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Hempel, Semmelweis e a verdadeira tragédia da febre puerperal

Hempel, Semmelweis and the true tragedy of puerperal fever

Resumos

Em seu manual introdutório Filosofia da ciência natural, Hempel apresenta, enquanto ilustração e ponto de partida para uma análise do processo de invenção e teste de teorias científicas, um relato do caso Semmelweis - o médico húngaro que, em meados do século xix, em Viena, descobriu a causa da febre puerperal e um método eficaz de prevenção. O relato, se por um lado não incorre em inverdades factuais, por outro, é bastante sucinto, omitindo uma série de aspectos importantes do caso. A tese deste artigo é a de que, embora tais omissões se justifiquem plenamente em função dos objetivos do relato, elas são também convenientes para Hempel, na medida em que ajudam a transmitir uma imagem da ciência que vai muito além dos processos de invenção e teste de teorias, que reflete a concepção positivista de ciência - e assim, quaisquer que tenham sido a intenções do autor, contribuiu para sua disseminação e fortalecimento. Uma imagem que, pelo menos neste caso, não corresponde à realidade. Para demonstrar a tese, expomos as partes da história de Semmelweis omitidas por Hempel e mostramos como elas não se coadunam com a imagem positivista da ciência. Ao longo desse percurso, distinguimos três tipos de crítica à historiografia positivista: a kuhniana, a pós-moderna e a engajada. Na conclusão, tecemos algumas considerações sobre a pesquisa médica nos dias de hoje.

Hempel; Semmelweis; Febre puerperal; Kuhn; Latour; Lacey


In his introductory textbook, Philosophy of natural science, Hempel presents, as an illustration and a starting point for an analysis of the processes of inventing and testing scientific theories, an account of the researches of Semmelweis the Hungarian physician who, in the middle of the xixth century, discovered the cause of puerperal fever and an effective method of prevention. The account does not involve anything that is factually untrue, but it is quite succinct, leaving out many important aspects of the case. Our thesis is that, although those omissions are justified in view of the aims of the account, they are also convenient to Hempel, because they help to propagate an image of science which goes much beyond the processes of invention and test. It is an image which reflects the positivist conception of science, and thus, whatever the intentions of the author, contributes to the dissemination and strengthening of that conception, but which, at least in this case, does not correspond to reality. To demonstrate the thesis, we give an account of the parts of Semmelweis's story omitted by Hempel, and we show how they do not fit in with the positivist image of science. Along the way, we distinguish three types of critique of positivist historiography: the Kuhnian, the post-modern, and the engagé. In the conclusion, we present some considerations concerning the medical research of today.

Hempel; Semmelweis; Puerperal fever; Kuhn; Latour; Lacey


ARTIGOS

Hempel, Semmelweis e a verdadeira tragédia da febre puerperal

Hempel, Semmelweis and the true tragedy of puerperal fever

Marcos Barbosa de OliveiraI; Brena Paula Magno FernandezII

IPós-doutoranda da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Brasil. brenafernandez@hotmail.com

IIProfessor Associado da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Brasil. mbdolive@usp.br

RESUMO

Em seu manual introdutório Filosofia da ciência natural, Hempel apresenta, enquanto ilustração e ponto de partida para uma análise do processo de invenção e teste de teorias científicas, um relato do caso Semmelweis – o médico húngaro que, em meados do século xix, em Viena, descobriu a causa da febre puerperal e um método eficaz de prevenção. O relato, se por um lado não incorre em inverdades factuais, por outro, é bastante sucinto, omitindo uma série de aspectos importantes do caso. A tese deste artigo é a de que, embora tais omissões se justifiquem plenamente em função dos objetivos do relato, elas são também convenientes para Hempel, na medida em que ajudam a transmitir uma imagem da ciência que vai muito além dos processos de invenção e teste de teorias, que reflete a concepção positivista de ciência – e assim, quaisquer que tenham sido a intenções do autor, contribuiu para sua disseminação e fortalecimento. Uma imagem que, pelo menos neste caso, não corresponde à realidade. Para demonstrar a tese, expomos as partes da história de Semmelweis omitidas por Hempel e mostramos como elas não se coadunam com a imagem positivista da ciência. Ao longo desse percurso, distinguimos três tipos de crítica à historiografia positivista: a kuhniana, a pós-moderna e a engajada. Na conclusão, tecemos algumas considerações sobre a pesquisa médica nos dias de hoje.

Palavras-chave: Hempel. Semmelweis. Febre puerperal. Kuhn. Latour. Lacey.

ABSTRACT

In his introductory textbook, Philosophy of natural science, Hempel presents, as an illustration and a starting point for an analysis of the processes of inventing and testing scientific theories, an account of the researches of Semmelweis the Hungarian physician who, in the middle of the xixth century, discovered the cause of puerperal fever and an effective method of prevention. The account does not involve anything that is factually untrue, but it is quite succinct, leaving out many important aspects of the case. Our thesis is that, although those omissions are justified in view of the aims of the account, they are also convenient to Hempel, because they help to propagate an image of science which goes much beyond the processes of invention and test. It is an image which reflects the positivist conception of science, and thus, whatever the intentions of the author, contributes to the dissemination and strengthening of that conception, but which, at least in this case, does not correspond to reality. To demonstrate the thesis, we give an account of the parts of Semmelweis's story omitted by Hempel, and we show how they do not fit in with the positivist image of science. Along the way, we distinguish three types of critique of positivist historiography: the Kuhnian, the post-modern, and the engagé. In the conclusion, we present some considerations concerning the medical research of today.

Keywords: Hempel. Semmelweis. Puerperal fever. Kuhn. Latour. Lacey.

Introdução

Carl Gustav Hempel (1905-1997) foi um dos positivistas lógicos mais importantes, membro, ao lado de Hans Reichenbach, Richard von Mises e outros, da chamada Escola de Berlim, que floresceu ao mesmo tempo e em estreita associação com o Círculo de Viena. Além de inúmeras contribuições de peso a respeito da lógica da explicação científica, dos processos de confirmação de teorias e de formação de conceitos, Hempel publicou também um pequeno manual intitulado Philosophy of natural science (Hempel, 1966, 1981) que teve grande aceitação, sendo usado até hoje em cursos de filosofia da ciência. Descontando o primeiro capítulo, muito curto e de natureza introdutória, o livro tem início com um relato do caso histórico de Semmelweis com a febre puerperal, apresentado como ilustração e ponto de partida para uma análise dos processos de invenção e de teste de teorias científicas.

Ignaz Semmelweis (1818-1865) nasceu em Tabán, agora parte de Budapeste, e formou-se em medicina pela Universidade de Viena em 1844, com especialização em obstetrícia. Logo depois de formado, e até 1848, trabalhou em um dos serviços de maternidade do Hospital Geral de Viena, onde grassava na época uma terrível epidemia de febre puerperal, que levava à morte uma grande proporção das parturientes. Profundamente tocado pelo problema, Semmelweis se lança na busca de uma solução. Depois de considerar e rejeitar uma série de hipóteses então em voga a respeito da etiologia da doença, Semmelweis finalmente identifica a causa real e com base nessa descoberta propõe um método eficaz de prevenção.

Hempel trata do caso Semmelweis com um objetivo preciso, relacionado ao tópico do teste de teorias, e o relato, se por um lado não incorre em inverdades factuais, por outro é bastante sucinto, não ocupando mais do que quatro páginas. Sendo assim, é natural que ele omita uma série de facetas do caso importantes de outros pontos de vista. Também não há dúvida de que foram bem sucedidos tanto a escolha do episódio quanto o recorte que Hempel opera em sua exposição: a ilustração atinge plenamente seus objetivos. Mas além disso – é o que pretendemos mostrar neste ensaio – o relato transmite implicitamente certa imagem da ciência que vai muito além dos processos de invenção e de teste de hipóteses. Uma imagem que reflete a concepção positivista de ciência – e assim, quaisquer que tenham sido a intenções do autor, contribuiu para sua disseminação e fortalecimento –, mas que, pelo menos neste caso, não corresponde à realidade.

Acreditamos que este estudo possa ser útil especialmente para os professores de cursos introdutórios de filosofia da ciência que adotam o livro de Hempel como material de leitura, mas estão interessados em propor aos alunos uma visão crítica do ideário positivista. Esta é uma das justificativas do presente trabalho. Outra será mencionada na conclusão.

1 O relato de Hempel1 1 Aos leitores que não têm dificuldade em obter o livro de Hempel, recomenda-se a leitura nas palavras do próprio autor. A limitação de espaço, e possíveis dificuldades relacionadas aos direitos autorais, impedem a transcrição completa do relato, que seria a alternativa ideal. Em nossa apresentação, transcrevemos algumas passagens para dar uma idéia do tom da exposição hempeliana, resumindo drasticamente o restante.

Depois de caracterizar a situação-problema, Hempel passa a discutir as hipóteses consideradas por Semmelweis. "Uma idéia amplamente aceita na época atribuía as devastações da febre puerperal a "influências epidêmicas", vagamente descritas como mudanças "cósmico-telúrico-atmosféricas", espalhando-se sobre bairros inteiros e causando a febre nas mulheres internadas".2 2 As aspas no interior da citação encontram-se no original, e remetem à principal fonte do relato de Hempel, a biografia Semmelweis, his life and his doctrine de Sinclair, publicada em 1909. Todas as citações do livro de Hempel nesta seção provêm das p. 13-6 da versão brasileira. Algumas modificações estilísticas foram introduzidas na tradução. Assim como outras, esta hipótese foi descartada por não estar de acordo com os fatos já conhecidos. Havia no Hospital Geral de Viena dois serviços de maternidade, situados bem próximos um do outro, sendo a incidência da febre muito mais intensa no Primeiro que no Segundo. Dada essa proximidade, como poderiam "influências" daquela natureza afetar diferencialmente os dois serviços? Outro fato contraditório com a hipótese dizia respeito ao problema de mulheres que viviam longe do hospital, não conseguiam chegar a tempo, e acabavam dando à luz na rua. Também nesses casos o índice de mortes por febre puerperal era muito inferior ao verificado no Primeiro Serviço.

Uma segunda hipótese associava a febre à superlotação; os fatos, porém, apontavam na direção oposta, uma vez que a superlotação era maior no Segundo Serviço, em decorrência do que muitas mulheres, já cientes da mortandade no Primeiro, tentavam a todo custo evitá-lo.

Exames ginecológicos realizados de forma grosseira pelos estudantes que faziam seu treinamento obstétrico no Primeiro Serviço foram apontados como causa por uma comissão formada em 1846 para investigar o problema. Mas, de novo, a hipótese não encontrou apoio nas evidências.

A seguir, Hempel relaciona as hipóteses não desautorizadas por fatos já conhecidos, entrando neste ponto a noção de teste, isto é, de um experimento realizado com o objetivo de averiguar a veracidade de uma hipótese.

Várias explicações psicológicas foram aventadas. Uma delas lembrava que o Primeiro Serviço estava disposto de tal modo que um padre, levando a extrema-unção a uma moribunda, tinha que passar por cinco enfermarias antes de alcançar o quarto da doente: o aparecimento do padre, precedido por um auxiliar soando a campainha, produziria um efeito aterrador e debilitante nas pacientes dessas enfermarias, tornando-as mais vulneráveis à febre. No Segundo Serviço, não havia esse fator prejudicial, uma vez que o padre tinha acesso direto ao quarto da doente. Para verificar essa conjetura, Semmelweis convenceu o padre a tomar um outro caminho e de não soar a campainha, chegando ao quarto da doente silenciosamente e sem ser observado. Mas a mortalidade no Primeiro Serviço não diminuiu (Hempel, 1981, p. 15).

Outra hipótese testada dizia respeito à posição adotada no parto, de costas no Primeiro Serviço, de lado no Segundo. A adoção da posição lateral no Primeiro Serviço, entretanto, não alterou a incidência da febre.

Finalmente, em princípios de 1847, um acidente forneceu a Semmelweis a chave para a solução do problema. Para explicar como isso se deu, é preciso registrar (o que será importante nas considerações a seguir) que o treinamento dos estudantes no Hospital Geral envolvia de maneira muito intensa a prática de dissecação de cadáveres, e com freqüência eles passavam dessa atividade para o atendimento das parturientes apenas lavando as mãos sem muito cuidado. O acidente mencionado ocorreu com um seu colega, Kolletschka, que se feriu com um bisturi ao realizar uma autópsia, e veio a morrer de maneira muito semelhante à das vítimas da febre puerperal. Semmelweis conjeturou, então, que a causa da doença poderia ser a mesma nas duas situações: a introdução de "material cadavérico" na corrente sangüínea – pelo bisturi, no caso de Kolletschka, pelas mãos dos estudantes ao examiná-las, no caso das parturientes.

Para testar a conjetura, Semmelweis raciocinou que a contaminação poderia ser evitada pela destruição química da matéria patogênica. Determinou então que todos os médicos e estudantes lavassem as mãos com uma solução de cal clorada antes de procederem a qualquer exame. O índice de mortalidade pela febre no Primeiro Serviço – que, em 1844, 1845 e 1846 havia sido respectivamente 8,2; 6,8 e 11,4 por cento – logo começou a decrescer caindo a 1,27 por cento em 1848.

A hipótese de contaminação por material cadavérico também dava conta de outros aspectos da situação, principalmente os índices de mortalidade mais baixos verificados anteriormente no Segundo Serviço, onde as pacientes eram atendidas por parteiras, cujas atividades não envolviam dissecações de cadáveres. Uma explicação análoga valia para o caso dos partos de rua.

E finalmente:

Ulteriores experiências clínicas levaram Semmelweis a ampliar sua hipótese. Numa ocasião, por exemplo, ele e seus colaboradores, após desinfetarem cuidadosamente as mãos, examinaram primeiro uma mulher em trabalho de parto que sofria de câncer cervical purulento; e passaram em seguida a examinar doze outras mulheres na mesma sala, limitando-se a lavar as mãos sem repetir a desinfecção. Onze das pacientes morreram de febre puerperal. Semmelweis concluiu que essa febre podia ser causada não somente por material cadavérico, mas também por matéria pútrida retirada de um organismo vivo (Hempel, 1981, p. 16).

2 O método científico como essência da racionalidade

O positivismo, como se sabe, tem em seu cerne a valorização da ciência, caracterizada por seu método, como paradigma de racionalidade, como a forma mais profunda, rigorosa e confiável de conhecimento acessível ao homem, avessa aos dogmas, ao pensamento autoritário, a todos os tipos de superstições, crendices e explicações sobrenaturais. No campo da história da ciência, tal postura dá origem a uma linhagem de estudos muito agudamente analisada por Kuhn na Introdução de A estrutura das revoluções científicas. Entre seus traços distintivos, Kuhn observa primeiro que a imagem da ciência em que essa linhagem de estudos se baseia é formada pelas conquistas científicas já concluídas, tais como registradas nos clássicos e em livros-texto usados na formação dos cientistas. Outra característica consiste na redução do "conteúdo" da ciência a observações, leis e teorias.

Em relação às teorias do passado, nas obras desse gênero, o êxito das bem-sucedidas – as que vieram a se integrar ao corpus do conhecimento avalizado pela comunidade científica – é atribuído ao emprego de um método superior, o método científico. Em contrapartida, o fracasso das teorias rivais abandonadas como falsas é creditado a falhas metodológicas – na forma de dogmatismos, recusa a aceitar as evidências empíricas (como no caso de Galileu com os acadêmicos, que se recusavam a usar o telescópio para comprovar com os próprios olhos as descobertas feitas com o novo instrumento), apego a modos supersticiosos de pensamento, em suma, a um deficit de cientificidade. Quanto ao cientista bem-sucedido, a tendência – especialmente no sub-gênero da biografia heróica – é apresentá-lo como um ser superior, como a própria encarnação da racionalidade. A partir dessa perspectiva, quando se trata de narrativas a respeito de controvérsias, a teoria que mais tarde iria triunfar aparece desde o início como mais "científica" que as outras, de forma que seu sucesso constitui mais uma demonstração da superioridade do método científico. A plausibilidade desse tipo de narrativa – é importante notar – depende em grande medida da visão anacrônica que consiste em pressupor inadvertidamente aquilo que se sabe no presente ao se refletir sobre o passado. Voltaremos a esse ponto daqui a pouco.

Esse gênero de história se expressa numa variedade de formas: em textos de história da ciência propriamente ditos, em biografias de cientistas, nas seções introdutórias de livros-texto e também no que se pode considerar um outro sub-gênero, a saber, o da história da ciência das ilustrações usadas pelos positivistas lógicos em suas exposições sobre o método científico.

Tal é, evidentemente, o caso do relato de Hempel. Não é difícil constatar a presença nele das características do gênero delineado por Kuhn. Note-se, por exemplo, as conotações místico-supersticiosas da idéia de "influências cósmico-telúrico-atmosféricas" e da hipótese do padre com a campainha. A maneira como esta figura no relato tem também o efeito de ressaltar o rigor com que Semmelweis observava os preceitos do método científico, ao não se eximir de submeter a um teste mesmo uma hipótese tão estapafúrdia quanto aquela. As outras hipóteses, por serem tão claramente incompatíveis com os fatos conhecidos, sugerem, como parte do perfil de seus proponentes, um desprezo muito pouco científico pelas evidências empíricas.

Com um pouco de atenção, é possível observar a influência do anacronismo na imagem que o relato transmite. O leitor de hoje – e dos tempos em que Hempel escreveu o livro em pauta – é quase certamente uma pessoa familiarizada com as práticas de assepsia adotadas nos hospitais, com a existência dos microorganismos, e com seu papel enquanto agentes causadores de infecções e moléstias infecciosas. Assim, ele fica propenso a ver a teoria de Semmelweis desde o início como a mais científica, não levando em conta algo que Hempel menciona apenas de passagem, em uma observação cujas implicações podem passar desapercebidas, a saber, o fato de que a teoria microbiana das moléstias infecciosas ainda não havia sido formulada: a época do caso Semmelweis é anterior às contribuições de Pasteur, Koch e Lister.

A teoria microbiana oferece uma explicação para o processo em que o "material cadavérico" e a "matéria pútrida" causam a doença. Colocando-se a teoria entre parênteses, o resultado é que o princípio ativo dessas substâncias, aquilo que as faz causadoras da doença, não difere muito das "influências cósmico-telúrico-atmosféricas" quanto à vagueza, ao caráter meio misterioso, tendendo ao sobrenatural.

E, por outro lado, a teoria cósmico-telúrico-atmosférica não é tão pouco "científica" quanto pode parecer ao leitor. Como diz Gillies, a expressão "cósmico-telúrico-atmosférica" soa estranha,

mas constitui apenas uma maneira de se referir à teoria do miasma a respeito das doenças, que era a teoria-padrão na época. De acordo com ela, as doenças eram causadas por uma atmosfera pútrida, ou miasma. A teoria contava com muitas evidências favoráveis, por exemplo, a malária ocorria em regiões pantanosas, e moléstias de todos os tipos eram mais comuns em cortiços, quartéis, navios e "casas de trabalho" (workhouses) onde em geral pairava uma atmosfera mal-cheirosa. Além disso, a teoria do miasma levou a reformas bem-sucedidas. Era sustentada por Chadwick, que lutou por melhoramentos no sistema de esgotos, de drenagem e de limpeza, e pela regulamentação das construções na Grã-Bretanha da década de 1840 [...]. Nos hospitais, a teoria favoreceu a crença na importância da limpeza, do ar fresco, de evitar a superlotação etc. Entre seus adeptos, encontrava-se também Florence Nightingale (Gillies, 2005, p. 161-3).3 3 Sobre as idéias e a atuação de Florence Nightingale, cf. Loudon, 2000, p.127.

Numa outra passagem de seu artigo, Gillies menciona um fator que diz respeito ao papel das evidências empíricas. Se são levados em conta não apenas os dados estatísticos constantes do relato de Hempel, mas todo o conjunto de dados disponíveis na época, torna-se evidente a existência de flutuações estatísticas – não explicadas nem mesmo pela teoria de Semmelweis. Não se podia, assim, excluir a possibilidade de que as quedas no índice de mortalidade fossem apenas uma coincidência, sendo devidas a causas não-identificadas, e não às medidas de assepsia introduzidas por Semmelweis (cf. Gillies, 2005, p. 166, 170, 179).

Em resumo, quando se analisa o caso Semmelweis de forma não-anacrônica, o resultado é uma redução significativa da capacidade do episódio de funcionar como uma ilustração da superioridade do método científico.

3 A primeira grande omissão

Com exceção da ligeira referência feita numa nota de rodapé a "dificuldades encontradas por Semmelweis", todo o relato de Hempel leva o leitor a inferir um final feliz para o episódio. Introduzindo a lavagem das mãos com cal clorada, Semmelweis havia conseguido – matando dois coelhos com uma só cajadada, pode-se dizer – comprovar sua teoria e estabelecer um método eficaz de prevenção da doença. Os dados estatísticos mencionados parecem tão conclusivos que a tendência natural é pensar que a teoria tenha sido imediatamente aceita pela comunidade dos obstetras, que os métodos de prevenção tenham sido universalmente adotados, e que assim se tenha liqüidado o problema da febre puerperal. Com um pouco mais de imaginação, pode-se conceber também que com isso Semmelweis tenha se consagrado, como cientista e benfeitor da humanidade, recebendo então as merecidas honrarias. Dessa perspectiva, o caso pode ser lido como um episódio da epopéia da ciência, em que o herói, Semmelweis, com a lança do método científico, mata o dragão da febre puerperal.

A história real, infelizmente, é muito diversa, está mais para tragédia que para epopéia. Uma tragédia para as mães que continuaram a ser vitimadas pela febre puerperal, e uma tragédia pessoal para Semmelweis. O fundamental é que, longe de ser prontamente aceita, sua teoria sofreu forte resistência na comunidade médica, só vindo a se firmar décadas mais tarde, com o estabelecimento da teoria microbiana das doenças infecciosas. Na seção seguinte, faremos uma exposição, necessariamente muito resumida, dessa história real, privilegiando os aspectos mais relevantes para o desenvolvimento de nossa linha de raciocínio, a ser retomado na seção 3.2. Para entender as causas da resistência, é necessário situar o episódio no contexto da situação política no Império Austro-Húngaro, na época em que se desenrola o caso Semmelweis.4 4 As principais obras em que se baseia o relato a seguir, bem como o epílogo exposto na seção 4.1, são as seguintes: Nuland, 2005; Loudon, 2000 e Sinclair, 1909; o livro do próprio Semmelweis (1983 [1861]), na versão traduzida e editada por K. Codell Carter.

3.1 A resistência, suas causas e conseqüências

Após as modificações jurídicas, políticas e territoriais introduzidas pelo Congresso de Viena (1814-1815), à Áustria coube a anexação da Hungria, de parte da Polônia e da Itália, além da presidência da Confederação Germânica (Alemanha), configurando-se assim a formação do chamado Império Austro-Húngaro. A relação entre a capital do Império e as nacionalidades submetidas ao Império sempre foi tensa, como sói acontecer.

O clima político carregado refletia-se também no âmbito acadêmico. Em primeiro lugar, a disputa de forças antagônicas estava claramente colocada, com as gerações mais velhas de professores tendendo ainda ao ranço conservador do Ancien Régime, enquanto que as mais novas, insatisfeitas com o autoritarismo na Universidade (e no hospital), reivindicavam uma reforma liberal – política e educacional. Para além disso, a tensão política ecoava em um outro nível, mais subjetivo: devido ao grande número de estudantes estrangeiros – das mais diversas nacionalidades dominadas – concentrados na capital, pairava entre eles, como é compreensível, uma constrangedora sensação de desconforto e humilhação. Esse pano de fundo histórico ajuda a explicar a polêmica que se formou a respeito da teoria de Semmelweis, e o desenrolar desastroso dos acontecimentos que se seguiram, especialmente após as rebeliões de 1848.

Quando Semmelweis assumiu seu cargo como assistente no Primeiro Serviço de maternidade no Hospital Geral de Viena, em julho de 1846, havia mais de duas décadas Johann Klein era o diretor da Obstetrícia. Klein é amiúde descrito como o protótipo do autoritarismo – um nacionalista fervoroso e de postura essencialmente conservadora. Como chegou à diretoria por indicação política (e mantinha relações pessoais próximas com os políticos do ministério da saúde), era de seu interesse simplesmente conservar as coisas como estavam, inclusive no que dizia respeito à teoria vigente. Em que pesassem as evidências contrárias – a disparatada situação de duas clínicas vizinhas com índices de mortalidade tão diversos –, ele continuava insistindo na explicação baseada nas "influências epidêmicas".

Já a facção minoritária renovadora da Universidade, formada por Skoda, Hebra e Rokitansky, com a qual Semmelweis, desde sua chegada, logo veio a identificar-se, tinha uma postura bem mais questionadora. Seu objetivo, além do interesse científico da questão – compreender e identificar as causas da epidemia – era também fundamentalmente pragmático: controlar os "fenômenos inevitáveis" que rondavam o Primeiro Serviço. Eles recusavam a tese da inevitabilidade da febre puerperal como uma "fatalidade" e concordavam com as desconfianças de Semmelweis de que algum fator específico estivesse agindo no Primeiro Serviço, e apenas nele.

Ao final de 1847, após todo o processo – resumido na seção 1 – de testes das hipóteses então em voga, e com os resultados da aplicação de sua profilaxia, Semmelweis comunicou seus êxitos aos colegas. A queda nos níveis de mortalidade era algo tão impressionante que a ala progressista do hospital encampou a causa, insistindo na necessidade de que Semmelweis tornasse pública a sua tese. Eles incentivaram-no repetidas vezes a colocar no papel suas descobertas, mas Semmelweis – também reiteradamente – recusou-se a atendê-los. Suas dificuldades com a escrita5 5 Apesar de ter plena consciência de seu problema, Semmelweis aparentemente não conseguia superá-lo, tanto que, vários anos depois, declarou no prefácio de seu livro que tinha "uma aversão inata a qualquer forma de escrita." (Semmelweis, 1983 [1861], p. 62). mostravam-se um empecilho para ele tão limitante, que Hebra finalmente resolveu tomar para si a tarefa.

Ele publicou um primeiro artigo descrevendo as experiências clínicas de Semmelweis no número de dezembro de 1847 da revista da Associação dos Médicos de Viena e, em abril de 1848, novamente, um segundo trabalho. Apesar de a revista circular por toda a Europa, o impacto dos artigos não correspondeu ao esperado. A maioria das poucas respostas que chegaram eram desfavoráveis. Naquela ocasião, alguns aspectos fundamentais ficaram obscuros na redação de Hebra. O mais evidente deles foi não enfatizar que o agente causador da febre não era o "material cadavérico" em si, proveniente de qualquer cadáver, mas sim o material de infecções e putrefações – o pus contaminado – oriundo seja de cadáveres, seja de organismos vivos doentes. Semmelweis não compreendia a resistência à sua doutrina, alternando ao longo de todo o período momentos de frustração e revolta.

Por ocasião das lutas contra o domínio imperial austríaco que irromperam em Viena em 1848, Semmelweis – simpatizante dos revolucionários – aderiu à causa nacionalista húngara. Esta atitude foi perfeita para os propósitos de Klein, àquela altura já extremamente incomodado com sua presença, e valeu-lhe a não-renovação de seu contrato com o Hospital, em março de 1849.

Os amigos, uma vez mais, intervieram e, ao cabo de oito meses, conseguiram-lhe uma colocação como Privatdozent, a qual ele aceitou com satisfação. Sua decepção foi enorme, entretanto, ao ficar sabendo dos termos do contrato: era-lhe vedado utilizar cadáveres e ele teria que fazer suas preleções de anatomia numa boneca de madeira. Exausto e humilhado, Semmelweis desiste do cargo e abandona Viena.

A natureza acusatória de sua tese já seria, por si só, um problema suficientemente grave. A acusação de serem os próprios médicos os responsáveis pela disseminação do material infeccioso e, conseqüentemente, por milhares de mortes teve um impacto muito violento sobre o establishment médico da orgulhosa Viena de meados do século xix. Acrescente-se a isso a sua falta de diplomacia ao tratar com seus superiores (e com as autoridades em geral), sua falta de clareza e de rigor científico, sua quase insuperável dificuldade em colocar a sua teoria no papel e, finalmente, o fato de ser húngaro e estar lidando (desrespeitosa e truculentamente, como veremos melhor abaixo) com alguns dos mais proeminentes obstetras austríacos. Está montado o cenário a partir do qual torna-se possível compreender a verdadeira ira que se instaurou contra ele e o processo de exclusão a que foi submetido. Por outro lado, dado este quadro, imagina-se também a terrível pressão pela qual Semmelweis teve que passar. Esta, aliada à sua personalidade conturbada, explica as circunstâncias de seu regresso para Budapeste: partiu repentinamente, sem ao menos se despedir dos amigos mais chegados.

Nos meses que se seguiram, já em sua terra natal, apesar do clima de desânimo generalizado provocado pela derrota nas insurreições de 1848, Semmelweis ficou sabendo de um surto de febre puerperal no Hospital São Roque de Budapeste e a antiga chama reacendeu-se. Candidatou-se então ao cargo de diretor honorário daquela instituição e, quase simultaneamente, como Privatdozent na Universidade de Budapeste. No hospital, introduziu a profilaxia com cal clorada no momento mesmo em que assumiu, e a mortalidade caiu a 0,85 por cento no espaço de poucos meses. A nomeação como professor só saiu em 1855. Porém, seus métodos pouco ortodoxos, a inabilidade ao lidar com a negligência daqueles que resistiam à sua doutrina e a agressividade crescente (somados às péssimas condições de trabalho que encontrou tanto no hospital quanto na universidade), tornaram-lhe a vida bastante difícil durante os quinze anos em que lá viveu.

Voltando um pouco no tempo, e tratando agora mais diretamente das causas da resistência, vejamos as três falhas metodológicas que, segundo Nuland (2005), Semmelweis cometeu.

Em primeiro lugar, tendo descoberto a causa da febre puerperal e concebido um método eficaz para a sua prevenção, seria de esperar que ele realizasse experimentos controlados, no laboratório, com o objetivo de comprovar aquilo que já constatara em sua prática, na clínica. Experiências bem conduzidas com alguns grupos de coelhos, por exemplo, seriam suficientes. Entretanto, tal não ocorreu. Houve apenas uma tentativa incipiente – e mal planejada – de confirmação experimental, cujos resultados também foram mal interpretados. Semmelweis acreditava firmemente que seus resultados clínicos eram tão conclusivos, que não havia nenhuma necessidade de experimentos com cobaias, chegando inclusive a mostrar-se ofendido com a insistência nesse tema (cf. Nuland, 2005, p 99-102).

Outra decisão desfavorável refere-se ao fato de Semmelweis não ter lançado mão de uma tecnologia em franca expansão: o microscópio – ferramenta que já estava até mesmo disponível, no próprio Hospital Geral. Semmelweis perde com isso uma ocasião preciosa, no plano mais geral, de antecipar-se a Pasteur na observação dos microorganismos patogênicos e na formulação da teoria microbiana das doenças infecciosas; quanto à febre puerperal, a oportunidade de complementar sua teoria com uma caracterização precisa, baseada em evidências empíricas, da natureza do princípio ativo presente no material cadavérico (cf. Nuland, 2005, p. 102-3).

O terceiro ponto diz respeito ao problema da divulgação dos resultados encontrados por Semmelweis. Nuland destaca que o esperável, dadas as circunstâncias, seria que ele partisse para a literatura especializada, expondo tanto sua teoria quanto seus experimentos (aqueles que deveriam ter sido conduzidos) nas páginas de alguma revista científica. Isto, como vimos, tampouco foi feito.

Somente em 1861, após muita relutância e um lapso enorme de tempo – quatorze anos após suas primeiras conclusões –, Semmelweis finalmente consegue escrever sobre os resultados de suas pesquisas, num grosso volume intitulado Die Ätiologie, der Begriff und die Prophylaxis des Kindbettfiebers (A etiologia, o conceito e a profilaxia da febre puerperal). Trata-se, segundo Nuland, de um "um livro complexo, escrito de maneira complexa por um homem complexo. [...] um livro que é verborrágico, repetitivo, intimidante, acusatório, autoglorificante, às vezes confuso, tedioso, detalhado a ponto de tornar-se árido – em suma, praticamente ilegível" (Nuland, 2005, p. 134-5).

A recepção da obra, novamente, foi desapontadora. Em grande parte isso se deveu ao fato de Semmelweis, no livro, nem ao menos ter se preocupado em desfazer os mal-entendidos gerados com as publicações de Hebra. Apesar do grande sucesso prático da aplicação de sua teoria também em Budapeste, ele simplesmente não conseguia convencer seus pares daquilo que, para ele, era de uma obviedade gritante. O resultado foi que, à medida que os meses se passavam, ele se tornava uma pessoa mais e mais intolerante a qualquer forma de crítica. Cerca de um ano depois de publicado o livro, frustrado com sua recepção, Semmelweis escreve uma série de cartas abertas, notáveis pelo tom raivoso e acusatório, que já prenuncia os distúrbios mentais que o acometeriam mais tarde. Numa delas, dirigida a Friedrich Scanzoni, um de seus críticos mais influentes, lê-se por exemplo:

[...] caso o senhor, [...] sem ter refutado minha doutrina, continue a escrever [...] defendendo e ensinando a seus alunos a doutrina da febre puerperal epidêmica, eu o denuncio a Deus e ao mundo como um assassino, e a história da febre puerperal não lhe fará uma injustiça quando, por ter sido o primeiro a se opor a minha doutrina salvadora de vidas, perpetuar seu nome como o Nero da medicina. (Semmelweis apud Sinclair, 1909, p. 250-1).

No ano de 1864 apareceram os primeiros sinais inequívocos da doença: Semmel-weis era acometido por crises de choro convulsivo, tinha ataques de fúria, interpelava jovens casais desconhecidos em plena rua, bradando que deveriam exigir a desinfecção das mãos de médicos e parteiras, quando viessem a ter filhos, e começava a ter alucinações. Segundo a interpretação de Nuland, Semmelweis sofreu de "demência pré-senil de Alzheimer" – uma variante rara do mal de Alzheimer, que acomete pessoas jovens e na meia-idade. O principal indício para esse diagnóstico, além dos sintomas mencionados, foi seu impressionante envelhecimento no intervalo de alguns poucos anos.

Muito rapidamente, a partir deste ponto, a situação foge completamente ao controle e a esposa de Semmelweis, desesperada, pede ajuda a Hebra. O amigo, uma vez mais, intercede; ele acompanha ambos a um asilo, em Viena, onde Semmelweis deveria ser internado e tratado. No dia 14 de agosto de 1865, apenas duas semanas depois de dar entrada no sanatório, aos 47 anos, Semmelweis morre. As circunstâncias que envolvem o final de sua existência atribulada são nebulosas.

Existem três versões para sua morte: a primeira, menos usual, é a hipótese de suicídio: já bastante transtornado pela doença, ele se teria propositadamente ferido com um bisturi contaminado durante uma aula.6 6 A versão do suicídio é a adotada, entre outros, por Kurt Vonnegut, numa palestra dirigida a alunos do Southampton College, por ocasião de uma cerimônia de formatura em 1981 (cf. Vonnegut, 2006). A segunda versão, a mais amplamente aceita, é a da contaminação acidental durante a autópsia numa vítima de febre puerperal. Enfatizando a ironia do destino, Sinclair – um dos autores que defende essa versão – escreve: "Ele morreu daquela doença a cuja prevenção dedicara toda a vida profissional – a doença que levara embora seu amigo Kolletschka, colocando-o na pista de sua descoberta" (1909, p. 268).

Já a terceira versão, defendida por Nuland, baseia-se, em primeiro lugar, na análise de seu prontuário médico, durante o curto período em que esteve internado: este registro, segundo ele, aponta vários indícios de adulteração, contradições e alguns erros grosseiros. Depois, no depoimento da esposa de Semmelweis, que foi estranhamente impedida de ver o marido, no dia seguinte à internação. Por fim, baseia-se ainda no laudo da autópsia oficial, à qual teve acesso, bem como nos resultados dos exames da exumação do corpo, feitos em 1963. Para Nuland, Semmelweis foi vítima de agressão física brutal, no asilo. Ele teria recebido o tratamento – infelizmente bastante comum – reservado aos alienados naquela época. Assim, o espancamento, e não a ferida no dedo, teria sido o fator desencadeador da infecção generalizada, da qual Semmelweis veio a falecer.

3.2 O significado da omissão

Tendo caracterizado a primeira grande omissão do relato de Hempel, passamos agora a mostrar como ela é conveniente do ponto de vista da concepção positivista da ciência. Nossas considerações situam-se em três planos, os dois primeiros mais genéricos, o terceiro mais teórico, merecendo uma discussão mais extensa.

Em um primeiro plano, pode-se dizer que, omitindo as dificuldades de Semmelweis na promoção de sua teoria, Hempel evita trazer à baila um lado tenebroso da ciência, marcado por jogos de poder, preconceitos, injustiças e sofrimentos. Em contraste, note-se como é essencialmente positiva, luminosa, a imagem de ciência que emerge do relato expurgado de Hempel.

O segundo plano diz respeito especificamente aos cientistas. Sendo a ciência, na concepção positivista, o paradigma da racionalidade, é natural que o cientista figure nela como um ser racional, sensato, com tudo o que isso implica em termos de atitudes e comportamentos. Nada se afirma sobre Semmelweis no relato hempeliano que destoe dessa imagem. A partir do que foi visto sobre a história real, em contrapartida, fica claro que a personalidade de Semmelweis se afasta bastante do tipo ideal de cientista sugerido pelo positivismo, tanto propriamente como cientista, quanto como pessoa (na medida em que se pode distinguir os dois aspectos).

Como cientista, a falha mais marcante de Semmelweis corresponde ao fato, já mencionado, de ele não ter realizado experimentos e utilizado microscópios para aperfeiçoar e comprovar sua teoria. Como pessoa, sua impulsividade, sua falta de diplomacia, suas dificuldades com a escrita, também não se coadunam com o ideal positivista. Sendo aceito o diagnóstico segundo o qual a insanidade mental de que Semmelweis foi acometido constituía uma forma do mal de Alzheimer, não seria razoável apresentá-la como algo contrário a uma imagem idealizada do cientista. Afinal, nenhum positivista precisaria sustentar que os cientistas são imunes a moléstias de origem orgânica nesse aspecto, pode-se admitir que eles não são diferentes do comum dos mortais. Mas, como diz Nuland,

[...] esse diagnóstico, por mais convincente que seja, não esclarece a conduta de Semmelweis nos anos anteriores ao desenvolvimento da patologia. Ele não ajuda a explicar por que demorou tanto a escrever sobre sua descoberta; a súbita fuga de Viena para Pest; as mudanças de personalidade que já vinham sendo notadas uma década antes que pudesse ter tido qualquer doença cerebral orgânica; a falta de tato, impedindo que ele alcançasse seus objetivos nas unidades de obstetrícia que dirigiu, e a agressividade com os membros céticos ou rebeldes da equipe; ou a identificação total com a Lehre, a ponto de qualquer crítica ser percebida como um ataque pessoal. Nem explica o traço predominante em todas as decisões e ações nos anos após 1947: o avanço implacável de sua autodestrutividade (Nuland, 2005, p. 147).

Entre as causas da resistência encontram-se assim as falhas de Semmelweis como cientista, ao lado de outros fatores – como certos aspectos da situação política – cuja descrição não pode ser feita com base no repertório conceitual da historiografia positivista, restrito a observações, leis e teorias (cf. seção 2). Omitindo a resistência, Hempel se exime da tarefa de explicá-la e, assim, da necessidade de ampliar esse repertório.

Passando do relato de Hempel a um nível mais geral, pode-se dizer que, se se admite que casos de resistência (resistência de parte de uma comunidade científica a uma concepção ou teoria que mais tarde viria a se integrar no corpus do conhecimento científico) constituem aspectos importantes (ao lado de outros análogos) na história da ciência, que precisam ser expostos e explicados, então é possível extrair daí uma crítica à historiografia positivista, por sua incapacidade de fornecer tais explicações, decorrente da limitação de seu repertório conceitual. Essa crítica pode ser desenvolvida de várias maneiras. Para nossos propósitos neste ensaio, convém distinguir três tipos de crítica, a que daremos os rótulos de kuhniana, pós-moderna e engajada.

A crítica kuhniana é a mais branda, tem menos o caráter de uma contestação que o de uma complementação da historiografia positivista, na medida em que preserva os elementos mais fundamentais do positivismo: a valorização da ciência e o caráter racional, objetivo, atribuído a ela. Voltando ao caso Hempel/Semmelweis, vamos considerar, à guisa de ilustração, a crítica feita por Gillies (2005). O tema central do texto são as explicações para a resistência à teoria de Semmelweis, e Gillies considera, de um lado, explicações baseadas no que ele denomina "fatores externos", de outro, uma explicação em termos kuhnianos, que ele defende como a melhor.

Entre os fatores externos, Gillies menciona as dificuldades de Semmelweis com a escrita, os defeitos de seu trabalho publicado, a nacionalidade de Semmelweis (ou seja, o fato de ser húngaro, encontrando-se, portanto, numa situação de inferioridade frente ao establishment austríaco), e também um fator muito importante, ao qual voltaremos na próxima seção, o fato de que a aceitação da teoria de Semmelweis por parte da comunidade dos obstetras implicaria o reconhecimento de que eles próprios haviam sido os responsáveis pela morte de um número enorme de parturientes (cf. Glllies, 2005, p. 169-70). Os comentários de Gillies a esses fatores vão no sentido de minimizar sua importância sem, contudo, negá-la inteiramente.

Para introduzir a temática kuhniana, Gillies inicialmente caracteriza o relato de Hempel como bastante popperiano (quite Popperian) e em seguida pondera:

Um kuhniano argumentaria que, durante um período de ciência normal, um cientista não pode propor uma conjetura arbitrária qualquer (como Popper sugere) mas apenas uma conjetura compatível com o paradigma dominante. Se o cientista age dessa forma, é provável que a conjetura seja imediatamente descartada como absurda. É verdade que em alguns casos, por exemplo, o de Copérnico, tal hipótese pode marcar o começo de uma revolução mas, mesmo se a hipótese mais tarde for validada, provavelmente no início sofrerá forte oposição por parte da comunidade científica (Gillies, 2005, p. 171).

No caso Semmelweis, portanto, a explicação kuhniana é a de que a teoria sofreu resistência por ser revolucionária com relação ao paradigma vigente. Para caracterizar tal paradigma, Gillies considera o panorama das idéias em voga na época a respeito da febre puerperal, destacando como teorias principais a do miasma (já mencionada na seção anterior) e a do contágio. A teoria do contágio (não mencionada por Hempel em seu relato) foi defendida pela primeira vez por um médico escocês, Alexandre Gordon, em fins do século xviii. Assim como Semmelweis faria mais tarde, Gordon rejeitava as inúmeras idéias que circulavam em sua época, inclusive a teoria do miasma, sustentando que a febre puerperal era uma moléstia contagiosa, isto é, transmitida de uma mulher afetada para outras, as próximas vítimas. Embora não fosse levada a sério no continente europeu, a teoria de Gordon conquistou um número considerável de adeptos na Grã-Bretanha, que passaram a ser conhecidos na literatura como os "contagionistas ingleses" (cf. Nuland, 2005, p. 55).

Embora possa parecer à primeira vista que a teoria do miasma e a do contágio constituíam dois paradigmas em disputa, Gillies argumenta convincentemente que o mais adequado é considerá-las como partes de um paradigma composto, uma vez que "quase todos os médicos sustentavam que ambas as teorias eram corretas e que a doença deveria ser explicada em alguns casos por uma, em outros pela outra teoria, ou mesmo por uma combinação das duas" (Gillies, 2005, p. 172). O próximo passo consiste em demonstrar que a teoria de Semmelweis não se coadunava com esse paradigma e, com esse objetivo, entre outras considerações, Gillies chama a atenção para uma diferença existente entre ela e a teoria do contágio. Fundamentalmente, no caso das doenças contagiosas, é a mesma doença que passa de uma pessoa para outra; no caso da febre puerperal, o agente causador pode provir de uma pessoa afetada por uma outra doença (um câncer, ou uma ferida infeccionada).7 7 Semmelweis tinha plena clareza a respeito dessa diferença. Numa passagem da Ätiologie citada por Gillies, ele afirma: "A febre puerperal não é uma doença contagiosa. Uma doença contagiosa produz o contágio pelo qual a doença se transmite. O contágio provoca apenas a mesma doença em outros indivíduos. A varíola é uma moléstia contagiosa porque dá origem ao contágio que causa a varíola em outras pessoas. A varíola causa apenas a varíola e nenhuma outra doença. [...] A febre puerperal é diferente, pode ser causada em pacientes saudáveis por outras doenças." (Semmelweis, 1983 [1861], p. 117). Loudon tem uma visão diferente sobre este ponto. Segundo ele, Semmelweis adotava uma concepção equivocada a respeito da teoria britânica do contágio, baseada na idéia de que para se caracterizar como contagiosa, uma doença deve transmitir-se diretamente de um doente para outra pessoa (cf. Loudon, 2000, p. 98-9). A nosso ver, a interpretação de Loudon não se sustenta, uma vez que ele não leva em conta a razão posta por Semmelweis para não considerar a febre puerperal como doença contagiosa o fato de que ela pode ser causada por material não proveniente de uma pessoa afetada pela mesma doença. Não cabe aqui um aprofundamento dessa discussão.

Desde a publicação d'A estrutura das revoluções científicas (Kuhn, 1994), as idéias de Kuhn têm sido objeto de uma intensa polêmica, que continua até hoje, tendo sido alimentada também pelas mudanças de posição de Kuhn ao longo de sua obra. A polêmica gira fundamentalmente em torno da seguinte questão: a filosofia e a historiografia da ciência de Kuhn, centradas no conceito de paradigma, são ou não compatíveis com uma concepção da ciência como modelo de racionalidade, como fonte de conhecimento objetivo? Não pretendemos naturalmente entrar nessa polêmica, vamos assumir apenas o pressuposto, bem fraco devido à sua vagueza, de que é possível incorporar o conceito de paradigma, em pelo menos alguns de seus aspectos (aí a vagueza), ao repertório conceitual da historiografia positivista, ao lado das observações, leis e teorias, de tal modo que a racionalidade e a objetividade da ciência ficam preservadas. Sem pretender que essa menção possa decidir a controvérsia, convém citar uma passagem de Kuhn que se contrapõe claramente a interpretações irracionalistas/relativistas de seu pensamento:

O comportamento científico, tomado como um todo, é o melhor exemplo que temos de racionalidade. Nossa concepção do que é ser racional depende de modo significativo, embora naturalmente não exclusivo, daquilo que consideramos ser os aspectos essenciais do comportamento científico. Isso não significa dizer que todo cientista se comporta racionalmente todo o tempo, ou que muitos se comportam racionalmente todo o tempo, ou mesmo que muitos se comportam racionalmente boa parte do tempo. Mas significa que, se a história ou qualquer outra disciplina empírica nos leva a pensar que o desenvolvimento da ciência depende essencialmente de comportamentos que julgamos previamente como irracionais, então devemos concluir não que a ciência é irracional, mas que nossa noção de racionalidade precisa de ajustes aqui e ali (Kuhn, 1971, p. 144).

De qualquer forma, esta é a linha adotada por Gillies. Sua posição a respeito da análise hempeliana do caso Semmelweis não é a de que ela deva ser rejeitada, mas sim "complementada por algumas idéias kuhnianas" (Gillies, 2005, p. 159). Nada há na nova análise proposta que se choque com a racionalidade ou a objetividade da ciência.

Como se sabe, interpretações de cunho relativista das idéias de Kuhn constituíram um dos principais componentes do que veio a se cristalizar como a linhagem de crítica pós-moderna à ciência, voltada primordialmente contra as concepções positivistas. Entre os representantes dessa linhagem, encontra-se um considerável contingente de teóricos que se apresentam como sociólogos, ou antropólogos da ciência, mas cuja produção inclui muitos estudos de episódios do desenvolvimento da ciência que se deram no passado, podendo assim ser consideradas também contribuições à história da ciência. Uma característica muito generalizada desses estudos é a que consiste em dar uma importância muito grande aos "fatores externos", de tal forma que a aceitação das teorias passa a ser vista não como um processo racional, regido pela metodologia científica, como querem os positivistas, mas como resultante de processos de negociação governados por correlações de forças políticas, de interesses econômicos e ideológicos etc., colocando assim em cheque a racionalidade e a objetividade do conhecimento científico. Destaca-se nessa linhagem o chamado "programa forte" na sociologia da ciência, contribuição da Escola de Edinburgo, liderada por Bloor e Barnes.

Em Kuhn (2000), ele expõe uma crítica bem incisiva a essa linhagem pós-moderna, que corrobora a interpretação defendida acima. Em suas palavras:

[Na década de sessenta] era dito com freqüência, especialmente por sociólogos e cientistas políticos, que as negociações na ciência, assim como na política, na diplomacia, nos negócios e em muitos outros domínios da vida social, são governadas por interesses, sendo o resultado definido por considerações de autoridade e poder. Essa foi a tese dos que primeiro aplicaram o termo "negociação" ao processo científico, e o termo carregou consigo boa parte da tese.

Não penso que quer o termo, quer a descrição das atividades às quais ele se aplicava fossem meramente equivocados. O interesse, a política, o poder e a autoridade sem dúvida desempenham um papel significativo na vida científica. Mas a forma que assumiram os estudos de "negociação" fez com que [...] ficasse difícil enxergar o que mais poderia também desempenhar um papel. Na verdade, a forma mais extrema do movimento, chamado por seus proponentes "o programa forte", tem sido amplamente interpretada como afirmando serem o poder e o interesse tudo o que importa. A natureza ela mesma, de qualquer maneira que seja entendida, parece não tomar parte no desenvolvimento das crenças a seu respeito. Menções a evidências, à racionalidade das afirmações que elas sustentam, e à verdade ou probabilidade dessas afirmações, passaram a ser vistas simplesmente como a retórica por detrás da qual o partido vitorioso esconde seu poder. O que se entende por conhecimento científico torna-se assim não mais que a crença dos vencedores.

Situo-me entre aqueles que julgam serem absurdas as teses do programa forte: um exemplo de desconstrução enlouquecida (Kuhn, 2000, p. 110).

Se existe na literatura pós-moderna alguma análise do caso Semmelweis, não é de nosso conhecimento. Para suprir essa lacuna, vamos considerar, a título de ilustração, um pequeno ensaio de Latour (1998) a respeito de um caso semelhante (na medida em que se situa no campo da medicina e, mais especificamente, diz respeito às moléstias infecciosas) (Latour, 1998).8 8 Todas as citações de Latour a seguir provêm do ensaio de 1998; como ele tem apenas duas páginas, é dispensável a menção ao número da página de cada citação. Para uma crítica às teses do ensaio, ver Sokal & Bricmont, 1999, p. 101. Em outros textos (por exemplo, nos caps. 4 e 5 de A esperança de Pandora), Latour (2001) discute muito mais extensamente a teoria microbiana das doenças e das fermentações, concentrando-se na figura de Pasteur. Embora seu autor seja um dos expoentes do pós-modernismo no campo dos estudos da ciência, o ensaio em pauta não é, admitidamente, dos mais típicos dessa linhagem. Pode-se, contudo, sustentar que suas teses representam o limite a que conduzem as tendências relativistas pós-modernas.

Muito sumariamente, o caso analisado por Latour é o da múmia do faraó Ramsés ii, enviada pelo governo egípcio à França para ser examinada por uma equipe de cientistas, a qual teria estabelecido a causa da morte do faraó, a saber, a tuberculose definida como a moléstia causada pelo bacilo de Koch. Mas, pergunta Latour, como poderia a morte de Ramsés ii em 1225 a.C. ter sido causada por um bacilo descoberto por Koch em 1882? "Como, quando vivo, ele poderia ter bebido cerveja fermentada por um levedo que Pasteur [...] só colocou em evidência em meados do século xix?" Latour expõe então a resposta do bom-senso, que "consiste em dizer que os objetos (bacilos ou fermentos) já estavam lá desde tempos imemoriais, e que `nossos cientistas' apenas os descobriram muito mais tarde: eles levantaram o véu atrás do qual se escondiam esses bichinhos." Mas tal resposta, diz Latour, não tem mais que a aparência de bom-senso, uma vez que:

Antes de Koch, o bacilo não tem existência real. Antes de Pasteur, a cerveja ainda não fermenta graças à Saccharomyces cerevisiae. De acordo com essa hipótese, os pesquisadores não se contentam em "des-cobrir": eles produzem, eles fabricam, eles constroem. A história inscreve sua marca sobre os objetos da ciência, e não apenas sobre as idéias daqueles que os descobrem. Afirmar, sem outra forma de processo, que o faraó morreu de tuberculose significa cometer o pecado capital do historiador, o do anacronismo.

E para não deixar dúvidas, Latour faz a seguinte comparação:

Se alguém tivesse afirmado [...] que uma rajada de metralhadora havia liqüidado o faraó, ou que o faraó havia morrido em decorrência de stress causado por uma quebra na bolsa de valores, seria preso por anacronismo. E com razão. De fato, na falta de uma máquina do tempo, não se pode fazer retroagir ao passado uma invenção do presente. A história irreversível ignora a causalidade retrospectiva. Por que o que é verdadeiro para a metralhadora ou a quebra da bolsa não o é para o bacilo?

O estabelecimento do fato de que a febre puerperal é causada por certas espécies de bactérias só ocorreu muito tempo depois da descoberta de Semmelweis. O primeiro passo deu-se em 1869, quando dois cientistas franceses relataram ter visto microbes en chainettes em material proveniente de mulheres com febre puerperal. Esses micróbios foram depois chamados de estreptococos, mas muitas décadas foram necessárias para que se chegasse a uma classificação e um entendimento satisfatório das bactérias. Sabe-se hoje em dia que a principal espécie responsável pela febre puerperal é a do Streptococcus pyogenes, mas outros estreptococos ou estafilococos também podem estar envolvidos (cf. Loundon, 2000, p. 196 ss.; Nuland, 2005, p. 156-7).

A aplicação das idéias de Latour ao caso é imediata, e resulta em afirmar que as mulheres do Hospital Geral de Viena não morriam de febre puerperal, tal com é compreendida hoje, uma vez que essa doença é causada por bactérias que não tinham "existência real" naquela época. Tampouco a causa da morte era o "material cadavérico ou pútrido" antes de Semmelweis ter posto em circulação essas noções e nem mesmo depois, uma vez que sua teoria foi rejeitada pela comunidade científica. Se as causas não eram essas, então presumivelmente – em seu ensaio, Latour não explica de que Ramsés II teria morrido, se não de tuberculose – seriam as "influências cósmico-telúrico-atmosféricas", que na época já haviam sido "produzidas, fabricadas, construídas" pelos médicos cientistas.

A nosso ver, o absurdo de tais concepções faz com que seja dispensável discuti-las, e pode mesmo colocar em dúvida se Latour está falando sério, ou apenas para causar sensação. Uma discussão mais ampla sobre a historiografia pós-moderna, não restrita ao ensaio de Latour, está evidentemente além dos limites deste trabalho. Nosso objetivo, ao mencionar o ensaio, foi apenas o de ilustrar essa historiografia e, ao mesmo tempo, sugerir as razões que nos levam a não compartilhar as tendências relativistas do pós-modernismo.

Com isso, passamos ao terceiro tipo de crítica à historiografia positivista da ciência, que rotulamos de "engajada", e que propomos como sendo mais completa que a kuhniana e, em contraste com a pós-moderna, isenta de paradoxos. Ao caracterizá-la, estaremos, por assim dizer, explicitando a "base teórica" do presente ensaio. A melhor maneira de conduzir esta exposição consiste em dizer que essa base teórica corresponde essencialmente às idéias que Hugh Lacey vem desenvolvendo nos últimos tempos no campo da filosofia da ciência.9 9 Além de encontrar-se em inúmeros artigos, as idéias de Lacey a que estamos nos referindo encontram-se em Lacey, 1998, 1999, 2005, 2006, no prelo. Para estudos que enfatizam o caráter engajado da postura filosófica de Lacey, ver Oliveira, 1998, 2000. Muito sumariamente – e privilegiando os aspectos mais relevantes no presente contexto – diremos que a filosofia da ciência de Lacey incorpora, porém com modificações, pelo menos dois elementos da visão kuhniana. O primeiro é o próprio conceito de paradigma, que na versão de Lacey se transforma em estratégia.10 10 A relação precisa entre os dois conceitos, e as razões de Lacey para usar o termo "estratégia" no lugar de "paradigma" são explicadas em Lacey, 1999, Introdução, nota 9. O segundo é a abordagem que consiste em caracterizar o método científico não em termos de regras – como é tradicional na epistemologia moderna (e como Hempel faz em seu livro) – mas em termos de valores. É crucial nessa abordagem a distinção entre os valores cognitivos (adequação empírica, consistência lógica etc.), que são dotados de certa universalidade, e os valores sociais (morais, religiosos, políticos etc.), que variam de cultura para cultura, de época para época em cada cultura, e de grupo social para grupo social em sociedades marcadas por contradições internas (cf. Lacey, 2003).11 11 Em comparação com a idéia de paradigma, a abordagem em termos de valores figura com muito menos destaque na obra de Kuhn. Fora algumas antecipações no Posfácio de A estrutura das revoluções científicas, Kuhn a expõe em (1989). Outro autor que desenvolveu a abordagem sugerida por Kuhn foi McMullin, por exemplo, em (1983).

Nesses termos, a diferença essencial entre Lacey e Kuhn a respeito dos paradigmas/estratégias consiste em que, na visão (idealista) de Kuhn a disputa entre paradigmas se decide, em última análise, em função apenas de valores cognitivos, enquanto na visão (materialista) de Lacey, os valores sociais são fundamentais no processo; além dos valores cognitivos, o sucesso ou fracasso de uma estratégia depende crucialmente de sua relação com os valores sociais que, por sua vez, estão articulados com outros aspectos (econômicos, ideológicos, políticos etc.) da estrutura social (cf. Lacey, 1998, Cap. 7; no prelo, Cap. 2).

Outra diferença – que em certa medida distingue Lacey também dos pós-modernos – consiste em que sua crítica não se restringe às concepções de ciência (seja a dos cientistas, seja a dos filósofos que a estudam), mas atinge também a própria ciência, na forma como é praticada no mundo essencialmente capitalista de hoje. Entre Lacey e os pós-modernos, entretanto, a diferença mais importante reside em que Lacey rejeita as tendências relativistas do pós-modernismo. Para ele, a característica de depender exclusivamente de valores cognitivos, que Kuhn atribui à disputa entre paradigmas, está de fato presente na ciência, porém apenas no que se refere à disputa entre teorias no interior de cada estratégia. O levar em conta apenas valores cognitivos na escolha de teorias corresponde, na terminologia de Lacey, à imparcialidade, vista como um valor na ciência que deve ser preservado e que, embora com exceções, tem se realizado ao longo da história da ciência moderna. São esses os aspectos de sua filosofia que lhe permitem sustentar o caráter objetivo do conhecimento científico, evitando assim descambar para o relativismo, como acontece com os pós-modernos e, por outro lado, deixando claro que tal objetividade não coloca a ciência fora do alcance de críticas em termos de valores sociais. A ciência é imparcial, mas não é neutra.

A crítica de Lacey à ciência tem elementos em comum com a dos frankfurtianos, especialmente Marcuse. Lacey, porém, vai além deles também por não se contentar com a crítica negativa, com apontar os aspectos nefastos da ciência moderna e das tecnologias a ela associadas, procurando caracterizar formas alternativas superiores de prática tecnocientífica. (O caso a que Lacey dedica mais atenção é o da agroecologia, em contraposição ao modelo tecnológico do agronegócio.) E, finalmente, o que é mais importante no presente contexto, as concepções de Lacey são manifestações de uma postura engajada, na medida em que reconhecem e tematizam a necessidade de uma ação política tendo por objetivo mudanças profundas nas práticas tecnocientíficas.

Retomando o tema da historiografia da ciência, diremos para concluir que a partir de uma perspectiva laceyana, o estudo dos fatores externos é importante não apenas por contribuir para a solução do problema teórico de dar explicações para aspectos da história da ciência (como a resistência a novas teorias ou paradigmas), e não tendo em vista substanciar concepções relativistas da ciência, mas fundamentalmente porque nos ajuda a entender os valores e forças as sociais que condicionam os rumos e o ritmo da pesquisa científica – um entendimento fundamental de um ponto de vista engajado. Voltaremos a esse ponto a seguir.

4 A segunda grande omissão

A valorização da ciência, que é apropriada ao positivismo, pode ser analisada em dois componentes ou, dito de outro modo, o positivismo atribui à ciência dois valores distintos: o valor intrínseco, correspondente à ciência pura, ao ideal do conhecimento como um fim em si mesmo; e o valor instrumental, associado às aplicações da ciência, ou seja, à tecnologia. Esses dois valores correspondem a duas motivações para a prática da ciência, cuja associação nem sempre é isenta de tensões. Um sintoma disso entre os positivistas lógicos é o fato de que, apesar de serem fiéis herdeiros do Iluminismo em seu entusiasmo pelo progresso material da humanidade proporcionado pela ciência, muitos deles adotam explicitamente uma postura de defesa do ideal da ciência pura, em oposição às tendências históricas de valorizar a ciência apenas por seu valor instrumental. Novamente, um exemplo disso encontra-se no Cap. 1 do livro introdutório de Hempel:

O enorme prestígio desfrutado pela ciência hoje em dia é certamente devido em grande parte aos sucessos espetaculares e à rápida expansão do alcance de suas aplicações. Muitos ramos da ciência empírica vieram a constituir a base para tecnologias associadas, que colocam os resultados da investigação científica em uso prático, e que por sua vez fornecem freqüentemente à pesquisa pura ou básica novos dados, novos problemas e novos instrumentos para a investigação.

Mas, além de auxiliar o homem em sua busca de um controle sobre seu ambiente, a ciência responde a uma outra necessidade, desinteressada, mas não menos profunda e persistente: a de ganhar um conhecimento cada vez mais vasto e uma compreensão cada vez mais profunda do mundo em que ele se encontra (Hempel, 1981, p. 12).

O livro de Hempel é da década de 60 do século passado; já na de 40 encontramos Popper também se levantando em defesa da ciência pura, num tom bem mais enfático:12 12 A inclusão de Popper entre os positivistas lógicos merece um comentário, por seu caráter polêmico. Como se sabe, Popper rejeita terminantemente a designação de positivista, sendo nisso acompanhado por seus seguidores; mas, de maneira geral, especialmente entre os críticos de esquerda, prevalece a outra alternativa. A nosso ver, a postura mais sensata diante da questão (já defendida num outro trabalho, cf. Oliveira, 2002, p. 73-4) consiste em reconhecer que entre Popper e os positivistas lógicos existem pontos em comum e divergências, de tal forma que, dependendo do ponto de vista, pode ser adequado ora incluir Popper entre os positivistas – como no presente contexto –, ora excluir – como no artigo mencionado.

Tomaremos a posição de sustentar que os defensores dos direitos da pesquisa "pura", ou "básica" merecem todo o apoio na luta que travam contra a acanhada concepção – de novo em moda, infelizmente – segundo a qual a pesquisa científica só se justifica quando assume a figura de um investimento sólido. É de admitir, entretanto, que até a concepção algo extremada (a que dou minha adesão), segundo a qual a grande significação da ciência está em ser ela uma das maiores aventuras espirituais já vividas pelo homem, até mesmo essa concepção pode combinar-se com um reconhecimento da importância dos problemas práticos e dos testes práticos para o progresso da ciência, quer pura, quer aplicada, seja atuando como espora, seja atuando como bridão (Popper, 1980, p. 45).13 13 A tendência a valorizar o conhecimento científico cada vez mais por suas aplicações, cada vez menos como um fim em si mesmo, vem de longa data, mas claramente se intensifica no período neoliberal em curso. Neste plano, o neoliberalismo caracteriza-se também por uma outra mudança, na qual a rentabilidade passa a ser o requisito fundamental de uma boa aplicação, no lugar da utilidade, entendida como a capacidade de contribuir para o bem-estar dos seres humanos (cf. Oliveira, 2004). As observações de Popper e Hempel certamente têm um quê de premonitório.

Indo apenas um pouco além do que dizem as duas passagens, e generalizando, pode-se dizer que, para os positivistas lógicos, o valor intrínseco é primordial, é a razão de ser da ciência, tendo o valor instrumental o caráter de um subproduto, um bônus. Pode-se também mostrar que o que os leva a essa posição é a necessidade de preservar a autonomia, a universalidade e a neutralidade vistas por eles como próprias da ciência. Mas para nossos propósitos aqui basta observar que o status atribuído pelos positivistas à ciência pura se reflete em sua epistemologia. Nas análises positivistas do método científico, as evidências empíricas, que constituem a pedra de toque na avaliação das teorias, incluem apenas as observações e os experimentos científicos, ficando de fora o sucesso nas aplicações práticas. Note-se que nada há de ilógico na idéia de que uma aplicação prática bem-sucedida de uma teoria contribui para sua confirmação (ou, em termos popperianos, para sua corroboração). Pode-se mesmo argumentar que, para a opinião pública, cuja imagem da ciência é bem menos idealizada e idealista que a da filosofia positivista, é a inegável eficácia e o enorme impacto da tecnologia moderna que sustenta a autoridade da ciência enquanto forma de conhecimento da natureza.

Essas considerações permitem apresentar uma peculiaridade do caso Semmelweis, que contribuiu bastante para que a decisão de Hempel de adotá-lo como ilustração tenha sido muito conveniente, de seu ponto de vista. A peculiaridade consiste em que a prática de lavagem das mãos com cal clorada pode muito naturalmente ser vista tanto como um experimento científico, tendo por meta testar a hipótese da infecção por material cadavérico ou pútrido, quanto como uma aplicação bem-sucedida da ciência na solução de um problema prático. Dessa forma, a menção à lavagem das mãos, se por um lado se justifica no contexto de uma análise do método científico, que é o objetivo explícito de Hempel, por outro serve também para evocar o valor instrumental da ciência.

Passando agora a um outro nível de interpretação, é bem evidente que o valor instrumental no caso é do tipo daqueles que sustenta a imagem da ciência como benfeitora da humanidade. Para avaliar em que medida essa imagem corresponde à realidade, convém em primeiro lugar descrever a fortuna póstuma de Semmelweis ou, em outras palavras, o epílogo de sua história.

4.1 O epílogo

Em decorrência das razões expostas na seção 3.1, a teoria de Semmelweis, em termos de resultados, obteve repercussão quase nula sobre a prática obstétrica, seja no período em que ele esteve vivo, seja nos vinte anos que se seguiram à sua morte, em 1865. Sua figura também caiu no esquecimento: se tanto, era lembrado de quando em vez como aquele conturbado médico húngaro, cuja marca registrada fora a defesa dogmática de sua doutrina, até então ainda bastante controversa.

Esse quadro sofre uma dramática mudança em fins da década de 1880. Com as práticas de assepsia sendo instituídas em hospitais de todo o mundo graças ao trabalho de Lister, não havia mais como negar o pioneirismo das medidas de Semmelweis, estabelecidas quatro décadas antes. Semmelweis foi, então, redescoberto como precursor da teoria microbiana das doenças e elevado ao status de "gênio". Aliás, é difícil encontrar um caso semelhante ao seu na história da ciência: o de alguém que, postumamente, tenha ascendido de uma situação de absoluto ostracismo à fama e glória internacionais, num lapso de tão poucos anos.

A partir de 1887, primeiro na Hungria, e logo em seguida na Inglaterra e no resto da Europa, homenagens póstumas seguiram-se em profusão. Foi promovida uma série de encontros acadêmicos em sua memória, uma estátua sua foi inaugurada em Budapeste numa cerimônia grandiosa que reuniu celebridades internacionais, no ano de 1906, e a universidade onde lecionou foi renomeada e hoje se chama "Universidade Semmelweis".14 14 Em contraste com essa honraria dirigida ao nome do homenageado, no período de baixa em seu prestígio como relata Loudon, a viúva e os filhos de Semmelweis "abandonaram seu nome em 1879, substituindo-o por Szemerényi, possivelmente pela vergonha causada pela insanidade que o acometeu e a maneira como veio a morrer." (Loudon, 2000, p. 109). Não obstante, talvez o exemplo mais claro dessa guinada póstuma seja a abundância de biografias, todas repetindo alguns padrões comuns.

Semmelweis passou a ser apresentado como um verdadeiro herói irredutível, porém impedido de prosseguir sua luta pela cegueira de médicos arraigados a teorias obsoletas. Mais do que herói, nessas reconstruções enviesadas de sua trajetória, Semmelweis figura sobretudo como um mártir, vítima da própria doença a cuja erradicação dedicara a vida. Alguns dos aspectos mais destrutivos de sua personalidade (no sentido de o terem conduzido, em vida, ao auto-exílio) – como sua obstinação e irredutibilidade, por exemplo –, transformaram-se, após sua morte e ressurreição, em suas melhores qualidades. O ápice da onda de biografias laudatórias foi a de Sinclair – já mencionada, e que se tornou a mais conhecida dentre elas – publicada em 1909 (cf. Loundon, 2000, p. 145 ss.).

A imagem transmitida através desse gênero de biografias heróicas explica, por um lado, a maneira através da qual Semmelweis entrou para a história – como gênio, herói injustiçado e mártir – e, por outro, como seu caso tornou-se um caso exemplar de sucesso para a ciência.

O que se pode concluir a respeito da história, pelo que foi visto até agora, a respeito do status de benfeitora da humanidade atribuído à ciência? Pode-se inferir que, no caso, a benfeitoria poderia ter sido um pouco mais completa, se não fosse por causa da resistência, que atrasou a adoção de medidas anti-sépticas, mas que no fim a ciência venceu a batalha contra a febre puerperal, livrando assim um incontável número de mulheres da morte em meio a sofrimentos atrozes. Que melhor prova pode existir do caráter benéfico da ciência?

Implícita nessa avaliação, contudo, encontra-se uma pressuposição crucial, a saber, a de que a febre puerperal consistia num mal pré-existente. Na realidade, como veremos, o enorme problema de saúde pública em que tinha se transformado a febre puerperal era um efeito colateral do próprio desenvolvimento da ciência. Em outras palavras, a febre puerperal epidêmica constituiu um caso de iatrogenia fenômeno – em que o tratamento médico causa doenças, em vez de curá-las. Sendo assim, a ciência estava apenas consertando um estrago que ela mesma havia feito, apenas equilibrando os pratos da balança em que se sopesam seus benefícios e malefícios para a humanidade.

4.2 A ciência como causa da febre puerperal

A febre puerperal era uma doença conhecida desde a Antigüidade. Descrições detalhadas dos seus sintomas já haviam sido feitas pelos médicos hipocráticos, mas durante muito tempo sua incidência limitou-se a casos raros, aleatoriamente distribuídos. Apenas no século xviii a doença adquiriu caráter epidêmico, como na situação com que Semmelweis se defrontou em Viena. A primeira epidemia documentada de febre puerperal teve lugar num hospital de Paris, o Hôtel-Dieu, em 1746. Esta mudança está intimamente associada ao desenvolvimento da instituição hospitalar na época, com a construção de mais e maiores hospitais nos principais países da Europa. Como diz Nuland, "mais hospitais significavam mais epidemias" (Nuland, 2005, p. 39).15 15 No Cap. 5 de seu livro, Loudon trata das epidemias de febre puerperal nas maternidades. Em suas palavras, "O problema não era apenas as epidemias, quando a mortalidade chegava a ser vinte ou mais vezes maior, em comparação com os partos domésticos; mesmo a taxa endêmica era em geral consideravelmente maior (por um fator de quatro ou cinco) que a taxa em partos domésticos." A conclusão do autor é a de que "as maternidades constituíam um tal desastre que, em retrospecto, teria sido melhor se elas não tivessem sido estabelecidas antes da introdução da anti-sepsia nos anos 1880." (Loudon, 2000, p. 60-1).

Esse desenvolvimento, contudo, não constituiu por si só a causa da mudança de caráter da febre puerperal – de esporádico para epidêmico. Ele teve este papel apenas (simplificando um pouco)16 16 A simplificação diz respeito ao fato, já comentado, de que a contaminação transmitida pelos médicos e estudantes não provinha exclusivamente da dissecação de cadáveres, mas também – ainda que em um número bem menor de casos – do contato com pacientes vítimas de certos tipos de câncer, ou de infecção decorrentes de ferimentos ou intervenções cirúrgicas. No Cap. 4, de Loudon (2000) trata-se das "epidemias urbanas" ( town epidemics) de febre puerperal, também não relacionadas a dissecações. quando associado a um outro processo histórico – que nos interessa mais de perto aqui, porque diz respeito à ciência médica. O processo pode ser visto em termos kuhnianos como uma mudança de paradigma: a mudança que fez da anatomia patológica o paradigma dominante na medicina.

Muito resumidamente, a anatomia patológica consiste no estudo das mudanças estruturais nas partes do corpo afetadas por doenças. O grande pioneiro do novo paradigma foi Morgagni, professor de anatomia da Universidade de Bolonha e a primeira grande obra o livro De sedibus et causis morborum per anatomen indagatis (Sobre as sedes e causas da doença, investigadas pela anatomia), cujo título já adianta sua proposta inovadora. O estudo da anatomia patológica diferenciava-se da anatomia do corpo são (a dissecação de corpos humanos também já era conhecida e praticada desde a Antigüidade). Esse novo ramo concentrava-se na anatomia do corpo enfermo e nas transformações sofridas pelos órgãos, através das doenças. Identificar os padrões patológicos em diferentes estruturas e estabelecer as relações entre elas: essa era a maior lição da anatomia patológica. Morgagni foi o primeiro médico a estabelecer as conexões da prática clínica e do conhecimento dos sintomas das doenças com os resultados das autópsias.

O triunfo definitivo dessa nova abordagem, entretanto, só veio posteriormente, através da figura do jovem professor vienense – Karl Rokitansky (já mencionado) – o maior expoente dessa nova abordagem na Áustria e também responsável por sua divulgação em toda Europa. Em sua obra Handbuch der pathologischen Anatomie (Manual da anatomia patológica), de 1840, Rokitansky analisou e reuniu os conhecimentos obtidos em dezenas de milhares de autópsias isoladas, praticadas individualmente pelos mais diversos médicos, transformando-os num registro do quadro anatômico do organismo doente.

O triunfo da anatomia patológica constitui um dos episódios mais importantes da história da medicina. Dada a limitação de espaço, convém que nos limitemos a indicar o aspecto do processo que é crucial do presente ponto de vista, a saber, o fato de que a ascensão do novo paradigma desencadeou uma verdadeira "febre" de dissecações nos hospitais da Europa. Se não fosse por isso, os médicos e estudantes não estariam com as mãos contaminadas ao examinar as pacientes, e não haveria infecção. Foi, portanto, a "febre" de dissecações, promovida por um avanço da ciência médica, a causa da epidemia de febre puerperal.

O papel que resultava para os médicos e estudantes, de agentes causadores da doença, está muito presente na literatura sobre o caso Semmelweis, na medida em que constitui, como já mencionado, um fator importante na explicação da resistência a sua teoria, uma vez que aceitá-la implicaria um reconhecimento de culpa. Mas, curiosamente, nesse plano moral, predomina um viés individualista, como se cada obstetra fosse pessoalmente responsável pela morte das parturientes cuidadas por ele. Um caso muito significativo desse ponto de vista é o do Professor Michaelis, que ocupava um cargo de direção na Maternidade de Kiel, na Alemanha, também assolada por epidemias de febre puerperal. Tomando conhecimento das idéias de Semmelweis através de um assistente, Michaelis institui a prática da lavagem das mãos com cal clorada, obtendo excelentes resultados. Com a constatação do sucesso, vem a consciência de que ele próprio havia sido o causador da morte de muitas parturientes, em particular, de uma prima sua muito querida. Atormentado por sentimentos de culpa, Michaelis comete suicídio, jogando-se sob as rodas de um trem em Hamburgo (cf. Semmelweis, 1983 [1861]; Sinclair, 1909, p. 76-7; Nuland, 2005, p. 104-5).

Embora a questão da culpa seja inescapável, atribuí-la aos médicos e estudantes como indivíduos não nos parece a atitude correta. Afinal, eles foram apenas levados pela onda na anatomia patológica, que, sem dúvida, em última análise representou um grande avanço na ciência médica. Mais construtivo, a nosso ver, é imputar a culpa à própria ciência, enquanto forma de conhecimento e instituição, com seus valores, práticas, métodos, modos de inserção na sociedade etc. Junto com o sentimento de culpa, pode e deve vir uma reflexão sobre o que poderia ter sido diferente na ciência como instituição para que se evitasse a enorme tragédia das epidemias hospitalares de febre puerperal. Uma reflexão que (passando agora do passado ao presente e ao futuro) possa ajudar a pensar o que deve ser modificado nas práticas científicas atuais para evitar que tragédias semelhantes venham a ocorrer no futuro. Não será o caso da febre puerperal um bom argumento a favor do princípio de precaução?

5. Conclusão

Entre as grandes áreas da pesquisa científica, a das ciências biomédicas é a mais importante nos dias de hoje, tanto do ponto de vista econômico (pelo montante de recursos que consome) quanto ético (pelos dilemas éticos a que dá origem), ideológico (pela concepção de homem em que se baseia), político etc. Mas ao lado de avanços extraordinários obtidos pela alta tecnologia, ela se mostra impotente no combate a problemas de saúde de milhões e milhões de pessoas, especialmente nos países periféricos, problemas como os causados pela falta de saneamento básico, de alimentação adequada etc., que a ciência já entende perfeitamente. Escrevendo no início da década de 30 do século passado, e denunciando as deficiências na aplicação dos métodos anti-sépticos nos hospitais dos Estados Unidos, Paul de Kruif, um outro autor que se ocupou do caso Semmelweis, pondera:

Este exemplo de negligência no emprego de uma verdade como a que foi descoberta por Semmelweis deixa-me na dúvida de saber se é de mais ciência que necessitamos, ou do uso mais integral e honesto daquilo que já conhecemos (Kruif, 1944, p. 36).

É desnecessário enfatizar a relevância dessa observação para os dias de hoje. Porém mais importante talvez que a questão de saber se precisamos de mais ou de menos ciência é a de decidir de que tipo de ciência precisamos, voltada para quais problemas. Como se sabe, uma das distorções mais chocantes da pesquisa médica hoje, denunciada com ênfase pela própria Organização Mundial de Saúde, é a concentração de recursos na pesquisa voltada para as "doenças de rico", em detrimento das "doenças de pobre".

E esta é apenas uma das conseqüências do processo de mercantilização a que a ciência em geral e a pesquisa biomédica em particular estão submetidas, num ritmo mais acelerado no presente período neoliberal. Outra faceta da situação, que manifesta de forma mais direta as tendências mercantilizadoras atuais, é a que diz respeito às patentes de remédios, que não só têm prejudicado a distribuição eqüitativa dos benefícios da pesquisa (caso da AIDS na África), quanto distorcido, de várias maneiras, as pesquisas realizadas pelas empresas farmacêuticas na busca de novas drogas – que não precisam ser mais eficientes que as antigas, apenas mais rentáveis. Além das patentes de remédios, também as de matéria viva como genes, linhagens de células, tecidos, micro-organismos e animais superiores, obtidos ou não por métodos transgênicos têm afetado profundamente – e negativamente – toda a pesquisa biomédica.17 17 Para críticas à mercantilização da pesquisa biomédica, ver Krimsky, 2003; Angell, 2004.

Mesmo este rápido esboço é suficiente para estabelecer a necessidade de uma reflexão profunda a respeito da pesquisa médica nos dias de hoje – uma reflexão, evidentemente, que não se restrinja ao universo de observações, leis e teorias a que o positivismo reduz a ciência, mas que envolva também o universo dos valores sociais e das estruturas sociais a que estão dialeticamente ligados. Precisa-se, em outras palavras, de uma crítica ao mesmo tempo epistemológica e social, uma crítica que, sem deixar de reconhecer as inegáveis contribuições da medicina científica para o bem-estar da humanidade, dê a devida atenção às suas falhas, às tragédias que ela tem o poder de provocar. Para tal reflexão, podem contribuir estudos, feitos a partir dessa abordagem mais ampla, sobre episódios passados da história da ciência. Esta é a segunda justificativa que oferecemos para o presente trabalho.

Na seção 3.2, ao expor a teoria da ciência de Lacey (baseada nos conceitos de valores cognitivos e sociais, estratégias etc.) mencionamos a agroecologia e o modelo tecnológico do agronegócio, como o domínio em relação ao qual Lacey desenvolveu mais extensamente a aplicação de sua teoria geral. Concluindo, gostaríamos de sugerir que outro domínio para o qual a aplicação das concepções de Lacey se afigura como muito promissora é o da pesquisa biomédica. Trata-se de um empreendimento de grande porte, à espera de interessados em contribuir para a reflexão esboçada acima, que tenham, evidentemente, a necessária formação em medicina – o que não é nosso caso.

Agradecimentos. Uma versão preliminar deste trabalho foi discutida num seminário do Grupo de Pesquisa Educação, Ciência & Tecnologia. Agradecemos aos membros do Grupo, bem como ao Prof. Hugh Lacey, pelas críticas e sugestões, muitas das quais nos foram muito úteis na elaboração desta versão final. Quaisquer falhas que possam ter restado são de nossa inteira responsabilidade.

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  • Vonnegut, K. A (real) commencement address. Disponível em: <http://www.vonnegutweb.com/vonnegutia/commencement /southampton.html>. Acesso em: 9/9/2006.
  • 1
    Aos leitores que não têm dificuldade em obter o livro de Hempel, recomenda-se a leitura nas palavras do próprio autor. A limitação de espaço, e possíveis dificuldades relacionadas aos direitos autorais, impedem a transcrição completa do relato, que seria a alternativa ideal. Em nossa apresentação, transcrevemos algumas passagens para dar uma idéia do tom da exposição hempeliana, resumindo drasticamente o restante.
  • 2
    As aspas no interior da citação encontram-se no original, e remetem à principal fonte do relato de Hempel, a biografia
    Semmelweis, his life and his doctrine de Sinclair, publicada em 1909. Todas as citações do livro de Hempel nesta seção provêm das p. 13-6 da versão brasileira. Algumas modificações estilísticas foram introduzidas na tradução.
  • 3
    Sobre as idéias e a atuação de Florence Nightingale, cf. Loudon, 2000, p.127.
  • 4
    As principais obras em que se baseia o relato a seguir, bem como o epílogo exposto na seção 4.1, são as seguintes: Nuland, 2005; Loudon, 2000 e Sinclair, 1909; o livro do próprio Semmelweis (1983 [1861]), na versão traduzida e editada por K. Codell Carter.
  • 5
    Apesar de ter plena consciência de seu problema, Semmelweis aparentemente não conseguia superá-lo, tanto que, vários anos depois, declarou no prefácio de seu livro que tinha "uma aversão inata a qualquer forma de escrita." (Semmelweis, 1983 [1861], p. 62).
  • 6
    A versão do suicídio é a adotada, entre outros, por Kurt Vonnegut, numa palestra dirigida a alunos do Southampton College, por ocasião de uma cerimônia de formatura em 1981 (cf. Vonnegut, 2006).
  • 7
    Semmelweis tinha plena clareza a respeito dessa diferença. Numa passagem da
    Ätiologie citada por Gillies, ele afirma: "A febre puerperal não é uma doença contagiosa. Uma doença contagiosa produz o contágio pelo qual a doença se transmite. O contágio provoca apenas a mesma doença em outros indivíduos. A varíola é uma moléstia contagiosa porque dá origem ao contágio que causa a varíola em outras pessoas. A varíola causa apenas a varíola e nenhuma outra doença. [...] A febre puerperal é diferente, pode ser causada em pacientes saudáveis por outras doenças." (Semmelweis, 1983 [1861], p. 117). Loudon tem uma visão diferente sobre este ponto. Segundo ele, Semmelweis adotava uma concepção equivocada a respeito da teoria britânica do contágio, baseada na idéia de que para se caracterizar como contagiosa, uma doença deve transmitir-se
    diretamente de um doente para outra pessoa (cf. Loudon, 2000, p. 98-9). A nosso ver, a interpretação de Loudon não se sustenta, uma vez que ele não leva em conta a razão posta por Semmelweis para não considerar a febre puerperal como doença contagiosa o fato de que ela pode ser causada por material não proveniente de uma pessoa afetada pela mesma doença. Não cabe aqui um aprofundamento dessa discussão.
  • 8
    Todas as citações de Latour a seguir provêm do ensaio de 1998; como ele tem apenas duas páginas, é dispensável a menção ao número da página de cada citação. Para uma crítica às teses do ensaio, ver Sokal & Bricmont, 1999, p. 101. Em outros textos (por exemplo, nos caps. 4 e 5 de
    A esperança de Pandora), Latour (2001) discute muito mais extensamente a teoria microbiana das doenças e das fermentações, concentrando-se na figura de Pasteur.
  • 9
    Além de encontrar-se em inúmeros artigos, as idéias de Lacey a que estamos nos referindo encontram-se em Lacey, 1998, 1999, 2005, 2006, no prelo. Para estudos que enfatizam o caráter engajado da postura filosófica de Lacey, ver Oliveira, 1998, 2000.
  • 10
    A relação precisa entre os dois conceitos, e as razões de Lacey para usar o termo "estratégia" no lugar de "paradigma" são explicadas em Lacey, 1999, Introdução, nota 9.
  • 11
    Em comparação com a idéia de paradigma, a abordagem em termos de valores figura com muito menos destaque na obra de Kuhn. Fora algumas antecipações no Posfácio de
    A estrutura das revoluções científicas, Kuhn a expõe em (1989). Outro autor que desenvolveu a abordagem sugerida por Kuhn foi McMullin, por exemplo, em (1983).
  • 12
    A inclusão de Popper entre os positivistas lógicos merece um comentário, por seu caráter polêmico. Como se sabe, Popper rejeita terminantemente a designação de positivista, sendo nisso acompanhado por seus seguidores; mas, de maneira geral, especialmente entre os críticos de esquerda, prevalece a outra alternativa. A nosso ver, a postura mais sensata diante da questão (já defendida num outro trabalho, cf. Oliveira, 2002, p. 73-4) consiste em reconhecer que entre Popper e os positivistas lógicos existem pontos em comum e divergências, de tal forma que, dependendo do ponto de vista, pode ser adequado ora incluir Popper entre os positivistas – como no presente contexto –, ora excluir – como no artigo mencionado.
  • 13
    A tendência a valorizar o conhecimento científico cada vez mais por suas aplicações, cada vez menos como um fim em si mesmo, vem de longa data, mas claramente se intensifica no período neoliberal em curso. Neste plano, o neoliberalismo caracteriza-se também por uma outra mudança, na qual a
    rentabilidade passa a ser o requisito fundamental de uma boa aplicação, no lugar da
    utilidade, entendida como a capacidade de contribuir para o bem-estar dos seres humanos (cf. Oliveira, 2004). As observações de Popper e Hempel certamente têm um quê de premonitório.
  • 14
    Em contraste com essa honraria dirigida ao nome do homenageado, no período de baixa em seu prestígio como relata Loudon, a viúva e os filhos de Semmelweis "abandonaram seu nome em 1879, substituindo-o por Szemerényi, possivelmente pela vergonha causada pela insanidade que o acometeu e a maneira como veio a morrer." (Loudon, 2000, p. 109).
  • 15
    No Cap. 5 de seu livro, Loudon trata das epidemias de febre puerperal nas maternidades. Em suas palavras, "O problema não era apenas as epidemias, quando a mortalidade chegava a ser vinte ou mais vezes maior, em comparação com os partos domésticos; mesmo a taxa endêmica era em geral consideravelmente maior (por um fator de quatro ou cinco) que a taxa em partos domésticos." A conclusão do autor é a de que "as maternidades constituíam um tal desastre que, em retrospecto, teria sido melhor se elas não tivessem sido estabelecidas antes da introdução da anti-sepsia nos anos 1880." (Loudon, 2000, p. 60-1).
  • 16
    A simplificação diz respeito ao fato, já comentado, de que a contaminação transmitida pelos médicos e estudantes não provinha exclusivamente da dissecação de cadáveres, mas também – ainda que em um número bem menor de casos – do contato com pacientes vítimas de certos tipos de câncer, ou de infecção decorrentes de ferimentos ou intervenções cirúrgicas. No Cap. 4, de Loudon (2000) trata-se das "epidemias urbanas" (
    town epidemics) de febre puerperal, também não relacionadas a dissecações.
  • 17
    Para críticas à mercantilização da pesquisa biomédica, ver Krimsky, 2003; Angell, 2004.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2007
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