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Resenha

RESENHA

Patrícia da Silva Santos

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo, bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: patricia215@gmail.com

TÜRCKE, CHRISTOPH. SOCIEDADE EXCITADA: FILOSOFIA DA SENSAÇÃO. TRADUÇÃO: ANTONIO A.S. ZUIN... [et al.]. CAMPINAS: ED. UNICAMP, 2010, 323 p.

"O mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia": a famosa e central tese da Dialética do Esclarecimento dotou o que designamos Teoria Crítica de uma especificidade única. Os engendramentos desse entroncamento provocaram guinadas teóricas bastante complexas, que passam não somente pela perspectiva de que o fetichismo pertence a um período muito anterior ao capitalismo, mas também pela ideia de que a dominação social se relaciona estreitamente à dominação da natureza (tanto interna, como externa).

No entanto, muitos "adornianos ferrenhos" passam ao largo das relações dialéticas entre o mais moderno e o mais primitivo; o mais socializado e a natureza; o mais humano e o mais animal. O grande mérito de Sociedade Excitada: filosofia da sensação, de Christoph Türcke, é retomar essas discussões e, para além disso, atualizá-las em face das formas tecnológicas contemporâneas.

Se a tecnologia mais avançada, as imagens mais elaboradas, o mais moderno fruto do progresso tivesse seu germe e seu modelo pautado no mais antigo, nas primeiras formas de assimilação do pavor elaboradas pelas coletividades mais arcaicas? O propósito de Türcke é justamente apontar para as implicações do fato de que "[...] as chamadas coisas 'primeiras' estão intimamente ligadas às 'últimas'" (p. 142). A arqueologia da sensação é reconstruída no sentido de apresentar um diagnóstico para fenômenos do mundo contemporâneo.

Todavia, o livro não se restringe à repetição dos termos expostos no trabalho publicado em 1947 por Adorno e Horkheimer, nem se reduz a um comentário deles. Dotado de um amplo conhecimento histórico e filosófico, o autor situa o cotidiano atual mais tangível em relação a processos psíquicos e sociais imemoriais. Ao fazê-lo, dialoga com autores como Karl Marx, Sigmund Freud, Friedrich Nietzsche, Walter Benjamin, George Berkeley e muitos outros.

Se a tese principal do livro é a de que a sensação (que, na sociedade atual, significa "[...] o espetacular, o chamativo", diferentemente da acepção original do termo, restrita à ideia de perceber) se configura, na sociedade moderna, como um vício (e a palavra aqui aparece no seu sentido mais elementar de desvio da sobriedade), o planteamento de tal tese se desdobra em constelações teóricas ousadas, porém muito bem fundamentadas, que implicam uma releitura crítica de saberes associados, sobretudo, ao marxismo e à psicanálise. Nem os fundadores de tais saberes escapam à revisão operada por Türcke, no decorrer do livro.

Tentarei apresentar sucintamente a principal controvérsia do autor de "sociedade excitada" com respeito à psicanálise e à teoria do valor, para esboçar o caminho teórico percorrido pelo livro até alcançar a formulação da sensação como o moderno "ópio do povo".

Para Türcke, a cultura nasce do processo (violento) de assimilação do horroroso, do pavor. "O choque que afeta um organismo é o estranho no mais alto grau: o inesperado, o incomensurável, o avassalador, contra o qual lhe faltam as possibilidades nervosas de assimilação" (p. 133). Os primeiros homens teriam criado processos de proteção contra essa insuportável e ampla gama de estímulos que a natureza lhes infligia.

Baseado na teoria freudiana, o autor de "Filosofia da Sensação" explica que tal desenvolvimento de formas de autoconsevação contra os estímulos se deu por meio da "compulsão à repetição". O pavor só se supera por meio do pavor. Alguns mecanismos desse complexo procedimento psíquico-social são o sacrifício, a memória e o sagrado. Para apaziguar o pavoroso, o homem o traz para junto de si, o rememora constantemente, criando uma espécie de angústia que é ao mesmo tempo protetora, na medida em que é consciência da existência do pavor. Desse desenrolar resulta nada menos que a criação da cultura: "Liberar-se do acontecimento pavoroso reproduzindo-o, em vez de fugindo dele, é uma forma de dar-lhe seu beneplácito. Mas dar o beneplácito a algo pavoroso significa nada menos que romper com a interpretação animal do mundo" (p. 141).

Até aqui, a "filosofia da sensação" retoma e retrabalha de forma própria argumentos freudianos. Mas, se, para o pai da psicanálise, a tensão inerente ao estado de vida conduz ao desejo inexorável de tornar-se inorgânico, ou seja, se toda vida pressupõe a pulsão de morte, para Türcke, a "compulsão à repetição" deseja, ao contrário, alcançar um estado de máxima inquietude, do pavor traumático. A contradição do pensamento freudiano, segundo a qual as forças conservativa (de assimilação do pavor, de vivência da tensão) e regressiva (desejo do estado inorgânico ou pulsão de morte) constituiriam dois princípios humanos inerentes é rechaçada por Türcke, na medida em que o desejo inicial de inquietude é transposto para a existência contemporânea.

A sensação, a busca desenfreada por novos estímulos, sobretudo os choques imagéticos do mundo atual, não são nada mais do que um "retorno ao fundamento". Aumentar os choques, maximizar os estímulos por meio da produção desenfreada de mecanismos high-tech é uma espécie de procedimento duplo do processo inicial e arcaico de surgimento da cultura: "[...] a via de fuga que afasta a sociedade moderna em ritmo high-tech de suas origens arcaicas leva justamente de volta para elas [...]" (p. 171). Contudo, em sua nova versão, a excitação desmedida é uma resposta paradoxal a processos histórico-sociais pautados na dominação: a "sociedade excitada" é também a sociedade distraída, que precisa inexoravelmente se desviar da sobriedade. E aqui entra a discussão de Türcke com o fetichismo e a teoria do valor.

"A 'lei do valor' é insustentável" (p. 224): a frase peremptória poderia significar uma quebra com o marxismo, mas, ao contrário, procura, de acordo com o autor da "Filosofia da sensação", justamente situar o fetichismo para além da relação abstrata postulada pela teoria do valor. Türcke questiona o fato de que Marx tome "[...] a troca como algo genuinamente profano" (p. 221), como uma fórmula que se reduza "[...] a uma verificação de quantidades de trabalho: a um algoritmo" (p. 220). Segundo o autor, é necessário reconhecer os mecanismos de projeção e de feitiço que estão envolvidos na troca. Assim, não se trata simplesmente de uma lei matemática racional, porém, há uma dimensão religiosa, "redentora", que Marx não teria considerado, justamente por não ter levado em conta a "longa pré-história sagrada" da mercadoria. Troca, como "secularização do sacrifício" (conforme Adorno e Horkheimer já haviam postulado), envolveria, portanto, mais do que a relação de equivalência entre duas quantidades de trabalho, mas acarretaria, também, uma permanência da sacralidade, na medida em que pressupõe esquemas sacros típicos que, em última instância, remetem às formas de assimilação do pavor iniciais.

E a "sociedade da sensação" é o tempo histórico que tem levado ao limite as novas formas de intensificação dos estímulos, por meio de mecanismos high tech que são verdadeiras drogas. Ou seja, os supercelulares, as formas cada vez mais modernas de enunciação imagética etc. são ópios que desviam a consciência dos homens de sua situação concreta. Em tal conjuntura, a ideia marxista tradicional da revolução como resultado da contradição gerada pelo desenvolvimento das forças produtivas dá lugar a uma perspectiva muito diferente, que Türcke vai buscar na concepção benjaminiana da revolução como "freio de emergência". Somente na medida em que o desenrolar desenfreado da sensação seja interrompido (e talvez isso não seja possível, de forma peremptória), será possível a libertação dos homens do estado anestésico ao qual estão condicionados pelo mundo high-tech.

Sociedade excitada enfrenta diferentes frentes de conhecimento para plantear suas teses ousadas e originais. Isso certamente expõe o livro a muitas espécies de contestação possíveis. No entanto, essas contestações não poderão destituir o grande mérito do livro: Christoph Türcke recupera, para além das dimensões teóricas já mencionadas, a tradição crítica sob um aspecto que talvez possamos considerar o mais importante, qual seja, o da autêntica crítica materialista, que pressupõe não apenas a (ainda) tão proclamada perspectiva da determinação da superestrutura pela infraestrutura, mas implica tirar o objeto histórico de sua falsa aparência de ser em si, a partir da reconstrução arqueológica dos pressupostos que o tornaram possível. Em outras palavras, reconhecer na sociedade ultramoderna e contemporânea, baseada na mais alta dependência de meios tecnológicos, impulsos originários significa lembrar que toda cultura se baseia numa repressão da natureza, que torna possível as formas de dominação. Sendo assim, a crítica só pode ser efetiva se articular esses processos violentos que se atualizam e se reprocessam em cada atividade diária, em cada trabalhador sentado diante da tela de computador, em cada pessoa que procura distração nas salas de cinema; enfim, cada atividade cotidiana contemporânea tem embutida a relação imemorial e violenta que se processa entre homem e natureza. A atualidade do "entrelaçamento entre mito e esclarecimento" está entre as grandes lições de Christoph Türcke.

Recebido em: 19.10.2011

Aprovado em: 02.12.2011

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2012
  • Data do Fascículo
    Abr 2012
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