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23 de Dezembro de 2003   Ética

Ética sem moralismos

Pedro Galvão
Elementos de Filosofia Moral
de James Rachels
Tradução de F. J. Azevedo Gonçalves
Lisboa: Gradiva, Janeiro de 2004, 316 pp.

Fazia muita falta uma introdução decente à ética ou filosofia moral nas livrarias portuguesas. E esta introdução de James Rachels não é meramente decente: entre os livros do género, nenhum obteve maior reconhecimento e poucos podem rivalizar com o seu sucesso editorial. Estes Elementos de Filosofia Moral, aliás, tornaram-se a obra de eleição nos programas de muitas disciplinas universitárias de introdução à ética. As críticas desfavoráveis ao livro incidem invariavelmente neste ponto: Rachels devia ter dado mais peso à religião. Mas não devia. Não porque a ética seja adversa à religião, mas porque, como mesmo os filósofos cristãos reconhecem há séculos, o pensamento moral é independente de quaisquer doutrinas religiosas. Como podemos, então, entender a ética? Rachels responde a esta pergunta logo no primeiro capítulo do livro, onde propõe a seguinte “concepção mínima de moralidade”: “a moralidade é, pelo menos, o esforço para orientar a nossa conduta pela razão — isto é, para fazer aquilo a favor do qual existem melhores razões — dando simultaneamente a mesma importância aos interesses de cada indivíduo que será afectado por aquilo que fazemos”.

Após o capítulo inicial, encontramos três capítulos que se inscrevem na chamada “metaética” — uma área em que não se discutem quaisquer questões normativas, mas problemas sobre a natureza da própria moralidade. Dado que esta é uma área muito abstracta e exigente em termos de formação filosófica prévia, Rachels tomou a decisão sensata de não tentar introduzir exaustivamente as principais teorias metaéticas. Em vez disso, optou por examinar apenas aquelas perspectivas metaéticas que reflectem preconceitos muito difundidos acerca da natureza da moralidade: a ideia de que a ética é relativa à cultura, a ideia de que a ética é apenas uma questão de gosto subjectivo e a ideia de que a moralidade depende da religião. O capítulo 5 incide na perspectiva do egoísmo psicológico — a teoria que nos diz que todas as acções humanas são motivadas pelo interesse pessoal. Embora esta teoria não se situe estritamente no âmbito da ética, tem uma relevância manifesta para o estudo do pensamento moral.

Os oitos capítulos que se seguem são dedicados às teorias normativas mais influentes, entre as quais se contam o utilitarismo, a ética deontológica de Kant, o contratualismo e a ética das virtudes, cujo maior inspirador continua a ser Aristóteles. Rachels teve o cuidado de conceber o livro de maneira a tornar cada capítulo compreensível por si mesmo, mas, como se percebe sobretudo ao longo deste conjunto de capítulos, conseguiu também elaborar um percurso inteligentemente estruturado: em vez de sermos confrontados com uma simples lista de perspectivas irreconciliáveis, cada uma delas acompanhada pelas respectivas objecções, vamos percebendo como certas teorias evitam satisfatoriamente algumas das objecções mais fortes que são colocadas a outras teorias. Gradualmente, vamos formando uma noção cada vez mais exacta daquilo que seria uma teoria moral satisfatória. Delinear essa teoria, aliás, é propósito do capítulo final. Neste momento conclusivo, Rachels explora uma forma mais sofisticada de apelar ao padrão utilitarista da promoção imparcial do bem-estar.

Este livro está organizado sob um critério primariamente temático, e não histórico, mas a verdade é que proporciona uma boa introdução ao pensamento moral de filósofos como Aristóteles, Hobbes, Kant e Mill. Rachels privilegia as questões teóricas, mas deixa bem nítida a sua relevância prática através da análise de casos concretos e de diversas incursões no território da ética aplicada. No capítulo sobre ética e religião, por exemplo, examina o modo como se tem apelado à Bíblia no debate da moralidade do aborto. E, para ilustrar a abordagem utilitarista, discute os problemas do estatuto moral dos animais não-humanos e a permissividade da eutanásia.

Dado o nível miserável que tem caracterizado o debate ético em Portugal, uma introdução à filosofia moral como esta torna-se inestimável. Permite-nos ver como é possível raciocinar sobriamente sobre questões éticas e evitar os habituais floreados moralistas. Com um pouco de sorte, num futuro próximo teremos a tradução de The Right Thing To Do, uma antologia de leituras fundamentais de ética organizada por Rachels que complementa estes Elementos da melhor forma.

Pedro Galvão
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ISSN 1749-8457