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).

Ainda pela perspectiva discursiva, a noção de cena de enunciação é constantemente utilizada para se referir à maneira pela qual o discurso constrói uma representação de sua própria situação de enunciação, com a qual pretende convencer seus interlocutores. Para que isso possa acontecer, recorre-se à produção de um quadro cênico tripartido, a saber: a cena englobante, a cena genérica e a cenografia. A cena englobante confere seu estatuto pragmático à enunciação, integra-se a um tipo de discurso, a uma esfera de atividade. A cena genérica é a das normas constitutivas de um gênero ou de um subgênero de discurso: o editorial, o sermão, o guia turístico, a consulta médica, por exemplo. Quanto à cenografia, ela não é imposta pelo gênero, mas construída pelo próprio texto: um sermão só pode ser enunciado por meio de uma cenografia magisterial, profética, amigável etc. Normalmente, a cenografia deve ser legitimada ou relegitimada pela própria enunciação que sobre ela se apoia, pois, de acordo com Maingueneau (2020)MAINGUENEAU, D. Variações sobre o ethos. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2020., o universo construído pelo enunciado deve especificar e validar a cenografia através da qual ele surge.

Duas figuras (a do enunciador e a do coenunciador) se relacionam em uma cenografia, mediante uma cronografia e uma topografia. Essas coordenadas de tempo e lugar definem o espaço a partir do qual o discurso será proferido, o que implica um enlaçamento paradoxal: a enunciação, ao se desenvolver, esforça-se para instituir seu próprio dispositivo de fala.

No caso da conversa de Coutinho com as mulheres, a cena englobante é aquela que corresponde ao tipo de discurso (“o discurso cinematográfico”), a cena genérica é a que se refere ao gênero utilizado (“o documentário”). Essas duas camadas definem o espaço cênico de fundo. Não é com ele, porém, que se depara diretamente o espectador, mas sim com uma cenografia, a qual supõe uma situação de fala que vai sendo validada progressivamente por meio da própria enunciação, visto que “a cenografia é, assim, ao mesmo tempo a fonte do discurso e aquilo que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, estabelecendo que esta cenografia é a cenografia para enunciar como convém” (MAINGUENEAU, 2013, p.98MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. 6. ed. rev. e ampl. Trad. Cecília P. de Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez Editora, 2013.).

Como parceiros de interação, Coutinho e suas entrevistadas se inscrevem nas duas primeiras cenas, já atravessadas pelo questionamento do estatuto de verdade (caráter não ficcional) que define tradicionalmente o documentário. Ao mesmo tempo, esses dois níveis de restrição irão condicionar uma terceira cena, a cenografia, que é aquela que vai ocupar o centro do dispositivo. Com efeito,

(...) tomar a palavra significa, em graus variados, assumir um risco; a cenografia não é um quadro, um cenário, como se o discurso aparecesse inesperadamente no interior de um espaço já construído e independente dele: é a enunciação que, ao se desenvolver, esforça-se para constituir progressivamente o seu próprio dispositivo de fala (MAINGUENEAU, 2013, p.98MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. 6. ed. rev. e ampl. Trad. Cecília P. de Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez Editora, 2013.).

Nas entrevistas, relacionamentos intensos, separações dolorosas, problemas com os filhos, com os pais, morte, dor e luto, dentre outros temas candentes da experiência humana, estão presentes nas cenas de fala nas quais o cineasta se inscreve, em uma atitude de escuta sensível, reafirmando uma identificação maior com o que pode parecer insignificante, esquecido e recusado pela história oficial e pela mídia. É “a vida dos homens infames”, sem fama, que interessa ao documentarista e que ele captura em suas incursões por essas vidas encenadas (LINS, 2004, p.181LINS, C. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.).

Coutinho, em particular, sabe como poucos trabalhar dentro dessa premissa para compor um cenário de empatia e inclusão que se apoia numa filosofia do encontro que não é difícil formular em teoria, mas cuja realização é rara. Ela exige a abertura efetiva para o diálogo (que não basta programar), o talento e a experiência que permitam compor a cena apta a fazer com que aconteça o que não seria possível sem a presença da câmara. O conhecido efeito catalizador do olhar do cinema na gestação da fala inesperada deve chegar à sua potência máxima, de modo a compensar a assimetria dos poderes (XAVIER, 2013, p.181XAVIER, I. Indagações em torno de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a tradição moderna. Comunicação & Informação, Goiânia, v. 7, n. 2, p.180-187, jul.-dez. 2013. Disponível em: https://revistas.ufg.br/ci/article/view/24304. Acesso em: 26 jun. 2021.
https://revistas.ufg.br/ci/article/view/...
).

Concomitantemente ao aqui e agora do ato enunciativo, produz-se, no ato da enunciação, uma imagem de si, ou seja, um ethos discursivo. Estudar o ethos é se apoiar em um dado simples, intuitivo, coextensivo a todo uso da linguagem, visto que o destinatário constrói uma representação do locutor por meio daquilo que ele diz e da sua maneira de dizê-lo. Tem-se, então, uma representação avaliada, pois falar é uma atividade sustentada sobre valores supostamente partilhados (MAINGUENEAU, 2020MAINGUENEAU, D. Variações sobre o ethos. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2020.).

Essa dimensão da atividade verbal foi destacada desde a Antiguidade Grega, especialmente na Retórica de Aristóteles, para quem a prova pelo ethos consistia em causar uma boa impressão, em dar uma imagem de si capaz de convencer o auditório ganhando sua confiança. Esta prova mobiliza tudo aquilo que, na enunciação, contribui para emitir e moldar a imagem do orador. Dito de outra forma,

Tom de voz, ritmo da fala, seleção vocabular e argumentos, gestos, expressão facial, olhar, postura, figurino etc. são igualmente signos, elocutórios e oratórios, indumentários e simbólicos, pelos quais o orador dá de si mesmo uma imagem psicológica e sociológica (DECLERCQ, 1992 apud MAINGUENEAU, 2020, p.10MAINGUENEAU, D. Variações sobre o ethos. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2020.).

O ethos discursivo projetado pelo enunciador e capturado pelo destinatário está assim intimamente relacionado ao que confere corporalidade ao fiador, que lhe dá corpo; à assimilação de um conjunto de esquemas que correspondem a uma maneira específica de se relacionar com o mundo e à constituição de um corpo, o da comunidade imaginária dos que aderem ao mesmo discurso, manifestando-se dessa relação uma incorporação que se dá por meio da assimilação de uma instância subjetiva que se manifesta por meio de um corpo enunciante historicamente especificado, considerado como um fiador que, por seu tom, atesta o que é dito (MAINGUENEAU, 2020MAINGUENEAU, D. Variações sobre o ethos. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2020.).

O ethos de acolhimento, atenção e respeito de Coutinho à fala de suas entrevistadas é a marca de seu posicionamento no campo do documentário e é o que lhe confere a adesão ao seu discurso. Coutinho se projeta como alguém que sabe ouvir, possibilitando às entrevistadas a sensação de estarem produzindo o seu próprio ritmo de fala, generosamente amparada pela figura de alguém que permite que o momento se adense em revelações, surpresas, hesitações, gestos não previsíveis. Isso porque, “ao tomar a palavra, o que um locutor faz, então, é pôr em risco sua imagem e tentar orientar, mais ou menos conscientemente e em um sentido que lhe seja favorável, a interpretação e a avaliação dos signos que envia ao destinatário” (MAINGUENEAU, 2020, p.9MAINGUENEAU, D. Variações sobre o ethos. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2020.).

Em Jogo de cena, o entrevistador-fiador garante os discursos de suas entrevistadas por meio de um corpo que se movimenta na cadeira, marcado por atributos verbais e não verbais: silêncio, voz baixa, pausas longas, poucas entradas verbais, uma certa inflexão de voz, um olhar oblíquo ao enquadramento no qual é capturado no ato de “dar voz ao outro”. Essa incorporação do destinatário implica um mundo ético do qual o fiador participa ativamente (MAINGUENEAU, 2000MAINGUENEAU, D. Analisando os discursos constituintes. Revista do GELNE, v. 2, n. 1/2, p.1-12, fev. 2000. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/gelne/article/view/9331. Acesso em: 03 jun. 2021.
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).

Esse outro com o qual Coutinho se relaciona, observa Lins (2004, p.108)LINS, C. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004., não é mais o objeto do documentário, mas o sujeito do filme. Não é “o outro de classe”, mas “a fonte do discurso, o centro do mundo”. Coutinho não quer dar voz ou ser porta-voz de ninguém, porque isso pressupõe uma verdade do outro a ser revelada no filme, pronta para ser extraída pelo documentarista. Não é isso que ele quer, até porque não há como dar voz ao outro, visto que a palavra não é essencialmente “do outro”.

O cineasta trava conversas “com os outros” e não “sobre os outros”. Nas suas produções fílmicas, destaca-se uma espécie de celebração da palavra encarnada e compartilhada, uma palavra que não é somente de quem a emite, mas de quem a recebe, a quem foi destinada. O mundo ético deflagrado por meio do encontro com o outro é um território de interação compartilhado em estado de copresença, isto é, “uma espécie de fina parceria entre entrevistador-entrevistado, da qual emerge um ponto de vista, um posicionamento” (LINS, 2004, p.108LINS, C. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.).

Concorre para a produção de efeitos de sentidos o agenciamento da cena com poucos objetos presentes no ato de filmagem. O conceito de agenciamento refere-se aos elementos que não derivam do registro verbal, mas que participam da cena (cenário, material etc.), assumindo o mesmo sentido que o termo “cenografia” tem no teatro: arte e estudo da organização, do agenciamento da cena (MAINGUENEAU, 2020, p.142MAINGUENEAU, D. Variações sobre o ethos. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2020.).

Segundo o teórico francês, agenciamento e cenografia não são independentes, ao contrário, o primeiro pode vir a restringir de maneira mais ou menos forte as cenografias desenvolvidas a partir dele. Nesse sentido, faz-se do agenciamento minimalista proposto por Coutinho, quase “franciscano”, com poucos objetos em cena, o vetor que favorece cenografias que imprimem um alto grau de valorização da palavra e se transmutam em acontecimentos únicos e grandiosos.

O agenciamento do espaço onde Coutinho vai ouvir as entrevistadas é assim claramente demarcado: (i) o documentarista ocupa um lugar fixo na cena produzida, e não fora dela; (ii) os depoimentos são tomados sobre o palco de um teatro vazio, tradicionalmente associado a um espaço de ficção; (iii) as conversas acontecem em um palco também vazio, levemente iluminado, habitado pela dupla presença do entrevistador e entrevistada, convidando ao afrouxamento de tensões e sobressaltos; (iv) o microfone, embora discreto, fica visível na cena, oferecendo-se ao desejo de quem quer se revelar; (v) uma câmera permanece fixa, com enquadramento no rosto das entrevistadas, sede do pensamento e da emoção, assim como trabalha a ordenação dos poucos objetos no palco vazio do teatro, com destaque para as cadeiras onde os parceiros da interação se instalam; (vi) uma segunda câmera grava a entrevista, com a presença dos técnicos de som, luz e outros integrantes da equipe, criando uma ordem desorganizada ou uma desordem organizada instável que podia se quebrar a qualquer momento (LINS, 2004LINS, C. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.).

3. Uma entrevista em que “o rigor de Coutinho não é o do engenheiro, mas o do jazzista”

O enunciado que dá título a esta seção foi produzido por João Moreira Salles e consta do prefácio de O documentário de Eduardo Coutinho, de Consuelo Lins (2004)LINS, C. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004., obra que se dedica a refletir sobre a filmografia do cineasta, destacando as suas principais características.

Salles relaciona o trabalho de Coutinho ao do jazzista, naquilo que ele tem de regras de improvisação, mas não do improviso. Prova disso é ele ter se dedicado, a cada novo trabalho, a aprofundar as questões de método, não de forma puramente teórica, mas por meio dos movimentos de câmera, enquadramentos, cortes, modo de articulação das sequências. Em suas palavras, “é uma teoria encarnada, consubstancial à prática”.

Destacamos, então, uma prática discursiva do cineasta, na qual é possível perceber o quanto Coutinho “encarna” seu dispositivo. Trata-se da entrevista que Coutinho fez com Fernanda Torres, atriz bastante conhecida pelo público e convidada a encenar a fala de Aleta, mulher jovem marcada pelo fracasso precoce de alguns dos seus projetos pessoais devido a acontecimentos trágicos: a mãe doente, a gravidez inesperada e inoportuna, as decepções amorosas, a frustração profissional.

Aleta entra em cena narrando uma vida marcada por decepção e descompasso entre os sonhos e a realidade. Em seguida, é a vez de Fernanda Torres encenar Aleta, mas a experiência parece fracassar. Fernanda incorre em alguns descompassos entre o real e o encenado, materializados em seu próprio discurso, ao alçá-lo ao território de sua própria interpretação:

A diferença é que, com um personagem fictício, se você atinge um nível medíocre você pode até ficar nele, porque ele é da sua medida. Com um personagem real, a realidade um pouco esfrega na sua cara onde você poderia estar e você não chegou... Tem alguém acabado na sua frente. (...) Outras vezes, fazendo ficção, fazendo um personagem que não existe você atinge um grau de realidade, que aquela pessoa passa a existir.

A mistura de sentimentos entre a atriz e a personagem Aleta é, de maneira desconcertante, compartilhada com um Coutinho que se mostra sensível à dificuldade da atriz. Segundo Lins (2004, p.8)LINS, C. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004., “face a face com seu personagem, Coutinho vai construindo uma história a dois - a voz e o ouvido comandando em partes iguais a narrativa –, cujo desfecho não há como conhecer de antemão” - de tal maneira que, da parceria que se institui entre ambos, é possível vislumbrar uma saída - Fernanda decide evocar uma memória, uma história pessoal, provocando um “curto-circuito” surpreendente entre as emoções provenientes da sua interpretação com os sentimentos reais da personagem Aleta.

O depoimento de Fernanda reconstitui uma cena ocorrida no espaço mítico-religioso do candomblé, para o qual fora levada por uma tia e de onde retornou depois de ter vivido uma experiência catártica de libertação:

Aí quando eu saí da camarinha, daquela noite, ela tava toda vestida de branco, linda, aí ela virou para mim e disse assim “É horrível lá dentro, né?” e eu falei “tia, é horrível tia” e ela disse assim “Pois é, Nanda, aquilo é a morte, é dali que você tem que sair”. E ela falou, “vem cá”, pegou a pomba e eu fui com ela para o lado de fora, aí ela pegou aquela pomba e eu disse “ai tia, a senhora não vai matar essa pomba, né?” Aí ela virou para mim e falou assim “Eu? Essa pomba é você, eu vou é te soltar” e vrummm, soltou aquela pomba e aí eu entendi o que que era candomblé, aquilo era Freud na prática, era uma coisa assim. E ela curou a minha melancolia com aquilo. Ela curou a minha morbidez de querer ficar, ela deu nome a tudo. A camarinha era a morte, a pomba era eu. Engravidei um mês depois e minha tia morreu um pouco depois daquilo.

À cenografia de restauração psíquica depreendida do relato de Fernanda, alia-se a aura mística do silêncio acolhedor de Coutinho diante das fragilidades do trabalho da atriz e, ao mesmo tempo, da grandeza da pessoa humana. A escuta sensível de Coutinho envolve a entrevistada e valida seu discurso, fazendo, desta interação, emergir uma instância subjetiva, um fiador que assegura o que é dito, sem julgar se este é fruto do real ou do encenado.

Talvez seja o ethos de padre de Coutinho: “Os óculos fora de moda, o cabelo branco, a voz rugosa e ao mesmo tempo acolhedora, a quase permanente invisibilidade de sua figura, contribuem para dar a seus filmes certa semelhança com uma sessão de confessionário” (COELHO, 2007COELHO, M. Mentiras e verdades de Coutinho. Folha de S. Paulo, Caderno Ilustrada. 05 de dezembro de 2007. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0512200726.htm. Acesso em: 03 jun. 2021.
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). Talvez o ethos do psicanalista, que “permite que uma situação aparentemente rígida e inviolável se mostre propícia para que o milagre possa acontecer, quando uma pessoa, ao confessar ou contar uma história, se invente” (ORICCHIO, 2007ORICCHIO, L. Z. Jogo de cena. Blog do Estadão, 11 de novembro de 2007. Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/blogs/luiz-zanin/jogo-de-cena-1/. Acesso em: 03 jun. 2021.
https://cultura.estadao.com.br/blogs/lui...
).

O espectador entende que representar é instável e inseguro. Acentua-se o caráter de opacidade da linguagem desenvolvido pela atriz quando, diante de Coutinho, admite não dominar “o” sentido do texto que interpreta, mas somente ‘um” dentre vários sentidos possíveis e, assim, expõe ao olhar opaco do espectador o efeito do interdiscurso, o qual emerge, em sua interpretação, como um “discurso outro”.

Conclusão

Dentre os recursos narrativos empregados pelos documentaristas para a exposição cênica da alteridade, a entrevista ocupa um lugar de destaque. Eduardo Coutinho utiliza-a como uma forma de promover o encontro com seus personagens. Em um enquadramento modesto, vemos o cineasta conversar com pessoas comuns a respeito de suas experiências. Para tanto, adota um método que se beneficia do corpo, da fala e da memória, com suas entonações, pausas e imprecisões.

Se, de um lado, é um método aparentemente simples na descrição, por outro, é complexo, crítico, contundente, em relação ao modo como a entrevista se constituiu no documentário brasileiro contemporâneo, em que o ambíguo imperativo de “dar a voz ao outro” dá a tônica de uma enunciação ainda dominada pela figura do cineasta (TEIXEIRA, 2003TEIXEIRA, F. E. Enunciação no documentário: o problema de ‘dar a voz ao outro’. In: FABRIS, M. et al. (org.). Estudos Socine de Cinema, Ano III. Porto Alegre: Sulina, 2003. p.164-170. Disponível em: https://www.socine.org/wp-content/uploads/2015/11/III_Estudos_Socine.pdf. Acesso em: 26 jun. 2021.
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).

Na direção contrária, o documentário de Coutinho investe no “como é dito” mais do que “no que é dito”, na potência do ato da palavra única catalisada por um encontro. Concentrando-se no acontecimento verbal irrepetível, o cineasta empreende uma escuta sensível do outro, mediada pela revelação do próprio ato de filmagem no qual entrevistador e entrevistadas se inscrevem, evidenciando, de forma explícita, as suas condições de produção.

É importante destacar também que as cenas de fala, quando reforçadas por um agenciamento mínimo, com poucos elementos em cena, mostram que é possível construir uma experiência singular. Nesse sentido, a presença de uma escada de acesso ao palco do teatro vazio e escuro passa a significar simbolicamente a ascese das personagens à experiência da linguagem plena, ao projeto de se concentrar na palavra do outro, no seu grau máximo de empatia.

  • 1
    Características do cinema-documentário de Coutinho apresentadas em aula-palestra Masterclass, ministrada por João Moreira Salles, em outubro de 2019, no Itaú Cultural em São Paulo, na 47ª edição do Programa Ocupação – Eduardo Coutinho – Mostra do Instituto Itaú Cultural. O evento tinha como objetivo apresentar ao público a vida do artista homenageado, sua trajetória, processo de criação e obra.
  • CNPq, Proc. 312677/2018-9

REFERÊNCIAS

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  • XAVIER, I. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.

Parecer I

O artigo intitulado “Cenografia, agenciamento e mundo ético na entrevista em Jogo de cena: uma abordagem discursiva”, submetido à avaliação da Revista Bakhtiniana traz uma pertinente e relevante reflexão sobre o discurso fílmico, mais, especificamente, sobre a cena genérica documentário. A pertinência e a relevância do artigo se dão não somente para o campo dos estudos discursivos produzidos no Brasil, mas também para outras áreas como a do audiovisual, do cinema, por exemplo. Os objetivos propostos são claros e plenamente desenvolvidos ao longo de todo o texto. O referencial teórico-metodológico perquirido alhures por Dominique Maingueneau, especificamente no que concerne à tríade conceitual - cena englobante; cena genérica e cenografia - está muito bem articulado às análises do documentário Jogo de cena, de Eduardo Coutinho. Cumpre destacar papel imprescindível da cenografia, enquanto dispositivo analítico, mobilizado pelos/as autores/as na compreensão das entrevistas que constituem o documentário. O texto em questão, para além de mostrar que o dispositivo teórico-metodológico discursivo, proposto por Dominique Maingueneau, no que tange à cena de enunciação, é bastante produtivo para dar conta do discurso fílmico, embora o autor não tenha postulado essas noções a partir do discurso fílmico, se apresenta também como uma espécie de roteiro metodológico para dar conta do funcionamento do discurso fílmico. Em outras palavras, o artigo é também um pequeno mapa que sugere percursos analíticos para os interessados (discursivistas ou não) em compreender o funcionamento do discurso fílmico. APROVADO

Roberto Leiser Baronas – https://orcid.org/0000-0003-0758-0370; baronas@uol.com.br; Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, São Carlos, São Paulo, Brasil.

Parecer II

Trata-se de artigo que aborda discussão relevante e atual, com o projeto de propor abordagem discursiva das práticas de linguagem implicadas na construção de um documentário. Tal proposta tem o mérito de justamente buscar preencher lacuna teórica de investigação acerca das chamadas práticas inter semióticas, segundo D. Maingueneau. Considerando que um dos impactos da discussão para área reside justamente nessa articulação, a ausência de menção à referida noção ganha destaque.

Na construção do objetivo de pesquisa, sua primeira formulação no texto é ainda bastante vaga: “refletir como essa entrevista se dá” (p.2). No entanto, na sequência, são apresentados eixos de reflexão na p.2 - a saber, cenas de fala postas a circular; natureza da relação entrevistador-entrevistada; produção de agenciamentos, cenografias e mundo ético envolvidos nas entrevistas realizadas por Coutinho -, que oferecem desdobramentos interessantes para o quadro teórico indicado. Esses eixos estão mais fortemente vinculados à formulação do objetivo no resumo: “O objetivo deste artigo é refletir discursivamente sobre essas entrevistas a partir de: (i) cenas de fala postas a circular em relação às escolhas estéticas e à materialidade do documentário; (ii) natureza da relação entrevistador-entrevistadas, marcada pela recusa a uma “suposta neutralidade”; e (iii) produção de agenciamentos, cenografias e mundo ético”. Nesse sentido, uma formulação do objetivo que incorpore esses aspectos é necessária.

Em relação à construção do quadro teórico, observa-se que as obras mencionadas são suficientes para uma adequada análise orientada pelo objetivo sugerido.

Alguns aspectos a respeito da apresentação das noções fundamentais trabalhadas no artigo podem ser revistas, sobre as quais discorro a seguir.

Na p.9, há uma longa citação acerca da noção de interdiscurso, seguida de comentários que não produzem articulação explícita entre a referida noção e o material em análise.

As palavras “gênero” e “cena” assumem certa variação no emprego, ora surgem como conceito, ora como palavra comum da língua. Sugere-se indicar a referência à definição de entrevista como “conversa, relação com o outro”, na p.1. A menção ao “gênero documentário” indica a relevância na noção de gênero discursivo para a reflexão construída no texto. Nessa direção, é importante. Há usos da palavra “gênero” que parecem remeter a um uso comum, como em “caracterizar o gênero telejornalístico e documental” (p.5). Por outro lado, a noção é retomada, quando se discute o quadro cênico e se faz menção à cena genérica.

Do ponto de vista discursivo, a entrevista constitui um gênero ampliado, com diversas subdivisões. Há, no texto, passagens que colocam em cena noções muito importantes e que merecem desdobramento. Um exemplo é o seguinte trecho: “Nesse sentido, Jogo de cena materializa as condições que permitem desestabilizar os regimes de verdade com os quais os documentários operam, assumindo, ao contrário, uma perspectiva outra quanto ao processo de montagem do filme” (p.3).

Sugere-se rever o emprego da noção de cenografia, em: “Nas entrevistas, são construídas cenografias de relacionamentos intensos, separações dolorosas, problemas com os filhos, com os pais, morte, dor e luto, dentre outros temas candentes da experiência humana e presentes nas cenas de fala nas quais o cineasta se inscreve” (p.10-11).

Na construção de metodologia de análise, observam-se de modo recorrente considerações fundamentadas em autores do campo dos estudos em cinema, que não abordam a discursividade tal como se propõe o artigo. Tais considerações demarcam a importância da filmografia de Eduardo Coutinho e fundamentam o diálogo entre os campos de estudo propostos. No entanto, sugere-se ter cuidado com o emprego de tais referências na discussão das análises.

Na p.6, procede-se a uma discussão em torno de algo que parece remeter a um exemplo específico: “Reconhecendo haver um interesse especial por seu relato, o entrevistado se esforçava por contá-la com vivacidade, num estado de copresença, em que se registrava uma profunda parceria entre os interlocutores”. Sugere-se situar e referenciar o exemplo.

O quadro presente na p.7 parece propor uma aproximação à textualidade verbovisual em questão. Não se encontra uma delimitação mais precisa do tratamento a ser conferido ao trecho em destaque, bem como a definição das categorias de análise. Esta pode ser justamente uma contribuição importante do artigo para a área. Nesse contexto, a noção de cenografia, tal como proposta por Maingueneau, não é plenamente analisada.

A indicação de um ethos é apresentada, mas não se tem acesso à análise que conduziu a tal consideração. “O ethos de acolhimento, atenção e respeito de Coutinho à fala de suas entrevistadas é a marca de seu posicionamento no campo do documentário e é o que lhe confere a adesão ao seu discurso” (p.12). Este trecho é um resultado de análise. Sugere-se explicitar quais aspectos teriam conduzido a tais conclusões. Essa discussão a respeito do ethos do entrevistador demanda evidenciar as alterações propostas na conceituação utilizada. Na definição do autor, o ethos remete à imagem de si construído pelo locutor.

Por essa razão, as análises se circunscrevem a comentários que transitam entre menção às noções oriundas da abordagem discursiva e comentários baseados em estudiosos do campo do cinema. Sugere-se aprofundar a sistematização do emprego das noções da Análise do Discurso na reflexão acerca da materialidade fílmica. CORREÇÕES OBRIGATÓRIAS

Bruno Deusdará – https://orcid.org/0000-0003-0429-8580; brunodeusdara@gmail.com; Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

Parecer III

O artigo submetido impressiona, em primeiro lugar, por sua escrita de fluidez ímpar. A proposta do artigo é interessante e seu objetivo, refletir discursivamente sobre o funcionamento das entrevistas em Jogo de cena, de Eduardo Coutinho, a partir do quadro teórico proposto por Maingueneau, é cumprido de maneira consequente e com pleno domínio teórico.

Faço uma pequena sugestão de ajuste no texto: nas páginas 6 e 8/9, há a repetição do procedimento de Coutinho de começar a entrevista dizendo à entrevistada que tivera acesso a informações e fatos de sua vida. Sugiro que no segundo momento em que esse procedimento é retomado, isso fique marcado no texto justamente como uma retomada e não como uma informação nova, para que não se produza o efeito de um “recorta e cola desatento”.

É um artigo que contribui para os estudos discursivos proposto a partir de Maingueneau, num entrelaçamento produtivo com o campo do cinema. APROVADO

Suzy Maria Lagazzi – https://orcid.org/0000-0001-6951-1480; slagazzi@gmail.com; Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Departamento de Linguística, Campinas, São Paulo, Brasil.

Parecer editorial

Solicita-se às autoras que atendam às observações do segundo parecerista, reescrevam o texto no que for necessário e reenviem para o periódico até 05-11-2021.

Parecer IV

Trata-se de artigo que propõe reflexão acerca da materialidade fílmica, investigando, nesse contexto, a produtividade de noções como as de agenciamento, cenografia e mundo ético, oriundas do quadro teórica da Análise do Discurso. Para essa investigação, elegem como campo produtor de pistas para análise, a filmografia de Eduardo Coutinho, com destaque para a obra Jogo de cena. A respeito dessas opções, merece destaque o fato de o artigo apresentar proposta de investigação e análise de materialidade intersemiótica, com contribuição relevante a esse desafiador empreendimento. Destaque-se ainda a atualidade dos conceitos escolhidos para a abordagem proposta, demonstrando diálogo com elaborações recentes para o campo dos estudos discursivos.

Em relação à reflexão relativa ao campo dos estudos em cinema, são mencionadas referências como XAVIER (2008)XAVIER, I. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008., COMOLLI (2008)COMOLLI, J.-L. Ver e poder – A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008., LINS e MESQUITA (2008)LINS, C.; MESQUITA, C. Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008., BERNARDET (2003)BERNARDET, J.-C. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Cia das Letras, 2003.. São ainda apontados aspectos da produção fílmica de Eduardo Coutinho, contribuindo com a construção de perspectiva interdisciplinar e com a delimitação do interesse e do problema a ser investigado, tal como se pode ver formulado em “Explorar as similaridades e/ou ressonâncias que se estabelecem entre estes dois campos de saberes é o que nos propomos a realizar” (p.9).

Em relação ao documentário em análise, o filme Jogo de cena é adequadamente situado no conjunto da obra de seu diretor, explicitando aspectos que se encontram em sua gênese. Tal explicitação tem o mérito de organizar o trabalho das pesquisadoras em direção ao material a ser analisado - procedimento articulado de modo produtivo ao recurso às noções de cena englobante e cena genérica.

Nas análises, as noções de cenografia e ethos se articulam de modo bastante produtivo, explicitando a construção da perspectiva discursiva sobre a obra em questão. A essas noções, articula-se a de agenciamento, que ingressa recentemente de modo sistemático ao quadro teórico da AD. Essa articulação permite incorporar aspectos vinculados à construção do espaço em que são filmadas as cenas em análise. A esse respeito, a exposição imagem dessas cenas permite evidenciar o investimento sobre a materialidade de natureza intersemiótica, que o artigo se propõe a investigar.

Por todas essas razões, considerando as contribuições para os estudos discursivos, tanto do ponto de vista teórico, quanto do ponto de vista do interesse por uma prática intersemiótica, recomendo a publicação do artigo. APROVADO

Bruno Deusdará – https://orcid.org/0000-0003-0429-8580; brunodeusdara@gmail.com; Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Dez 2021
  • Aceito
    31 Maio 2022
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