Acessibilidade / Reportar erro

Carmen, figura nietzschiana do amor trágico* * Tradução de Wilson Antonio Frezzatti Jr.

Carmen, Nietzschean Figure of Tragic Love

Resumo:

Este artigo investiga a perspectiva nietzschiana sobre a personagem Carmen na ópera de Bizet e sobre a relação amorosa trágica da qual ela participa. Propomos que a atração suscitada por Carmen é sinceramente vivida por Nietzsche. Nesse sentido, Carmen não se limita de forma alguma a uma figura antiwagneriana, mas ela constitui inteiramente uma figura nietzschiana. Além da investigação dos diversos pontos de vista do filósofo alemão sobre as relações amorosas homem-mulher, estudamos as considerações estéticas que essas perspectivas abrangem. A admiração estética de Nietzsche pela obra de Bizet não deve ser entendida como algo a ser aplicado aos costumes.

Palavras-chave:
amor trágico; Carmen; crueldade; relação homem-mulher

Abstract:

This paper studies the Nietzschean perspective on the character Carmen in Bizet's opera and on the tragic love relationship in which she participates. We propose that the attraction aroused by Carmen is sincerely experienced by Nietzsche. Thus, Carmen is by no means limited to an anti-Wagnerian figure, but she is entirely a Nietzschean figure. In addition to researching the German philosopher's different points of view on man-woman love relationships, we study the aesthetic considerations that these perspectives encompass. Nietzsche's aesthetic admiration of Bizet's work should not be understood as something to be applied to customs.

Keywords:
Carmen; Cruelty; Man-woman Relationship; Tragic love

Carmen nasceu sob a pena de Mérimée na novela epônima publicada em 1847, posteriormente ela tomaria vida em cena, pela primeira vez, em 3 de março de 1875 na ópera de mesmo nome orquestrada por Bizet, cujo texto herdado de Mérimée foi modificado pelos libretistas Meilhac et Halévy. Se Nietzsche reconhecia o valor da escrita de Mérimée1 1 “Ela possui ainda de Mérimée a lógica na paixão, a concisão do traço, a necessidade implacável” (WA/CW 2, KSA 6.15). Uma análise detalhada da adequação da escrita de Mérimée à filosofia estética de Nietzsche é encontrada em Grzelczyk, 2015, pp. 9-13. , ele admirava igualmente o libreto da ópera de Bizet2 2 Para Nietzsche, Meilhac e Halévy são, nesse aspecto, “os melhores poetas, a quem meu gosto promete a imortalidade” (NF/FP 1888, 25[3], KSA 13.639). e a simplificação realizada3 3 Sobre as modificações realizadas pelos libretistas Henri Meilhac e Ludovic Halévy no texto de Mérimée, cf. McClary, 2015, pp.122-123. . A figura de Carmen que nós estudaremos aqui é aquela da ópera de Bizet. Nietzsche louvava esse músico unicamente para melhor rejeitar Wagner ou ele sinceramente amava a obra de Bizet? De nossa parte, consideramos que o rancor de Nietzsche contra Wagner não é incompatível com a atração suscitada por Carmen, sinceramente vivenciada pelo filósofo4 4 Vários estudos sobre esse tema já foram realizados, e, portanto, a discussão sobre a sinceridade da admiração de Nietzsche a Bizet não será tratada aqui. Entretanto, no que tange à ruptura de Nietzsche com Wagner, esse assunto tem um interesse axial, cf. principalmente Grzelczyk, 2015; Goetz, 2001; Klein, 1925; Klein, 2015; Kofman, 1995; Lacoue-Labarthe, 2002; e Liébert, 2012. . Nesse sentido, Carmen não se limita de forma alguma a uma figura antiwagneriana, mas ela constitui, de fato, inteiramente uma figura nietzschiana.

Os estudos existentes sobre a relação de Nietzsche com Bizet, e por extensão com Wagner, tratam mais frequentemente das similaridades e das diferenças estéticas entre os três homens. Apenas um estudo interroga sobre a adequação da personagem de Carmen ao ideal estético de Nietzsche5 5 Cf. Grzelczyk, 2015, pp. 13-17. , sem, entretanto, questionar as relações das representações de gênero6 6 O que nós entemos por “gênero”: “O gênero é, de certo modo, ‘o sexo social’ ou a diferença dos sexos construída socialmente, um conjunto dinâmico de práticas e de representações, com atividades e papéis designados, de atributos psicológicos, um sistema de crenças. O sexo é compreendido como invariável, enquanto o gênero é variável no tempo e no espaço; a masculinidade ou a feminilidade — ser homem ou mulher, ou ser considerado como tais — não tem a mesma significação em todas as épocas e em todas as culturas” (Thebaud, 1998, p. 114). Assim, a categoria contemporânea de gênero engloba a categoria histórica de sexo, redefinindo-a completamente. induzidas pela própria figura de Carmen, embora Nietzsche integre as relações homem-mulher e masculino-feminino à sua filosofia, e isso de maneira fundamental e contínua7 7 Cf. Marton, 2021. . Com efeito, Nietzsche considera o “tema do homem e da mulher” como um exemplo de “problema fundamental” sobre o qual “um pensador não pode desaprender [...], por exemplo, mas apenas aprender com isso - apenas descobrir até o fim o que há de ‘certo’ nele” (JGB/BM 231, KSA 5.170)8 8 Aliás, é por essa razão que, apesar de uma pluralidade de pontos de vista expressos sobre as relações homem-mulher, Nietzsche tem, para nós, uma coerência nesse tema ao longo de sua vida. Em consequência, não precisaremos passar sobre os períodos de Nietzsche em nosso artigo, como tradicionalmente se faz: nós referir-nos-emos ao conjunto de sua obra, com a exceção de seus escritos de juventude, entre eles O nascimento da tragédia, pois estes últimos são demasiado erigidos sobre a admiração que o filósofo tinha por Wagner. E, sendo uma questão estética, nós nos situamos após a ruptura com Wagner, isto é, após 1876. Trata-se, neste caso, dos dois últimos periódos de Nietzsche, os quais se estendem de 1879 a 1889. NT : As traduções dos textos de Nietzsche foram realizadas pelo tradutor a partir original alemão. . De modo mais geral, hoje está muito claro que a personagem de Carmen desempenha um papel importantíssimo na representação dos gêneros na ópera do século XIX9 9 Cf. Bilodeau, 2022, p. 193. . Todavia, é necessário distinguir a ópera Carmen da personagem Carmen, mesmo as duas estando intrinsecamente ligadas. Se os estudos anteriores largamente comentam as reflexões que Nietzsche fez acerca da ópera Carmen, nós queremos debruçar-nos melhor sobre a interpretação nietzschiana dessa personagem e sobre a relação amorosa trágica na qual ela participa. A questão se coloca ainda mais porque Carmen, enquanto mulher livre que desafia os homens, não parece a priori corresponder à concepção positiva das mulheres e do feminino que Nietzsche apresentou, concepção que se encontra frequentemente reduzida pelos comentadores àquela da misoginia10 10 O livro de Marton (2021) contribui para uma melhor compreensão da ambivalência nietzschiana. . Assim, será necessário tratar, de um lado, das diversas perspectivas estabelecidas por Nietzsche acerca das relações amorosas homem-mulher e, de outro lado, das considerações estéticas que essas perspectivas abrangem.

O amor como “ódio mortal dos sexos”

Carmen, segundo Nietzsche, não encarna apenas a mulher meridional11 11 Em realidade, fruto da imaginação masculina (cf. McClary, 2015, p. 138). de um ponto de vista estritamente musical. O cenário permite descobrir a personagem de Carmen no curso de sua evolução na esfera do eros, o que Nietzsche aponta ao considerar a relação entre Carmen e Don José como modelo propriamente filosófico do amor: “- Uma tal concepção de amor (a única digna do filósofo) é rara: ela destaca uma obra de arte entre milhares. Pois, em média, os artistas fazem como todo mundo, pior ainda - eles não entendem o amor” (WA/CW 2, KSA 6.15-16). Bizet é ainda mais elogiado porque ele encena uma relação amorosa no sentido nietzschiano; a instrumentação musical faz parte desse amor, que não deve se limitar às palavras, pois, se tal fosse o caso, nós estaríamos no teatro, o que Nietzsche abomina12 12 Dessa maneira, Nietzsche distingue os “dramaturgos” (entre os quais notadamente estão Meilhac e Halévy) e os “homens de teatro”, como Wagner: “[Wagner] tem a mesma inocuidade de Schiller, como tem todo homem de teatro, e tem também o mesmo desprezo pelo mundo que está aos seus pés!” (WA/CW 8, KSA 6.31), e ainda mais: “Wagner não é um dramaturgo, não nos deixemos enganar sobre isso” (WA/CW 9, KSA 6.33). : “O teatro é uma forma de demolatria em matéria de gosto, o teatro é uma revolta das massas, um plebiscito contra o bom gosto... É precisamente isto que o caso Wagner prova: ele conquistou a multidão - ele estragou o gosto, estragou até mesmo nosso gosto para a ópera! -” (WA/CW,Pós-escrito, KSA 6.42). Ora, diferentemente do teatro, a ópera utiliza a música como vetor emocional: “Não devemos acreditar ‘na palavra’ das personagens da ópera, mas em seus sons! Eis a diferença, eis a bela inaturalidade que nos faz ir à ópera!” (FW/GC 80, KSA 3.437). Se a ópera não é teatro, é, entretanto, a essa esfera que Nietzsche reduz as óperas wagnerianas, na medida em que, segundo ele, Wagner subordina a música ao teatro. A música assume um estatuto filosófico inédito para Nietzsche13 13 Quando nós nos referimos à concepção nietzschiana de música, ela está a serviço de nossa análise da figura de Carmen e não de maneira geral. Há numerosos estudos nietzschianos filosóficos e musicológicos, entre os quais Liébert, 2012. Mas lembremos que a música não é uma arte como as outras, pois ela permite a expressão dionisíaca da vida: “A música, não sendo uma arte plástica, quase não pertence ao domínio da aparência; ela exprime quase imediatamente as próprias forças, seu vir-a-ser e sua potência de metamorfose perpétua” (Astor, 2009). , que se apega à melodia contra a postura wagneriana: “Para falar na linguagem do mestre [Wagner]: infinitude, mas sem melodia” (WA/CW 6, KSA 6.24), e ainda mais: “Caluniemos, meus amigos [wagnerianos], [...] caluniemos a melodia! Nada é mais perigoso que uma bela melodia! […] Princípio: a melodia é imoral. […] Aplicação: Parsifal. A ausência de melodia até santifica...” (WA/CW 6, KSA 6.25). A ópera Carmen pode parecer estar sujeita às mesmas críticas que são infligidas a Wagner, mas o tratamento operístico realizado por Bizet dá à música sua autonomia (e toca, assim, o espectador), ao contrário da fragmentação da frase wagneriana.

Sem entrar na análise musicológica da obra de Bizet, sobre a qual retornaremos abaixo, nós encontramos no segundo parágrafo de O caso Wagner uma menção ao tema do amor, a qual é muito pouco realçada nos estudos citados anteriormente14 14 A exceção é muito recente: Bilodeau, 2022, p. 195. A citação de Nietzsche não é analisada nessa obra. : “Finalmente o amor, o amor retraduzido em natureza! […] o amor como fatum, como fatalidade, cínico, inocente, cruel - e precisamente nisso natureza! O amor, que tem a guerra em seus meios, e no fundo o ódio mortal dos sexos!” (WA/CW 2, KSA 6.15). Destaquemos o elemento que nos interpela: “o ódio mortal dos sexos”. Esse enunciado oximórico e hiperbólico define o amor pelo ódio, um ódio mortal, une haine mortelle, exercido nesse caso contra a mulher que encarna Carmen. A mortalidade que está literalmente em jogo aqui participa do trágico caro a Nietzsche15 15 Deve-se notar que estamos nos referindo aqui ao trágico como pessimismo dionisíaco, antagonista do pessimismo romântico de Schopenhauer e Wagner (cf. FW/GC 370, KSA 3.622). Dessa forma, não se trata do trágico no sentido de O nascimento da tragédia, livro no qual Nietzsche faz o elogio de Wagner. : não se trata de uma ópera wagneriana na qual os heróis são salvos pela caridade16 16 Cf. WA/CW 3, KSA 6.17. , mas um amor fati17 17 Ainda que a expressão não seja empregada por Nietzsche em O caso Wagner, o filósofo usa o termo “fatalidade” (Verhängniss, Fatum, Fatalität), não isento de ambiguidade. , no qual, apesar da consciência de uma morte inelutável, a vida é amada tal como ela é. Entretanto, esse caráter inelutável da morte, esse “destino”, deve ser distinguido do fatum das tragédias gregas antigas18 18 Embora Nietzsche empregue o termofatum, não nos parece corresponder completamente ao fatum que aparece nas tragédias antigas. , na medida em que não é o caso de um destino imposto pelos deuses e suportado pelos humanos, mas é, antes, um destino psicológico propriamente humano. Não há, portanto, nenhum plano divino em um trasmundo, mas uma necessidade implacável resultante de uma luta psicológica no seio de uma relação erótica insolúvel. É aí que reside o trágico, não em um pathos no qual os amantes se debatem para tentar escapar de seu destino funesto, mas no amor fati, assim formulado por Nietzsche: “todo o necessário […] não se deve apenas suportar. mas amar” (NW/NW, Epílogo1, KSA 6.436). Se ela soubesse por uma vidente aonde a levaria sua relação com Don José e, de modo mais importante, sua liberdade inalienável, longe de buscar evitar esse desfecho a fim de conservar sua vida ou ainda de suportá-la passivamente, Carmen não deixaria de viver seu amor ativamente nem de amar sua vida com intensidade. Esse aspecto remete-se à filosofia nietzschiana, a qual promove a intensificação da vida e não sua simples conservação; esta última é, para o pensador, sinônimo de declínio.

Carmen parece, portanto, encarnar um espírito livre no sentido nietzschiano: de fato, o espírito livre preferirá “voar sozinho” em seu vir-a-ser próprio (cf. MA I/HH I 426-427, KSA 2.279-280), em uma luta constante com si próprio. Mas voar sozinho não significa nunca amar ou viver como ermitão. Carmen não cessa de amar e nunca se deixa aprisionar, o que a leva rejeitar, com brutalidade, Don José e seu pedido de casamento. Se o amor repousa sobre (Grunde) um “ódio mortal dos sexos”, ele se exprime sob a forma (Mittel) de uma “guerra dos sexos”, mortal pois insolúvel. Para Nietzsche, homem e mulher são diferentes e sua relação erótica repousa sobre a luta mútua: eis a guerra. Essa luta implica que os dois protagonistas exerçam a posição de sujeito, pois, em caso de dominação absoluta de um sobre o outro, ela não poderia ter lugar. E ser sujeito é agir, ir adiante de si mesmo e de seu meio de origem, na confrontação e na luta com os outros, a fim de triunfar sobre eles19 19 “[…] o Sujeito só é verdadeiramente um sujeito na medida em que ele age: ele deve deixar o casulo aconchegante daquilo que o fortifica, arriscar a confrontação e, finalmente, triunfar sobre o Outro” (McClary, 2015, p. 143). . Carmen inegavelmente age como sujeito, pois ela não teme os confrontos dos quais ela sai frequentemente vitoriosa graças a seu charme sensual. Don José, se ele é rejeitado por Carmen, age igualmente como sujeito ao longo de toda a ópera, já que ele abandona seu meio e se recusa a perder Carmen para o toureiro Escamillo. A contrario, a figura feminina de Micaëla, noiva de Don José, não corresponde a um verdadeiro sujeito, pois não deixa o seu meio, mas o perpetua como extensão da mãe de Don José. Nesse sentido, Micaëla aparece como uma figura tranquilizadora que busca reconfortar Don José, o que é incompatível com a concepção nietzschiana de espírito livre, tal qual descrevemos acima. Além disso, Micaëla é uma figura religiosa forte, oposta a Carmen, a apaixonada imoral. O conjunto desses elementos pode explicar a rejeição por Nietzsche do duo de Don José e Micaëla no ato 1, “Conte-me sobre minha mãe”, que ele considerou: “um degrau abaixo de meu gosto, muito sentimental, demasiado tannhäuseriano”20 20 Anotação redigida por Nietzsche na margem de uma partitura de Carmen que ele envia a Peter Gast em janeiro de 1882 (cf. Liébert, 2012, p. 259). .

Em si, a dicotomia virgem e puta é tradicional na ópera21 21 Cf. McClary, 2015, p. 123. , mas Micaëla parece se aproximar demais da heroína wagneriana para o gosto Nietzsche, encarnando um amor nefasto para o homem. Nietzsche até compara esse amor pernicioso àquele que os wagnerianos dedicam a Wagner, opinião que ele generaliza a todas as mulheres:

Traduzido para a realidade [Wirkliche]: o perigo dos artistas, dos gênios […] está na mulher: as mulheres adoradoras são a sua ruína. Quase nenhum tem caráter suficiente para não ser arruinado - “redimido”, quando se sentir tratado como um deus: - imediatamente ele condescende à mulher. - O homem é covarde diante de todo eterno feminino: as mulherzinhas [Weiblein] sabem disso. - Em muitos casos do amor feminino, e talvez precisamente nos mais célebres, o amor é apenas um parasitismo mais sutil, um aninhar-se em uma alma alheia, por vezes até em uma carne alheia - ah, e sempre às expensas do “hospedeiro”! - - (WA/CW 3, KSA 6.18)

Nesse sentido, a mulher - ao menos a mulher wagneriana - aparece como perigo, mas o que não é necessariamente o caso de todas as mulheres. Nessa citação, a expressão que Nietzsche utiliza - “imediatamente ele condescende à mulher” - parodia as palavras de Fausto no final da obra epônima de Goethe: “o Eterno feminino nos eleva”. Ao espacializar a relação homem-mulher notadamente como alta e baixa22 22 Por exemplo: “Consequências habituais do casamento. — Toda associação que não eleva abaixa, e vice-versa; por isso os homens habitualmente decaem um pouco ao tomar esposa, enquanto as mulheres são elevadas um pouco. Homens demasiado intelectuais necessitam do casamento tanto quanto resistem a ele, como um remédio amargo” (MA I/HH I 394, KSA 2.268). , o jogo de palavras empregado por Nietzsche vai mais longe na medida em que implica uma conotação pejorativa que significa decadência; ora, a espacialização nietzschiana dos gêneros não contém uma tal conotação de valor23 23 Essa espacialização encontra-se principalmente no antagonismo entre a superfícialidade feminina e a profundidade masculina, do qual trataremos adiante. . Carmen constitui, assim, um contramodelo da mulher wagneriana24 24 Apesar de Nietzsche criticar a ópera Tristão e Isolda em O Caso Wagner, a figura de Isolda pode ser uma singularidade, já que se trata, enfim, de criticar Wagner apenas após sua conversão cristã. Seria interessante, assim, comparar as figuras femininas de Carmen e de Isolda. , aquele de um sujeito pronto a morrer para se tornar o que é. Para Nietzsche, o imoralismo de Carmen põe em relevo mais a caridade parasitária de Micaëla do que o perigo feminino tradicional. Essa rejeição da mulher wagneriana ilustra bem a estética nietzschiana em sua afirmação da elite contra a massa. Lembremos que, em Carmen, temos a única concepção válida filosoficamente do amor, o que até mesmo numerosos artistas ignoram. O amor trágico encarnado por Carmen está, portanto, ao gosto de uma elite filosófica à qual, de modo verossímil, pertencem Nietzsche e Bizet, a contrario de Wagner, como elucida a seguinte afirmação nietzschiana: “é mais fácil ser gigantesco que belo” (WA/CW 6, KSA 6.24). A beleza é mais sutil e, em Bizet, é mais dançante, mais corporal. Ela é, portanto, menos apreensível pela massa, na qual apenas os nervos são excitados25 25 Nietzsche propõe uma fisiologia da música: “Cada vez mais nervos no lugar de carne” (WA/CW, Segundo pós-escrito, KSA 6.47). pelos diversos artifícios do teatro. Ora, a beleza não tem necessidade de artifícios, basta a si própria; ela não busca impressionar, mas se deixa entender por aqueles que sabem a ouvir: “Com trovões e fogos de artifícios celestiais, deve-se falar aos sentidos frouxos e adormecidos. // Mas a voz da beleza fala suavemente: ela insinua-se apenas nas almas mais despertas” (Za/ZA II, Dos virtuosos, KSA 4.120). Esse elitismo encarna-se igualmente em um ponto de vista cênico na medida em que a necessidade conforme Bizet, como dissemos acima, resulta de processos psicológicos internos, ao passo que Wagner não hesita em demonstrar um “menor esforço” quando faz intervir personagens externas, ou seja, um simulacro de necessidade26 26 “[…] dar necessidade aos nós do enredo […]. Ora, é nisso que Wagner sua o mínimo de sangue; certamente ele despende o mínimo esforço com nós e resolução. […] Os nós que Wagner realmenre sabe desatar, diga-se de passagem, com ajuda de invenções dramáticas, são de espécie totalmente diferente. Dou um exemplo. Tomemos o caso em que Wagner precisa de uma voz de mulher. Um ato inteiro sem uma voz de mulher - isso é impossível! Mas nenhuma das ‘heroínas’ está livre no momento. O que faz Wagner? Ele emancipa a mais velha mulher do mundo, Erda […]. Erda canta. A intenção de Wagner é alcançada. Logo a seguir, ele se livra da velha senhora” (WA/CW 9, KSA 6.33). . A incompreensão que a estreia francesa da ópera Carmen suscitou e sua condenação por imoralismo apenas reforçaram em Nietzsche o caráter estético elitista dessa obra27 27 Na nota 33, voltaremos à caracterização particular desse elitismo ligado à ópera Carmen. , bem como a sua defesa para além de bem e mal.

Nietzsche reconhece o amor à vida sentido e expresso por Carmen na ópera de Bizet, esse amor incondicional pela vida que aparece como a fonte mesma do imoralismo da jovem mulher28 28 Cf. Grzelczyk, 2015, p,15. . A vida como natureza escapa fundamentalmente à esfera moral e detém, em consequência, sua porção de crueldade. Enquanto permanecer mais próxima dos instintos, a mulher será igualmente qualificada de cruel, o que, segundo o filósofo, não é, de modo algum, considerado negativamente.

Crueldade feminina e natureza

Carmen está presente como uma mulher maliciosa, que usa subterfúgios em face do mundo masculino que a rodeia. Portadora de máscaras, indicadas pelas linguagens que ela exibe conforme seus interlocutores, Carmen usa estratégias eróticas e discursivas particularmente eficazes diante dos homens. Se Carmen não usa sempre o registro de linguagem adequado, não é por incapacidade a se adaptar a seu interlocutor, mas por escolha29 29 Sobre a análise musicológica dos diferentes discursos de Carmen, cf. McClary, 2015, pp.135-137. . Essa malícia feminina elaborada por Carmen faz eco à concepção nietzschiana da mulher. Longe de criticar unilateralmente a malícia feminina, como o fez Schopenhauer em seu Ensaio sobre as mulheres, Nietzsche vê nela antes a expressão do instinto, isto é, a expressão da natureza através da espécie30 30 Para Nietzsche, a expressão mais forte do instinto feminino está ligada à reprodução: “não fundemos, eu digo, o casamento no ‘amor’, — fundemo-lo no impulso sexual […]” (GD/CI, Incursões de um extemporâneo 39, KSA 6.142). . A mulher não seria, em termos absolutos, uma sádica que manipula o homem; suas manhas amorosas podem ser qualificadas de cruéis em continuidade com o apelo natural à reprodução e ultrapassam, nesse sentido, o indivíduo. Mas mesmo no indivíduo, não importa o seu gênero, a crueldade é entendida como afirmação de si por Nietzsche31 31 A crueldade em Nietzsche aparece como uma consequência da afirmação de si, mas sob a forma de uma maldade inocente, conforme indica o título do parágrafo 103 de Humano, demasiado humano, “A inocência da maldade” (KSA 2.99). Por outro lado, a noção de crueldade abarca um aspecto civilizacional e fisiológico mais amplo, o qual Nietzsche aborda ao longo de toda sua filosofia, mas que não trataremos aqui; cf., por exemplo, GT/NT 7, KSA 1.52-57; MA I/HH I 18, KSA 2.38-40; FW/GC 266, KSA 3.518; ou ainda GM/GM II, 6-7, KSA 5.300-305. e gera prazer para o indivíduo independentemente do sofrimento que ela possa causar aos outros: “no caso de dano causado por pretensa malícia, o grau da dor produzida é, de todo modo, desconhecido para nós; mas, na medida em que há prazer na ação (sentimento da própria potência, da intensidade da própria excitação), a ação é feita para preservar o bem-estar do indivíduo” (MA I/HH I 104, KSA 2.101-102). Carmen e Don José, assim, todos os dois, dão mostras de crueldade no sentido nietzschiano em seu relacionamento recíproco, ou seja, na afirmação vital de cada um deles. A ópera Carmen e sua personagem epônima exprimem, segundo Nietzsche, essa crueldade natural na escala do indivíduo, mas também na escala supraindividual: “Essa música é cruel, refinada, fatalista: ela permanece, apesar disso, popular - ela tem o refinamento de uma raça, não de um indivíduo” (WA/CW 1, KSA 6.11). O fundo espanhol de Carmen participa do trágico como crueldade enquanto “velha civilização sacrificial, dura, heroica, viril, não sem compaixão, mas sem piedade, corajosa, irredutível, brutal, sombria, orgulhosa. Nobre, para ser sincero”32 32 Lacoue-Labarthe, 2002, p. 311. Convém aqui distinguir a selvageria associada à imaginação [fantasme] nietzschiana sobre o Sul da barbárie que o filósofo associa ao Norte, o que não deixa de alimentar a oposição do pequeno número (selvageria) contra a massa (barbárie); cf. a análise proposta por Lacoue-Labarthe, 2002, pp.312-313. Nós não analisaremos profundamente a oposição nietzschiana entre o Norte e o Sul, pois ela já foi objeto de numerosos estudos, como Grzelczyk, 2015, p. 15; Liébert, 2012, p. 253; e Goetz, 2001, p. 2. Essa oposição permite compreender também a apreciação da ópera Carmen de Bizet, apesar de já ser um sucesso internacional quando Nietzsche a descobriu em 27 de novembro de 1881, ou seja, seis anos após a estreia no Opéra-Comique (cf. Grzelczyk, 2015, p. 4). De fato, o sucesso ulterior da ópera de Bizet, conhecido de Nietzsche e do qual participou no exterior, não lança aos apoiadores de Bizet um status de massa, como ocorre com Wagner. Carmen permanece uma belle peça, que não pode, portanto, ser entendida por todos, mesmo se suas melodias contribuem para torná-la memorável e dançante ao modo da antiga música, figurada pela gaya scienza nietzschiana: “os pés ligeiros; graça, fogo, encanto; […] a dança das estrelas; a espiritualidade insolente, os tremores da luz do Sul; o mar plano — a perfeição…” (WA/CW 10, KSA 6.37). A selvageria se situa, dessa forma, em uma forma de resistência do gosto, de retorno ao corpo, em face da decadência wagneriana bárbara que busca apenas a transcendência redentora. . A imagem do touro sacrificado na corrida pode, nesse sentido, fazer alusão ao próprio assassinato de Carmen, dando fim às forças primitivas, mesmo animais, mobilizadas em sua conquista amorosa33 33 Para uma análise dessas imagens, cf. Bilodeau, 2022, p. 196. .

Há, porém, certas mulheres que são somente máscaras sem alma, nas quais os homens só podem se perder, o que é criticado vivamente por Nietzsche:

Máscaras. - Há mulheres que, por mais que se procure nelas, não têm interior, mas são puras máscaras. É de lastimar o homem que se envolve com esses seres quase espectrais, necessariamente insatisfatórios, mas são precisamente elas que são capazes de despertar de maneira mais forte o desejo do homem: ele busca a sua alma - e continua sempre buscando. (MA I/HH I 405, KSA 2.270)

Carmen não faz parte dessa categoria, pois, apesar de portar máscaras, elas servem para desempenhar os papéis sociais necessários em sua busca frenética por liberdade34 34 “Todo espírito profundo necessita de uma mácara: mais ainda, em torno de todo espírito profundo se forma sem cessar uma máscara, graças à contínua interpretação falsa, ou seja, rasa, de cada palavra, cada passo, cada sinal de vida que ele dá” (JGB/BM 40, KSA 5.58). . Se tradicionalmente as figuras femininas dissonantes são consideradas uma justificação da vitimização masculina e, por consequência, da sujeição feminina35 35 “[...] as tensões culturais contra as mulheres, as quais seriam obstáculo à transcendência, justificam repetidamente a narrativa do homem vitimizado e da necessária sujeição da mulher” (McClary, 2015, p. 142). , a posição nietzschiana parece mais nuançada e ambivalente. Ainda que a máscara não seja necessariamente sinônimo de superficialidade e Nietzsche associe a mulher à superfície (Oberfläche), oposta à profundidade (Tiefe) masculina, ele de modo algum associa uma polaridade de valores a essa diferença. Por outro lado, parece claro que o filósofo pensa na mulher como algo segundo: “Comparando no todo o homem e a mulher, pode-se dizer: a mulher não teria o gênio para o enfeite se ela não tivesse o instinto do papel secundário” (JGB/BM 145, KSA 5.98). Mesmo que Carmen ocupe o papel principal, dando seu nome à ópera, é possível considerar, do ponto de vista nietzschiano, que, em sua busca de amor, ela se subordina de maneira muito intensa ao homem que ela seduz e ao desejo que ela suscita nele. Esse aspecto não nega de forma alguma seu caráter de sujeito ativo: Carmen não cessa de navegar de conquista em conquista, o que pode lhe dar um aspecto viril36 36 A virilidade aparece, no Ocidente, como uma modalidade da masculinidade tradicional, uma radicalidade normativa que postula, a partir do modelo latino de vir (o herói), uma masculinidade guerreira, racional, violenta e ativa contra uma feminilidade afetuosa, emocional, doce e passiva. Sobre a construção histórica da virilidade no Ocidente, cf.Gazalé, 2017. , lembrando Don Juan. Carmen procura triunfar sobre o Outro, ela quer conquistar aqueles que lhe são indiferentes:

Nada adianta, ameaça ou prece, Um fala bem, o outro se cala, E é o outro que eu prefiro, Ele não falou nada, mas eu gosto dele37 37 Habanera (ato 1), cantada por Carmen (cf. Gérard, 2020, p. 21). NT : No texto original: “Rien n’y fait, menace ou prière, / L’un parle bien, l’autre se tait, / Et c’est l’autre que je préfère, / Il n’a rien dit, mais il me plait”. .

Para ela, “[o amor] nunca conheceu leis”38 38 Gérard, 2020, p. 21. . Carmen, nesse sentido, opõe-se a uma “lei” dos sexos: “A qualidade do homem é vontade, a qualidade da mulher, docilidade […] - essa é a lei dos sexos, verdadeiramente! uma dura lei para a mulher!” (FW/GC 68, KSA 3.427). Deve-se ressaltar que é difícil dizer absolutamente o que o próprio Nietzsche pensa sobre o assunto, na medida em que ele apresenta uma multiplicidade de pontos de vista. Trata-se aqui de um velho sábio, mas, na boca de Zaratustra, é diferente: “Em vosso amor, haja valentia! Com vosso amor, deveis investir contra aquele que vos inspira medo! / No vosso amor, esteja vossa honra! aliás, pouco entende a mulher de honra. Mas esta seja a vossa honra, amar sempre mais do que sois amadas e nunca ser a segunda” (Za/ZA I, Das velhas e novas mulherzinhas, KSA 4.85). Segunda, mas não secundária na medida em que “ficar em segundo lugar” pode ser aqui interpretado de um ponto de vista axiológico, o que não põe em causa a topografia dos gêneros feita por Nietzsche39 39 Essas observações valem também para a citação anterior, que trata do “instinto do papel secundário” da mulher (JGB/BM 145, KSA 5.98): trata-se, em Nietzsche, de uma concepção espacial neutra, não de um juízo de valor associado ao lugar de segundo. . Segunda, portanto, como um oceano humano, isto é, uma “superfície [Oberfläche] [...] uma pele movediça e tempestuosa sobre águas rasas”, enquanto “a alma [Gemüth] do homem é profunda [tief], sua corrente murmura em cavernas subterrâneas: a mulher pressente a sua força, mas não a compreende. -” (Za/ZA I, Das velhas e novas mulherzinhas, KSA 4.86). Homem e mulher têm, portanto, todos os dois, partes ativas e passivas, ainda que diferentes, o que torna seu encontro tão produtivo. Mas se Carmen, dançando sobre as ondas de seus amores, sabia, pela vidente40 40 NT: No terceiro ato, Carmen tira a sorte no baralho cigano, e a carta da morte aparece: “Em vão para evitar respostas amargas, / em vão embaralharás, não serve de nada, as cartas / são sinceras e não irão mentir! [...] / Mas se tu deves morrer, / se a temível palavra / estiver escrita pela sorte [sort], / recomeça vinte vezes... a carta impiedosa / repetirá: a morte. Novamente! Novamente! Sempre a morte!” (MEILHAC, H.; HALÉVY, L. Carmen: Libreto. Barcelona: Orbis, 1996, p. 23). , de seu fim inelutável, pôde ela pressentir a potência do gesto assassino de Don José? Ela o percebeu? Essa potência retumbante, essa necessidade natural e trágica encontra-se no seio mesmo da música de Bizet, já que a estrutura musical da ópera dá a impressão ao espectador da morte necessária de Carmen, necessidade que parece então natural e não simplesmente resultante de uma construção humana41 41 “[…] a maior parte dos ouvintes não consegue colocar em palavras essa impressão irresistivelmente conclusiva que sente na música, razão pela qual ela é frequentemente percebida como uma força natural e não como uma construção humana e ideológica” (McClary, 2015, p. 130). . Esse caráter fatal do desfecho trágico da ópera é ainda mais dinâmico por repousar sobre a guerra dos sexos acima analisada e que podemos encontrar igualmente nas palavras de Zaratustra: “A quem a mulher mais odeia? - Assim falou o ferro ao ímã: ‘Eu te odeio mais que tudo, porque tu atrais, mas não és forte o suficiente para arrastar-me para ti’”. Esse ódio funda o amor no sentido nietzschiano. Mas o que devemos entender por “arrastar-me para ti”? O assassinato de Carmen por Don José poderia constituir um tal arrasto mortal?

A morte de Carmen, conclusão trágica da “guerra dos sexos”

No tempo dos feminicídios, o fim da ópera Carmen nos traz questões. O sucesso da ópera é agora planetário, e seu desfecho coloca em cena o assassinato de uma mulher por um homem porque ela o recusou. A palavras de Nietzsche glorificam esse desenlace como a “essência do amor”, o que hoje provoca choque e leva a interrogar sobre a misoginia do filósofo:

Finalmente o amor, o amor retraduzido em natureza! Não o amor de uma “elevada donzela”! Sem o sentimentalismo de Senta! Mas o amor como fatum, como fatalidade, cínico, inocente, cruel - e precisamente nisso natureza! O amor que tem a guerra em seus meios, e no fundo o ódio mortal dos sexos! - Eu não sei de nenhum caso em que o espírito trágico, que é a essência do amor, seja tão severamente expresso numa fórmula tão terrível, como no último grito de don José, com o qual a obra é concluída: "Sim! Eu a matei, eu - minha adorada Carmen!” 42 42 NT: No texto original de Nietzsche, temos: “Ja! Ich habe sie getödtet, / ich — meine angebetete Carmen!”. Na ópera Carmen, o texto original é: “Vouz pouvez m’arretez... / C’est moi qui l’ai tuée! // Ah! Carmen! / ma Carmen adorée!” (MEILHAC, H.; HALÉVY, L. Carmen: Libreto. Barcelona: Orbis, 1996, p. 32) (WA/CW 2, KSA 6.15)

Nós vemos a natureza como valor vital do amor trágico que se cristaliza na dor de Don José após o assassinato daquela que ele declara amar. Embora a atualização nos permita levantar algumas questões e até mesmo exprimir algumas reticências, tirar as obras de Bizet e de Nietzsche de sua época e, portanto, de seu contexto de produção seria um erro. De fato, parece que podemos encontrar na ópera Carmen um binário tradicional que, pela representação da corporalidade e da sensualidade43 43 Cf. McClary, 2015, p. 124. , apresenta Carmen como o Outro dissonante. A mulher como Outro nos lembra hoje O segundo sexo, obra na qual Beauvoir denuncia essa construção alienante para as mulheres nestes termos: “[A mulher] se determina e se diferencia em relação ao homem e não ele em relação a ela; ela é o inessencial em face do essencial. Ele é o Sujeito, ele é o Absoluto: ela é o Outro”44 44 Beauvoir, 1949, p. 17. . No entanto, como vimos acima, Carmen não se limita à figura do Outro, pois ela própria age e busca a conquista do Outro masculino. Além disso, ela aparece com virilidade em vários momentos, em particular na ocasião de suas conquistas amorosas: por exemplo, quando ela manipula Don José para escapar, o qual se “deixa abater” por ela, ou ainda quando ela grava à faca uma cruz de Santo André no rosto de sua amiga Manuelita45 45 Cf. Bilodeau, 2022, p. 196. Ainda sobre os comportamentos não tipicamente femininos de Carmen, cf. McClary, 2015, p. 128. . Por sua vez, Don José, que se exprime em uma linguagem musical tradicionalmente consagrada aos nobres sentimentos, e não ao corpo, e que representa, assim, a transcendência masculina contra a imanência feminina46 46 Cf. McClary, 2015, p. 125. , parece corresponder à representação clássica da virilidade. Entretanto, como nós rapidamente lembramos, Don José não tem um comportamento tão viril diante de Carmen e, juntando-se a ela na ilegalidade, não pode ser reduzido ao patriarcado circundante. Em Carmen, portanto, a polaridade do gênero masculino-feminino não é tão rígida como na tradição ocidental.

Todavia, mesmo se não há uma dualidade exclusiva, isso não significa que, para Nietzsche, homem e mulher são iguais: “Enganar-se acerca do problema fundamental ‘homem e mulher’, negar o antagonismo mais abissal que há entre os dois e a necessidade de uma tensão eternamente hostil, sonhar aqui talvez com direitos iguais, educação igual, exigências e obrigações iguais: eis um sinal típico de superficialidade” (JGB/BM 238, KSA 5.175). Nietzsche, se ele não é essencialista e propõe uma filosofia ambivalente em relação às mulheres e ao feminino, continua sendo, portanto, um pensador diferencialista. Ele baseia-se na diferença homem-mulher, na aparente necessidade da guerra dos sexos, mas não sob uma forma decadente: “É a guerra, mas a guerra sem pólvora e fumaça, sem atitudes guerreiras, sem pathos e sem membros deslocados - tudo isso ainda seria ‘idealismo’” (EH/EH, Humano, demasiado humano 1, KSA 6.323). Nesse sentido, o assassinato de Carmen, do ponto de vista nietzschiano, assinala o desfecho trágico de uma guerra dos sexos não idealista. De um ponto de vista mais estético, Nietzsche preconiza a unidade orgânica nessa afirmação do amor trágico, ao contrário da estética wagneriana que privilegia a “anarquia dos átomos, desagregação da vontade, ‘liberdade do indivíduo’, para falar a linguagem da moral, - e, para fazer disso uma teoria política: ‘direitos iguais para todos’” (WA/CW 7, KSA 6.27).

Se homem e mulher são fundamentalmente diferentes e, em consequência, estão em luta constante, e se ainda todos os dois podem se utilizar do masculino e do feminino em seu comportamento47 47 Em Nietzsche, os termos masculino e feminino não são sistematicamente aplicados estritamente ao sexo dos indivíduos — aproximando-se do que hoje se nomearia identificações de gênero, como homem efeminado ou mulher masculina —, mas ele os estende à cultura em geral, incluindo os costumes, a política, a moral ou ainda a estética; ver, por exemplo, a associação de Lou Andreas-Salomé ao Eterno masculino: “Tive um sentimento completamente diferente em relação ao semi-romance de sua inseparável irmã Salomé, que me chamou a atenção, ao mesmo tempo, de maneira jovial. […] Mas o assunto mesmo tem sua seriedade, sua grandeza; e se não é certamente o Eterno feminino o que atrai a essa menina, talvez seja o Eterno masculino” (Carta a Heinrich von Stein, 15/10/1885 (634), KSB 7.100); e também: “Ao mesmo tempo, por uma bela ironia do acaso, chegou o livro da Srta. Salomé, o que me tocou de maneira oposta*. […] Há grandeza nele; e se não for o Eterno feminino que atrai a essa pseudojovenzinha, talvez seja — o Eterno masculino” (Carta a Franz Overbeck, 17/10/1885 (636), KSB 7.102). (*) NT : O contraste aqui é com a obra Nascimento da consciência (Entstehung des Gewissens), de Paul Rée, recebida por Nietzsche no dia anterior ao da chegada do livro de Lou Salomé. Na mesma carta, Nietzsche fala do texto de Rée: "Lamentável, incompreensivelmente ‘decrépito’". , como pensar a contradição da relação amorosa moderna expressa em Carmen, assim como na filosofia nietzschiana? Em Nietzsche, a despeito de uma diferença de natureza entre homem e mulher, uma “rocha de fatum espiritual” (JGB/BM 231, KSA 5.170), a contradição reside sobretudo nos valores, notadamente nos valores da sociedade moderna que se enraízam em nosso próprio corpo: “O homem moderno representa, biologicamente, uma contradição de valores, ele senta entre duas cadeiras, ele diz sim e não com o mesmo fôlego. […] Mas todos nós temos em nosso corpo, contra nossos conhecimentos, contra nossa vontade, valores, palavras, fórmulas, morais de procedências contrárias - nós somos, psicologicamente considerados, falsos…” (WA/CW, Epílogo, KSA 6.52-53). Assim, a contradição que não constitui um argumento de crítica, mas uma particularidade ambivalente reconhecida e questionada no seio da filosofia nietzschiana, encontra-se posta em cena na ópera Carmen de Bizet. Com efeito, se tínhamos afirmado que Carmen parecia usar uma dicotomia de gênero clássica - o homem transcendente e racional contra a mulher imanente e sensual -, na realidade a contradição torna a necessidade cênica cruel, embora in fine ela permaneça insatisfatória. Por exemplo, de um ponto de vista musical, o cromatismo executado durante a ópera, associado ao feminino, perturba o espectador, que deseja, aliás, seu desaparecimento. Isso só é possível pela morte violenta de Carmen, a qual se torna quase estruturalmente uma necessidade natural para o espectador, como a analisa Susan McClary:

Enquanto Don José implora a Carmen para ceder, o baixo harmônico move-se pouco a pouco para um terreno cromático escorregadio e exasperante. José, e com ele o ouvinte, […] desejam apenas uma coisa: que esse fluxo cromático acabe, que a estabilidade seja enfim restabelecida - mesmo que nós saibamos que, para o triunfo da conclusão tonal, Carmen deverá ser assassinada violentamente. Em outras palavras, a estratégia musical de Bizet instala uma tensão quase insuportável que impele o ouvinte a não somente admitir que a morte de Carmen é “inevitável”, mas também realmente a desejar48 48 McClary, 2015, p. 132. .

Quanto a Don José, se ele inicialmente se expressa pela linguagem musical da tradição patriarcal, fecha a ópera sobre um perfeito acorde maior, que significa classicamente um desenlace feliz. Nós poderíamos pensar que Don José retornaria ao patriarcado que havia abandonado ao seguir Carmen, a imoral, mas isso seria ignorar uma sutileza musical: o acorde final revela-se convencionalmente ruim, pois a tonalidade na qual ele é tocado não corresponde àquele do início de Carmen49 49 Cf. a análise detalhada de McClary, 2015, p. 133. . Em consequência, o fim da ópera, embora suba mortalmente a dissonância gerada pela figura de Carmen, não traz satisfação completa. A ambivalência refere-se às próprias personagens: aqui Don José retorna ao conforto do patriarcado do qual veio, mas não sem danos, já que matou Carmen; ele acaba se mutilando gravemente. Susan McClary analisa, nesse sentido, Don José como um homem insatisfeito com o horizonte oferecido pelo patriarcado circundante, que preconiza a racionalidade e o controle de si e do outro, o que explica sua fuga com a sensual e impetuosa Carmen, mesmo que se exponha a sofrimentos passionais50 50 McClary, 2015, pp.138-139. . Em sua deserção, Don José consegue descobrir seu corpo e seus sentimentos, até agora silenciados como exige a virilidade ocidental tradicional. O desvio na ilegalidade toma então a forma de uma descoberta íntima de si, mas seu medo e o desespero da não reciprocidade acabam fazendo com que ele retorne ao que conhecia. Entretanto, ao contrário das óperas de Mozart - que Nietzsche celebra igualmente como música meridional antes de sua descoberta de Bizet -, o final não pode ser racional nem consensual em razão das contradições internas de Don José, que são demasiado fundamentais. Isso é certamente a natureza cruel, a fatalidade analisada anteriormente que se afirma aqui o mais tragicamente, pois, segundo Nietzsche, “um instinto se enfraquece quando ele se racionaliza” (WA/CW, Pós-escrito, KSA 6.40). De fato, Don José recorre ao arbitrário e à violência. O acorde perfeito realmente deslocado do ponto de vista tonal no fim da ópera significaria, portanto, que Don José não conseguiria reintegrar-se perfeitamente ao patriarcado.

Como explicar que Nietzsche menciona precisamente o assassinato de Carmen na boca de Don José para ilustrar o que ele nomeia “concepção de amor”, que, além disso, é “a única digna de um filósofo”? Essa concepção coloca em cena tudo o que interessa à perspectiva nietzschiana, inclusive a afirmação trágica. Nietzsche valoriza a diferença homem-mulher na relação amorosa por ela possibilitar a luta ou ainda a “guerra dos sexos”. Mas se a filosofia nietzschiana, por um lado, compreende a noção chave de crueldade, por outro, de forma alguma preconiza o que nós hoje chamamos feminicídio: trata-se propriamente de falar de uma valorização do trágico, não nos costumes, mas na estética, e a filosofia nietzschiana é, em grande parte, estética. Nesse caso, a afirmação trágica possui sua porção de ambivalência psicológica, a despeito da dinâmica de fatalidade que nela se desenrola. Se o “grande estilo” presente na arte tem, segundo o filósofo, por ambição, “tornar-se lógico, simples, não equívoco, matemático; tornar-se lei” (NF/FP 1888, 14 [61], KSA 13.247), essa exigência permanece efetivamente estética e não na esfera dos costumes cotidianos. Nesse sentido, “o amor nunca conheceu leis” e não cessa de interrogar quanto às modalidades de seu nascimento, de sua intensificação e de sua conservação. Se Nietzsche não dá, propriamente falando, leis, ele determina um critério de eficácia que Don José parece não ter posto em prática. Trata-se da “ação à distância”, que o filósofo associa às mulheres, mas que, de outra perspectiva, do ponto de vista feminino, pode perfeitamente ser aplicada aos homens:

Todo grande barulho nos leva a colocar a felicidade no silêncio e na distância. Quando um homem está em meio ao seu barulho, em meio à sua rebentação de realizações e projetos, ele pode ver, deslizando em sua frente, seres mágicos tranquilos, cuja felicidade e isolamento ele anseia - são as mulheres. Ele chega a pensar que seu melhor eu [Selbst] mora junto às mulheres: nesses lugares tranquilos, até a rebentação mais barulhenta torna-se silêncio mortal, e a própria vida torna-se um sonho sobre a vida. No entanto! No entanto! Meu nobre sonhador, mesmo no mais belo veleiro há tanto ruído e barulho, e, infelizmente, muito barulho pequeno e deplorável! O encanto e o efeito mais potente das mulheres são, para usar a linguagem dos filósofos, um efeito à distância, uma actio in distans: mas isso exige, antes e acima de tudo - distância! (FW/GC 60, KSA 3.424-425)

Sem a distância, a realidade prevalece e prejudica a força da impressão sentimental. Carmen provavelmente conhece o efeito da distância e o jogo que ele gera no amor:

O pássaro que tu acreditavas surpreender Bateu asas e voou. O amor está longe, tu podes esperá-lo. Tu não o esperas, aí está ele. [...] Ele vem, vai, depois volta. Tu acreditas possuí-lo, ele te evita. Tu acreditas evitá-lo, ele te agarra. [...] Se tu não o amas, ele te ama. Se eu te amo, tem cuidado!51 51 Habanera (ato 1), cantada por Carmen (cf. Gérard, 2020, pp. 21 et 23). NT: No texto original: “L’oiseau que tu croyais surprendre / Battit de l’aile et s’envola. / L’amour est loin, tu peux l’attendre. / Tu ne l’attends pas, il est là. / […] Il vient, s’en va, puis il revient. / Tu crois le tenir, il t’évite. / Tu crois l’éviter, il te tient. / […] Si tu ne m’aimes pas, je t’aime. / Si je t’aime, prends garde à toi!”.

A imagem, que aqui não é aquática como em Nietzsche, mas aérea, toma o pássaro como alegoria do amor. A mulher encarnada por Carmen mantém uma proximidade natural com o pássaro, a quem ela dirige seu canto. Carmen etimologicamente significa canto52 52 NT: Em latim, carmen significa canto, poema ou vaticínio. , não para aprisionar ou domesticar o amor, mas para louvar a sua liberdade natural - e em um sentido cruel - na medida em que ele escapa de toda tentativa de controle e cai sobre aquele ou aquela que menos o espera. A distância constitui, portanto, um elemento fundamental no nascimento do amor, e Carmen, que é consciente disso, joga com ela alegremente, sabendo certamente de seu fim trágico. Don José, ao matar Carmen, não rompeu a magia da distância? Do ponto de vista de Carmen, seguramente, mas, do ponto de vista de Don José, isso não é tão certo, pois, ao fazer que Carmen desapareça fisicamente, ele a manterá em uma distância fantasmática ou imaginária, para não dizer fantasmagórica. Em outras palavras, Don José, em sua incapacidade de usar com discernimento a distância no amor, gerou paradoxalmente a distância mais radical que há: aquela da morte.

Mas o jogo do amor, que Carmen encarna idealmente em seu uso da distância, não tem nada de negativo do ponto de vista nietzschiano: ele é cruel e natural, o que explica por que as mulheres, segundo Nietzsche, são tão frequentemente vitoriosas nessa disputa. Nós podemos aqui, todavia, duvidar da vitória de Carmen, embora seja inegável que Don José tivesse também perdido a guerra, mas recordemos que a ópera se situa na afirmação trágica e não nas relações interindividuais oriundas dos costumes. Ainda no registro estético, parece ser necessário distinguir, sobre esse ponto, Carmen de uma outra figura feminina invocada em O Caso Wagner: Circe, a feiticeira. Carmen, mulher imaginária do Sul e, para Nietzsche, inspiradora da boa música, opõe-se ao contramodelo decadente de Circe, representante da música wagneriana do Norte:

A música como Circe… […] Bebei apenas, meus amigos, bebei os filtros dessa arte! Vós não achareis, em nenhum outro lugar, maneira mais agradável de enervar vosso espírito, de esquecer vossa virilidade em um roseiral... Ah, esse velho mago! Esse Klingsor53 53 NT: Na ópera Parsifal, de Wagner, Klingsor é o feiticeiro que criou um jardim mágico com mulheres-flores que tinham como meta seduzir os cavaleiros guardiões do Santo Graal. de todos os Klingsors! Como ele, com isso, faz a guerra contra nós! nós, os espíritos livres! Como ele fala ao gosto de toda a covardia da alma moderna, com seus tons de feiticeira! - Nunca houve um tal ódio mortal ao conhecimento! (WA/CW, Pós-escrito, KSA 6.43)

Circe, invocada sensualmente e moralmente54 54 Nietzsche denomina também a moral de “verdadeira Circe dos filósofos” (M/A, “Prefácio” 3). , gera sempre a mesma metamorfose da massa que ela alimenta em porcos. Compreende-se melhor o recurso a essa figura, aqui aplicada à música wagneriana, na medida em que ela corrompe o gosto e atinge apenas o rebanho gregário histérico55 55 Nietzsche, em O Caso Wagner, não cansa de analisar no que a música wagneriana é uma doença, inclusive a histeria (cf. WA/CW 5 e 7, KSA 6.22 e 27). . Aliás, podemos notar que Nietzsche retoma nessa ocasião o tema da guerra e do “ódio mortal”, mas aqui ele aparece como uma desfiguração decadente do primeiro enunciado acerca da Carmen de Bizet. Paródia da Carmen de Bizet, a Circe wagneriana aparece como sedutora, mas que emascula e torna gregário, ou seja, ela é uma sedutora enganadora e nefasta para a humanidade. Estamos, assim, muito longe do modelo de amor trágico que constitui Carmen.

Conclusão

Do mesmo modo que a relação com as mulheres e com o feminino é ambivalente na obra nietzschiana, a consideração dada a Carmen pelo filósofo expressa a contradição homem-mulher no seio de uma luta necessária, insolúvel e, aqui, tragicamente mortal. Portanto, é necessário cuidar para não entender a admiração estética da obra de Bizet por Nietzsche como exatamente aplicável aos costumes: estes últimos não participam da esfera trágica, embora alguns elementos concernentes a Carmen e à sua relação com Don José pudessem ressoar na concepção nietzschiana geral das relações amorosas homem-mulher. Carmen, em particular na sua relação com Don José, figura muito bem o amor trágico no sentido nietzschiano do termo. Ainda que a ópera Carmen não corresponda inteiramente ao ideal musical de Nietzsche, uma vez que ela inclui o teatro, ela constitui, aos seus olhos, a melhor aproximação56 56 Sobre esse ponto, cf. as análises propostas por Liébert, 2012, p. 261 e Grzelczyk, 2015, p. 17. .

Referências

  • ASTOR, D. Friedrich Nietzsche et la musique. La Clé des Langues, Lyon, julho 2009.Disponível em: https://cle.ens-lyon.fr/allemand/arts/musique/friedrich-nietzsche-et-la-musique Acessado em 15/10/2022.
    » https://cle.ens-lyon.fr/allemand/arts/musique/friedrich-nietzsche-et-la-musique
  • BEAUVOIR, S. de. Le Deuxième sexe, v. I. Paris: Gallimard, 1949.
  • BILODEAU, L. Genre et opéra. L’incertitude des sexes Paris: Premières Loges, 2022.
  • GAZALÉ, O. Le Mythe de la virilité Paris: Robert Laffont, 2017.
  • GÉRARD, C. Carmen: opéra-comique en quatre actes Paris: Éditions Premières Loges, 2020.
  • GOETZ, B. Nietzsche aimait-il vraiment Bizet? Le Portique: Revue de Philosophie et de Sciences Humaines, Paris, pp.1-4, agosto 2001. Disponível em: <https://journals.openedition.org/leportique/209>.
    » https://journals.openedition.org/leportique/209
  • GRZELCZYK, J. Nietzsche et le cas Bizet. Studia Nietzscheana, Paris, 2015. Disponível em: < http://www.nietzschesource.org/SN/grzelczyk-2015>.
    » http://www.nietzschesource.org/SN/grzelczyk-2015
  • KLEIN, J. W. Nietzsche and Bizet. The Musical Quarterly, Oxford, v. 11, n. 4, pp. 482-505, outubro 1925.
  • KLEIN, R. L’Esthétique de Nietzsche au croisement de l’identité allemande. Études germaniques, Paris, n. 279, pp. 451-472, março 2015.
  • KOFMAN S. L’imposture de la beauté Paris: Galilée, 1995.
  • LACOUE-LABARTHE, P. L’Antithèse ironique. Lignes, Paris, n. 7, pp.308-319, janeiro 2002.
  • LIÉBERT, G. Nietzsche et la musique Paris: Presses Universitaires de France, 2012.
  • MARTON, S. Les Ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines Paris: Les Éditions de la Sorbonne, 2021.
  • MCCLARY, S. Ouverture féministe. Musique, genre, sexualité Trad. Catherine Deutsch et Stéphane Roth. Paris: La Rue Musicale, 2015.
  • NIETZSCHE F. W. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe G. Colli und M. Montinari (Hg). Berlin: Walter de Gruyter, 1999a. 15 Bd.
  • NIETZSCHE F. W. Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe G. Colli und M. Montinari (Hg). Berlin: Walter de Gruyter , 1999b. 8 Bd.
  • THEBAUD, F. Écrire l’histoire des femmes Paris: ENS éditions, 1998.
  • 1
    “Ela possui ainda de Mérimée a lógica na paixão, a concisão do traço, a necessidade implacável” (WA/CW 2, KSA 6.15). Uma análise detalhada da adequação da escrita de Mérimée à filosofia estética de Nietzsche é encontrada em Grzelczyk, 2015GRZELCZYK, J. Nietzsche et le cas Bizet. Studia Nietzscheana, Paris, 2015. Disponível em: < http://www.nietzschesource.org/SN/grzelczyk-2015>.
    http://www.nietzschesource.org/SN/grzelc...
    , pp. 9-13.
  • 2
    Para Nietzsche, Meilhac e Halévy são, nesse aspecto, “os melhores poetas, a quem meu gosto promete a imortalidade” (NF/FP 1888, 25[3], KSA 13.639).
  • 3
    Sobre as modificações realizadas pelos libretistas Henri Meilhac e Ludovic Halévy no texto de Mérimée, cf. McClary, 2015MCCLARY, S. Ouverture féministe. Musique, genre, sexualité. Trad. Catherine Deutsch et Stéphane Roth. Paris: La Rue Musicale, 2015. , pp.122-123.
  • 4
    Vários estudos sobre esse tema já foram realizados, e, portanto, a discussão sobre a sinceridade da admiração de Nietzsche a Bizet não será tratada aqui. Entretanto, no que tange à ruptura de Nietzsche com Wagner, esse assunto tem um interesse axial, cf. principalmente Grzelczyk, 2015GRZELCZYK, J. Nietzsche et le cas Bizet. Studia Nietzscheana, Paris, 2015. Disponível em: < http://www.nietzschesource.org/SN/grzelczyk-2015>.
    http://www.nietzschesource.org/SN/grzelc...
    ; Goetz, 2001GOETZ, B. Nietzsche aimait-il vraiment Bizet? Le Portique: Revue de Philosophie et de Sciences Humaines, Paris, pp.1-4, agosto 2001. Disponível em: <https://journals.openedition.org/leportique/209>.
    https://journals.openedition.org/leporti...
    ; Klein, 1925KLEIN, J. W. Nietzsche and Bizet. The Musical Quarterly, Oxford, v. 11, n. 4, pp. 482-505, outubro 1925.; Klein, 2015KLEIN, R. L’Esthétique de Nietzsche au croisement de l’identité allemande. Études germaniques, Paris, n. 279, pp. 451-472, março 2015.; Kofman, 1995KOFMAN S. L’imposture de la beauté. Paris: Galilée, 1995.; Lacoue-Labarthe, 2002LACOUE-LABARTHE, P. L’Antithèse ironique. Lignes, Paris, n. 7, pp.308-319, janeiro 2002.; e Liébert, 2012LIÉBERT, G. Nietzsche et la musique. Paris: Presses Universitaires de France, 2012..
  • 5
    Cf. Grzelczyk, 2015GRZELCZYK, J. Nietzsche et le cas Bizet. Studia Nietzscheana, Paris, 2015. Disponível em: < http://www.nietzschesource.org/SN/grzelczyk-2015>.
    http://www.nietzschesource.org/SN/grzelc...
    , pp. 13-17.
  • 6
    O que nós entemos por “gênero”: “O gênero é, de certo modo, ‘o sexo social’ ou a diferença dos sexos construída socialmente, um conjunto dinâmico de práticas e de representações, com atividades e papéis designados, de atributos psicológicos, um sistema de crenças. O sexo é compreendido como invariável, enquanto o gênero é variável no tempo e no espaço; a masculinidade ou a feminilidade — ser homem ou mulher, ou ser considerado como tais — não tem a mesma significação em todas as épocas e em todas as culturas” (Thebaud, 1998THEBAUD, F. Écrire l’histoire des femmes. Paris: ENS éditions, 1998., p. 114). Assim, a categoria contemporânea de gênero engloba a categoria histórica de sexo, redefinindo-a completamente.
  • 7
    Cf. Marton, 2021MARTON, S. Les Ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines. Paris: Les Éditions de la Sorbonne, 2021..
  • 8
    Aliás, é por essa razão que, apesar de uma pluralidade de pontos de vista expressos sobre as relações homem-mulher, Nietzsche tem, para nós, uma coerência nesse tema ao longo de sua vida. Em consequência, não precisaremos passar sobre os períodos de Nietzsche em nosso artigo, como tradicionalmente se faz: nós referir-nos-emos ao conjunto de sua obra, com a exceção de seus escritos de juventude, entre eles O nascimento da tragédia, pois estes últimos são demasiado erigidos sobre a admiração que o filósofo tinha por Wagner. E, sendo uma questão estética, nós nos situamos após a ruptura com Wagner, isto é, após 1876. Trata-se, neste caso, dos dois últimos periódos de Nietzsche, os quais se estendem de 1879 a 1889. NT : As traduções dos textos de Nietzsche foram realizadas pelo tradutor a partir original alemão.
  • 9
    Cf. Bilodeau, 2022BILODEAU, L. Genre et opéra. L’incertitude des sexes. Paris: Premières Loges, 2022., p. 193.
  • 10
    O livro de Marton (2021MARTON, S. Les Ambivalences de Nietzsche. Types, images et figures féminines. Paris: Les Éditions de la Sorbonne, 2021.) contribui para uma melhor compreensão da ambivalência nietzschiana.
  • 11
    Em realidade, fruto da imaginação masculina (cf. McClary, 2015MCCLARY, S. Ouverture féministe. Musique, genre, sexualité. Trad. Catherine Deutsch et Stéphane Roth. Paris: La Rue Musicale, 2015. , p. 138).
  • 12
    Dessa maneira, Nietzsche distingue os “dramaturgos” (entre os quais notadamente estão Meilhac e Halévy) e os “homens de teatro”, como Wagner: “[Wagner] tem a mesma inocuidade de Schiller, como tem todo homem de teatro, e tem também o mesmo desprezo pelo mundo que está aos seus pés!” (WA/CW 8, KSA 6.31), e ainda mais: “Wagner não é um dramaturgo, não nos deixemos enganar sobre isso” (WA/CW 9, KSA 6.33).
  • 13
    Quando nós nos referimos à concepção nietzschiana de música, ela está a serviço de nossa análise da figura de Carmen e não de maneira geral. Há numerosos estudos nietzschianos filosóficos e musicológicos, entre os quais Liébert, 2012. Mas lembremos que a música não é uma arte como as outras, pois ela permite a expressão dionisíaca da vida: “A música, não sendo uma arte plástica, quase não pertence ao domínio da aparência; ela exprime quase imediatamente as próprias forças, seu vir-a-ser e sua potência de metamorfose perpétua” (Astor, 2009ASTOR, D. Friedrich Nietzsche et la musique. La Clé des Langues, Lyon, julho 2009.Disponível em: https://cle.ens-lyon.fr/allemand/arts/musique/friedrich-nietzsche-et-la-musique . Acessado em 15/10/2022.
    https://cle.ens-lyon.fr/allemand/arts/mu...
    ).
  • 14
    A exceção é muito recente: Bilodeau, 2022BILODEAU, L. Genre et opéra. L’incertitude des sexes. Paris: Premières Loges, 2022., p. 195. A citação de Nietzsche não é analisada nessa obra.
  • 15
    Deve-se notar que estamos nos referindo aqui ao trágico como pessimismo dionisíaco, antagonista do pessimismo romântico de Schopenhauer e Wagner (cf. FW/GC 370, KSA 3.622). Dessa forma, não se trata do trágico no sentido de O nascimento da tragédia, livro no qual Nietzsche faz o elogio de Wagner.
  • 16
    Cf. WA/CW 3, KSA 6.17.
  • 17
    Ainda que a expressão não seja empregada por Nietzsche em O caso Wagner, o filósofo usa o termo “fatalidade” (Verhängniss, Fatum, Fatalität), não isento de ambiguidade.
  • 18
    Embora Nietzsche empregue o termofatum, não nos parece corresponder completamente ao fatum que aparece nas tragédias antigas.
  • 19
    “[…] o Sujeito só é verdadeiramente um sujeito na medida em que ele age: ele deve deixar o casulo aconchegante daquilo que o fortifica, arriscar a confrontação e, finalmente, triunfar sobre o Outro” (McClary, 2015MCCLARY, S. Ouverture féministe. Musique, genre, sexualité. Trad. Catherine Deutsch et Stéphane Roth. Paris: La Rue Musicale, 2015. , p. 143).
  • 20
    Anotação redigida por Nietzsche na margem de uma partitura de Carmen que ele envia a Peter Gast em janeiro de 1882 (cf. Liébert, 2012LIÉBERT, G. Nietzsche et la musique. Paris: Presses Universitaires de France, 2012., p. 259).
  • 21
    Cf. McClary, 2015MCCLARY, S. Ouverture féministe. Musique, genre, sexualité. Trad. Catherine Deutsch et Stéphane Roth. Paris: La Rue Musicale, 2015. , p. 123.
  • 22
    Por exemplo: “Consequências habituais do casamento. — Toda associação que não eleva abaixa, e vice-versa; por isso os homens habitualmente decaem um pouco ao tomar esposa, enquanto as mulheres são elevadas um pouco. Homens demasiado intelectuais necessitam do casamento tanto quanto resistem a ele, como um remédio amargo” (MA I/HH I 394, KSA 2.268).
  • 23
    Essa espacialização encontra-se principalmente no antagonismo entre a superfícialidade feminina e a profundidade masculina, do qual trataremos adiante.
  • 24
    Apesar de Nietzsche criticar a ópera Tristão e Isolda em O Caso Wagner, a figura de Isolda pode ser uma singularidade, já que se trata, enfim, de criticar Wagner apenas após sua conversão cristã. Seria interessante, assim, comparar as figuras femininas de Carmen e de Isolda.
  • 25
    Nietzsche propõe uma fisiologia da música: “Cada vez mais nervos no lugar de carne” (WA/CW, Segundo pós-escrito, KSA 6.47).
  • 26
    “[…] dar necessidade aos nós do enredo […]. Ora, é nisso que Wagner sua o mínimo de sangue; certamente ele despende o mínimo esforço com nós e resolução. […] Os nós que Wagner realmenre sabe desatar, diga-se de passagem, com ajuda de invenções dramáticas, são de espécie totalmente diferente. Dou um exemplo. Tomemos o caso em que Wagner precisa de uma voz de mulher. Um ato inteiro sem uma voz de mulher - isso é impossível! Mas nenhuma das ‘heroínas’ está livre no momento. O que faz Wagner? Ele emancipa a mais velha mulher do mundo, Erda […]. Erda canta. A intenção de Wagner é alcançada. Logo a seguir, ele se livra da velha senhora” (WA/CW 9, KSA 6.33).
  • 27
    Na nota 33, voltaremos à caracterização particular desse elitismo ligado à ópera Carmen.
  • 28
    Cf. Grzelczyk, 2015GRZELCZYK, J. Nietzsche et le cas Bizet. Studia Nietzscheana, Paris, 2015. Disponível em: < http://www.nietzschesource.org/SN/grzelczyk-2015>.
    http://www.nietzschesource.org/SN/grzelc...
    , p,15.
  • 29
    Sobre a análise musicológica dos diferentes discursos de Carmen, cf. McClary, 2015MCCLARY, S. Ouverture féministe. Musique, genre, sexualité. Trad. Catherine Deutsch et Stéphane Roth. Paris: La Rue Musicale, 2015. , pp.135-137.
  • 30
    Para Nietzsche, a expressão mais forte do instinto feminino está ligada à reprodução: “não fundemos, eu digo, o casamento no ‘amor’, — fundemo-lo no impulso sexual […]” (GD/CI, Incursões de um extemporâneo 39, KSA 6.142).
  • 31
    A crueldade em Nietzsche aparece como uma consequência da afirmação de si, mas sob a forma de uma maldade inocente, conforme indica o título do parágrafo 103 de Humano, demasiado humano, “A inocência da maldade” (KSA 2.99). Por outro lado, a noção de crueldade abarca um aspecto civilizacional e fisiológico mais amplo, o qual Nietzsche aborda ao longo de toda sua filosofia, mas que não trataremos aqui; cf., por exemplo, GT/NT 7, KSA 1.52-57; MA I/HH I 18, KSA 2.38-40; FW/GC 266, KSA 3.518; ou ainda GM/GM II, 6-7, KSA 5.300-305.
  • 32
    Lacoue-Labarthe, 2002LACOUE-LABARTHE, P. L’Antithèse ironique. Lignes, Paris, n. 7, pp.308-319, janeiro 2002., p. 311. Convém aqui distinguir a selvageria associada à imaginação [fantasme] nietzschiana sobre o Sul da barbárie que o filósofo associa ao Norte, o que não deixa de alimentar a oposição do pequeno número (selvageria) contra a massa (barbárie); cf. a análise proposta por Lacoue-Labarthe, 2002LACOUE-LABARTHE, P. L’Antithèse ironique. Lignes, Paris, n. 7, pp.308-319, janeiro 2002., pp.312-313. Nós não analisaremos profundamente a oposição nietzschiana entre o Norte e o Sul, pois ela já foi objeto de numerosos estudos, como Grzelczyk, 2015GRZELCZYK, J. Nietzsche et le cas Bizet. Studia Nietzscheana, Paris, 2015. Disponível em: < http://www.nietzschesource.org/SN/grzelczyk-2015>.
    http://www.nietzschesource.org/SN/grzelc...
    , p. 15; Liébert, 2012LIÉBERT, G. Nietzsche et la musique. Paris: Presses Universitaires de France, 2012., p. 253; e Goetz, 2001GOETZ, B. Nietzsche aimait-il vraiment Bizet? Le Portique: Revue de Philosophie et de Sciences Humaines, Paris, pp.1-4, agosto 2001. Disponível em: <https://journals.openedition.org/leportique/209>.
    https://journals.openedition.org/leporti...
    , p. 2. Essa oposição permite compreender também a apreciação da ópera Carmen de Bizet, apesar de já ser um sucesso internacional quando Nietzsche a descobriu em 27 de novembro de 1881, ou seja, seis anos após a estreia no Opéra-Comique (cf. Grzelczyk, 2015, p. 4). De fato, o sucesso ulterior da ópera de Bizet, conhecido de Nietzsche e do qual participou no exterior, não lança aos apoiadores de Bizet um status de massa, como ocorre com Wagner. Carmen permanece uma belle peça, que não pode, portanto, ser entendida por todos, mesmo se suas melodias contribuem para torná-la memorável e dançante ao modo da antiga música, figurada pela gaya scienza nietzschiana: “os pés ligeiros; graça, fogo, encanto; […] a dança das estrelas; a espiritualidade insolente, os tremores da luz do Sul; o mar plano — a perfeição…” (WA/CW 10, KSA 6.37). A selvageria se situa, dessa forma, em uma forma de resistência do gosto, de retorno ao corpo, em face da decadência wagneriana bárbara que busca apenas a transcendência redentora.
  • 33
    Para uma análise dessas imagens, cf. Bilodeau, 2022BILODEAU, L. Genre et opéra. L’incertitude des sexes. Paris: Premières Loges, 2022., p. 196.
  • 34
    “Todo espírito profundo necessita de uma mácara: mais ainda, em torno de todo espírito profundo se forma sem cessar uma máscara, graças à contínua interpretação falsa, ou seja, rasa, de cada palavra, cada passo, cada sinal de vida que ele dá” (JGB/BM 40, KSA 5.58).
  • 35
    “[...] as tensões culturais contra as mulheres, as quais seriam obstáculo à transcendência, justificam repetidamente a narrativa do homem vitimizado e da necessária sujeição da mulher” (McClary, 2015MCCLARY, S. Ouverture féministe. Musique, genre, sexualité. Trad. Catherine Deutsch et Stéphane Roth. Paris: La Rue Musicale, 2015. , p. 142).
  • 36
    A virilidade aparece, no Ocidente, como uma modalidade da masculinidade tradicional, uma radicalidade normativa que postula, a partir do modelo latino de vir (o herói), uma masculinidade guerreira, racional, violenta e ativa contra uma feminilidade afetuosa, emocional, doce e passiva. Sobre a construção histórica da virilidade no Ocidente, cf.Gazalé, 2017GAZALÉ, O. Le Mythe de la virilité. Paris: Robert Laffont, 2017..
  • 37
    Habanera (ato 1), cantada por Carmen (cf. Gérard, 2020GÉRARD, C. Carmen: opéra-comique en quatre actes. Paris: Éditions Premières Loges, 2020., p. 21). NT : No texto original: “Rien n’y fait, menace ou prière, / L’un parle bien, l’autre se tait, / Et c’est l’autre que je préfère, / Il n’a rien dit, mais il me plait”.
  • 38
    Gérard, 2020GÉRARD, C. Carmen: opéra-comique en quatre actes. Paris: Éditions Premières Loges, 2020., p. 21.
  • 39
    Essas observações valem também para a citação anterior, que trata do “instinto do papel secundário” da mulher (JGB/BM 145, KSA 5.98): trata-se, em Nietzsche, de uma concepção espacial neutra, não de um juízo de valor associado ao lugar de segundo.
  • 40
    NT: No terceiro ato, Carmen tira a sorte no baralho cigano, e a carta da morte aparece: “Em vão para evitar respostas amargas, / em vão embaralharás, não serve de nada, as cartas / são sinceras e não irão mentir! [...] / Mas se tu deves morrer, / se a temível palavra / estiver escrita pela sorte [sort], / recomeça vinte vezes... a carta impiedosa / repetirá: a morte. Novamente! Novamente! Sempre a morte!” (MEILHAC, H.; HALÉVY, L. Carmen: Libreto. Barcelona: Orbis, 1996, p. 23).
  • 41
    “[…] a maior parte dos ouvintes não consegue colocar em palavras essa impressão irresistivelmente conclusiva que sente na música, razão pela qual ela é frequentemente percebida como uma força natural e não como uma construção humana e ideológica” (McClary, 2015MCCLARY, S. Ouverture féministe. Musique, genre, sexualité. Trad. Catherine Deutsch et Stéphane Roth. Paris: La Rue Musicale, 2015. , p. 130).
  • 42
    NT: No texto original de Nietzsche, temos: “Ja! Ich habe sie getödtet, / ich — meine angebetete Carmen!”. Na ópera Carmen, o texto original é: “Vouz pouvez m’arretez... / C’est moi qui l’ai tuée! // Ah! Carmen! / ma Carmen adorée!” (MEILHAC, H.; HALÉVY, L. Carmen: Libreto. Barcelona: Orbis, 1996, p. 32)
  • 43
    Cf. McClary, 2015MCCLARY, S. Ouverture féministe. Musique, genre, sexualité. Trad. Catherine Deutsch et Stéphane Roth. Paris: La Rue Musicale, 2015. , p. 124.
  • 44
    Beauvoir, 1949BEAUVOIR, S. de. Le Deuxième sexe, v. I. Paris: Gallimard, 1949., p. 17.
  • 45
    Cf. Bilodeau, 2022BILODEAU, L. Genre et opéra. L’incertitude des sexes. Paris: Premières Loges, 2022., p. 196. Ainda sobre os comportamentos não tipicamente femininos de Carmen, cf. McClary, 2015MCCLARY, S. Ouverture féministe. Musique, genre, sexualité. Trad. Catherine Deutsch et Stéphane Roth. Paris: La Rue Musicale, 2015. , p. 128.
  • 46
    Cf. McClary, 2015MCCLARY, S. Ouverture féministe. Musique, genre, sexualité. Trad. Catherine Deutsch et Stéphane Roth. Paris: La Rue Musicale, 2015. , p. 125.
  • 47
    Em Nietzsche, os termos masculino e feminino não são sistematicamente aplicados estritamente ao sexo dos indivíduos — aproximando-se do que hoje se nomearia identificações de gênero, como homem efeminado ou mulher masculina —, mas ele os estende à cultura em geral, incluindo os costumes, a política, a moral ou ainda a estética; ver, por exemplo, a associação de Lou Andreas-Salomé ao Eterno masculino: “Tive um sentimento completamente diferente em relação ao semi-romance de sua inseparável irmã Salomé, que me chamou a atenção, ao mesmo tempo, de maneira jovial. […] Mas o assunto mesmo tem sua seriedade, sua grandeza; e se não é certamente o Eterno feminino o que atrai a essa menina, talvez seja o Eterno masculino” (Carta a Heinrich von Stein, 15/10/1885 (634), KSB 7.100); e também: “Ao mesmo tempo, por uma bela ironia do acaso, chegou o livro da Srta. Salomé, o que me tocou de maneira oposta*. […] Há grandeza nele; e se não for o Eterno feminino que atrai a essa pseudojovenzinha, talvez seja — o Eterno masculino” (Carta a Franz Overbeck, 17/10/1885 (636), KSB 7.102). (*) NT : O contraste aqui é com a obra Nascimento da consciência (Entstehung des Gewissens), de Paul Rée, recebida por Nietzsche no dia anterior ao da chegada do livro de Lou Salomé. Na mesma carta, Nietzsche fala do texto de Rée: "Lamentável, incompreensivelmente ‘decrépito’".
  • 48
    McClary, 2015MCCLARY, S. Ouverture féministe. Musique, genre, sexualité. Trad. Catherine Deutsch et Stéphane Roth. Paris: La Rue Musicale, 2015. , p. 132.
  • 49
    Cf. a análise detalhada de McClary, 2015MCCLARY, S. Ouverture féministe. Musique, genre, sexualité. Trad. Catherine Deutsch et Stéphane Roth. Paris: La Rue Musicale, 2015. , p. 133.
  • 50
    McClary, 2015MCCLARY, S. Ouverture féministe. Musique, genre, sexualité. Trad. Catherine Deutsch et Stéphane Roth. Paris: La Rue Musicale, 2015. , pp.138-139.
  • 51
    Habanera (ato 1), cantada por Carmen (cf. Gérard, 2020, pp. 21 et 23). NT: No texto original: “L’oiseau que tu croyais surprendre / Battit de l’aile et s’envola. / L’amour est loin, tu peux l’attendre. / Tu ne l’attends pas, il est là. / […] Il vient, s’en va, puis il revient. / Tu crois le tenir, il t’évite. / Tu crois l’éviter, il te tient. / […] Si tu ne m’aimes pas, je t’aime. / Si je t’aime, prends garde à toi!”.
  • 52
    NT: Em latim, carmen significa canto, poema ou vaticínio.
  • 53
    NT: Na ópera Parsifal, de Wagner, Klingsor é o feiticeiro que criou um jardim mágico com mulheres-flores que tinham como meta seduzir os cavaleiros guardiões do Santo Graal.
  • 54
    Nietzsche denomina também a moral de “verdadeira Circe dos filósofos” (M/A, “Prefácio” 3).
  • 55
    Nietzsche, em O Caso Wagner, não cansa de analisar no que a música wagneriana é uma doença, inclusive a histeria (cf. WA/CW 5 e 7, KSA 6.22 e 27).
  • 56
    Sobre esse ponto, cf. as análises propostas por Liébert, 2012LIÉBERT, G. Nietzsche et la musique. Paris: Presses Universitaires de France, 2012., p. 261 e Grzelczyk, 2015GRZELCZYK, J. Nietzsche et le cas Bizet. Studia Nietzscheana, Paris, 2015. Disponível em: < http://www.nietzschesource.org/SN/grzelczyk-2015>.
    http://www.nietzschesource.org/SN/grzelc...
    , p. 17.
  • *
    Tradução de Wilson Antonio Frezzatti Jr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2022
  • Aceito
    10 Dez 2022
Grupo de Estudos Nietzsche Rodovia Porto Seguro - Eunápolis/BA BR367 km10, 45810-000 Porto Seguro - Bahia - Brasil, Tel.: (55 73) 3616 - 3380 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cadernosnietzsche@ufsb.edu.br