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Crônicas de Milton Hatoum: dialogismo e emancipação na pósmodernidade

RESUMO

O presente estudo analisa a narrativa de Milton Hatoum utilizando como corpus as crônicas “Um sonhador” e “Margens secas da cidade”. Objetiva problematizar as características discursivas e estéticas da criação literária de Hatoum, a partir da perspectiva dialógica proposta por Mikhail Bakhtin, explorando, no discurso artístico-literário do escritor amazonense, as posições axiológicas refratadas em sua narrativa. Relaciona ainda a perspectiva epistemológica de Boaventura Santos acerca do desperdício da experiência social na modernidade/pós-modernidade, discutindo a crítica ao paradigma da racionalidade atual denominado pelo autor de razão indolente. As análises iniciais alicerçadas nestas abordagens teórico-metodológicas evidenciam indícios, na narrativa cronística de Hatoum, que a aproxima de uma perspectiva contra-hegemônica e responsiva de representação literária. Pretende, assim, com esta inter-relação entre literatura, dialogismo e teoria do conhecimento, evidenciar as imbricações existentes entre o discurso sócio-histórico-econômico produzido pela crítica à modernidade/pós-modernidade e o discurso literário de Milton Hatoum.

PALAVRAS-CHAVE:
Crônica; Milton Hatoum; Dialogismo; Boaventura de Sousa Santos; Pós-modernidade

ABSTRACT

This study analyzes Milton Hatoum’s narrative using the crônicas Um sonhador [A Dreamer] and Margens secas da cidade [Dry Riverbanks of the City] as corpus. It aims to ascertain the discursive and aesthetic characteristics of Hatoum’s literary creation from the dialogical perspective proposed by Mikhail Bakhtin, exploring the artistic-literary discourse of the Amazonian writer, the axiological positions refracted in his narrative. It also relates Boaventura Santos’ epistemological perspective about the waste of social experience in modernity/post-modernity, discussing the criticism of the paradigm of current rationality called by the author as indolent reason. Initial analysis based on these theoretical-methodological approaches show evidence in Hatoum’s cronistic narrative that brings it closer to a counter-hegemonic and responsive perspective of literary representation. Thus, with this inter-relationship among literature, dialogism and theory of knowledge, we intend to highlight the existing overlaps between the socio-historical and economic discourse produced by the critique of modernity / postmodernity and literary discourse of Milton Hatoum.

KEYWORDS:
Crônica ; Milton Hatoum; Dialogism; Boaventura de Sousa Santos; Postmodernity

Considerações iniciais

Milton Hatoum, um dos escritores contemporâneos que mais tem recebido atenção da crítica e do meio acadêmico nos últimos anos1 1 Reportamo-nos aqui à pesquisa realizada por Juciane Cavalheiro (2020) acerca da fortuna crítica da obra de Milton Hatoum. , notabiliza-se pela produção de romances, mas publicou narrativas em outros gêneros literários, quais sejam, novela – Órfãos do Eldorado (2008); contos – A cidade ilhada (2009); e crônicas – Um solitário à espreita (2013) e Sete crônicas de Milton Hatoum (2020)2 2 Neste volume, há crônicas selecionadas pelo autor que já haviam sido publicadas anteriormente em jornais e em Um solitário à espreita. . O gênero crônica acompanha a trajetória de Hatoum antes mesmo de o escritor amazonense ter publicado o primeiro de seus romances, Relato de um certo Oriente (1989), como afirmou em entrevista:

Publiquei também uma crônica no antigo Folhetim, da Folha de São Paulo. É uma longa crônica, só me lembro do título: “Papai Noel Visita a Amazônia”, nunca pesquisei a Folha para resgatar esse texto. Além disso, publiquei artigos e reportagens quando fui free lancer da Isto é, dirigida pelo Mino Carta. Queria trabalhar, era estudante (...) (HATOUM, 2019, p.434HATOUM, M. Milton Hatoum: um escritor à espreita da linguagem. Soletras Revistas, Rio de Janeiro, n. 38, 2019.2, p.431-444, 23 jul. 2019. Entrevista concedida a Aídes José Gremião Neto. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/soletras/article/view/45172/30872. Acesso em: 15 jul. 2020.
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).

Milton Hatoum também escreveu crônicas para a revista EntreLivros e para a revista eletrônica Terra Magazine. Continua a escrever uma crônica mensal para o Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo3 3 Publicou crônicas de cunho ensaístico-literário na revista EntreLivros entre os anos de 2005 e 2007, período que durou a revista. Na revista eletrônica Terra Magazine, Hatoum publica entre 2006 e 2010. Escreve para o jornal O Estado de São Paulo desde 2008. . O tom reflexivo e crítico da linguagem é uma das características do cronista Hatoum, bem como o lirismo. Nesse sentido, o estilo hatouniano corrobora com o que alguns dos principais teóricos da literatura já apontaram acerca do gênero crônica. Conforme Antonio Candido (1992, p.14)CANDIDO, A. A vida ao rés-do-chão [1981]. In: CANDIDO, A. et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 1992. p.13-22., a crônica “pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”. Essas singularidades do cotidiano são muitas vezes representadas pelos narradores de Hatoum por meio de inúmeras vozes sociais que reverberam em suas narrativas.

Uma palavra, como já apontado por Mikhail Bakhtin, “pertence ao mesmo tempo a duas linguagens, a dois horizontes que se cruzam (...) e, por conseguinte, tem dois sentidos heterodiscursivos, dois acentos” (BAKHTIN, 2015, p.84BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário Paulo Bezerra. Organização da edição russa Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015. p.19-241.). São esses sentidos que estão imbricados nas vozes dos narradores e personagens das crônicas de Hatoum. Além disso, há indícios de invisibilidades sociais causadas pelo discurso totalitário da modernidade tardia estetizado nos enunciados. O discurso homogeneizador e intolerante, representado artisticamente em Hatoum (2013)HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013., é visto aqui sob a perspectiva epistemológica e sociológica de Boaventura de Sousa Santos, pois a literatura refrata na e pela linguagem os conflitos da sociedade em um determinado tempo-espaço.

1 Modernidade e literatura: algumas reflexões

Segundo Boaventura Santos (2002, p.238)SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p.237-280, out. 2002. Disponível em:http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF?msclkid=45ce8737b83c11ec9b9bf50715f28bd8. Acesso em: 20 jan. 2021.
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, se não houver uma nova percepção sobre a racionalidade atual, “todas as propostas apresentadas pela nova análise social, (...) tenderão a reproduzir o mesmo efeito de ocultação e descrédito”. Nesse sentido, o teórico português, ao defender a razão cosmopolita – sua proposta para uma nova racionalidade –, apresenta três procedimentos sociológicos, a saber: a sociologia das ausências, a sociologia das emergências e o trabalho de tradução. Neste estudo, refletiremos sobretudo acerca da sociologia das ausências.

Para Santos (2002, p.239)SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p.237-280, out. 2002. Disponível em:http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF?msclkid=45ce8737b83c11ec9b9bf50715f28bd8. Acesso em: 20 jan. 2021.
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, contrair o presente e expandir o futuro é, hoje em dia, “a característica mais fundamental da concepção ocidental de racionalidade”. Com tal atitude, a diversidade de experiências construídas não é considerada na contemporaneidade, causando o que o teórico português chama de razão indolente, ou seja, a razão que desperdiça experiências. Por este motivo é que se faz necessária uma sociologia das emergências para realizar a razão cosmopolita, que levará a “expandir o presente e contrair o futuro”, criando, assim, “o espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a inesgotável experiência social que está presente no mundo de hoje” (SANTOS, 2002, p.239SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p.237-280, out. 2002. Disponível em:http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF?msclkid=45ce8737b83c11ec9b9bf50715f28bd8. Acesso em: 20 jan. 2021.
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).

O assunto é debatido na sociologia das ausências, em que Boaventura Santos defende a expansão do presente, pois esta concepção teórica reconhece outras totalidades e heterogeneidades; diferente da perspectiva da razão indolente que, de forma metonímica, privilegia, conforme Santos (2002, p.242)SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p.237-280, out. 2002. Disponível em:http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF?msclkid=45ce8737b83c11ec9b9bf50715f28bd8. Acesso em: 20 jan. 2021.
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, uma “homogeneidade entre o todo e as partes e estas não têm existência fora da relação com a totalidade”, configurando, dessa maneira, a construção de dicotomias que acabam legitimando uma das partes em detrimento do todo, por isso há hierarquias.

Quando se reconhece outras totalidades e heterogeneidades, é possível ver aquelas dicotomias fora da relação de poder que as une, possibilitando “revelar outras relações alternativas que têm estado ofuscadas pelas dicotomias hegemônicas” (SANTOS, 2002, p.246SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p.237-280, out. 2002. Disponível em:http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF?msclkid=45ce8737b83c11ec9b9bf50715f28bd8. Acesso em: 20 jan. 2021.
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). Dessa forma, o presente pode ser expandido, pois outras experiências podem ser visibilizadas e valoradas, ou seja, o que no discurso hegemônico é considerado ausência, no discurso contra-hegemônico, da sociologia das ausências, é tornado presença.

É esta concepção epistemológica contra-hegemônica acerca da vida que vislumbramos indiciar no projeto literário de Milton Hatoum. Justamente porque Hatoum fala de modos de vida invisíveis e emudecidos para o cânone estabelecido pela modernidade.

Segundo Mikhail Bakhtin (2011a, p.173)BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética [1979]. In: BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 6. ed. Tradução e Introdução Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011a. p.3-192., “a realidade estética [é] diferente da realidade cognitiva e ética [...], mas, evidentemente, não é uma realidade indiferente a elas”. Nesse sentido, pretendemos situar o comprometimento ético e responsivo do autor-criador4 4 Mikhail Bakhtin, em “O autor e a personagem na atividade estética” (2011 [1924]), faz a distinção entre o autor-pessoa - o autor empírico, e o autor-criador: uma representação artística na obra literária ou demais obras artísticas. Utilizamos a versão traduzida por Paulo Bezerra e publicada em Estética da criação verbal (2011a). em uma perspectiva emancipatória e contra-hegemônica, objetificado na expressão artístico-literária do escritor amazonense, a partir das crônicas “Um sonhador” e “Margens secas da cidade” 5 5 A crônica “Um sonhador” foi publicada, inicialmente, na Folha de S. Paulo, em 2006. “Margens secas da cidade” foi publicada pela revista Caracol, da USP, em 2010, e na França em 2012; ambas foram reescritas e republicadas no livro de crônicas Um solitário à espreita em 2013. , republicadas em Um solitário à espreita em 2013.

Antonio Candido (1992, p.14-15)CANDIDO, A. A vida ao rés-do-chão [1981]. In: CANDIDO, A. et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 1992. p.13-22., ao trazer características que constituem a crônica, alude a uma linguagem de tom “leve [de] poesia”, que busca “a oralidade na escrita”. Este primeiro elemento da crônica está intimamente relacionado ao lugar ao qual o narrador precisa olhar que, segundo Candido, deve ser próximo ao cotidiano, no seu simples rés-do-chão. Além disso, faz parte da estilística da crônica aparentar um tom “despreocupado, de quem está falando coisas sem maior consequência, (...) mas podem levar longe a crítica social” (CANDIDO, 1992, p.17-18CANDIDO, A. A vida ao rés-do-chão [1981]. In: CANDIDO, A. et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 1992. p.13-22.). É nesta complexa relação entre estilo, temática e discurso que podemos vislumbrar uma discussão acerca do processo de criação artístico-literária. E, como alerta o crítico Davi Arrigucci Jr. (1987, p.53)ARRIGUCCI JR., D. Fragmentos sobre a crônica. In: ARRIGUCCI JR., D. Enigma e comentário. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p.51-66., a crônica é “texto literário”, visto ser “elaboração da linguagem”.

A relação entre sociedade e trabalho na e pela linguagem, representando assim um outro, é intrínseca e constitutiva da obra artística e literária. Bakhtin afirma que é a partir do outro, da empatia6 6 As noções de empatia e empatia estética são basilares para o conceito de exotopia desenvolvido por Bakhtin em “O autor e a personagem na atividade estética” (2011 [1924]). e da alteridade que o eu se constitui como sujeito responsivo em um evento da vida: “Ao momento da empatia segue sempre o da objetivação, ou seja, o de situar fora de si mesmo a individualidade compreendida através da empatia – separando-se de si mesmo, e retornando a si mesmo” (BAKHTIN, 2017, p.61BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. Organização Augusto Ponzio e Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGE/UFSCar. Posfácio Carlos Alberto Faraco. 3. ed. São Carlos: João & Pedro Editores, 2017.)7 7 Escrito no início da década de 1920, Para uma filosofia do ato responsável, veio a público pela primeira vez em 1986. Trata-se de um dos primeiros textos escritos por Mikhail Bakhtin. O texto é um rascunho/um manuscrito, sem título, com partes ilegíveis, sobretudo pelas péssimas condições em que foi guardado (FARACO, 2017a, p.147-148). . Esse sujeito situado e constituído a partir do outro percebe sua responsividade na relação do aqui-agora, o que pode influenciar sua produção estética, pois a escrita é a “abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer” (FOUCAULT, 2009, p.268FOUCAULT, M. O que é um autor? In: FOUCAULT, M. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. 2. ed. Organização Manoel de Barros da Motta. Tradução Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p.264-298. (Coleção Ditos e Escritos v. 3)).

Nesse sentido, Bakhtin (2017, p.124)BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. Organização Augusto Ponzio e Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGE/UFSCar. Posfácio Carlos Alberto Faraco. 3. ed. São Carlos: João & Pedro Editores, 2017. já havia apontado que “o mundo da arte” é impregnado de “tons emotivo-volitivos”; por conseguinte, o teórico russo assevera que o autor-artista/autor-pessoa tem uma posição singular na existência – o seu olhar exotópico, que domina “todos os momentos da unidade arquitetônica”, proporciona criar, representar e arquitetar “toda a matéria da empatia na arquitetônica”, criando, assim, “pela primeira vez, a atividade estética da enformação” (BAKHTIN, 2017, p.132BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. Organização Augusto Ponzio e Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGE/UFSCar. Posfácio Carlos Alberto Faraco. 3. ed. São Carlos: João & Pedro Editores, 2017.). Em decorrência desta perspectiva, Bakhtin (2017, p.141)BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. Organização Augusto Ponzio e Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGE/UFSCar. Posfácio Carlos Alberto Faraco. 3. ed. São Carlos: João & Pedro Editores, 2017. defende que “a atividade estética é uma participação especial, objetivada”, tanto pelo sujeito estético/autor-criador, quanto pelo sujeito ético/autor-pessoa.

Assim, vemos que, para o teórico russo, o objeto estético-literário é uma criação imagética por meio do olhar exotópico de um autor-pessoa que cria um outro: o autor-criador que, por sua vez, também se constitui pela exotopia, refratando essa alteridade para o ambiente da obra artística. Nesse caso, a linguagem é fundamental no processo de criação estética: “por meio da palavra, o artista trabalha o mundo, para o que a palavra deve ser superada por via imanente como palavra, deve tornar-se expressão do mundo dos outros e expressão da relação do autor com esse mundo” (BAKHTIN, 2011a, p.180BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética [1979]. In: BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 6. ed. Tradução e Introdução Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011a. p.3-192.). Nesta reelaboração artística do mundo pela linguagem, o autor-criador refrata valores outros na obra literária que, muitas vezes, legitimam o discurso de poder existente na sociedade: “as intenções do prosador se refratam, e se refratam sob diferentes ângulos, dependendo do grau de alteridade socioideológica, de encorpadura, de objetificação das linguagens que refratam o heterodiscurso” (BAKHTIN, 2015, p.77BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário Paulo Bezerra. Organização da edição russa Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015. p.19-241.; grifos no original).

Ainda segundo o teórico russo, o ato criador exige uma posição axiológica acerca do mundo “no acontecimento do existir, nos valores do mundo (...) o autor se afirma axiologicamente em primeiro lugar, e essa diretriz artística lhe determina a posição literário-material” (BAKHTIN, 2011a, p.182BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética [1979]. In: BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 6. ed. Tradução e Introdução Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011a. p.3-192.). Nesse processo imagético e subjetivo proporcionado pela e com a linguagem, temos a produção de diversos sentidos que podem ser refratados ou refletidos na obra literária, representando, assim, “a posição socioideológica diferenciada do autor e de seu grupo no heterodiscurso da época” (BAKHTIN, 2015, p.78BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário Paulo Bezerra. Organização da edição russa Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015. p.19-241.; grifo no original). Ademais, o heterodiscurso pode ser entendido como as diferentes “vozes históricas e sociais que povoam a língua” (BAKHTIN, 2015, p.78BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário Paulo Bezerra. Organização da edição russa Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015. p.19-241.), o qual é sempre estetizado pelo autor-criador.

A constituição a partir do outro, segundo o posicionamento de Bakhtin, é inerente ao sujeito. Desse modo, o sujeito com seu olhar empático, por isso exotópico, reconhece-se e se identifica a partir da vivência, dos valores, da cultura e da linguagem do outro. A partir disso, institui seu agir responsivo em cada evento da vida, pois, pela interação com o outro, constitui-se como sujeito ético e responsivo na existência. Dessa percepção de sujeito, vemos que a linguagem atravessa todo esse processo e, conforme Bakhtin, a palavra não é monológica, e sim dialógica; portanto, heterodiscursiva: “em qualquer enunciado (...) descobrimos toda uma série de palavras do outro semilatentes e latentes, de diferentes graus de alteridade” (BAKHTIN, 2011b, p.299BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso [1979]. In: BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 6. ed. Tradução e Introdução Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011b. p.261-306.).

Essa heterogeneidade discursiva defendida por Bakhtin evidencia que o autor-pessoa ou o autor-criador não possuem uma linguagem transparente e imune a outros discursos, pelo contrário, o discurso é opaco, constituído por diversas outras vozes discursivas sociais e históricas que influenciam o discurso de um eu que fala a partir de um outro. Nesse sentido, como também afirmou Michel Foucault (2009, p.270)FOUCAULT, M. O que é um autor? In: FOUCAULT, M. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. 2. ed. Organização Manoel de Barros da Motta. Tradução Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p.264-298. (Coleção Ditos e Escritos v. 3), a escrita “ainda preserva a existência do autor”, pois se relacionarmos um discurso/enunciado ao “nome do autor”, perceberemos que este é instaurado por “uma dada cultura”, em “um certo grupo de discursos” e o “modo singular de ser” do autor; por isso Foucault (2009, p.274)FOUCAULT, M. O que é um autor? In: FOUCAULT, M. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. 2. ed. Organização Manoel de Barros da Motta. Tradução Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p.264-298. (Coleção Ditos e Escritos v. 3) defende a “função autor”, caracterizada pelo “modo de existência, de circulação e funcionamento de certos discursos no interior da sociedade”.

Percebemos que tanto em Bakhtin quanto em Foucault a autoria da obra artística, neste caso, a literária, mantém indícios de palavras/enunciados/vozes/discursos de outros, mas esta influência de palavras outras é sempre mediada por valorações do sujeito, pois este se situa em determinado contexto histórico e social, além de ter se constituído por diversos discursos historicamente. Valentin Volóchinov (2019, p.312VOLÓCHINOV, V. Estilística do discurso literário III: A palavra e sua função social [1930]. In: VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. p.306-336.; grifo no original)8 8 Volóchinov pertenceu ao grupo de estudo de Bakhtin, conhecido como Círculo de Bakhtin. Volóchinov publicou diversos ensaios entre 1925 e 1930 que estão reunidos na coletânea A palavra na vida e a palavra na poesia, publicada no Brasil, em 2019, com tradução direta do russo por Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. já afirmou que a palavra, por “sua própria essência, (...) revela-se, desde o início, o mais puro fenômeno ideológico”. Dessa maneira, a linguagem nunca está neutra quanto aos interesses ideológicos que estão em disputa em determinada sociedade: “todo signo ideológico, por ser um produto da história humana, não só reflete, mas também inevitavelmente refrata todos os fenômenos da vida social” (VOLÓCHINOV, 2019, p.314VOLÓCHINOV, V. Estilística do discurso literário III: A palavra e sua função social [1930]. In: VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. p.306-336.; grifo no original).

Em decorrência disso, Volóchinov (2019, p.315VOLÓCHINOV, V. Estilística do discurso literário III: A palavra e sua função social [1930]. In: VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. p.306-336.; grifos no original) argumenta que:

a verdadeira realidade, na qual vive um homem de verdade, é a história, o mar sempre agitado da luta de classes, que não conhece a tranquilidade nem a paz. A palavra que reflete essa história não pode deixar de refletir as suas contradições, o seu movimento dialético, a sua “constituição”.

Nesta perspectiva dialética, Volóchinov ainda observa, acerca da relação linguagem/história/ideologia/luta de classes, que grupos menos favorecidos, invisibilizados pelo discurso hegemônico da história, tendem a não perceber e não modificar sua realidade por meio do discurso. Neste caso, o grupo social que detém o poder, continuamente altera, com e pelo discurso, a realidade objetiva, refratando os sentidos que lhes interessam para manter o status quo de desigualdades, estereótipos, preconceitos e diversas outras verdades impostas pelo discurso hegemônico da classe dominante:

Diferentes classes também possuem diferentes pontos de vista; na língua de cada classe existe uma medida especial para a correspondência entre a palavra e a realidade objetiva. O proletariado, cujo ponto de vista subjetivo aproxima-se de modo mais estreito da lógica objetiva da realidade, obviamente não necessita de uma deturpação dessa realidade nas palavras (VOLÓCHINOV, 2019, p.318VOLÓCHINOV, V. Estilística do discurso literário III: A palavra e sua função social [1930]. In: VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. p.306-336.).

Esta perspectiva de Volóchinov acerca do signo ideológico e sua consequente manipulação pelo discurso é relevante em nossa discussão, pois mantém relação intrínseca com o fazer artístico e literário. Bakhtin (2011a, p.180-182)BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética [1979]. In: BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 6. ed. Tradução e Introdução Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011a. p.3-192. já afirmou que o ato criador exige uma posição axiológica “no acontecimento do existir”, neste caso, a palavra é “expressão da relação do autor com esse mundo”. Neste sentido, Carlos Alberto Faraco (2018, p.50)FARACO, C. A. Autor e autoria. In: BRAIT, B. (org). Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2018. p.37-60., ao interpretar os postulados de Bakhtin a respeito do ato de criação estética, assevera que o “autor-criador é uma posição verbo-axiológica que reflete e refrata a heteroglossia”. Considerando que a concepção axiológica do agir é fundante na concepção bakhtiniana de cultura, sujeito, linguagem e vida, podemos dizer, citando Faraco (2017b, p.52)FARACO, C. A. Bakhtin e filosofia. Bakhtiniana, Rev. Estud. Discurso. São Paulo, v. 12, n. 2, p.45-56, maio-ago. 2017b. Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/31815. Acesso em: 07 abr. 2021.
https://revistas.pucsp.br/index.php/bakh...
, que “agir, valorar, interagir – tecem o viver”.

Partindo dessa perspectiva acerca do agir axiologicamente pela e com a linguagem, situamos a proposta discursivo-literária do escritor amazonense Milton Hatoum na pós-modernidade, como uma estética configurada por um autor-criador que age sempre com um olhar exotópico comprometido com seu ato no existir-evento da/na e pela obra literária. Segundo Pierre Bourdieu (1968, p.105)BOURDIEU, P. Campo intelectual e projeto criador [1966]. In: POUILLON, J. et al. Problemas do Estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. p.105-145., em “Campo intelectual e projeto criador”,

a relação que um criador mantém com sua obra e, por isso mesmo, a própria obra são afetadas pelo sistema de relações sociais nas quais se realiza a criação como ato de comunicação ou, mais precisamente, pela posição do criador na estrutura do campo intelectual.

A partir da observação de Bourdieu, é possível fazermos uma referência à proposta de Bakhtin e de Volóchinov, inicialmente em dois sentidos, quais sejam, primeiro, referente à influência ideológica que os discursos sociais imprimem na concepção da vida e da arte no autor-pessoa; segundo, que pode existir uma posição de poder atribuída ao artista referente à posição, no campo intelectual, no qual o autor-pessoa está inserido. Neste caso, o entendimento axiológico de um agir responsivo na existência atribui um valor ético, moral, social e artístico à produção artístico-literária do autor-criador. É este caráter responsivo atravessado no e pelo discurso literário que refrata diversas vozes sociais invisibilizadas historicamente, o qual acreditamos possuir a produção literária de Milton Hatoum.

Gremião Neto, ao analisar o projeto literário de Hatoum, a partir das crônicas publicadas pelo escritor amazonense na revista EntreLivros, destacou, como característica do projeto estético de Hatoum, o trabalho pela rememoração cuja preocupação é “uma articulação crítica com o passado responsável por abranger questões éticas” (GREMIÃO NETO, 2019, p.53GREMIÃO NETO, A. Campo intelectual e projeto literário: as crônicas de Milton Hatoum na revista EntreLivros. 2019. 213f. Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística) – Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2019. Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=7739636. Acesso em: 15 jul. 2020.
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). Nesse sentido, o pesquisador argumenta que

a função social do escritor empírico Milton Hatoum está diretamente ligada à sua função de escritor, de modo a emoldurar, ao lado de sua composição estética, uma posição ética que contribui tanto para sua função social quanto para a dimensão temática de suas obras (GREMIÃO NETO, 2019, p.57GREMIÃO NETO, A. Campo intelectual e projeto literário: as crônicas de Milton Hatoum na revista EntreLivros. 2019. 213f. Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística) – Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2019. Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=7739636. Acesso em: 15 jul. 2020.
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).

Esse aspecto levantado por Gremião Neto nos remete ao que aludiu Bourdieu ao afirmar que, dentro do campo intelectual, o artista pode ter certa autonomia, apesar das pressões do campo artístico literário que influem sobre o autor: “o intelectual autônomo (...) não conhece e não quer conhecer outras pressões que não sejam as exigências constitutivas de seu projeto criador” (BOURDIEU, 1968, p.108BOURDIEU, P. Campo intelectual e projeto criador [1966]. In: POUILLON, J. et al. Problemas do Estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. p.105-145.). Milton Hatoum tem em sua obra uma caraterística comum: dar voz aos emudecidos socialmente. Este traço de suas composições aparece ora em forma de um sentimento de perda, de ruína; ora como denúncia de posturas autoritárias e predadoras de vidas. Em Amazonas: palavras e imagens de um rio entre ruínas, a primeira publicação de Hatoum, o autor principia o tom artístico e intelectual que iria percorrer toda sua obra:

Outras frentes de penetração na Amazônia destroem áreas da mata original para plantar um único tipo de árvore, estranha à região (...). Já é possível encontrar extensas áreas (...) desnudas da riqueza da fauna e da flora amazônica, num cenário que beira a desolação e o tédio (HATOUM, 1979HATOUM, M. et al. Amazonas: palavra e imagens de um rio entre ruínas. São Paulo: Livraria Diadorim, 1979., n.p).

A perspectiva de Hatoum evidencia um discurso contra-hegemônico ao discurso homologador produzido pelo cânone da modernidade. Mas a noção de uma verdade universal pode não ser plausível na contemporaneidade. Conforme defendeu Gianni Vattimo (1992, p.7)VATTIMO, G. A sociedade transparente. Tradução Hossein Shooja e Isabel Santos. Relógio D’Água: Lisboa, 1992., “a modernidade (...) termina quando (...) não se pode falar de história como qualquer coisa de unitário” e isso implica, por exemplo, questionar verdades que antes eram inquestionáveis em diversos âmbitos: ciência, religião, filosofia, linguagem, literatura, entre outras áreas que envolvem a ação humana na vida.

Neste sentido, é altamente questionável inclusive a ideia de progresso como uma consequência para todos os indivíduos igualmente. Vattimo aponta que o desenvolvimento das relações de produção no capitalismo desencadeou o processo de ampliação do mercado e, consequentemente, dos meios de comunicação – os mass media –, e, em decorrência disso, as subculturas tomaram a palavra, determinando “a passagem de nossa sociedade à pós-modernidade” (VATTIMO, 1992, p.12VATTIMO, G. A sociedade transparente. Tradução Hossein Shooja e Isabel Santos. Relógio D’Água: Lisboa, 1992.). Isto fragiliza, se é que não derruba, a ideia de uma história linear como verdade única, proposta pela modernidade.

Em termos bakhtinianos, poderíamos vislumbrar nas reflexões de Vattimo um discurso não monologizante acerca da contemporaneidade; pelo contrário, o filósofo italiano evidencia, a partir de sua concepção de modernidade/pós-modernidade, haver a necessidade de pensar as relações sociais como uma heterotopia9 9 Vattimo reflete a respeito da transição epistemológica e histórica acerca da experiência estética utópica que concebia o mundo (a realidade) e o belo (o objeto/artefato artístico) como objetos imanentes e unívocos; propõe, por outro lado, uma concepção heterotópica da experiência estética a partir da “experiência estética de massa” com o surgimento dos mass media (VATTIMO, 1992). , pois, conforme o teórico, em uma concepção heterotópica, é possível compreender, criar, estetizar outros mundos, pois: “Vivemos a experiência do belo como reconhecimento de modelos que fazem mundo e que fazem comunidade apenas no momento em que estes mundos e estas comunidades se dão explicitamente como múltiplos” (VATTIMO, 1992, p.74VATTIMO, G. A sociedade transparente. Tradução Hossein Shooja e Isabel Santos. Relógio D’Água: Lisboa, 1992.).

Essa nova perspectiva de pensar e conhecer o mundo e a si mesmo fez mudar alguns paradigmas acerca da vida, das relações sociais e do conhecimento envolvendo a noção de história como verdade. Nesse sentido, Vattimo (1992, p.15)VATTIMO, G. A sociedade transparente. Tradução Hossein Shooja e Isabel Santos. Relógio D’Água: Lisboa, 1992. argumenta que: “O efeito emancipador da libertação das racionalidades locais” não é apenas ter voz no palco das falas, pois consiste também no desenraizamento dessas vozes, reconhecer as diversas historicidades negligenciadas antes. Nessa perspectiva, Vattimo considera indispensável uma postura comprometida com o outro: “aquilo que chamamos a ‘realidade do mundo’ é alguma coisa que se constitui como ‘contexto’ das múltiplas fabulações – e tematizar o mundo nestes termos é precisamente o dever e o significado das ciências humanas” (VATTIMO, 1992, p.32VATTIMO, G. A sociedade transparente. Tradução Hossein Shooja e Isabel Santos. Relógio D’Água: Lisboa, 1992.; grifos no original).

É refletindo nestes diversos outros, em uma perspectiva também valorativa e responsiva, que o pensamento de Boaventura de Sousa Santos vem corroborar com as discussões aqui propostas. Santos (2011)SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: Contra o desperdício da experiência. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2011. desvela, em A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência, um outro olhar acerca da modernidade. O teórico português destaca a necessidade de haver uma mudança de paradigma epistemológico para o conhecimento moderno, pois o paradigma em voga, denominado pós-moderno, segundo Santos (2011, p.37)SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: Contra o desperdício da experiência. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2011., é uma perspectiva que não tem um olhar emancipador acerca da modernidade, pelo contrário, mostra-se somente como uma versão “reguladora e conservadora” desta, referendando com suas diretrizes conceituais sobre o social, no que resulta em nada mais do que “repetições aceleradas do presente” (SANTOS, 2011, p.37SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: Contra o desperdício da experiência. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2011.). Nesse sentido, Santos caracteriza sua proposta como um “pós-modernismo de oposição”, pois é uma perspectiva que “articula a crítica da modernidade com a crítica da teoria crítica da modernidade” (SANTOS, 2011, p.37SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: Contra o desperdício da experiência. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2011.). Dessa maneira, além de ser, conforme Santos (2011, p.37)SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: Contra o desperdício da experiência. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2011., “uma normatividade construída a partir do chão das lutas sociais, de modo participativo e multicultural”, objetiva, entre outros aspectos, credibilizar “junto daqueles (...) que sentem que as razões da indignação e do inconformismo não estão apoiadas pela indignação e o inconformismo da razão” (SANTOS, 2011, p.37SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: Contra o desperdício da experiência. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2011.).

Foi norteado por esta perspectiva que Santos denominou o paradigma atual da modernidade, citando Leibniz10 10 O filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), em prefácio de sua obra Teodiceia, recobra a expressão razão indolente ou razão preguiçosa, utilizada por pensadores na antiguidade, que depreendiam dela, se o futuro já está posto, não deveriam “fazer nada, não cuidar de nada e gozar apenas o momento”, ser conformista com o presente, conforme Santos (2011, p.42). , de razão indolente, pois, por imprimir uma concepção homogeneizadora para a vida, impõe, consequentemente, um discurso hegemônico sobre toda a produção científica, artística, cultural, histórica, econômica envolvida nas relações humanas, desprezando com isso outras produções que não são valoradas por esta concepção indolente na contemporaneidade. Isso produz uma perda de conhecimentos e experiências de outras subjetividades: “a experiência da razão indolente é uma experiência limitada, (...) por isso a crítica da razão indolente é também uma denúncia do desperdício da experiência” (SANTOS, 2011, p.42SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: Contra o desperdício da experiência. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2011.). Compreendendo as relações sociais como múltiplas e singulares na sua existência, pois carregam em si valores e historicidade inerentes a suas constituições identitárias e sociais, é que Santos atribui, como já mencionado no início deste texto, ao discurso hegemônico da razão indolente, uma ideia metonímica de regulação do todo. Por outro lado, propõe como alternativa paradigmática a esta redutora concepção da modernidade a sociologia das ausências, que tem por objetivo “transformar as ausências em presenças”, ou seja, dar voz, visibilizar as temporalidades, os saberes, os grupos sociais, os espaços geográficos e as forças produtivas que são emudecidas pelo discurso metonímico da modernidade na contemporaneidade (SANTOS, 2002SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p.237-280, out. 2002. Disponível em:http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF?msclkid=45ce8737b83c11ec9b9bf50715f28bd8. Acesso em: 20 jan. 2021.
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).

São esses sentidos que nos propomos indiciar nas crônicas de Hatoum (2013)HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013., a partir da perspectiva filosófica, discursiva e artístico-literária de Bakhtin, cotejando-as ora com a razão metonímica, ora com a sociologia das ausências, propostas por Santos, objetivando evidenciar uma perspectiva emancipatória no projeto literário de Hatoum, que valoriza, por meio da estética literária, as experiências antes invisibilizadas.

2 As crônicas de Hatoum: um projeto literário dialogizado na sociologia das ausências

Milton Hatoum pode ser considerado um dos escritores mais consagrados pela crítica literária e bastante estudado no meio acadêmico nos últimos anos. Além de autor premiado pela qualidade literária de seus textos, Milton Hatoum também é bem recebido pelos leitores, a exemplo de Dois irmãos, com mais de 200 mil exemplares vendidos nos últimos vinte anos (CAVALHEIRO, 2020, p.155CAVALHEIRO, J. Recepção e produção acadêmica sobre a obra de Milton Hatoum: circulações. In: MIBIELLI, R.; JORGE, S.; SAMPAIO, S. (orgs). Trânsitos e fronteiras literárias: territórios. Rio de Janeiro: Makunaima; Boa Vista: Editora da Universidade de Roraima, 2020. v. 3, p.155-175. Disponível em: http://edicoesmakunaima.com.br/images/livros/transitos_e_fronteiras_literarias_territorios.pdf. Acesso em: 16 fev. 2021.
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):

Houve defesas de teses e dissertações sobre a obra de Hatoum em vinte estados brasileiros e no Distrito Federal, distribuídas entre 46 instituições de ensino superior. Houve, em outros três países, defesas realizadas em cinco instituições de ensino no exterior (CAVALHEIRO, 2020, p.162CAVALHEIRO, J. Recepção e produção acadêmica sobre a obra de Milton Hatoum: circulações. In: MIBIELLI, R.; JORGE, S.; SAMPAIO, S. (orgs). Trânsitos e fronteiras literárias: territórios. Rio de Janeiro: Makunaima; Boa Vista: Editora da Universidade de Roraima, 2020. v. 3, p.155-175. Disponível em: http://edicoesmakunaima.com.br/images/livros/transitos_e_fronteiras_literarias_territorios.pdf. Acesso em: 16 fev. 2021.
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).

Além da relevância da obra de Hatoum no meio acadêmico e sua boa recepção entre os leitores, destacam-se também as peculiaridades e o trabalho artístico de suas temáticas. Hatoum refrata em suas produções um olhar responsivo ético e estético, como fora apontado por Gremião Neto (2019)GREMIÃO NETO, A. Campo intelectual e projeto literário: as crônicas de Milton Hatoum na revista EntreLivros. 2019. 213f. Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística) – Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2019. Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=7739636. Acesso em: 15 jul. 2020.
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. Nesse sentido, o estudo de Paulo César de Oliveira e Ana Carolina Figueiredo acerca das crônicas da revista Magazine também indiciaram um papel responsivo do autor/criador de Hatoum: “um Milton Hatoum intelectual engajado em causas sociais, questões políticas e culturais e isso também se verifica em seus textos” (OLIVEIRA; FIGUEIREDO, 2020, p.302OLIVEIRA, P. C.; FIGUEIREDO, A. C. Milton Hatoum no parlatório: as crônicas da Terra Magazine. Revista UNIABEU, Belford Roxo, RJ, v. 13, n. 33, Número especial, p.298-313, jan.-jun. 2020. Disponível em: https://revista.uniabeu.edu.br/index.php/RU/article/view/3889/pdf. Acesso em: 02 ago. 2020.
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).

Ao que indicam as pesquisas, percebemos que Hatoum faz parte de um campo intelectual e literário nos moldes apontados por Bourdieu (1968)BOURDIEU, P. Campo intelectual e projeto criador [1966]. In: POUILLON, J. et al. Problemas do Estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. p.105-145., pois, apesar de abordar temáticas que podem incomodar os discursos hegemônicos, o autor não se exime de representar em sua estética, aqui sumariamente discutidas, as vozes outrora invisibilizadas. Embora o escritor amazonense notabilize-se por sua produção romanesca, vemos que o autor-criador em Hatoum mantém uma característica comum às temáticas desenvolvidas: dar voz aos emudecidos, demonstrando as consequências do discurso metonímico nas relações e subjetividades humanas. As crônicas “Um sonhador” e “Margens secas da cidade” serão aqui analisadas em um movimento dialogizado de leitura, aproximando os indícios estéticos deixados pelo autor-criador, a partir, como já se viu, da perspectiva bakhtiniana e da abordagem sociológica de Boaventura Santos.

Na primeira crônica, “Um sonhador”, a narrativa é desenvolvida em primeira pessoa e inicia-se com o narrador remando em uma canoa, está indo votar e, nesse navegar, a narrativa avança com a descrição da degradação ocorrida ao meio ambiente durante o tempo: o rio, as queimadas. Nesse entremeio, o narrador nos mostra sua lembrança de jovens que trouxeram do Sul um projeto de leitura para as crianças da região. Segundo o narrador, as palavras fazem as crianças sonharem. Após esta rememoração, o narrador continua sua viagem pelo rio até o local de votação, descreve a dificuldade de a canoa passar, devido ao acúmulo de peixes mortos e galhos carbonizados. De repente, o narrador nos relata um grande estrondo; é quando descobrimos que ele estava sonhando e fora acordado pelo som de fogos de artifício comemorativos à chegada de um Ano Novo.

Na crônica “Margens secas da cidade”, a narrativa também é desenvolvida em primeira pessoa. O narrador tem em sua memória a imagem de um vendedor de frutas ambulante que andava pela cidade com um tabuleiro cheio de frutas típicas da região. Já em sua infância, este vendedor, para o narrador, assemelhava-se a um homem-árvore. O narrador relata que sempre que voltava à cidade encontrava o vendedor, mas, com o passar do tempo, o homem-árvore foi se degradando, perdendo sua pujança, beleza e vida. A transformação da personagem homem-árvore acompanha a degradação da cidade, conforme afirma o narrador.

Em ambas as crônicas, há um tom lírico marcante na narrativa, criando uma atmosfera imagética que é característica das crônicas de Hatoum. Em “Um sonhador”, o narrador nos evidencia como foi para ele a chegada das moças que traziam os livros: “elas reapareceram que nem vaga-lumes: de surpresa, piscando na escuridão” (HATOUM, 2013, p.222HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.). Em “Margens secas da cidade”, a voz narrativa apresenta o “homem-árvore” de sua infância: “Os sons das palavras encantavam, me atraíam como a serpente que ergue a cabeça ao som de uma flauta” (HATOUM, 2013, p.222HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.). Octavio Paz (1982, p.131)PAZ, O. A imagem. In: PAZ, O. O arco e a lira. 2. ed. Tradução Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p.119-138. diz que a imagem “cria realidades que possuem uma verdade: a sua própria existência”. Trata-se, assim, de uma imagem estética, objetificada pelo poeta/autor-criador. Paz ainda afirma que a imagem “é um recurso desesperado contra o silêncio que nos invade cada vez que tentamos exprimir a terrível experiência do que nos rodeia e de nós mesmos” (PAZ, 1982, p.135PAZ, O. A imagem. In: PAZ, O. O arco e a lira. 2. ed. Tradução Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p.119-138.).

Neste primeiro movimento dentro da poética de Hatoum já podemos perceber, a partir das observações de Paz, como o autor-criador de Hatoum mobiliza os recursos da linguagem literária para produzir sentidos. Esta experiência à qual se refere Paz pode ser intensificada porque o autor-criador de Hatoum utiliza o recurso da memória para expressar essa experiência. E, conforme salientou Pierre Nora (1993)NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Tradução Yara Aun Khoury. Projeto História. São Paulo, v. 10, p.7-28, jul.-dez. 1993. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101. Acesso em: 23 jun. 2020.
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, por meio dos “lugares de memória” – “restos de sentido”, “uma vida simbólica” –, essas lembranças podem ser continuamente revividas pela linguagem, pois esses sentidos da e pela memória representam “práticas sociais” de um determinado tempo-espaço, que são ressignificados pelas subjetividades dos sujeitos historicamente situados. Por isso, diz Nora (1993, p.27)NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Tradução Yara Aun Khoury. Projeto História. São Paulo, v. 10, p.7-28, jul.-dez. 1993. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101. Acesso em: 23 jun. 2020.
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: “tudo simboliza, tudo significa”. Dessa maneira, a escolha da perspectiva narrativa em primeira pessoa pode intensificar essas sensações e sentimentos, como já afirmou Arrigucci Jr. (1998, p.20)ARRIGUCCI JR., D. Teoria da narrativa: posições do narrador. Jornal de Psicanálise. São Paulo, v. 37, n. 57, p.9-43, set. 1998.: a escolha de “uma voz narrativa tem implicações”, é decidir por “uma visão de mundo”.

Estas implicações podem ser observadas em ambas as narrativas: os narradores são comprometidos com as cenas que narram, com as sensações que vivem, rememoram ou experienciam. Em “Um sonhador”, o narrador diz: “As palavras não curam, mas são uma trégua no desamparo, melodia na solidão. Agora as crianças sonham com as histórias que ouviram e contam sonhos com as palavras que aprenderam a ler” (HATOUM, 2013, p.222HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.). Este excerto evidencia a valoração impressa pela voz narrativa ao presenciar o efeito da ação do livro para as crianças da comunidade, em vista da dificuldade que os rodeia. Devido à degradação do lugar pela ação humana – esta embasada no e pelo discurso das totalidades da razão metonímica –, o narrador-personagem vê no livro, no conhecimento, uma alternativa para mudança. Ao mencionar o dia de votação e o fato de, mesmo com as adversidades do caminho, o narrador ter o desejo de chegar até o lugar de votação; isto simboliza também, na obra, uma perspectiva de transformação na vida das personagens estetizadas na crônica pelo autor-criador: “Dia da República, quis ser o primeiro a votar” (HATOUM, 2013, p.222HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.). Evidencia, nesse sentido, a perspectiva responsiva da voz narrativa: ele tem consciência da importância de sua atitude naquele espaço-tempo do existir, não somente para si, mas para o outro, em termos bakhtinianos, podemos dizer que o narrador é um ser responsivo.

Por outro lado, o desejo de mudança pelo narrador-personagem também é representado como algo difícil de ocorrer. Isso pode ser indiciado pelos entraves encontrados durante a ida do narrador até seu lugar de votação: “os peixes podres, folhas e galhos carbonizados” que atrapalham a passagem da canoa. Este aspecto ganha relevo, pois ora o narrador nomeia o rio de “Estirão do Diabo”, ora de “riozinho da Liberdade” (HATOUM, 2013, p.222HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.), o que corrobora com as dificuldades enfrentadas – como se tivessem que resolver um paradoxo, mas ao mesmo tempo esse dilema não apaga as chances de mudanças para aquele espaço-tempo, pois existe a “liberdade” de ação, de reação: um discurso contra-hegemônico. Além disso, ao final da crônica, descobrimos que tudo fora apenas um sonho, mas o narrador verbaliza: “Era a primeira manhã do ano. Na memória do sonho ainda alternavam a traição sem remorso e a esperança. E logo me veio à mente uma frase que nunca esqueci: o destino do sonhador é duvidar…” (HATOUM, 2013, p.223HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.). O indicativo de um novo ano pelo seu início: “a manhã”, reforça mais ainda a postura emotivo-volitiva do narrador-personagem naquele momento de sua existência e, apesar de estar sonhando, argumenta que “o destino do sonhador é duvidar...”. Essa passagem pode produzir efeitos de sentido diversos, por exemplo: de dúvida, quanto à mudança de situação atual; de esperança, mesmo em forma de sonho. Isto pode ser reforçado pelas reticências e pelos demais indícios de ações emotivo-volitivas e responsivas deixadas pelo narrador durante a crônica e explorados até aqui.

O sentimento de resistência à situação instalada pelo progresso é indicado no início do enunciado, a partir do ensinamento do pai ao narrador: “Aprendi a navegar no escuro antes de ler e escrever. Meu pai me ensinou a remar e a encontrar canal em época de vazante” (HATOUM, 2013, p.222HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.). A expressão “aprender a navegar”, assumida como imagem poética, já significa muito no contexto da narrativa, por exemplo, saber guiar-se pela vida, tomar decisões. O efeito de sentido atribuído aos livros: “moças que trazem palavras para o nosso povoado”, “elas reapareceram que nem vaga-lumes” (HATOUM, 2013, p.222HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.), também corrobora com a esperança de resistência para mudança: as moças trazem palavras para as pessoas, com isso, os moradores terão voz, poderão enunciar decisões e principiar mudanças. A referência a “vaga-lumes” pluriacentua a ideia de luz na escuridão, nas dificuldades; representa, dessa maneira, uma forma de caminho pela luz, pelos livros, pelo conhecimento.

Percebemos até este momento da análise que o autor-criador, pela voz do narrador, refrata no texto outras vozes sociais que são invisibilizadas socialmente, não respeitadas em suas singularidades: os povos ribeirinhos apontados na crônica. Além disso, depreendemos da análise que a estética-literária de Hatoum evidencia, por meio de seu autor-criador, uma literatura que explicita os discursos hegemônicos produzidos pela razão metonímica. Vemos isto pelo resultado representado no rio: “os peixes foram aprisionados em lagos que nunca foram lagos. Mortos. E um cheiro de cinzas no ar. Meus pais não viram esse céu de ferrugem que esconde o sol” (HATOUM, 2013, p.222HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.). Pela representação estética, vislumbramos que a promessa de desenvolvimento proposta pela modernidade não chega para todos de forma equânime, evidenciando a visão homogeneizadora e, ao mesmo tempo, “limitada de si mesma”, como afirma Santos (2002, p.243)SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p.237-280, out. 2002. Disponível em:http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF?msclkid=45ce8737b83c11ec9b9bf50715f28bd8. Acesso em: 20 jan. 2021.
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.

Nesse sentido, no paradigma proposto por Boaventura de Sousa Santos (2011)SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: Contra o desperdício da experiência. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2011., o pós-modernismo deve ser de oposição a visões fragmentárias ou separatistas nas relações sociais e com o meio ambiente. Assim, o teórico propõe reconhecer outras totalidades, outras heterogeneidades; isto caracteriza uma perspectiva que visibilize outras existências, outras heterotopias, como propôs Vattimo (1992)VATTIMO, G. A sociedade transparente. Tradução Hossein Shooja e Isabel Santos. Relógio D’Água: Lisboa, 1992.. O texto de Hatoum indicia essa alternativa quando o narrador assume uma postura responsiva com o seu existir. Ele vislumbra uma mudança, mesmo com a destruição causada pelo progresso: a ida à votação, o projeto de leitura, culminando em um Ano Novo e com crianças contando os sonhos com palavras apreendidas.

A partir disso, pode-se desconstruir uma das lógicas da razão metonímica: a monocultura do saber11 11 A razão metonímica tem várias lógicas ou processos pelos quais desqualifica, anula ou não reconhece outras existências, dentre eles, destacamos a monocultura do saber e a escala dominante. A primeira, considera cânone os princípios da ciência moderna e da alta cultura, desprezando os demais conhecimentos; a segunda, pelo viés do universalismo e do globalismo, desconsidera o que seja local e particular (SANTOS, 2002, p.246-248). . Nesse sentido, as crianças da localidade representada pelo narrador poderão assimilar outros saberes e partilhar os seus. Além disso, a representação da votação na crônica pode indiciar uma mudança em políticas públicas que revejam outra lógica metonímica da modernidade: a da escala dominante. Assim, pretende-se integrar de forma responsável as localidades, respeitando as características singulares dos povos e do meio ambiente. Dessa forma, poder-se-á dar voz a subjetividades ignoradas pelas elites hegemônicas. Os personagens e o espaço-tempo estetizados em “Um sonhador” poderão ser protagonistas no existir-evento da contemporaneidade.

Na crônica “Margens secas da cidade”, o narrador evidencia, inicialmente pela memória, a vivacidade e o esplendor que representa para ele o homem-árvore:

O homem era uma surpresa na luz da manhã, e a manhã, sim, era infância: terra nua, rio de horizonte sem fim. Carregava um tabuleiro pesado, o rosto dele mal aparecia no meio de frutas e galhos, frutas arrancadas das árvores de algum quintal ou terreno baldio, ou da floresta que nos cercava. Um homem-árvore, um ser da floresta (HATOUM, 2013, p.61HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.).

O lugar de memória, como proposto por Nora (1993)NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Tradução Yara Aun Khoury. Projeto História. São Paulo, v. 10, p.7-28, jul.-dez. 1993. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101. Acesso em: 23 jun. 2020.
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, pode indiciar, por meio das reminiscências da infância do narrador, uma inter-relação entre o homem e a natureza de forma harmônica; para a voz narrativa, eles se integram e, às vezes, são um só: “um pomar suspenso oscilando sobre a cabeça invisível, a voz trinando sons tremidos pelo vento que vinha do rio Negro” (HATOUM, 2013, p.61HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.). Essa abordagem do autor-criador, por meio do narrador, demonstra uma perspectiva estética responsiva, pois valorando o espaço-natureza e a existência do homem, situa-os como discursos heterogêneos convivendo racionalmente em meio a uma lógica metonímica moderna que não reconhece as diferentes singularidades.

Ao retornar à realidade objetivada no texto, a memória daquele espaço-tempo da infância do narrador-personagem depara-se com uma situação um pouco diferente: a personagem “homem-árvore” continua um “fauno de Manaus” (HATOUM, 2013, p.61HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.); mas aparenta sofrer a ação de “não-existência” pela lógica hegemônica da modernidade capitalista (SANTOS, 2002SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p.237-280, out. 2002. Disponível em:http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF?msclkid=45ce8737b83c11ec9b9bf50715f28bd8. Acesso em: 20 jan. 2021.
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). O narrador evidencia indícios a este respeito: “o homem sempre aparecia quando eu regressava a Manaus, não sei se mais velho, mais acabado, ou mais corcunda” (HATOUM, 2013, p.61HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.).

Em boa parte de sua vida, a personagem homem-árvore parece indiferente à ação da razão mimética. O narrador relata a recusa do vendedor ambulante ao pagamento feito pela compra de algumas frutas; e sua forma descontraída ao reencontrar o freguês-narrador, dizendo: “E aí, mano” (HATOUM, 2013, p.62HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.). Esse “discurso alheio” do outro, conforme Volóchinov (2018)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem [1929]. 2. ed. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo; Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2018., é uma enunciação do “discurso interior”, significando pelo contexto situacional em que o sujeito enunciador – homem-árvore, está, que reflete o discurso refratado da ideologia dominante impregnado no discurso de grupos dominantes, tendendo a “estabilizar o momento anterior do fluxo dialético da formação social, ou seja, de enfatizar a verdade de ontem como se fosse a verdade de hoje” (VOLÓCHINOV, 2018, p.113VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem [1929]. 2. ed. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo; Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2018.). Nesse sentido afirma: “O proletariado, cujo ponto de vista subjetivo aproxima-se de modo mais estreito da lógica objetiva da realidade, obviamente não necessita de uma deturpação dessa realidade nas palavras” (VOLÓCHINOV, 2019, p.318VOLÓCHINOV, V. Estilística do discurso literário III: A palavra e sua função social [1930]. In: VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. p.306-336.). É com este olhar avaliativo e responsivo que o narrador nos evidencia a força intersubjetiva do discurso opressor que a razão metonímica impõe às minorias e muitas outras vozes sociais; o homem-árvore, neste caso, pode simbolizar estas muitas outras vozes periféricas ao sistema hegemônico.

No decorrer da crônica, assistimos ao definhamento simultâneo da personagem homem-árvore e do espaço da cidade:

[a cidade] se deixava destruir pela sanha imobiliária, pelo progresso que é apenas caricatura sinistra do progresso. (...) O homem-árvore foi desfolhando, perdendo galhos, sua força vegetal arrefeceu (HATOUM, 2013, p.62HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.)

(...) igarapé agora aterrado, as palafitas pobres substituídas por casas feias, fechadas, sem varanda, janelas pequenas (HATOUM, 2013, p.63HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.).

Este processo de ruína a que chega o vendedor ambulante e, paralelamente, o espaço citadino manauara, devido ao discurso metonímico imposto pela modernidade e pelos setores do sistema econômico contemporâneo, é estetizado pelo olhar responsivo do autor-criador quando dá voz ao narrador. Permite-lhe, por meio de um olhar ao rés-do-chão, impregnar sua perspectiva de uma postura comprometida axiologicamente com o existir e com o outro da narrativa, encontrando seu ápice quando o homem-árvore, agora consciente de sua imobilidade social e entregue ao emudecimento literal, encontra-se “sem voz, com um olhar resignado voltado para o chão”. E, desta vez, o símbolo maior do sistema financeiro – o dinheiro, que outrora o homem-árvore não aceitara, agora não titubeou em recebê-lo: “Recebeu o dinheiro, dobrou as notas e pôs no bolso da camisa. (...) Triste e sem voz, parado no mormaço, sobrevivente que a morte espera nas margens secas da minha cidade” (HATOUM, 2013, p.63HATOUM, M. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.).

Considerações finais

Representar esteticamente, de forma responsiva, é uma atitude ética na contemporaneidade, pois como evidencia Bakhtin (2011aBAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética [1979]. In: BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 6. ed. Tradução e Introdução Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011a. p.3-192., 2011bBAKHTIN, M. Os gêneros do discurso [1979]. In: BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 6. ed. Tradução e Introdução Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011b. p.261-306., 2017BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. Organização Augusto Ponzio e Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGE/UFSCar. Posfácio Carlos Alberto Faraco. 3. ed. São Carlos: João & Pedro Editores, 2017.), é o olhar exotópico para o outro que constitui o eu como sujeito responsivo, que o faz agir axiologicamente no existir. Esta característica do ser também influencia sua produção artística, neste caso, possibilita a objetificação de inúmeras vozes sociais, muitas vezes, invisibilizadas por discursos hegemônicos, como bem demonstrou Santos (2002SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p.237-280, out. 2002. Disponível em:http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF?msclkid=45ce8737b83c11ec9b9bf50715f28bd8. Acesso em: 20 jan. 2021.
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, 2011SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: Contra o desperdício da experiência. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2011.) com sua perspectiva acerca do paradigma atual que recobre a modernidade: a razão indolente.

As duas crônicas de Hatoum demonstram possuir, em sua concepção estética, uma perspectiva responsiva que dialogiza com outros discursos sociais de forma artística e reflexiva. Os narradores construídos nestas crônicas pelo autor-criador de Hatoum assumem para si uma postura crítica diante dos fatos retirados de seus cotidianos. Em “Um sonhador”, estetiza possibilidades de transformação das ruínas causadas pelo discurso metonímico em novas experiências para aquele grupo que vive à margem dos rios da Amazônia. Já em “Margens secas da cidade”, o heterodiscurso é representado por um vendedor de frutas que definha juntamente com o espaço urbano da cidade, vítimas da lógica produtivista contemporânea, que invisibiliza as singularidades dos indivíduos e dos lugares.

Nesse sentido, a produção estético-literária aqui analisada é caracterizada com um tom próprio de crítica ao status quo ao qual diversas vozes sociais são impingidas a viver. A linguagem trabalhada em Hatoum refrata e reflete as inúmeras tensões vividas na sociedade, causando vários efeitos de sentido em seus textos. O sentido de destruição, ruína e morte que perpassa as crônicas analisadas são sinônimos do desperdício da experiência aludida por Santos (2002, p.239)SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p.237-280, out. 2002. Disponível em:http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF?msclkid=45ce8737b83c11ec9b9bf50715f28bd8. Acesso em: 20 jan. 2021.
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a respeito dos efeitos da razão indolente, pois ela tende a “contrair o presente e (...) expandir o futuro”, emudecendo inúmeras vozes sociais que poderiam contribuir para expandir o presente, valorando, assim, significativamente o agir no espaço-tempo do aqui agora.

Outro ponto convergente de ambas as crônicas está nas alusões existenciais que envolvem Natureza e Homem. Enquanto o rio é fluxo da vida que conduz o narrador da primeira crônica, entre uma realidade cheia de durezas e percalços, a se equilibrar precariamente com algumas realizações e alegrias, sempre beirando o ficcional, a imagem fitomórfica do homem da segunda crônica, que decai pela força do tempo e do próprio Homem, é a representação dualizada na aspereza e aridez do mundo de concreto criado por mãos humanas, igualmente fadado à decadência e a igual perecimento.

Por fim, podemos afirmar que Hatoum imprime à sua criação artística valores éticos os quais o autor-pessoa acredita válidos atribuir ao seu autor-criador, o que eleva ainda mais a relevância e qualidade de sua obra enquanto arte-literária. Dessa forma, Hatoum agrega aquela característica apontada por Bourdieu (1968)BOURDIEU, P. Campo intelectual e projeto criador [1966]. In: POUILLON, J. et al. Problemas do Estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. p.105-145.: o intelectual autônomo, pois consegue manter seu projeto temático, sem sofrer, aparentemente, pressões do campo intelectual e literário do qual faz parte. Neste contexto, consideramos também a sua recepção no meio acadêmico, conforme apontado por Cavalheiro (2020)CAVALHEIRO, J. Recepção e produção acadêmica sobre a obra de Milton Hatoum: circulações. In: MIBIELLI, R.; JORGE, S.; SAMPAIO, S. (orgs). Trânsitos e fronteiras literárias: territórios. Rio de Janeiro: Makunaima; Boa Vista: Editora da Universidade de Roraima, 2020. v. 3, p.155-175. Disponível em: http://edicoesmakunaima.com.br/images/livros/transitos_e_fronteiras_literarias_territorios.pdf. Acesso em: 16 fev. 2021.
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, como elemento de valoração da obra de Hatoum dentro do campo literário.

  • 1
    Reportamo-nos aqui à pesquisa realizada por Juciane Cavalheiro (2020)CAVALHEIRO, J. Recepção e produção acadêmica sobre a obra de Milton Hatoum: circulações. In: MIBIELLI, R.; JORGE, S.; SAMPAIO, S. (orgs). Trânsitos e fronteiras literárias: territórios. Rio de Janeiro: Makunaima; Boa Vista: Editora da Universidade de Roraima, 2020. v. 3, p.155-175. Disponível em: http://edicoesmakunaima.com.br/images/livros/transitos_e_fronteiras_literarias_territorios.pdf. Acesso em: 16 fev. 2021.
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    acerca da fortuna crítica da obra de Milton Hatoum.
  • 2
    Neste volume, há crônicas selecionadas pelo autor que já haviam sido publicadas anteriormente em jornais e em Um solitário à espreita.
  • 3
    Publicou crônicas de cunho ensaístico-literário na revista EntreLivros entre os anos de 2005 e 2007, período que durou a revista. Na revista eletrônica Terra Magazine, Hatoum publica entre 2006 e 2010. Escreve para o jornal O Estado de São Paulo desde 2008.
  • 4
    Mikhail Bakhtin, em “O autor e a personagem na atividade estética” (2011 [1924]), faz a distinção entre o autor-pessoa - o autor empírico, e o autor-criador: uma representação artística na obra literária ou demais obras artísticas. Utilizamos a versão traduzida por Paulo Bezerra e publicada em Estética da criação verbal (2011a).
  • 5
    A crônica “Um sonhador” foi publicada, inicialmente, na Folha de S. Paulo, em 2006. “Margens secas da cidade” foi publicada pela revista Caracol, da USP, em 2010, e na França em 2012; ambas foram reescritas e republicadas no livro de crônicas Um solitário à espreita em 2013.
  • 6
    As noções de empatia e empatia estética são basilares para o conceito de exotopia desenvolvido por Bakhtin em “O autor e a personagem na atividade estética” (2011 [1924]).
  • 7
    Escrito no início da década de 1920, Para uma filosofia do ato responsável, veio a público pela primeira vez em 1986. Trata-se de um dos primeiros textos escritos por Mikhail Bakhtin. O texto é um rascunho/um manuscrito, sem título, com partes ilegíveis, sobretudo pelas péssimas condições em que foi guardado (FARACO, 2017a, p.147-148FARACO, C. A. Um posfácio meio impertinente. In: BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. 3. ed. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2017a. p.147-158.).
  • 8
    Volóchinov pertenceu ao grupo de estudo de Bakhtin, conhecido como Círculo de Bakhtin. Volóchinov publicou diversos ensaios entre 1925 e 1930 que estão reunidos na coletânea A palavra na vida e a palavra na poesia, publicada no Brasil, em 2019, com tradução direta do russo por Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo.
  • 9
    Vattimo reflete a respeito da transição epistemológica e histórica acerca da experiência estética utópica que concebia o mundo (a realidade) e o belo (o objeto/artefato artístico) como objetos imanentes e unívocos; propõe, por outro lado, uma concepção heterotópica da experiência estética a partir da “experiência estética de massa” com o surgimento dos mass media (VATTIMO, 1992VATTIMO, G. A sociedade transparente. Tradução Hossein Shooja e Isabel Santos. Relógio D’Água: Lisboa, 1992.).
  • 10
    O filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), em prefácio de sua obra Teodiceia, recobra a expressão razão indolente ou razão preguiçosa, utilizada por pensadores na antiguidade, que depreendiam dela, se o futuro já está posto, não deveriam “fazer nada, não cuidar de nada e gozar apenas o momento”, ser conformista com o presente, conforme Santos (2011, p.42)SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente: Contra o desperdício da experiência. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2011..
  • 11
    A razão metonímica tem várias lógicas ou processos pelos quais desqualifica, anula ou não reconhece outras existências, dentre eles, destacamos a monocultura do saber e a escala dominante. A primeira, considera cânone os princípios da ciência moderna e da alta cultura, desprezando os demais conhecimentos; a segunda, pelo viés do universalismo e do globalismo, desconsidera o que seja local e particular (SANTOS, 2002, p.246-248SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 63, p.237-280, out. 2002. Disponível em:http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF?msclkid=45ce8737b83c11ec9b9bf50715f28bd8. Acesso em: 20 jan. 2021.
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    ).

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  • VOLÓCHINOV, V. Estilística do discurso literário III: A palavra e sua função social [1930]. In: VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia Organização, tradução, ensaio introdutório e notas Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. p.306-336.

Parecer I

O artigo estabelece uma relação plausível entre o pensamento bakhtiniano e o de Boaventura de Souza Santos, discutindo eficientemente as relações dialógicas presentes em duas crônicas de Milton Hatoum. O artigo necessita de algumas revisões e uma observação deve ser cumprida, constante do Anexo, mas nada que comprometa o todo. Bem escrito, bem encaminhado, caso revisado, merece uma publicação. APROVADO

Paulo César Silva de Oliveira - https://orcid.org/0000-0002-3710-4722; paulo.centrorio@uol.com.br ; Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Faculdade de Formação de Professores da UERJ, São Gonçalo, Rio de Janeiro, Brasil.

Parecer II

Adequadamente intitulado “Crônicas de Milton Hatoum: dialogismo e emancipação na pós-modernidade”, o artigo apresenta como objetivo discutir as características discursivas e estéticas da criação literária de Hatoum, a partir da perspectiva dialógica proposta por Mikhail Bakhtin, explorando, no discurso artístico-literário de duas crônicas do autor, as posições axiológicas refratadas. Tal objetivo é cumprido de forma satisfatória no desenvolvimento do artigo, recorrendo-se, para isso, à perspectiva epistemológica de Boaventura Santos acerca do desperdício da experiência social na modernidade/pós-modernidade, referência esta atual e pertinente ao estudo empreendido. O artigo traz reflexão pertinente à área, contribuindo para o evidenciar do diálogo entre o discurso literário e o sociológico, demonstrando as relações entre a literatura e seu contexto histórico-social. Além disso, o texto é bem claro, preciso e adequado às normas científicas. Há apenas uma falha no verbo “implicar”, que não deveria ser regido pela preposição “em”, e uma falha de digitação. Diante do exposto, sou favorável à públicação. APROVADO

Diana Navas - https://orcid.org/0000-0002-4516-5832; diana.navas@hotmail.com; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária, São Paulo, São Paulo, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Dez 2021
  • Aceito
    30 Maio 2022
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