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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.72 no.spe Rio de Janeiro  2020

http://dx.doi.org/10.36482/1809-5267.arbp2020v72s1p.199-208 

ARTIGOS

 

Enterreirando a investigação: sobre um ethos da pesquisa sobre subjetividades

 

Enterreirando research: on an ethos of research on subjectivities

 

Erando la investigación: acerca de un ethos de la investigación sobre subjetividades

 

 

Wanderson Flor do Nascimento

Docente. Programas de Pós-graduação em Bioética, em Metafísica, em Direitos Humanos e Cidadania. Universidade de Brasília. Brasília. Distrito Federal. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No atual contexto da valorização dos conhecimentos dos povos que historicamente foram subalternizados, o risco do extrativismo epistêmico emerge como um novo elemento com o qual as pesquisas precisam se enfrentar. No campo da investigação sobre subjetividades nos terreiros de candomblé este perigo também aparece. Ao compreender os modos como os terreiros se constituem como espaços de resistência, como os processos de subjetivação são experimentados e qual o lugar do conhecimento nesses processos, buscamos apresentar elementos que subsidiem uma proposta de um pensamento e de uma pesquisa enterreirados como um dos caminhos possíveis para contornar o risco sinalizado e discutimos alguns elementos de um ethos da pesquisa enterreirada nos espaços das comunidades de terreiro.

Palavras-chave: Candomblé; Pesquisa; Subjetividade; Epistemologias.


ABSTRACT

In the present context of valuing the knowledge of historically subordinated peoples, the risk of epistemic extractivism emerges as a new element that concerns the field of research. Specifically with regard to the investigation of subjectivities in Terreiros de Candomblé, this danger also appears, effectively. By understanding the ways in which the Terreiros are structured as spaces of resistance, how the processes of subjectivation are experienced and what is the importance of knowledge in these processes, this article aims to present elements that support a proposal of thought and research enterreirados as one of the paths possible to circumvent the signaled risk and we discussed some elements of an ethos of research buried in the spaces of the Terreiro communities.

Keywords: Candomblé; Research; Subjectivity; Epistemologies.


RESUMEN

En el contexto actual de valoración del saber de pueblos históricamente subordinados, el riesgo del extractivismo epistémico surge como Al comprender las formas en que los Terreiros se constituyen como espacios de resistencia, cómo se viven los procesos de subjetivación y cuál es el lugar del conocimiento en estos procesos, buscamos presentar elementos que sustenten una propuesta de pensamiento e investigación erados como uno de los caminos posibles para evitarse el riesgo señalado y discutimos algunos elementos de un ethos de investigación erado en los espacios de las comunidades Terreiro.

Palabras clave: Candomblé; Investigación; Subjetividad; Epistemologías.


 

 

Introdução

Depois de séculos de tentativas de subjugação, de epistemicídio, de invisibilização dos conhecimentos produzidos pelos povos negros que habitam nosso país, parece haver, no presente, um deslocamento nas possibilidades de compreensão destes saberes e nos possíveis usos investigativos para a produção do chamado conhecimento científico. Nas muitas críticas que se fizeram à ciência moderna, tanto no contexto da autocrítica europeia, quanto no âmbito das críticas ao eurocentrismo científico posicionadas no Sul geopolítico, bradou-se a necessidade de que aqueles grupos que a hegemonia branca entendia como "outros" não fossem mais percebidos como meros objetos da pesquisa.

Entretanto, ao observarmos mais de perto este fenômeno, notamos que este aparente deslocamento modificou muito pouco as estratégias de pesquisa. Os marcos epistemológicos e metodológicos resistem às modificações radicais, mesmo diante de críticas advindas de diversos campos teóricos e políticos. Mais além das políticas de financiamento da investigação, persiste uma espécie de conservadorismo epistêmico que teme que as modificações estruturais, nos modos como realizamos nossas pesquisas, comprometam o rigor e a confiabilidade dos conhecimentos produzidos.

Se, de um lado, efetivamente há a circulação de discursos que demandam que os grupos que foram historicamente subalternizados pela história da modernidade, um esforço para a valorização dos conhecimentos por eles produzidos, por outro, este conservadorismo epistêmico provoca um efeito perigoso na efetivação de nossas pesquisas. Se, no passado, estes grupos eram entendidos como incapazes de produzir conhecimento e eram vistos como meros objetos, ora coisificados, ora exotizados, o que percebemos no presente é um risco cada vez mais crescente de que se tome aquilo que esses povos produzem em termos de valores, saberes e práticas como importantes e valiosos, mas mantendo com essa produção uma relação expropriatória, por meio da qual um saqueio desses conhecimentos é realizado na construção da mesma e conservadora ciência moderna.

Ramón Grosfoguel (2016), dialogando com referências críticas anticoloniais do continente americano, lembrará que procedimentos com essas características funcionam como um "extrativismo epistêmico", que partilha com o "extrativismo econômico" e o "extrativismo ontológico" a atitude de "coisificação e destruição produzida em nossa subjetividade e nas relações de poder pela civilização 'capitalista/patriarcal ocidentocêntrica/cristianocêntrica moderna/colonial' frente ao mundo da vida humana e não-humana" (p. 126). O autor entende o extrativismo epistêmico como

[...] uma mentalidade que não busca o diálogo que implique uma conversa horizontal, de igual para igual entre os povos, nem o entendimento dos conhecimentos originários em seus próprios termos, mas que busca extrair ideias como se extraem matérias primas para colonizá-las por meio de se sua submissão ao interior dos parâmetros da cultura e da episteme ocidental (Grosfoguel, 2016, p. 132).

Esta postura que valoriza para expropriar é um risco constante que o trabalho científico acadêmico enfrenta no atual cenário das relações interepistêmicas que se nos colocam como imperativas. Buscarei neste texto, apontar algumas observações sobre a pesquisa sobre subjetividade que recorrentemente acontece nos espaços dos terreiros de tradições de matrizes africanas no Brasil - e aqui me referirei, especificamente, por uma questão de recorte, aos terreiros de candomblé - buscando oferecer algumas pistas para a possibilidade de um modo de pesquisar que não apenas não opere a partir dos registros de um extrativismo epistêmico, como, efetivamente, também se posicione contra esse fenômeno.

 

O terreiro como espaço de subjetivação entre o cuidado e o acolhimento

Usualmente descritos como espaços religiosos, os terreiros de candomblé são territórios construídos no Brasil nos quais se instauram comunidades, povos tradicionais, que acionam em seu funcionamento saberes, práticas e valores principalmente advindos de diversos locais do continente africano e dos povos originários de nosso continente (Nascimento, 2016). Além da dimensão que podemos chamar de espiritual, esses territórios mobilizam, para toda a comunidade, modos de ser, de compreender e de agir que constituem processos de subjetivação peculiares a estes espaços comunitários, com especificidades vinculadas aos históricos de construção e transformação destas comunidades.

Os candomblés se originam como experiências de resistência à imposição colonial, que atravessaram as vivências das pessoas com o racismo, o sexismo e a exploração laboral, sobre um limbo político que reforça a importância das dimensões individuais para construir modelos de subjetividades, razão pela qual, estruturaram modelos de subjetivação nos quais a raça, o gênero, a orientação sexual e a condição econômica não ocupem lugares fundamentais na formação do sujeito candomblecista e em seus exercícios de poder (Nascimento & Botelho, 2020).

A resistência aos ditames coloniais fez com que as comunidades de candomblé se constituíssem em torno de políticas de recuperação de elementos que foram fraturados pela escravidão e pelos outros elementos opressivos do colonialismo: estruturou a comunidade em torno da imagem da família - a chamada família de santo (Lima, 2003); configurou o acesso aos lugares de poder e prestígio na hierarquia comunitária em função da senioridade e não da cor, do gênero, orientação sexual ou da condição econômica (Lima, 2004); reservou cargos de liderança para as mulheres que não apenas, no passado, foram as primeiras líderes das comunidades candomblecistas, como também, ainda hoje, ocupam cargos hierárquicos importantes de presença obrigatória nos terreiros (Bernardo, 1986; Joaquim, 2001).

Neste espaço, no qual o poder circula de modos divergentes com a norma colonial ocidental, os terreiros conformam outra maneira de mobilizar os processos de subjetivação. A primeira característica que percebemos é que não apenas a subjetivação é entendida como processo (Salas, 2017, p. 109), como o sujeito também o é. O caráter relacional da senioridade (ninguém é permanente e indefinidamente mais velho ou mais novo que outra pessoa) nos coloca sempre na posição de um sujeito em errância, embora algumas características se conservem, relacionalmente.

Posso ser uma pessoa mais nova em relação a uma pessoa, mas diante de uma outra pessoa que ingresse na comunidade, serei mais velha que ela, podendo, portanto, ser mais velho e mais novo, ao mesmo tempo. E como a idade que a pessoa tem de pertença à comunidade é ponto de acesso ao poder, isso determina que haja uma dinâmica do caráter subjetivo que se instaura na relação com o poder. E mesmo a liderança da comunidade é sempre, e em todo caso, mais jovem que a divindade (inquice, vodum ou orixá) e que também compõe a comunidade.

A estrutura hierárquica da comunidade não é pensada como isenta da possibilidade de conflito. O conflito existe como em qualquer comunidade, entretanto, o caráter de resistência demanda que esses conflitos sejam encaminhados de modo a fortalecer a comunidade (que precisa que cada um de seus membros esteja da melhor maneira possível). O encaminhamento dos conflitos diverge, portanto, da maneira ocidental hegemônica de recusar o conflito como constitutivo e estabelecer com ele uma relação destrutiva. Esta é a razão pela qual não se pode atrelar hierarquia e violência, como se fez na história colonial. A hierarquia nos terreiros deve ser generosa e respeitosa: "O que se define essencialmente como hierarquia nas comunidades de terreiro tem como fundante o ato de ensinar, a proteção e o cuidado com o outro" (Machado, 2013, p. 91).

Nesta ambiência do poder, junto do status hierárquico, constitui-se uma responsabilidade e um cuidado entre as pessoas mais velhas e mais novas no interior da comunidade. Alguém não é simplesmente mais velho e, por isso, tem poder, mas tem uma intensa responsabilidade pelo aprendizado e pela formação das pessoas mais novas. É sua função acolher e cuidar (Guimarães, 2003). Zelar para que a pessoa mais nova aprenda e se ambiente na comunidade. Esta matriz de poder, cuidado e responsabilidade atravessa toda a estrutura do terreiro e tem a oralidade como lógica de funcionamento que conecta intersubjetivamente as pessoas, sob a regência da ancestralidade, essa força de subjetivação que traduz a história no presente das experiências das pessoas (Machado, 2013).

A ancestralidade não é apenas um laço de parentesco sanguíneo para os terreiros, mas também um parentesco histórico da pertença à comunidade e das heranças que nos são trazidas pela presença de inquices, orixás e voduns para as nossas experiências. Ela atravessa os corpos e a vida de histórias que o empreendimento colonial tentou partir, trazendo sempre elementos novos para o fortalecimento das vivências do sujeito (Antonacci, 2014), sempre de modo coletivo - o que torna os processos de subjetivação, e a própria subjetividade, comunitários.

Esta subjetividade comunitária não se confunde com a interessante abordagem da subjetividade social proposta por Fernando González Rey (1996, pp. 99-100), embora ambas resultem por contornar a dicotomia social/individual no campo das discussões sobre subjetividade. Não faz sentido para os terreiros pensar em sujeitos, em pessoas, em práticas de formação de sujeitos que suponham uma instância que, mesmo em contraposição, perceba as subjetividades individuais e sociais, ainda que como um contínuum.

As heranças africanas dos terreiros percebem os sujeitos como sempre múltiplos, compostos de diversos elementos, de histórias, de ancestralidades distintas. Os sujeitos são sempre plurais, mesmo quando ditos no singular, remontando uma percepção do pensamento tradicional africano que afirma que "As pessoas da pessoa são sempre múltiplas na pessoa" (Bâ, 1981, p. 181). Assim, a própria noção de subjetividade e de processos de subjetivação é reformulada nos terreiros. Cada sujeito está sendo sempre um complexo e dinâmico arranjo de histórias que são compostas de sua ancestralidade orgânica e "espiritual" - por falta de termo melhor - que não cessam de se mover, acrescer, se modificar. Dito de outro modo, nos terreiros, as pessoas podem ter uma subjetividade singular, mas não individual, no sentido usual do termo. Aqui temos uma ótima oportunidade epistêmica de delinear outras noções de subjetividade em vez de buscar uma noção, já pronta, que seja capaz de descrever a experiência subjetiva presente nos terreiros.

 

Sobre o pensamento e o conhecimento enterreirados

Tendo como premissa que a experiência que encontramos nos terreiros não é a mesma com a qual nos deparamos nos espaços herdeiros de uma organização ocidental, mesmo que ela nos pareça muito interessante, o cuidado para não incorrermos no extrativismo epistêmico deve estar em nosso horizonte. Das diversas maneiras de evitarmos esse fenômeno, gostaria de discutir aqui a ideia de um pensamento e uma pesquisa enterreirados com o objetivo de convidar a uma reflexão sobre os modos como o terreiro pensa, produz conhecimento e subjetiva as pessoas que o vivenciam.

Um pensamento enterreirado é um modo de pensar que emerge no terreiro e do terreiro, desde seus objetivos de resistência. Toma em consideração os eixos desde os quais a resistência se faz necessária, evitando a opressão e assumindo um compromisso com a comunidade desde a qual se pensa. Um pensamento enterreirado caminha e expressa uma ancestralidade que lhe atravessa, na tentativa de fortalecer a comunidade, buscando tanto quanto possível desatar os nós coloniais que insistem em formar sujeitos subalternizados, ensimesmados, destituídos de sua potência criativa. Explicita e valoriza as matrizes africanas e originárias de nosso continente que lhe conformam as direcionalidades plurais.

Este modo enterreirado de pensar não se apoia em binarismos em sua estrutura de funcionamento (Ndaw, 1997), não dividindo o mundo em certo e errado, bem e mal, homens e mulheres, mente e corpo, natureza e cultura e tantos outros pares opositores que foram utilizados na história do pensamento ocidental para aprisionar potências de ser, embora o terreiro reconheça a possibilidade da existência de pares. É, antes, um pensamento da multiplicidade e entende que somos feitos de plurais histórias, diversas matrizes e matizes. É um pensamento que reproduz o acolhimento também em sua estratégia de perceber o mundo, não recusando, de princípio, nada que possa ser utilizado no fortalecimento comunitário. Não pensa desde uma oposição entre o sujeito, a pessoa e a comunidade, pois entende que a própria pessoa e o pensamento nunca é atomizável ou solitário. Pensamos sempre desde as imagens, palavras e histórias que herdamos de - ou partilhamos com - nosso entorno.

Um pensamento enterreirado é crítico, autocrítico, inventivo. Sabe que o terreiro habita uma região entremundos e, portanto, está cercado de matrizes coloniais por todos os lados. E sabe de sua característica perigosamente sedutora. A comunidade dos terreiros está sempre atenta aos riscos que a cerca. Por isso está em vigília constante, alimentando e se orientando com seus guardiões - que são os antepassados, as divindades e a própria memória que toma a forma da ancestralidade.

É um modo de pensar que busca conhecer processos e não coisas, por entender que, seja lá o que entendamos como "coisa", só emerge em nossa percepção em meio a relações. Se não é possível isolar, atomizar nada na comunidade, e tudo funciona em sistemas processuais, assim também o é com o pensamento (Ramose, 2005). Tudo está sempre em processo, relação, dinamicidade. Nisso consiste, inclusive, uma das ideias-chave do terreiro, a força vital que atravessa e interliga todos os existentes (Santos, 2002). Muitos terreiros chamam essa força vital de axé ou nguzu, na língua iorubá e kimbundu, respectivamente.

Dada a dimensão dinâmica da realidade e da existência, um pensamento enterreirado nunca pretenderá capturar, por meio do conhecimento, a totalidade do fenômeno em qualquer descrição. Compreenderá a descrição sempre como precária e provisória, mantendo uma permanente postura de aprendizado; e esta dimensão, mais além de limitadora, alimenta a uma incessante busca pelo saber, fortalecendo um sujeito coletivo do conhecimento.

Em suas heranças africanas, o pensamento enterreirado diverge da aposta na neutralidade, da objetividade e do distanciamento - típicas de uma certa maneira da ciência moderna ser realizada. O conhecimento é produzido na experiência vivida, no contato, na proximidade, no envolvimento dos sujeitos que aprendem com aquilo que busca aprender (Bâ, 2010; Machado, 2013). É um conhecimento que coloca em jogo o próprio sujeito que conhece, sendo totalmente atravessado, portanto, da subjetividade deste sujeito - sempre coletivo - ao mesmo tempo em que é um dos elementos que o modifica. Desse modo, só é possível compreender os processos de subjetivação nos terreiros se esta dinâmica de conhecimento for também percebida.

Esta maneira de pensar o conhecimento orienta para uma epistemologia incorporada, já que não há uma distinção radical entre corpo e mente e uma atribuição do conhecimento a uma instância meramente mental. Aprende-se e produz-se conhecimento observando, ouvindo, falando, ouvindo, cheirando, tateando, fazendo coisas - atravessado por essa mesma oralidade que é motriz dos modos de ser e se relacionar da comunidade candomblecista.

 

O ethos de uma pesquisa enterreirada sobre subjetividade

Partindo desta abordagem de um pensamento e um conhecimento enterreirados, o desafio que se coloca é como entrar em contato com essa experiência subjetiva e com esse modo de pensar e conhecer, desde a pesquisa acadêmica. Obviamente não se suporá aqui que todas as pessoas que façam pesquisas em terreiros devam ser iniciadas na tradição do candomblé - embora não haja empecilho para isso. Entretanto, esta não é uma condição para a proximidade do terreiro e seus modos de ser, até por que, há muitos modos por meio dos quais a comunidade dos terreiros se relaciona com as pessoas. A iniciação é um modo importante, mas não é o único. Pensaremos aqui em uma pesquisa enterreirada como uma maneira de nos aproximarmos deste campo de conhecimentos igualmente enterreirado, e trago aqui algumas provocações sobre o ethos de uma pesquisa que caminhe nessa direção.

Se o objetivo for evitar o extrativismo epistêmico, o primeiro passo é compreender a característica de resistência do espaço do terreiro. Este é um espaço que se forja exatamente sabendo do entorno colonial, tendo desenvolvido estratégias para lidar com esse fenômeno. Além da violência à comunidade que a expropriação de conhecimentos provoca, tende a ser um dos roteiros possíveis para lidar com o terreiro ou com algum fenômeno de seu interior como um mero objeto e isso implicaria não conseguir perceber a dinâmica própria dos processos subjetivos e da produção de conhecimento desses espaços.

O terreiro cria estratégias de interação e controle das informações e formas de sociabilidade que fazem com que os saberes circulem de maneira específica diante da presença de elementos que lhes parecem externos. A segunda liderança de um dos mais tradicionais terreiros de candomblé de Salvador, Maria Bibiana do Espírito Santo, Mãe Senhora, criou a expressão "da porteira pra dentro, da porteira para fora" (Luz, 2000, p. 34) para dar um nome a esta estratégia que visava à continuidade e proteção dos saberes e modos de ser do terreiro. Esta é uma estratégia que é herdeira de modos tradicionais africanos de proteção dos conhecimentos de olhos curiosos objetificadores, que é chamada por Amadou Hampaté Bâ (2010, p. 183) de "pôr na palha", exatamente como resistência às tentativas de intrusões coloniais sobre o campo do conhecimento tradicional africano. E o pesquisador intruso ou extrativista não terá como saber que fora posto na palha, pois escutará o que acha ser a descrição correta do que se passa, enquanto seu interlocutor lhe diz o que acha que o pesquisador quer escutar, sem expor a dinâmica do terreiro.

E não basta não objetificar. Uma pesquisa enterreirada precisa ser solidária com o espaço de terreiro. Um pesquisador de fora precisa demonstrar os benefícios daquela investigação para a própria comunidade. Convém lembrar que as comunidades de terreiro, em sua maioria, são comunidades ou carentes economicamente ou estão inseridos em contextos circunvizinhantes que o são. Embora não se deva pensar necessariamente em uma recompensa financeira para as comunidades, é importante prever ou planejar um benefício para essas comunidades. Um exemplo disso pode ser um compromisso com a denúncia e a desconstrução do racismo religioso que atinge de modos perversos essas comunidades (Nascimento, 2017).

Este compromisso que a investigação e investigadoras/es devem ter com a comunidade, em uma pesquisa enterreirada, deve não apenas se interessar no pensamento do cuidado que está no terreiro, mas também sustentar um pensamento cuidadoso, não apenas se interessar pelas estratégias de acolhimentos que as comunidades desenvolveram, mas em também buscar uma pesquisa que acolha as necessidades que as comunidades têm, em seus mais diversos âmbitos.

Essa dimensão se aproxima daquela proposta por Santos e Silva (2018, p. 18), quando advogam uma pesquisa aterrada como afirmadora de um cuidado de "estar mais conectado com a nossa realidade e as dificuldades colocadas pelas comunidades do que propriamente a gente se colocar como pesquisadores das comunidades". Este compromisso de uma pesquisa enterreirada precisa ser necessariamente, também atravessado por essa preocupação de uma pesquisa aterrada.

Outro elemento fundamental de uma pesquisa enterreirada está vinculado com o respeito profundo pelos modos de compreensão que circulam na comunidade do terreiro. Em primeiro lugar, a comunidade deve entender o que a pesquisa procura, o que a pesquisa quer. Não ser surpreendida pela pesquisa. Aqui, novamente a proposta de uma pesquisa aterrada é promissora. A comunidade deve ser partícipe da pesquisa e não apenas ocupar um protagonismo no fornecimento das informações que a investigação procura. Ela deve ser parte da construção do tema, recorte, objetivos gerais, impactos e justificativas da investigação, ou seja, atuar em um "pesquisar com", como apontam Abrahão Santos e Viviane Silva (2018, p. 14).

A abordagem sociopoética chamará a comunidade, nesse tipo de investigação, de "co-pesquisadores" (Adad, 2014, p. 45), que compõem a tessitura de um grupo pesquisador. Isso implica que a posição do/a pesquisador/a acadêmico/a será apenas mais uma no contexto da pesquisa enterreirada, atuando em parte como um/a facilitador/a do processo investigativo do qual ele/a é parte, sendo encarregado/a, sobretudo, de explicitar o jargão da pesquisa institucional e as ferramentas ou estratégias que se espera que sejam utilizadas, quando estas não forem originárias das comunidades de terreiro. Assim, a comunidade será, efetivamente, um sujeito na pesquisa, e não um participante a quem desistimos de chamar de objeto. Ao mesmo tempo em que aprendemos, colaboramos e vetorizamos esse saber fora dos contextos onde foram gerados, num gesto solidário que não é novidade para as comunidades de terreiro.

O último elemento que eu gostaria de apontar aqui é a adoção da prática de que a comunidade seja a primeira avaliadora da pesquisa. Não porque a comunidade será quem validará o "produto" da investigação, mas para estabelecer um diálogo que seja capaz de ouvir o retorno da comunidade sobre o registro dela feito, mesmo que com sua participação. Antes que um controle do pensamento do/a pesquisador/a institucional, é uma prática que aciona uma ética responsável pela reprodução de imagens que as pesquisas veiculam. A pesquisa não deve, portanto, almejar meras descrições de processos, mas vocalizar dialogicamente o modo como a investigação encontra seus participantes - que não poderão ter uma participação lateral no processo. Muita estigmatização foi feita ao longo das pesquisas em torno das comunidades de terreiro. E muito disso seria evitado se os registros, descrições e análises fossem informados de maneira acessível para as comunidades e se elas tivessem a possibilidade de oferecer um retorno ao pesquisador/a acadêmico/a.

 

Considerações finais

Levar a sério a proposta de não objetificar as comunidades nas pesquisas e nem valorizá-las ao modo do extrativismo epistêmico nos traz uma série de desafios. Conciliar os interesses acadêmicos com o respeito pelas dinâmicas das comunidades nem sempre é uma tarefa fácil. Mas, é necessário.

Ao buscarmos aprender e compreender sobre os modos como os processos de subjetivação e a produção do conhecimento ocorrem no interior dessas comunidades não devemos cair na contradição ética de verter um grupo em objeto ou fornecedor de matéria prima no processo em que gostaríamos de percebê-los em sua própria jornada de tornarem-se sujeitos.

Dificuldades operacionais como a temporalidade da pesquisa, a partilha e uso das referências teóricas, a propriedade intelectual dos registros da pesquisa, sobretudo quando em investigações autorais como monografias, dissertações ou teses, são problemas que seguirão em aberto. O objetivo aqui foi apenas trazer algumas provocações que nos levem a problematizar de modo mais incisivo o que efetivamente queremos quando temos como horizontes as inovações políticas, epistemológicas e éticas, que a entrada das comunidades no espectro dos sujeitos reconhecidos academicamente como produtores de conhecimentos, nos apresenta.

Fica o convite para considerar a possibilidade de um pensamento enterreirado, de uma pesquisa enterreirada, que colaborem, como algumas das maneiras possíveis, para a construção de um campo de pesquisa mais justo e que não reforce a injustiça cognitiva que as práticas persistentes de pesquisas institucionais reiteram cotidianamente.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Wanderson Flor do Nascimento
wandersonflor@unb.br

Submetido em: 04/10/2020
Revisto em: 02/11/2020
Aceito em: 02/11/2020

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