Uma Perspectiva Ética Do Eterno Retorno1
An Ethical Perspective On The Eternal Recurrence
Diego Ramos Mileli2
RESUMO
O Problema do eterno retorno, conforme este é construído no aforismo 341 da Gaia Ciência, é
analisado em sua possibilidade de se construir uma perspeciva ética. Além disso, são
abordadas as relações que se estabelecem entre essas as expressões 'cuidado de si' e 'eterno
retorno', respectivamente em Foucault e Nietzsche, de forma a compreender como as noções
que residem nelas se aproximam, afastam ou complementam-se.
Palvras chave: Eterno Reterno, Cuidado de si, Perspectiva ética.
ABSTRACT
The eternal recurrence's problem, as it is built in the aphorism 341 of The Gay Science, is
analyzed in the possibility to build an ethical perspective. In addition, we adress the
relationship established between these two expressions "self care" and "eternal recurrence",
respectively in Foucault and Nietzsche, in order to understand how the notions that lie on it
approach, push away or complement each other.
Keywords: Eternal recurrence, self care, ethical perspective.
1
2
Publicado na Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 96-102,
jan/dez2015.
Mestrando em Filosofia – Universität Hamburg. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/1410853542192722.
Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 96-102, jan/dez2015.
1.
Introdução
O objeto deste trabalho é o aforismo #341 de Gaia Ciência de Nietzsche, no qual é
proposta reflexão sobre uma questão: o eterno retorno. Esta é a primeira aparição da noção
que assumirá grande relevância na obra do filósofo. Neves resume em poucas linhas as
implicações do problema na obra de Nietzsche:
Em Nietzsche a doutrina serve como condição para a superação do “mais
estranho e mais ameaçador de todos os hóspedes”[3]: o niilismo. O eterno
retorno, então, coloca-se como nova referência suprema, novo peso[4], depois da
morte de Deus. “É o novo 'peso', a concepção de uma eternidade que se realiza
no tempo, capaz de mudar todo o âmbito dos valores”, escreve Rubira[5]. Nessa
interpretação, o eterno retorno é a condição necessária para a transvaloração de
todos os valores.3
A partir da questão do eterno retorno se pode proceder a uma análise ética. O que
significa cogitar ter uma vida que se repetiria incessantemente em cada ínfimo detalhe? Quais
consequências seriam trazidas à vida daquele que fosse submetido a esta indagação, a esta
perspectiva ameaçadora? Ela funcionaria como uma espécie de método de reflexão sobre o
agir?
Todas essas interrogações e preocupações parecem nos levar a uma observação
constante de nós mesmos pelo peso enorme que passa a se sentar sobre mesmo os mais
ínfimos movimentos e pensamentos. Ante isso cabe se perguntar: em que medida isso, o olhar
para si, o cuidado da vida para que a vida que se leva possa ser repetida durante toda a
eternidade, se aproxima da ética do cuidado de si da qual fala Foucault?
Para análise da questão se procederá da seguinte forma: primeiro será situado o debate
acerca do significado de eterno retorno, tendo como base o referido o aforismo, em seu
ambiente e metáfora utilizados no texto. Em seguida será feita uma breve exposição sobre o
cuidado de si – hemeléia heautoû – na obra de Foucault, especialmente na Hermenêutica do
Sujeito. Durante a exposição acerca do cuidado de si, este será comparado ao eterno retorno.
Por último se concluirá sobre as influências do eterno retorno no campo da ética.
3
NEVES, 2013
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2.
O eterno retorno
O trecho foi escolhido por ser a primeira aparição, conforme dito, do eterno retorno na
obra nitzscheana. A representação da questão tendo por recurso a imagem de um demônio que
interpela o leitor em meio à “suprema solidão” explicita o caráter de terror que pode decorrer
da pergunta. No aforismo é-se instigado a pensar, mais que a responder, o que significaria
repetir infinitas vezes, eternamente, a vida que se levou até o momento. Isso inclui toda a vida
exatamente como ela se deu, tanto as maiores alegrias quanto os piores sofrimentos, sem que
qualquer parte possa ser alterada. O demônio diz:
Esta existência, tal como a levas e a levaste até aqui, vai-te ser necessário
recomeçá-la sem cessar, sem nada de novo, ao contrário, a menor dor, o menor
prazer, o menor pensamento, o menor suspiro, tudo o que pertence à vida voltara
ainda a repetir-se, tudo voltará a acontecer, e voltará a verificar-se na mesma
ordem, seguindo a mesma impiedosa sucessão, esta aranha voltará a aparecer,
este lugar entre as árvores, e este instante, e eu também![...] Não te lançarias por
terra, rangendo os dentes e amaldiçoando este demônio? 4
O texto que poderia ser uma passagem literária denota negativamente aquele que nega
o presente, que nega a vida e espera algo para depois dela. Este foge das intempéries e agruras
da existência e recusaria de bom grado toda a dor que habita o viver. Este será, portanto, o
doente que sofrerá incomensuravelmente com a eterna repetição de sua vida. O leitor é
colocado contra a parede, forçado a reagir e decidir, impelido a uma reflexão sobre os
caminhos pelos quais tem seguido, as escolhas que tem tomado e o modo como tem se
portado no transcurso da existência. A hipótese do demônio parece um martírio desolador.
Sempre o mesmo sofrimento, aquele que deveria ser extirpado, que de nada serve, que
deprime! De fato assim o seria para o homem da moral do bem e do mal, para o homem da
moral escrava.
Essa moral que repudia de tal forma tudo o que é negativo, tendo por objetivo eliminálo, evitando, assim, todo o sofrimento provocado pelo mal. É a moral de um ideal onde todo o
mal poderia ser excluído. Não se é dado conta de que a negação da negatividade na verdade a
amplia exponencialmente até o ponto em que passa a ocupar todos os lugares. Ante tal ideal
de vida, o eterno retorno se transforma numa terrível maldição, posto que todo o sofrimento
4
NIETZSCHE, 2003, p. 179
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será inevitavelmente repetido eternamente. O mal estará presente eternamente, não podendo
ser vencido ou extirpado. O Eterno retorno afasta em definitivo qualquer possibilidade de
moral que não compreenda a eterna agonística entre o bom e o ruim e a relação positiva e
necessária deste conflito inevitável. A moral proposta por Nietzsche 5, é justamente essa
inclusiva, que compreende o bom e o ruim, sem tentativa de destruição, de aniquilação, de
extermínio do indesejado, do desagradável.
Porém, adiante no aforismo o demônio deixa vislumbrar outra postura com relação ao
problema que ele mesmo coloca: “Ou já vivestes um instante prodigioso, e então lhe
responderias: 'Tu és um deus; nunca ouvi palavras tão divinas!'”6
Então há outra relação que se pode construir com a questão. Reviver é trazer além do
sofrimento, os aspectos positivos, a liberdade e a criação. Aquele que afirma a vida e dela
desfruta, se regozijará e, ao invés de amaldiçoar a criatura, a agradecerá, pois será uma dádiva
o eterno retorno. A questão parece, então, como uma espécie de método de reflexão sobre a
afirmação da vida em sua totalidade. A possibilidade desse viés de análise se confirma quando
o autor escreve que
Caso este pensamento te dominasse, talvez te transformasse, talvez te
aniquilasse; perguntarias o propósito de tudo: “Queres isto outra vez e por
repetidas vezes, até o infinito?”. E pesaria sobre tuas ações com um peso
decisivo e terrível! Ou então, como seria necessário que amasse a ti mesmo e que
amasse a vida para nunca mais desejar nada além dessa suprema confirmação!7
Assim, parece que mais que um terror esta hipótese funciona quase que como um
despertar de um novo olhar para a vida, um olhar com positividade e afirmação dela. O
despertar exige outro contato com a realidade e pode ser até mesmo a descoberta de outra
realidade.
O título do aforismo é outro elemento importantíssimo no entendimento do significado
do eterno retorno: O peso mais pesado. Qualquer interpretação sobre a questão deve levar em
consideração o que Nietzsche quis ressaltar ao dar esse título. O peso deve ser interpretado de
duas formas: é peso por ser medida de valoração de algo, bem como por pesar sobre os
ombros, por ser um fardo a se carregar.
5
6
7
V. NIETZSCHE, 2003.
Ibid.
Ibid.
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Assim, “o mais pesado dos pesos”, título do aforismo de A Gaia Ciência, tem
duplo sentido: como o maior dos pesos, o eterno retorno sufocará o ressentido, o
fraco, aquele que não suportará a vida e, muito menos sua repetição eterna para o
homem afirmador, aquele que aprova a vida em sua totalidade, o eterno retorno
do mesmo será condição para criar valores. 8
O peso é aquilo que impele a algo contra o qual se tem que fazer força para não ceder.
O peso pesa pesado sobre os ombros daquele que nega a negatividade, que foge de todo
desagrado, que é, portanto, o fraco. Esse se curva e se torna corcunda. O Corcunda é,
inclusive, justamente a representação da fraqueza, na obra de Nietzsche. O Corcunda
representa o doente: aquele que carrega um peso que não pode suportar. Mas carrega. Carrega,
todavia, apenas porque não pode se livrar dele, lançá-lo fora. Configura-se, assim, como
talvez a maior negação possível da vida, dado o seu caráter niilista, o qual talvez se poderia
dizer resultar na negação de si mesmo. Esse que carrega nada mais é que o peso que carrega,
não havendo ali vida que suporta, mas apenas um suportar do peso. Suportar por não haver
vida capaz sequer de se desvencilhar do peso que o sufoca, quanto menos de se levantar. Para
o corcunda, a repetição eterna da vida que tem levado é a pior das maldições: o peso mais
pesado.
Para o forte, por sua vez, esse peso é medida. Medida que vem acompanhada de novos
valores, de transvaloração. Deus está morto e outra forma de avaliação de ser, de valoração da
ação, de significação do viver é necessária. O eterno retorno é o novo peso que permite essas
avaliações e valorações, é a medida. Nesta significação de medida é que se pode pensar como
uma espécie de método de afirmação da vida. Ao se pensá-la tendo em mente a possibilidade
de eterno retorno, é necessário tomar outra atitude perante a experiência. Corroborando com
essa interpretação,
o eterno retorno de Nietzsche pode ser interpretado como um recurso hipotético
de validação da vida: eu viveria tantas vezes quanto fosse possível a mesma vida,
pois ela foi, de fato, vivida. O conceito funciona como um princípio ético, um
imperativo que sai em defesa da vida e do corpo: “Age de tal maneira que toda
vida possa ser vivida tantas e tantas vezes exatamente da mesma maneira”9
O padecimento e a dor serão sempre recorrentes. Todas as agruras e infortúnios se
8
9
NEVES, 2013
PANSARELLI e PISA, 2010
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repetirão, então, a postura ao longo da vivência deverá ser afirmativa. Não dotando a dor e o
sofrimento de um caráter positivo, já que isso seria também negar a sua negatividade. Há que
se compreendê-los como constituintes da vida, a qual também é afirmatividade e partilha da
alegria. Quando estes últimos são valorizados e aqueles aceitos como inerentes à vida, eles
não são mais negados, pois não existe um sem o outro. A luta entre ambos não cessa para um
ideal sem negatividade. O eterno retorno é a defesa da vida.
3.
O cuidado de si
Michel Foucault10 desenvolve a ideia da Ética do Cuidado de Si a partir da prática da
liberdade. O cuidado de si, vem de epiméleia heautoû e é “o cuidado de si mesmo, o fato de
ocupar-se consigo, de preocupar-se consigo etc.”11. Antes disso, porém, tal como Nietzsche, o
autor parte de uma crítica da moral inaugurada pelo cristianismo, uma moral de sujeição, e
obediência, a qual substitui as morais antigas, caracterizadas essencialmente por uma prática,
um estilo de liberdade. Segundo Foucault12, na cultura grega, helenística e romana o cuidado
de si era um verdadeiro fenômeno cultural. De acordo com o autor, as morais antigas eram
uma ética da existência: “um esforço para afirmar a sua liberdade e para dar à sua própria vida
uma certa forma na qual era possível se reconhecer, ser reconhecido pelos outros e na qual a
própria posteridade podia encontrar um exemplo.”13
A prática da liberdade assume o papel de protagonista na ética de Foucault, a qual se
exerce necessariamente de maneira refletida, destacando que “a liberdade é a condição
ontológica da ética. Mas a ética é a forma refletida assumida pela liberdade” 14. Ou seja, não se
pode pensar a ética, na visão do autor, separada da liberdade. Sendo assim, há que se ter total
cuidado com a liberdade. É importante ressaltar ainda que para Foucault a liberdade está em
toda parte e se exerce, tal como o poder, em toda a relação. Na mesma esfera em que se
exerce o poder, ali se dá a prática da liberdade. Como bem coloca Sampaio “a liberdade é
apresentada como elemento estratégico para a própria existência de relações de poder, um
componente fundamental ao seu exercício.”15
10
11
12
13
14
15
FOUCAULT, 2012, pp. 288-293
FOUCAULT, 2004, p. 4
Ibid. p.13
FOUCAULT, 2012, p. 290
FOUCAULT, 2012, p. 267
SAMPAIO, 2011, p. 223
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Sem prolongar demais a questão sobre a liberdade em Foucault, cabe observar que
essa noção se pode dizer inserida em lógica “moral nobre” nitzscheana, já que não pressupõe
eliminação total da dominação, a qual entende por inerente às relações humanas em eterno
conflito de poder. Concluindo,
A liberdade é da ordem dos ensaios, das experiências, dos inventos, tentados
pelos próprios sujeitos que, tomando a si mesmos como prova, inventarão seus
próprios destinos. Assim, experiências práticas de liberdades, sempre sujeitas a
revezes, nunca como algo definitivo, como numa vitória final. Nem como
concessões do alto (Deus ou o Estado), nem como o “fim de toda dominação”. 16
A liberdade, todavia, requer julgamento prévio da sua prática. O caráter de prática
refletida remete seguramente a Aristóteles17 em sua justa medida, prudência e virtude, o que
aproxima a ética foucaultiana à dos antigos. O retorno aos antigos como ponto de partida, em
negação à moral cristã, – retorno aos antigos, mas não a Platão, o qual é rejeitado por
Nietzsche18 nas críticas ao cristianismo como platonismo - é compartilhada, então, por ambos.
Assim, se sobressaem os elementos que autorizam uma comparação entre os autores.
A ética do cuidado de si, portanto, como acaba de ser visto, por ser ética necessita de
liberdade e por ser prática refletida da liberdade é ética. 19 Então, o cuidado de si é
indissociável da liberdade exercida pensadamente. Há ainda outro pré-requisito ao cuidado de
si que é o conhecimento de si mesmo. Esse cuidado de si se constitui também por libertação
da escravidão de seus próprios apetites, estabelecendo consigo uma relação de controle. O
domínio de si mesmo requer auto-conhecimento, o qual é da mesma forma fundamental para a
relação com os outros a qual, apesar de ontologicamente secundária, está relacionada ao
cuidado de si. Foucault não deixa dúvidas sobre essa relação quando escreve: “É o poder
sobre si que vai regular o poder sobre os outros.”20
Talvez seja interessante deixar claro que o cuidado de que Foucault fala não é o
esmero em como princípio de toda ação evitar a todo custo qualquer tipo de danos,
inquietudes, incertezas e sofrimentos, como se fossem algo que nada contribuem com a vida,
como se fossem parte alheia a ela, a qual pudesse ser eliminada. Se assim o fosse, Nietzsche o
16
17
18
19
20
FILHO, 2007, p. 4
V. ARISTÓTELES, 1985
V. JUNGLHAUS, 2010
FOUCAULT, 2012, pp. 264-287
Ibid. p.272
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repudiaria como moral escrava21. Quando o filósofo francês descreve na Hermenêutica do
Sujeito o cuidado de si, ele o considera como momento de despertar, como um fundamento do
conhecimento de si. Não o dota de tons coloridos de felicidade e plenitude serena e pacífica.
Ao contrário, “o cuidado de si é uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne
dos homens, cravado na sua existência, e constitui um princípio de agitação, um princípio de
movimento, um princípio permanente de inquietude no curso da existência.22”
É um cuidado que exige demasiado, que pesa sobre os ombros. Como características
básicas para o entendimento desse cuidado podem ser citadas três, quais sejam: 1- ele é uma
atitude na medida em que é pratica, é estar no mundo, e com isso, relacionar-se com o outro;
2- ele é olhar para si mesmo, atentar-se ao interior dos pensamentos; 3- ele também designa
atitudes de transformação de si mesmo23.
Este “fenômeno cultural”, como Foucault o chama, passa todavia por um processo de
modificação ao longo da história. A arte de cuidar de si perde o seu caráter positivo, sendo
paulatinamente transformada em algo negativo e mesquinho, em egoísmo em oposição a
altruísmo. Atribui-se a ele esse valor, segundo Foucault24, desde os estóicos e cínicos.
Mais uma vez tal como Nietzsche25, Foucault critica a moral do não-egoísmo “seja sob
a forma cristã de obrigação de renunciar a si, seja sob a forma 'moderna' de uma obrigação
para com os outros – quer a coletividade, quer a classe, quer a pátria etc.”26
Em suma, o cuidado de si é uma atenção fundamentalmente a si mesmo, mas também
aos outros. É um trabalho sobre a sua própria existência tratando-a com cuidado estético a fim
de transformar-se em obra de arte. É uma atitude de valorização da própria vida.
4.
O eterno retorno exige cuidado de si
De volta agora à questão colocada pelo demônio de Gaia Ciência, o desespero de um
eterno retorno que assolaria o rebanho assujeitado, obediente e submisso, parece se esmaecer
quando a existência foi guiada por um cuidado de si, um esmero em fazer da própria vida uma
21
22
23
24
25
26
V. NIETZSCHE, 2013
FOUCAULT, 2004, p. 11
FOUCAULT, 2004, pp. 14-15
Ibid, p. 17
V. NIETZSCHE, 2007.
FOUCAULT, 2004, p. 17
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obra de arte que possa ficar para a posteridade, que possa servir de exemplo. Quando os
autores são colocados lado a lado, se nota que partem de alguns pressupostos em comum,
conforme observado acima. Apesar de não mencionar, parece claro que de algum modo
Foucault conversava com Nietzsche – ou com o demônio – e tinha sobre si o mais pesado dos
pesos quando se preocupou e trabalhou em cima de uma estética da existência, da vida como
obra de arte, e desenvolveu a ética do cuidado de si.
O cuidado de si não se desvencilha do peso. Ele o reconhece e o carrega. Utiliza-o
como matéria-prima para esculpir uma existência que seja além do tempo na medida em que
se pode projetar para além dela mesma. A existência seria entendida de forma semelhante a
uma obra de arte, esculpida pelo cuidado de si com uma preocupação estética; uma “estética
da existência”, através da qual a vida pode assumir caracteres de uma obra de arte duradoura e
inspiradora. De maneira sucinta podemos retomar a afirmação de Ventura segundo a qual
A estética da existência, que teve seu apogeu durante a antiguidade greco-romana,
está diretamente relacionada com a criação de um estilo próprio, através da prática
de técnicas de cuidado de si, e visa a constituição de si mesmo como o artesão da
beleza de sua própria vida.27
Trata-se, portanto, de uma existência criativa e afirmadora da vida e da liberdade cuja
agonística entre liberdade e dominação presente nas relações de poder é a abordada acima. Ou
seja, quando Foucault fala que há uma preocupação com a vida poder servir de exemplo,
trata-se de uma vida que persiste e pode ser revivida pela eternidade. Não há dúvida de que a
ética do cuidado de si responde positivamente ao demônio e o agradece, afirmando a vida,
amando-a “para nunca mais desejar nada além dessa suprema confirmação”. Foucault
tangencia o tempo todo os impactos éticos do eterno retorno quando propõe sua ética, que
retorna ao período clássico.
A fim de que não subsista incerteza sobre como o cuidado de si serve de resposta ao
enigma nitzscheano do peso mais pesado, vale reproduzir uma frase de Além do Bem e do
Mal, que resume a questão deste trabalho: “A alma nobre tem reverência por si mesma” 28.
Ora, a moral nitzscheana é a moral nobre, a qual deve suplantar a moral escrava, que
contrapõe dois absolutos de bem e mal, onde o primeiro combate o segundo almejando
27 V. VENTURA, 2008
28 NIETZSCHE, 2005, 287, p. 174
Revista Filosofia Capital – RFC ISSN 1982-6613, Brasília, vol. 10, n. 17, p. 96-102, jan/dez2015.
derrotá-lo definitivamente. A moral nobre é a que diz sim ao eterno retorno e a alma do que
age conforme ela tem reverência por si mesma, em vez de nutrir respeito temente por algo que
lhe seja externo e que com isso a coordene, comande e dirija. A alma nobre estima a si mesma
e aquilo que constrói e cria pela sua própria existência. Ela é autônoma. A reverência por si
mesma que a alma nobre tem exige, portanto, cuidado de si para que sem o qual não se criaria
tampouco se reconheceria o valor que é necessário para que se possa reverenciá-la. O eterno
retorno exige o cuidado de si.
5.
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