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Ressentimento, poder e valor* * Tradução de Renan Cortez. Revisão técnica de Rogério Lopes

Resumo

Examino duas interpretações recentes do ressentimento - aquela que o vê como uma forma maliciosa de inveja e aquela que o vê como uma incitação para encontrar alguém que possa ser censurado pelo próprio sofrimento -, e ao mesmo tempo argumento que estas interpretações fracassam tanto na identificação do que seja o caráter distintivo do ressentimento quanto na tentativa de fornecer uma interpretação convincente do processo de reavaliação desencadeado por ele. Proponho que o ressentimento deve ser concebido como uma expressão da vontade de potência e procuro esboçar uma análise dessa motivação como um desejo por agência efetiva. Concluo mostrando como essa compreensão do ressentimento é particularmente apropriada ao contexto de desfazimento dos valores do agente.

Palavras-chave
inveja; sofrimento; ressentimento; vontade de potência

Abstract

I examine two recent accounts of ressentiment, respectively as a malicious form of envy and as the urge to find someone to blame for one's suffering, and argue that they fail either to identify the distinctive character of ressentiment or to give a persuasive account of the revaluation it motivates. I propose to conceive of ressentiment as an expression of will to power and proceed to outline an analysis of this motivation as a desire for effective agency. I conclude by showing how ressentiment so understood is especially apt to disrupt an agent's values.

Keywords
blame; suffering; ressentiment; will to power

O fenômeno do ressentimento desempenha um papel central na estimulante crítica à moralidade que Nietzsche desenvolve em sua Genealogia da moral. Ele é evocado como uma explicação plausível para todos os elementos essenciais da perspectiva moral que Nietzsche identifica e discute nesse livro, principalmente as crenças sobre valor. Contudo, que tipo de estado o ressentimento é precisamente, o que ele revela sobre a psicologia humana e por que ele é capaz de afetar crenças sobre valores, são questões que ainda produzem considerável dificuldade. Meu objetivo neste artigo é apresentar respostas novas - espero que mais satisfatórias - para essas questões.

Gostaria de começar com uma advertência: é importante diferenciar o conceito de "ressentimento" [ressentiment] do termo inglês "resentment", pelo menos na medida em que o último é concebido em um sentido moral2 2 O termo ressentiment é de origem francesa. De acordo com Reginster, a palavra inglesa resentment não designa adequadamente o estado psicológico ao qual o termo francês se refere. Mais adiante, Reginster retoma esse ponto e explica mais detalhadamente os motivos. O leitor deve ter em mente que o termo ressentimento, tal como se encontra traduzido para o português, se refere ao ressentiment em francês e não ao resentment. Optei por não traduzir o último termo do inglês, visto que prejudicaria a compreensão da distinção que Reginster propõe. Nota do tradutor. . Como tal, resentment designa a reação que tenho diante de alguém que não cumpre as obrigações morais que tem em relação a mim. Ele está no grupo das três atitudes morais fundamentais, ao lado da indignação, que é a reação que expresso quando alguém não cumpre suas obrigações morais em geral, e da culpa, a reação que tenho quando eu mesmo não cumpro as minhas obrigações morais. Para Nietzsche, "ressentiment" não pode ser um "moral resentment", na medida em que é concebido como uma origem possível para os valores morais, e deve, portanto, existir antes e independente deles.

Ressentimento como um sentimento social e o enigma da reavaliação

A maioria das análises sobre o ressentimento concentra-se no exemplo mais conhecido da Primeira Dissertação da Genealogia. Nesse famoso exemplo somos convidados a imaginar duas classes aristocráticas, os "sacerdotes" e os "guerreiros", competindo pela superioridade política. Os guerreiros mais fortes conquistam inicialmente o controle, despertando o ressentimento dos sacerdotes. Por serem membros da aristocracia, os sacerdotes valorizam a superioridade política (GM/GM, I, 5, KSA 5.262), mas sua fraqueza os impede de conquistá-la.

Em outras palavras, esse exemplo descreve uma situação genérica na qual dois indivíduos ou grupos de indivíduos competem pela posse de um bem cobiçado; um indivíduo ou grupo de indivíduos é demasiado fraco para conquistar o bem, enquanto o outro é forte o suficiente para obtê-lo. O ressentimento que essa situação desperta no grupo mais fraco é normalmente considerado uma espécie de vontade doentiamente vingativa direcionada contra o rival mais forte. Ele parece ser, portanto, nas palavras de um comentador, um "sentimento social": o ressentimento é paradigmaticamente direcionado para outras pessoas ou agentes.

No entanto, em virtude de sua fraqueza, o fraco não pode se vingar por meio de ações que sejam diretamente prejudiciais para os interesses dos seus rivais mais poderosos. Consequentemente, recorre a uma estratégia peculiar: "uma radical reavaliação dos valores dos inimigos, isto é, um ato da mais espiritual vingança" (GM/GM, I, 7, KSA 5.266). Incapazes de recuperar a superioridade política que perderam para os seus rivais, os sacerdotes a desvalorizam radicalmente: a superioridade e o desejo por ela não devem apenas ser tratados com indiferença, mas precisam ser repudiados como "maus".

O objetivo dessa reavaliação é exigir vingança contra os rivais mais fortes, o que parece implicar infligir algum tipo de dano neles. É tentador supor que a reavaliação alcança esse objetivo induzindo os fortes a internalizarem sentimentos angustiantes de culpa ou de vergonha. Nietzsche explicitamente encoraja essa interpretação em alguns momentos: "o último, mais sutil, mais sublime triunfo da vingança, para o fraco e o miserável", ele escreve, consiste em "envenenar a consciência dos felizes com sua própria miséria, com toda a miséria, de modo que estes um dia começassem a se envergonhar de sua própria felicidade, e dissessem talvez uns aos outros: 'é uma vergonha ser feliz: existe muita miséria'" (GM/GM, III, 14, KSA 5.367)3 3 O fundamento mais evidente para essa interpretação da reavaliação encontra-se na seguinte passagem: " (...) não pense que tenha surgido como a negação daquela avidez de vingança, como a antítese do ódio judeu! Não, o contrário é a verdade! O amor brotou dele como sua coroa, triunfante, estendendo-se sempre mais na mais pura claridade e plenitude solar, uma coroa que no reino da luz e das alturas buscava as mesmas metas daquele ódio, vitória, espólio, sedução, com o mesmo impulso com que as raízes daquele ódio mergulhavam, sempre mais profundas e ávidas, em tudo que possuía profundidade e era mau (...) Não teria Israel alcançado, por via desse 'redentor', desse aparente antagonista e desintegrador de Israel, a derradeira meta de sua sublime ânsia de vingança? Não seria próprio da ciência oculta de uma realmente grande política da vingança, de uma vingança longividente, subterrânea, de passos lentos e premeditados, o fato de que Israel mesmo tivesse de negar e pregar na cruz o autêntico instrumento de sua vingança, ante o mundo inteiro, como um inimigo mortal, para que o 'mundo inteiro', ou seja, todos os adversários de Israel, pudesse despreocupadamente morder tal isca? E porventura seria possível, usando-se todo o refinamento do espírito, conceber uma isca mais perigosa? Algo que em força sedutora, inebriante, estonteante, corruptora, igualasse aquele símbolo da 'cruz sagrada', aquele aterrador paradoxo de um 'Deus na cruz', aquele mistério de uma inimaginável, última, extrema crueldade e autocrucificação de Deus para salvação do homem? (...)" De acordo com essa passagem, a valoração cristã do amor é uma estratégia deliberada motivada pelo ódio e pela vingança, dirigida para os mesmos objetivos: "vitória, espólio e sedução" (GM/GM, I, 8, KSA 5.268, tradução de Paulo César de Souza, doravante PCS). Ela é uma "autêntica grande política do ressentimento", "premeditada" e "longividente". Alcança essas metas levando o oponente a comprar o seu novo modo de valoração, que é apresentado como uma "isca" para "seduzir", "inebriar" e "corromper". .

Para conquistar esse objetivo, o fraco representa as características e os estados de coisas estimados pelo forte, incluindo a superioridade política, como "maus". A fim de persuadir o forte a adotar os novos valores, os sacerdotes apresentam esses valores como normas "incondicionais" (objetivas). Para deixar os fortes incomodados com o fato de não conseguirem viver conforme essas normas, o fraco inventa a ficção do livre arbítrio, induzindo assim os mais poderosos a pensarem que são culpados pelo próprio fracasso e a experimentarem o doloroso sentimento de culpa. Quando bem-sucedida, essa reavaliação pode induzir o forte a desistir de sua posição política superior. Mas mesmo se isso não ocorrer, torna-se praticamente impossível para ele continuar gozando de sua posição.

Essa interpretação do objetivo da reavaliação pelo ressentimento apresenta sérias dificuldades. Vou me concentrar aqui em uma das mais importantes: o recurso à reavaliação parece inconsistente do ponto de vista prático, ao menos sob dois aspectos4 4 Cf. WALLACE, R. Jay. 2007. "Ressentiment, Value, and Self-Understanding: Making Sense of Nietzsche's Slave Revolt.". In. LEITER, B. & SINHABABU, N. (Org.) Nietzsche and Morality. Oxford: Oxford University Press, p. 110-137. . Primeiro, a reavaliação só é um meio eficaz para prejudicar os fortes se for razoável supor que eles aceitarão os novos valores, assim como a concepção de agente ligada a esses valores e, em decorrência disso, serão atormentados pelo sentimento de culpa. Mas os fracos não têm nenhuma razão para esperar que o forte aceite essas visões5 5 Alguns pesquisadores tentaram defender Nietzsche dessa acusação de inconsistência. (Cf. MIGOTTI, Mark. "Slave Morality, Socrates, and the Bushmen: A Critical Introduction to On the Genealogy of Morality, Essay I". In. ACAMPORA, C. D. (Org). Nietzsche's On the Genealogy of Morals. Oxford: Rowan & Littlefield Publishers, 2006, p. 109-129 e OWEN, David. Nietzsche's Genealogy of Morality. Stockfield: Acumen, 2007). É importante notar, de qualquer forma, que eles reconhecem que esse é um problema sério, para o qual a própria genealogia não oferece uma solução satisfatória - na verdade, não oferece nem mesmo uma explícita tentativa de solução (Migotti procura por uma solução - e é tão especulativa que se estende até a discussão de Nietzsche sobre o problema de Sócrates em Crepúsculo dos ídolos). Além disso, aqueles que procuram defender Nietzsche dessa acusação geralmente negligenciam o segundo aspecto do problema, a saber, que para a reavaliação obter sucesso é crucial que os próprios fracos comprem a nova visão moral. Ambas as características do tratamento genealógico sugerem que a posição de Nietzsche é a de que o objetivo da reavaliação motivada pelo ressentimento não é causar danos (ao menos diretamente) nos rivais mais fortes. . Segundo, Nietzsche insiste que para que a reavaliação alcance seus objetivos, os próprios fracos que a promoveram devem internalizar os novos valores que criaram: precisam passar por um processo de autoengano - eles próprios têm de acreditar na legitimidade dos valores (GM/GM, I, 14, KSA 5.281). Nesse momento, a interpretação que estamos considerando não pode explicar coerentemente esse ponto, pois de acordo com ela, para que a reavaliação alcance o seu objetivo, basta apenas que os fracos convençam o forte a aceitar os novos valores; eles mesmos não precisam aceitá-los.

Essa ameaça de inconsistência coloca um desafio para a noção segundo a qual a reavaliação motivada pelo ressentimento visa a causar dor no grupo mais forte. O objetivo dessa reavaliação revela-se, portanto, problemático. Na literatura recente podemos encontrar duas distintas análises do ressentimento como sentimento social, cada uma com uma visão particular da natureza desse sentimento e com uma solução específica para a acusação de inconsistência. Eu irei considerar e avaliar cada uma delas.

Ressentimento e inveja

A própria estrutura do exemplo dado por Nietzsche na Genealogia da Moral estimula uma comparação entre ressentimento e inveja. O ressentimento dos sacerdotes apresenta a estrutura triangular típica da inveja: ele envolve um sujeito que tem inveja (o fraco), um outro que é invejado (o forte) e um bem, cuja posse faz com que o outro seja invejado (no exemplo de Nietzsche, a superioridade política). Para diferenciar o ressentimento da simples inveja, alguns filósofos destacam o desejo de prejudicar o outro invejado, por exemplo, privando-o da posse do bem cobiçado, aparentemente por conceberem que esse desejo é uma característica essencial do ressentimento, não da inveja6 6 Cf. SCHELER, Max. Ressentiment. Trans. W.W. Holdheim. New York: Schocken Books, 1961 e WALLACE, R. Jay. Op. Cit. .

Assim, esses filósofos aceitam implicitamente a distinção entre formas saudáveis e maliciosas de inveja. A forma maliciosa envolve um desejo negativo de que o outro seja prejudicado de alguma maneira: esse dano pode assumir a forma de uma privação do bem cobiçado ou de outro tipo de infortúnio que anule a vantagem que a posse desse bem parece conferir. Já a forma saudável diz respeito apenas ao desejo positivo de adquirir o bem. Por essa razão, a forma saudável em alguns momentos é chamada de inveja mimética: ela motiva o desejo de imitar os outros através da conquista por si mesmo do bem devido ao qual eles são invejados.

De fato, quando o bem cobiçado é único, tal como a superioridade política, o desejo de conquistá-lo é, ipso facto, o desejo de que o outro não o tenha. Mas mesmo no caso dos bens únicos a distinção se mantém: uma pessoa pode desejar que os outros sejam privados do bem cobiçado mesmo que isso não garanta a ela a posse desse bem. Esse também é indiscutivelmente o caso do exemplo de Nietzsche: o fraco deseja ver seus rivais mais fortes destituídos de sua posição superior, ou ao menos incapazes de gozá-la. Por isso defendem o ideal de igualdade, o que os impede igualmente de gozar a superioridade. De acordo com essa visão, portanto, o ressentimento é diferente da inveja em virtude da presença do desejo de prejudicar o outro. Ressentimento, em outras palavras, não é apenas inveja, mas inveja maliciosa.

Pensando bem, essa não é uma maneira promissora de diferenciar ressentimento da inveja. O desejo negativo de prejudicar a pessoa invejada parece ser uma parte constitutiva da inveja. Nós podemos constatar isso observando mais detidamente a concepção saudável de inveja. O problema dessa concepção é que ela torna difícil distinguir a inveja do mero desejo por algo bom. Inveja não consiste apenas na conjunção entre desejo por um bem e a crença de que o outro o possui: somente apreciar o carro bonito de uma pessoa não é o suficiente para invejá-la. Mas, ao mesmo tempo, parece plausível conceber que a inveja poderia se manifestar apenas como o desejo de garantir a posse de um bem, sem o desejo de que o outro seja privado dele. Como, então, a inveja poderia ser mais do que o mero desejo pelo bem invejado, precisamente nesses casos nos quais ela se manifesta exclusivamente na forma desse desejo? Para resolver essa dificuldade, alguns filósofos notaram que a inveja é essencialmente uma motivação disjuntiva7 7 Cf. D'ARMS Justin and JACOBSON, D., "The Moralistic Fallacy". In. Philosophy and Phenomenological Research, 61/1, 2000, p. 65-90. . A fim de aliviar a tensão característica desse estado emocional, o invejoso pode ser motivado tanto a adquirir o bem por conta própria quanto a privar a outra pessoa do bem, ou ainda a privá-la da vantagem que o bem fornece a ela.

Embora determinados casos de inveja possam produzir unicamente ações direcionadas para o objetivo positivo de conquistar o bem desejado, o desejo malicioso de prejudicar o outro está presente, entretanto, mesmo que apenas na forma inativada. Possivelmente, este desejo malicioso é ativado em circunstâncias nas quais o modo saudável de aliviar a dolorosa tensão da inveja não está disponível. Isso também se aplica ao caso que Nietzsche descreve. Podem se esforçar ao máximo, mas os fracos não são capazes de retirar à força a superioridade política dos seus rivais. Eles são acometidos pela "sensação de impotência": essa sensação desperta e alimenta o ódio pelo forte, expondo assim o lado malicioso da inveja. Incapazes de assegurar uma posição superior para si, os fracos desejam que ninguém conquiste a superioridade.

De fato, a noção de que o desejo malicioso é constitutivo da inveja é essencial para compreender sua natureza, em particular para diferenciá-la do mero desejo por algo bom. O fato de que a tensão da inveja pode ser aliviada tanto adquirindo o bem cobiçado quanto privando o outro de tê-lo mostra que a dor da inveja é diferente da dor causada pela privação de um bem cobiçado. A dor da inveja parece ser causada pela diferença na posse em si mesma, ou pelo puro fato de que o outro tem mais do que eu. Tal diferença na posse pode ser eliminada tanto pela aquisição do bem quanto pela privação do bem do outro. Eu sinto dor devido à crença de que os outros têm mais do que eu, presumivelmente porque a minha posição relativa em minha comunidade é algo que me importa em si mesmo.

Poderíamos, então, conceder que o ressentimento é apenas inveja. Segundo essa interpretação, o objetivo da reavaliação é eliminar a dolorosa tensão da inveja. A desvalorização da superioridade política alcança seu objetivo através da supressão do desejo de superioridade do ressentido e de sua crença de que os outros são melhores por possuí-la8 8 Cf. BITTNER, Rudiger. "Ressentiment." In. SCHACHT, R. ed. Nietzsche, Genealogy, Morality. Berkeley: University of California Press, 1994, p. 127-138. . Para ser bem-sucedida, a nova visão valorativa tem de ser uma crença exclusiva dos fracos. Ela não manifesta, portanto, nenhuma inconsistência prática.

Mas essa interpretação também apresenta dificuldades significativas. Uma delas é a redução do ressentimento à inveja. Se o ressentimento é apenas uma forma de inveja, para que recorrer a um confuso e oneroso termo francês do século 18, cujo significado é reconhecidamente obscuro? Por que não usar simplesmente "inveja"? Além disso, Nietzsche sugere que esse ódio concentrado produzido pelo ressentimento parece estar baseado na crença de que o outro fez alguma coisa para mim, mais especificamente, que é a causa de minha miséria. Mas isso não é essencial na inveja: eu posso invejar outra pessoa pelo fato de ela ter o bem que desejo, sem considerar que a posse seja a causa da minha privação ou sem acreditar que a pessoa tenha causado qualquer dano a mim.

Ressentimento e Vingança

A atenção a essa característica do ressentimento sugere uma análise alternativa. De acordo com essa análise, o ressentimento é uma reação a um sofrimento em geral. Essa reação consiste em procurar por um culpado pelo sofrimento. No exemplo de Nietzsche, o sofrimento é causado pela frustração da ambição política do fraco, que naturalmente coloca a culpa do insucesso no seu rival mais forte. Mais uma vez, o próprio Nietzsche possibilita essa linha de interpretação:

Pois todo sofredor busca instintivamente uma causa para seu sofrimento; mais precisamente, um agente; ainda mais especificamente, um agente culpado suscetível de sofrimento, em suma, algo vivo, no qual possa sob algum pretexto descarregar seus afetos, em ato ou in effigie [simbolicamente]: pois a descarga de afeto é para o sofredor a maior tentativa de alívio, de entorpecimento, seu involuntariamente ansiado narcótico para tormentos de qualquer espécie. Unicamente nisto, segundo minha suposição, se há de encontrar a verdadeira causação fisiológica do ressentimento, da vingança e quejandos, ou seja, em um desejo de entorpecimento da dor através do afeto. (GM/GM, III, 15, KSA 5.283, tradução de PCS)

Incapaz de alcançar a vingança por meio de ações que sejam diretamente prejudiciais para os interesses do seu opressor, o fraco recorre a uma "vingança espiritual": uma reavaliação dos valores do opressor. Por desvalorizar a brutal superioridade política dos seus opressores, o fraco pode julgá-la como "má", culpá-los por deterem o poder e encontrar algum conforto em sua própria "bondade" ou "superioridade", que se caracteriza pelo fato de não revidarem:

Que desejam realmente? Ao menos representar o amor, a justiça, a superioridade, a sabedoria - eis a ambição desses 'ínfimos', desses enfermos! (...) eles agora monopolizaram inteiramente a virtude, esses fracos e doentes sem cura, quanto a isso não há dúvida: "nós somente somos os bons, os justos", dizem eles, "nós somente somos os homines bonae voluntatis [homens de boa vontade]". (GM/GM, III, 14, KSA 5.367, tradução de PCS)

Se a reavaliação é uma forma de vingança, pode parecer que o seu objetivo é prejudicar os outros. Essa interpretação, então, traz à tona o problema da inconsistência prática. Para afastar o problema, alguns filósofos9 9 Cf. LEITER, Brian. "The Hermeneutics of Suspicion: Recovering Marx, Nietzsche, and Freud." In. Leiter, B. (Org). The Future for Philosophy. Oxford: Clarendon Press, 2004, p. 74-105; POELLNER, Peter. "Ressentiment and Morality." In. MAY, S. (Org.) Nietzsche's On the Genealogy of Morality. A Critical Guide. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 120-141. argumentam que o objetivo da reavaliação não é prejudicar os opressores induzindo-os a adotar uma visão que causaria um tormento espiritual. O objetivo é, na verdade, fornecer ao próprio fraco uma visão que lhe proporcione certos benefícios psicológicos. A fantasia moral segundo a qual os opressores são maus e culpados e o fraco é correto por não revidar não elimina o sofrimento: o fraco permanece sujeito à opressão e incapaz de superá-la. Mas ela torna possível um abrandamento das emoções através da culpabilização e da satisfação com a própria superioridade (moral): uma pura intensidade que entorpece, anestesia ou simplesmente torna o sofrimento silencioso.

Essa interpretação é marcada por problemas significativos. Primeiro, se o objetivo é apenas amortecer ou anestesiar a dor através de afetos, por que Nietzsche insiste em mencionar esses afetos específicos (culpa e sensação de superioridade moral)? Sentir-se moralmente superior àqueles que causam sofrimento pode ser especialmente eficaz para alivia-lo, mas nós ainda queremos saber o porquê. Esse problema torna-se mais grave quando consideramos a afirmação de Nietzsche de que a pessoa que sofre pode direcionar a fantasia da culpa moral para si mesma, encontrando assim o alívio para o seu sofrimento. Sua exclamação, "eu sofro, alguém deve ser culpado por isso", encontra a resposta: "você mesmo é essa pessoa, apenas você é culpado pelo seu sofrimento". Nesse caso, a estratégia consistiria em substituir um tipo de dor (a frustração), por outro (os tormentos da culpa). Se o objetivo dessa estratégia é simplesmente amortecer a dor por meio de afetos, parece que outros afetos, incluindo especialmente os mais agradáveis, seriam mais apropriados. Somos levados, portanto, a perguntar por que a dor da culpa é preferível à frustração10 10 Essa substituição de uma forma de sofrimento por outra é tão problemática estrategicamente que Danto argumentou que deveríamos ver nela a própria patologia que Nietzsche identifica como o coração da "moralidade". Pode haver patologia nesse caso, mas ele segue uma lógica distinta. Antecipando aqui desenvolvimentos posteriores, o sentimento de culpa, ainda que possa atormentar de outras maneiras, apazigua o sofrimento por restaurar no agente o sentimento de poder. Por assumir a responsabilidade pelo seu sofrimento - por exemplo, por representa-lo como uma punição para a sua intencional violação das normas morais - o agente pode ver o sofrimento como uma expressão de sua agência, ao invés de uma evidência de sua ineficácia. Ao olhar seu sofrimento através da "perspectiva da culpa", Nietzsche escreve, "o inválido foi transformado em 'pecador'." (GM/GM, III, 20, KSA 5.387). .

Segundo, um exame mais minucioso revela que Nietzsche realmente afirma que a adesão à visão moral produzida pela reavaliação não tem como fim eliminar o sofrimento em si mesmo, mas superar a "depressão, o peso e o cansaço" que acompanham o sofrimento quando ele parece ser inevitável, isto é, quando provoca um "sentimento de impotência". Isso indica, como argumentarei em breve, que o objetivo da reavaliação não é apenas apaziguar o sofrimento, que provavelmente poderia ser extenuado de várias maneiras, mas eliminar o sentimento de impotência gerado ocasionalmente.

As duas linhas de interpretação consideradas até agora apresentam problemas. A primeira explica bem a reavaliação motivada pelo ressentimento, mas ao custo de reduzir o ressentimento à inveja, retirando dele, portanto, a sua identidade característica. A segunda atribui uma identidade singular para o ressentimento, mas não explica coerentemente a reavaliação motivada por ele. Para tentar algo novo, eu quero primeiro contestar o pressuposto básico compartilhado por elas, a saber, o de que o ressentimento é um "sentimento social" essencialmente direcionado para outras pessoas ou agentes.

Ressentimento e Sofrimento

Na visão de Nietzsche, o ressentimento pode ser experimentado em relação a entidades impessoais não-agenciais, tais como "vida" (GM/GM, III, 10, KSA 5.369), "realidade" (Nachlass/FP, 8 [2] KSA 12.327) ou mesmo "tempo" (Za/ZA, Da redenção, KSA 4.177):

Pois uma vida ascética é uma contradição: aqui domina um ressentimento ímpar, aquele de um insaciado instinto e vontade de potência que deseja tornar-se senhor, não de algo da vida, mas da vida mesma, de suas condições maiores, mais profundas e fundamentais (GM/GM, III, 10, KSA 5.369).

É o sofrimento que inspira essas conclusões: no fundo, são desejos de que tal mundo pudesse existir; do mesmo modo, imaginar um outro mundo mais valioso é a expressão do ódio por um mundo que faz sofrer: aqui, o ressentimento dos metafísicos contra a realidade é criativo" (Nachlass/FP, 8 [2] KSA 12.327; cf. Za/ZA, Dos ultramundanos, KSA 4.35: " foram o sofrimento e a incapacidade [Unvermögen] que criaram todos os mundos transcendentes")

Impotente contra o que foi feito, a vontade é uma furiosa espectadora de tudo aquilo que é passado. Que o tempo não retroceda, essa é a sua ira; "o que foi" é o nome da pedra que não pode remover; [...] Assim a vontade, a libertadora, tornou-se perigosa: e exerce a sua vingança sobre tudo o que é capaz de sofrer, devido a sua incapacidade para voltar para trás. Isto, e só isto, é a vingança: a doença da vontade contra o tempo e o seu 'foi'" (Za/ZA, Da redenção, KSA 4.177).

Em todos esses casos o ressentimento é uma reação a um sofrimento, e quando motiva uma reavaliação, é também uma reação a um sentimento de impotência. O ressentimento dos sacerdotes na Genealogia apresenta essas características. Ele é produzido pelo sofrimento, ou seja, pela frustração da ambição política, e quando está acompanhado pelo sentimento de impotência, motiva igualmente uma reavaliação de objetivos frustrados. Em relação a esse ponto existe um amplo consenso entre os estudiosos. O que em geral é pouco compreendido, no entanto, é a importância da estreita conexão que Nietzsche reiteradamente estabelece entre o sofrimento e a impotência [Ohnmacht] ou incapacidade [Unvermögen]. Para entender essa conexão será útil voltarmos rapidamente à psicologia filosófica de Schopenhauer.

Schopenhauer diferencia o sofrimento [Leiden] da dor [Schmerz]. A dor é essencialmente uma reação à privação, isto é, ela é causada por qualquer desejo que permaneça insatisfeito. Em contraposição, o sofrimento é uma experiência de frustração: "todo sofrimento não é nada mais do que um querer frustrado e não realizado" (WWR I, § 65, 263). É crucial notar que Schopenhauer não fala de um desejo insatisfeito, mas de um querer não realizado. Isso indica que embora os desejos insatisfeitos provoquem dor, eles não produzem necessariamente sofrimento. É apenas quando quero satisfazer um desejo que experimento sua insatisfação como sofrimento. O que o querer envolve?

Alguns filósofos, incluindo Nietzsche, sugerem que eu não posso querer um fim sem considerá-lo bom. "'Querer': significa querer um fim. Um fim inclui uma avaliação " (Nachlass/FP 24 [15] KSA, 10.651). Embora Schopenhauer concorde (com algumas ressalvas), não considera que esse seja o fator responsável pela diferença entre o "querer" e o "almejar", ou entre o "querer" e o mero "desejar" algo. Pois mesmo que o julgamento de um fim como bom seja uma característica do querer, ele não é exclusividade dele. Posso vir a almejar ou meramente desejar um fim por considerá-lo bom sem que eu o queira. Por exemplo: posso almejar pela paz na terra ou tocar violino, pois reconheço que ambos são fins valiosos que ainda não decidi alcançar. O que diferencia o querer do "almejar" ou do mero desejar é, precisamente, a decisão [Entschluss] (WWR I §55, 300).

A noção de decisão é ambígua em Schopenhauer. Por um lado, ela designa a resolução de uma questão prática que os agentes enfrentam, a deliberação que assume tipicamente a forma da escolha por uma entre as opções práticas que constam no "menu"11 11 "Esse conflito leva os motivos a testarem repetidamente, uns contra os outros, a eficácia de cada um sobre a vontade (...) até que finalmente o motivo mais forte decididamente comanda os outros na batalha e determina a vontade. Esse resultado é chamado de decisão [Entschluss]." (SCHOPENHAUER, A. Essay on the Freedom of the Will. K. Kolenda trans. New York. The Liberal Arts Press, 1960, 37). . Por outro lado, decisão também designa a firmeza para pôr em prática a opção escolhida. Isso significa que quando decido buscar um bem eu me engajo para conquistá-lo. Na verdade, eu não decidi genuinamente obter esse bem se eu não me engajar. (WWR II, XIX, 211)12 12 "Deste modo, se planejamos uma grande e corajosa decisão (...) muitas vezes permanece dentro de nós uma ligeira e não confessada dúvida, a saber, se estamos suficientemente firmes em relação à resolução planejada; (...) A ação, portanto, é requerida para nos convencer da sinceridade da decisão [Entschluss]" (WWR II, XIX, 210-1). . Na visão de Schopenhauer, querer um fim implica lutar por ele. É esse último sentido de decisão que importa para a caracterização do sofrimento.

A não satisfação de um desejo que eu não queria satisfazer pode causar uma dolorosa sensação de perda, ou então, se o desejo foi motivado pelo reconhecimento do valor do seu objeto, arrependimento ou desapontamento. Todavia, na medida em que não me engajei, o desejo não saciado não pode afetar a sensação que tenho em relação à eficácia da minha agência. As reações que ele provoca são dolorosas, mas, estritamente falando, não constituem formas de sofrimento, porque o sofrimento não é, em primeira instância, a constatação da perda de um bem; ele é a constatação da incapacidade para garantir uma posse - uma sensação de frustração que revela esforço frustrado e é experimentada pelo agente como um desafio à eficácia de sua agência.

Vamos retornar aos sacerdotes do primeiro ensaio da Genealogia. O ressentimento [ressentiment] é despertado pela incapacidade de alcançar a superioridade política, um bem que os sacerdotes valorizam. (GM/GM, I, 5, KSA 5.262). Reações comuns para o fracasso em realizar o objetivo valorizado incluem o remorso, a decepção ou emoções morais específicas que as circunstâncias tornam apropriadas, tais como o resentment ou a indignação. Remorso (ou decepção) é a reação que se volta para o valor de um objetivo não realizado. Na medida em que o ressentimento (ressentiment) é evidentemente diferente do remorso, o sacerdote não pode apenas lamentar pela perda da posse que valoriza. Resentment (ou indignação) é uma reação que se volta para o direito do agente a algum bem. O ressentimento (ressentiment) é claramente uma reação distinta: como Nietzsche enfaticamente aponta, ele inspira vingança, e não a exigência de justa retribuição que esperamos ser motivada por um genuíno senso de direito. (GM/GM, II, 11, KSA 5.309).

Ressentimento difere do arrependimento e do resentment, de acordo com a minha visão, por se referir à incapacidade do agente para conseguir o que quer. Em outras palavras, o ressentimento do sacerdote não é uma reação à perda do bem nem à violação do direito, mas à perda do poder: é por isso que existe uma conexão com o sentimento de impotência (GM/GM, I, 7, 10, 13, 14, KSA 5.266, 270, 278, 281). O ressentimento é, então, uma reação à frustração, sendo esta compreendida como um dano do sentimento de poder. Nietzsche o descreve como "o verme roedor da ambição ferida" (GM/GM, III, 8, KSA 5.351), e a ambição pode ser caracterizada de forma plausível como um desejo de conquistar ou demonstrar a eficácia de uma agência.

O ressentimento motiva o desejo por vingança - na verdade, Nietzsche o descreve como o "espírito de vingança". Vingança é possivelmente (e talvez mais bem) compreendida como uma asserção de poder. Suponha que você tenha sido prejudicado de alguma forma, por exemplo, tenha sido privado de alguma coisa que valorize. A exigência de vingança não visa necessariamente à recuperação do bem perdido: essa exigência pode ser considerada adequada mesmo quando o bem perdido não é recuperável. Além do mais, como Nietzsche insiste, vingança também difere do desejo de retribuição, que surge devido à violação do direito de usufruir daquele bem (GM/GM, II, 11, KSA 5.309). Isso indica que a vingança não é motivada pela avaliação do bem perdido, nem pela crença de que a pessoa tem o direito a ele. Antes, é motivada pelo desejo de enfrentar o que você concebe como um desafio para a eficácia da sua agência, ou de reparar seu sentimento de poder danificado.

Apesar de a exigência de vingança normalmente se manifestar como uma imposição de sofrimento a um outro (aquele que é considerado a causa do sofrimento), ela visa uma afirmação de poder, uma demonstração de que o outro não põe um desafio insuperável para a eficácia da agência. Como a ampliação da vingança a entidades impessoais sugere, esse objetivo pode ser alcançado sem a necessidade de impor sofrimento a outra pessoa. O objeto da vingança pode deixar de ser um desafio à eficácia de uma agência, por exemplo, quando um agente modifica os seus valores de tal forma que a presença deles não obstrui mais a sua habilidade para realiza-los.

Na visão de Nietzsche, o ressentimento é uma reação absolutamente normal para o sofrimento, experimentado como um desafio à eficácia de uma agência. Isso significa que todos estão suscetíveis ao ressentimento, e não apenas aqueles que Nietzsche chama de "fracos e impotentes": "O próprio ressentimento que pode aparecer no homem nobre, se consome e se exaure numa reação imediata, por isso não envenena: por outro lado, nem sequer aparece, em inúmeros casos em que é inevitável nos impotentes e fracos" (GM/GM, I, 10, KSA 5.270).

Para aqueles que são "fracos e impotentes", o sofrimento não provoca apenas o ressentimento, mas também a "sensação de impotência", uma vez que ela os leva à constatação da própria incapacidade para superar frustrações. Quando o ressentimento é combinado com tal sentimento de impotência, ele se transforma em "veneno". De acordo com Nietzsche, o veneno finca raízes e torna-se um traço dominante, caracterizando assim o caráter particular de um tipo - "o homem do ressentimento". Além disso, a vingança que o veneno motiva torna-se "espiritual e imaginária" - ela assume a forma de uma reavaliação dos valores: "A rebelião escrava na moralidade começa quando o ressentimento se torna criativo e dá à luz aos valores: o ressentimento das naturezas às quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação" (GM/GM, I, 10, KSA 5.270).

Ressentimento e vontade de potência

O que a susceptibilidade ao ressentimento revela sobre a psicologia humana? Em primeiro lugar, revela a existência de uma motivação especial que Nietzsche identifica como vontade de potência. O conceito de poder é ambíguo. Por um lado, é o poder sobre alguma coisa ou alguém; ele remete ao domínio efetivo ou ao controle sobre alguma coisa ou alguém. Por outro, é o poder de fazer alguma coisa: ele aponta para a habilidade, a capacidade ou a eficácia. É tentador supor que a vontade de potência é apenas um desejo por domínio ou controle, e por eficiácia apenas na medida em que ela é requerida para a aquisição de um domínio. Sem dúvida existe uma motivação desse tipo. Mas esse não é exatamente o tipo de motivação que Nietzsche chama de vontade de potência. Na verdade, a vontade de potência é um impulso para o domínio na medida em que este é compreendido como um produto da eficácia de uma agência, uma prova de capacidade ou competência. Em outras palavras, tal como compreendida aqui, a vontade de potência revela um específico, independente e autossuficiente interesse na eficácia de uma agência, na capacidade exigida para a conquista de um domínio sobre o meio13 13 Noutro lugar apresento argumentos para essa interpretação segundo a qual a vontade de poder é fundamentalmente um desejo por capacidade ou eficácia em (Cf. REGINSTER, Bernard. The Affirmation of Life. Nietzsche on Overcoming Nihilism. Cambridge: Harvard University Press, 2006, p. 126-133). A análise do ressentimento que proponho nesse texto, e particularmente a característica do ressentimento de causar mudanças nos valores, fornece um fundamento adicional para essa interpretação. .

Duas características dessa definição merecem ênfase. Conquistar um domínio não é simplesmente se apoderar de uma parte de um meio, mas transformá-lo de acordo com a nossa vontade, tornando-o favorável para a satisfação dos desejos que decidimos perseguir. É um modo de transformar o mundo em algo nosso: o domínio não seria tão importante se fosse apenas a posse exclusiva de coisas a partir das quais não podemos derivar nenhum valor ou satisfação. Dessa forma, a eficácia exigida para conquistar um domínio não é apenas a capacidade de causar efeitos em um meio com o objetivo de fazê-lo reagir à nossa presença. É, na verdade, a capacidade para governar a nós mesmos e o nosso meio de acordo com a nossa vontade - não meramente a eficácia, mas a agência eficaz, ou o que Nietzsche chama de "proficiência" (AC/AC 2, KSA 6.170).

Em segundo lugar, a suscetibilidade ao ressentimento também revela que a vontade de potência é uma motivação independente ou autossuficiente. Essa afirmação é problemática. Se, como eu acabei de propor, concebemos a vontade de potência como um desejo pelo poder de transformar o ambiente em um local favorável para a satisfação dos desejos que alguém decide perseguir, então ela não parece ser independente: na verdade, parece subordinada a outros desejos, visto que o agente poderia ser motivado a realizar uma agência eficaz apenas porque ela é instrumentalmente ou prudencialmente requerida para a satisfação dos seus desejos.

Quais são, então, os fundamentos que Nietzsche fornece para a afirmação de que o interesse pela agência eficaz é independente dos desejos que tal agência satisfaria com eficácia? Nós podemos apontar a insaciabilidade da vontade de potência, uma característica que Nietzsche, juntamente com muitas outras, atribui a ela. A vontade de potência visa um a "crescimento" indefinido, uma "expansão" e uma "força" sempre-crescente: como ele coloca, a vontade de potência é "ter e querer ter mais" (Nachlass/FP 37 [11], KSA 11.586). A insaciabilidade é suficiente para descartar uma concepção instrumental da vontade de potência. O crescimento indefinido da força não é sempre necessário para quem quer os meios indispensáveis para a realização dos seus fins. Se a força que alguém já possui é instrumentalmente suficiente para a realização dos seus fins, não haveria nenhuma motivação para tornar-se mais forte. Ao invés de ser uma característica essencial da vontade de potência, o crescimento indefinido só seria necessário se os fins, para cuja realização o poder é instrumentalmente necessário, fossem fins essencialmente perfeccionáveis, como ocorre no caso dos bens dos quais ter mais é sempre melhor e dos quais há sempre mais para se ter.

De fato, é relativamente fácil pensar em exemplos não instrumentais da vontade de potência. Crianças pequenas algumas vezes atormentam seus pais por um pedaço de doce, mas quando conseguem o que querem, perdem o interesse. Isso indica que o "atormentar" não é motivado pela fome ou mesmo pelo desejo por doces: é plausível que ele seja motivado antes pelo desejo de exercer a eficácia da agência em um meio (social).

Naturalmente, podemos supor que o desejo da criança de exercer a eficácia da agência é prudencial: ela poderia ser motivada pelo reconhecimento de que o desejo por comida, doces, ou ainda qualquer outro desejo cuja satisfação dependa da cooperação dos seus pais, possa surgir no futuro. É prudente, portanto, testar a eficácia da agência periodicamente. Além do mais, como Hobbes argumenta, uma concepção prudencial pode explicar a insaciabilidade que Nietzsche atribui à vontade de potência. Considerem a seguinte passagem do Leviatã:

Eu concebo como tendência geral de toda a humanidade um perpétuo e irrequieto desejo por poder e mais poder, que cessa apenas com a morte. E isto nem sempre porque o homem espera por um prazer mais intenso do que aquele que já alcançou, ou porque não pode contentar-se com um poder moderado, mas pelo fato de não se poder garantir o poder e os meios para viver bem, que o homem possui no presente, sem o acréscimo de mais14 14 HOBBES, Thomas. Leviathan. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 66. .

A explicação da insaciabilidade não nos obriga a supor que a vontade de potência seja um desejo instrumental ordenado essencialmente para a busca de um bem perfeccional, nesse caso, o bem do qual ter mais é melhor e do qual sempre há mais para ter, nem que o poder em si mesmo seja essencialmente um bem perfeccional do mesmo tipo. A busca por poder é prudencial na medida em que é uma busca pelo "poder e pelos meios para viver bem", e essa procura é perpétua e incansável, pois, incapazes que somos de prever com inteira certeza quais serão as condições necessárias para viver bem no futuro e qual quantidade de poder será necessária para assegurar essas condições, não podemos descansar satisfeitos no presente com qualquer quantidade determinada de poder adquirido.

Mesmo assim, Nietzsche rejeita igualmente essa visão prudencial da vontade de potência. Ele oferece várias observações empíricas como provas para a independência motivacional. Uma delas é a suscetibilidade ao ressentimento, e em particular, o fato de que o ressentimento pode motivar uma reavaliação dos valores, especificamente, uma desvalorização dos fins que o agente se sente incapaz de atingir. Essa característica do ressentimento só pode ser explicada se supormos que os seres humanos possuem interesse em ser agentes eficazes, isto é, independentemente de suas avaliações acerca dos fins que a ação poderia atingir com eficácia. Se o interesse na agência eficaz presente no ressentimento estava (instrumentalmente ou prudencialmente) subordinado à avaliação dos fins, a desvalorização destes para satisfazer aquele simplesmente não faria sentido.

Pensando bem, a independência motivacional da vontade de potência não é de todo surpreendente ou contra intuitiva. Eu mencionei anteriormente que Nietzsche às vezes descreve a vontade de potência em termos de ambição. Ambição é uma motivação independente: podem afirmar que alguém tem ambição, um desejo para conquistar ou demonstrar graus mais altos de eficácia, sem que ele saiba quais domínios específicos irá conquistar, ou em relação a qual busca de fins específicos demonstrará eficácia.

Ressentimento e valores

Consideremos novamente o exemplo de Nietzsche. O ressentimento do fraco é despertado pela sua incapacidade de assegurar a superioridade política cobiçada. Por ser incapaz de retirá-la dos seus rivais mais fortes, seu ressentimento se associa ao sentimento de impotência, o que o motiva a recorrer a um "ato da mais espiritual vingança": ele desvaloriza a superioridade política, julgando-a moralmente má. Nietzsche não deixa nenhuma dúvida sobre o sentido dessa reavaliação: "Isto, ouvido friamente e sem prevenção, não significa nada mais do que: 'nós, fracos, somos realmente fracos; convém que não façamos nada para o qual não somos fortes o bastante [...]" (GM/GM, I, 13, KSA 5.278; cf. GM/GM, III, 18, KSA 5.382). O objetivo é, portanto, aliviar o sentimento de impotência: é a vontade de potência - e não o desejo de prejudicar os outros - que induz o fraco a desvalorizar seus próprios valores quando se torna intolerável para ele lembrar-se da própria impotência15 15 É interessante notar que o mesmo se aplica à nova concepção de agência moral apresentada por essa perspectiva, que tem em seu núcleo a noção contracausal de um sujeito livre: "o sujeito (ou, para usar uma expressão mais popular, a alma) foi até o momento o mais sólido artigo de fé sobre a terra, talvez por haver possibilitado à grande maioria dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda a espécie, enganar a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e o seu ser-assim como mérito" (GM/GM, I, 13 KSA 5.278, tradução). Ao contrário do que muitos comentadores sustentam, o objetivo principal da invenção do livre arbítrio não é fazer o forte sentir que a sua dominação política é má, no sentido de ser errada, e que ele é livre para abster-se dela, e, portanto, culpado por não fazer isso. Como essa passagem indica claramente, a invenção do livre arbítrio é projetada pelo fraco não para mudar as atitudes dos fortes, mas suas próprias atitudes. .

Essa interpretação sobre o objetivo da reavaliação afasta o problema da inconsistência prática, na medida em que a realização do objetivo requer apenas que o fraco aceite os novos valores. Todavia, o próprio fato de que a vontade de potência pode ser saciada através da reavaliação dos valores parece criar uma dificuldade para a visão segundo a qual ela é uma motivação independente. A modificação dos valores não poderia restaurar o sentimento de poder do agente, ao menos se supormos que ele se importa apenas com o poder requerido para a aquisição dos fins que valoriza. Isso indica que seu interesse pelo poder é condicionado por seu interesse pelos fins, e, portanto, não é uma motivação independente. Para resolver essa dificuldade, nós podemos começar examinando de perto o caráter desse condicionamento.

A vontade de potência depende da avaliação que o agente faz de outros fins em dois sentidos. Primeiro, o agente não pode buscar seu desejo por poder sem estabelecer qualquer conexão com seu interesse por outros fins. Uma pessoa não pode visar o poder ou a proficiência enquanto tais; ela pode apenas desejar o poder ou a proficiência em um domínio específico da atividade, e, portanto, em conexão com a busca de determinados fins característicos desse domínio.

Segundo, possivelmente o agente não extrairia de sua busca bem-sucedida por fins uma grande quantidade de sentimento de poder - uma sensação de agência eficaz ou de proficiência - se ele não valorizasse os fins que perseguiu. Ele precisa valorizá-los para extrair da realização o sentimento de poder. Nós podemos observar isso recordando que a vontade de potência é um desejo direcionado não apenas para a eficácia, mas para a agência eficaz. O desejo pela eficácia é o desejo de produzir efeitos em um meio, ou de obter a reação do meio devido à mera presença nele. Eficácia nesse sentido está aquém da proficiência que Nietzsche apresenta como o objetivo da vontade de potência. Eficácia representa ímpetos aleatórios para produzir efeitos no ambiente. Proficiência evoca não apenas a produção desses efeitos aleatórios no ambiente, mas a criação de efeitos ordenados tendo em vista a realização bem-sucedida de uma vontade, isso é, dos fins valorizados por alguém (Nachlass/FP 24 [15] KSA, 10.651). Evidentemente, ser eficaz na busca por certos fins pode induzir o agente a valorizá-los, mas observem que ele precisa valorizá-los antes de derivar o sentimento de eficiência de sua busca bem-sucedida.

Desse modo, o valor que o agente atribui a um determinado fim condiciona o valor que ele contempla na ação eficiente que torna possível a concretização desse fim. No entanto, essa relação de condicionamento não precisa ser instrumental nem prudencial. A relação de condicionamento seria instrumental ou prudencial se o valor da agência eficaz não fosse nada além do valor dos fins cuja concretização ela torna possível. Esse tipo de relação descrita aqui permite que a agência eficaz tenha valor, pelo menos em certo sentido, independentemente de sua contribuição para a realização dos fins.

Essa relação não é totalmente desconhecida. Nós encontramos exemplos dela na relação entre felicidade e moralidade, tal como Kant a concebe. Para ter valor, a felicidade precisa estar em conformidade com as exigências morais; não obstante, o valor da felicidade não consiste apenas em sua conformidade com a moral. Embora o valor da felicidade seja condicionado pela moralidade, ele não é em si mesmo um bem moral. Na verdade, é precisamente porque o valor da felicidade é independente da moralidade que ela pode motivar ações imorais.

Dessa forma, se for compreendida dessa maneira, a subordinação da vontade de potência à avaliação que o agente faz de outros fins é compatível com a motivação independente. Contudo, essa dependência se diferencia em um aspecto crucial daquela que mencionei no parágrafo acima. Nesse último caso, o valor condicionante restringe a busca pelo fim condicionado, mas não determina o seu conteúdo. A busca pela felicidade pode ser limitada por considerações morais, mas o seu conteúdo pode ser determinado independentemente disso: podemos saber o que é ser feliz independentemente de saber o que é ser moral. Isso significa que a busca pela felicidade pode (coerentemente) entrar em conflito com valores morais.

Diferentemente, a busca por poder depende da avaliação que o agente faz de outros fins, porque a determinação do seu conteúdo está subordinada a eles: o que conta como poder (ou proficiência) só pode ser definido em relação a esses fins valorizados. Isso significa que a busca por poder não pode (coerentemente) entrar em conflito com o valor que o agente atribui àqueles outros fins: ele não pode demonstrar a eficácia de sua agência sem afirmar os valores que fornecem a ela um determinado conteúdo. É por isso que a vontade de potência - a preocupação em ser um agente eficiente - é especificamente capaz de desfazer a avaliação dos agentes. Isso é particularmente verdadeiro, como Nietzsche nota, naqueles casos nos quais os danos causados pelos fracassos e frustrações não despertam apenas o ressentimento, mas igualmente o "sentimento de impotência". Por esse motivo, em tais casos o agente não pode mais satisfazer sua vontade de potência sem alterar os seus valores.

Referências bibliográficas

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  • *
    Tradução de Renan Cortez. Revisão técnica de Rogério Lopes
  • 2
    O termo ressentiment é de origem francesa. De acordo com Reginster, a palavra inglesa resentment não designa adequadamente o estado psicológico ao qual o termo francês se refere. Mais adiante, Reginster retoma esse ponto e explica mais detalhadamente os motivos. O leitor deve ter em mente que o termo ressentimento, tal como se encontra traduzido para o português, se refere ao ressentiment em francês e não ao resentment. Optei por não traduzir o último termo do inglês, visto que prejudicaria a compreensão da distinção que Reginster propõe. Nota do tradutor.
  • 3
    O fundamento mais evidente para essa interpretação da reavaliação encontra-se na seguinte passagem: " (...) não pense que tenha surgido como a negação daquela avidez de vingança, como a antítese do ódio judeu! Não, o contrário é a verdade! O amor brotou dele como sua coroa, triunfante, estendendo-se sempre mais na mais pura claridade e plenitude solar, uma coroa que no reino da luz e das alturas buscava as mesmas metas daquele ódio, vitória, espólio, sedução, com o mesmo impulso com que as raízes daquele ódio mergulhavam, sempre mais profundas e ávidas, em tudo que possuía profundidade e era mau (...) Não teria Israel alcançado, por via desse 'redentor', desse aparente antagonista e desintegrador de Israel, a derradeira meta de sua sublime ânsia de vingança? Não seria próprio da ciência oculta de uma realmente grande política da vingança, de uma vingança longividente, subterrânea, de passos lentos e premeditados, o fato de que Israel mesmo tivesse de negar e pregar na cruz o autêntico instrumento de sua vingança, ante o mundo inteiro, como um inimigo mortal, para que o 'mundo inteiro', ou seja, todos os adversários de Israel, pudesse despreocupadamente morder tal isca? E porventura seria possível, usando-se todo o refinamento do espírito, conceber uma isca mais perigosa? Algo que em força sedutora, inebriante, estonteante, corruptora, igualasse aquele símbolo da 'cruz sagrada', aquele aterrador paradoxo de um 'Deus na cruz', aquele mistério de uma inimaginável, última, extrema crueldade e autocrucificação de Deus para salvação do homem? (...)" De acordo com essa passagem, a valoração cristã do amor é uma estratégia deliberada motivada pelo ódio e pela vingança, dirigida para os mesmos objetivos: "vitória, espólio e sedução" (GM/GM, I, 8, KSA 5.268, tradução de Paulo César de Souza, doravante PCS). Ela é uma "autêntica grande política do ressentimento", "premeditada" e "longividente". Alcança essas metas levando o oponente a comprar o seu novo modo de valoração, que é apresentado como uma "isca" para "seduzir", "inebriar" e "corromper".
  • 4
    Cf. WALLACE, R. Jay. 2007. "Ressentiment, Value, and Self-Understanding: Making Sense of Nietzsche's Slave Revolt.". In. LEITER, B. & SINHABABU, N. (Org.) Nietzsche and Morality. Oxford: Oxford University Press, p. 110-137.
  • 5
    Alguns pesquisadores tentaram defender Nietzsche dessa acusação de inconsistência. (Cf. MIGOTTI, Mark. "Slave Morality, Socrates, and the Bushmen: A Critical Introduction to On the Genealogy of Morality, Essay I". In. ACAMPORA, C. D. (Org). Nietzsche's On the Genealogy of Morals. Oxford: Rowan & Littlefield Publishers, 2006, p. 109-129 e OWEN, David. Nietzsche's Genealogy of Morality. Stockfield: Acumen, 2007). É importante notar, de qualquer forma, que eles reconhecem que esse é um problema sério, para o qual a própria genealogia não oferece uma solução satisfatória - na verdade, não oferece nem mesmo uma explícita tentativa de solução (Migotti procura por uma solução - e é tão especulativa que se estende até a discussão de Nietzsche sobre o problema de Sócrates em Crepúsculo dos ídolos). Além disso, aqueles que procuram defender Nietzsche dessa acusação geralmente negligenciam o segundo aspecto do problema, a saber, que para a reavaliação obter sucesso é crucial que os próprios fracos comprem a nova visão moral. Ambas as características do tratamento genealógico sugerem que a posição de Nietzsche é a de que o objetivo da reavaliação motivada pelo ressentimento não é causar danos (ao menos diretamente) nos rivais mais fortes.
  • 6
    Cf. SCHELER, Max. Ressentiment. Trans. W.W. Holdheim. New York: Schocken Books, 1961 e WALLACE, R. Jay. Op. Cit.
  • 7
    Cf. D'ARMS Justin and JACOBSON, D., "The Moralistic Fallacy". In. Philosophy and Phenomenological Research, 61/1, 2000, p. 65-90.
  • 8
    Cf. BITTNER, Rudiger. "Ressentiment." In. SCHACHT, R. ed. Nietzsche, Genealogy, Morality. Berkeley: University of California Press, 1994, p. 127-138.
  • 9
    Cf. LEITER, Brian. "The Hermeneutics of Suspicion: Recovering Marx, Nietzsche, and Freud." In. Leiter, B. (Org). The Future for Philosophy. Oxford: Clarendon Press, 2004, p. 74-105; POELLNER, Peter. "Ressentiment and Morality." In. MAY, S. (Org.) Nietzsche's On the Genealogy of Morality. A Critical Guide. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 120-141.
  • 10
    Essa substituição de uma forma de sofrimento por outra é tão problemática estrategicamente que Danto argumentou que deveríamos ver nela a própria patologia que Nietzsche identifica como o coração da "moralidade". Pode haver patologia nesse caso, mas ele segue uma lógica distinta. Antecipando aqui desenvolvimentos posteriores, o sentimento de culpa, ainda que possa atormentar de outras maneiras, apazigua o sofrimento por restaurar no agente o sentimento de poder. Por assumir a responsabilidade pelo seu sofrimento - por exemplo, por representa-lo como uma punição para a sua intencional violação das normas morais - o agente pode ver o sofrimento como uma expressão de sua agência, ao invés de uma evidência de sua ineficácia. Ao olhar seu sofrimento através da "perspectiva da culpa", Nietzsche escreve, "o inválido foi transformado em 'pecador'." (GM/GM, III, 20, KSA 5.387).
  • 11
    "Esse conflito leva os motivos a testarem repetidamente, uns contra os outros, a eficácia de cada um sobre a vontade (...) até que finalmente o motivo mais forte decididamente comanda os outros na batalha e determina a vontade. Esse resultado é chamado de decisão [Entschluss]." (SCHOPENHAUER, A. Essay on the Freedom of the Will. K. Kolenda trans. New York. The Liberal Arts Press, 1960, 37).
  • 12
    "Deste modo, se planejamos uma grande e corajosa decisão (...) muitas vezes permanece dentro de nós uma ligeira e não confessada dúvida, a saber, se estamos suficientemente firmes em relação à resolução planejada; (...) A ação, portanto, é requerida para nos convencer da sinceridade da decisão [Entschluss]" (WWR II, XIX, 210-1).
  • 13
    Noutro lugar apresento argumentos para essa interpretação segundo a qual a vontade de poder é fundamentalmente um desejo por capacidade ou eficácia em (Cf. REGINSTER, Bernard. The Affirmation of Life. Nietzsche on Overcoming Nihilism. Cambridge: Harvard University Press, 2006, p. 126-133). A análise do ressentimento que proponho nesse texto, e particularmente a característica do ressentimento de causar mudanças nos valores, fornece um fundamento adicional para essa interpretação.
  • 14
    HOBBES, Thomas. Leviathan. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 66.
  • 15
    É interessante notar que o mesmo se aplica à nova concepção de agência moral apresentada por essa perspectiva, que tem em seu núcleo a noção contracausal de um sujeito livre: "o sujeito (ou, para usar uma expressão mais popular, a alma) foi até o momento o mais sólido artigo de fé sobre a terra, talvez por haver possibilitado à grande maioria dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda a espécie, enganar a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e o seu ser-assim como mérito" (GM/GM, I, 13 KSA 5.278, tradução). Ao contrário do que muitos comentadores sustentam, o objetivo principal da invenção do livre arbítrio não é fazer o forte sentir que a sua dominação política é má, no sentido de ser errada, e que ele é livre para abster-se dela, e, portanto, culpado por não fazer isso. Como essa passagem indica claramente, a invenção do livre arbítrio é projetada pelo fraco não para mudar as atitudes dos fortes, mas suas próprias atitudes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2015
  • Aceito
    03 Nov 2015
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