Acessibilidade / Reportar erro

Racionalidade covariante: valores e coerência como constitutivos do conhecimento e da racionalidade científicos

Co-variant rationality: values and coherence as constitutive of scientific knowledge and rationality

Resumos

Neste trabalho, defende-se uma concepção filosófica acerca de duas dimensões distintas do conhecimento científico, mas estreitamente interligadas. A primeira é uma visão de conhecimento que, partindo de uma crítica aos pressupostos da análise tripartida clássica, incorpora a justificação epistêmica de tipo coerentista e também os valores de maneira orgânica e constitutiva, afastando-se de uma imagem inferencial-dedutiva, proposicional e realista de ciência. Em segundo lugar, propõe-se uma visão de racionalidade científica, dita covariante, que também incorpora a justificação coerentista (sob a forma "macroscópica" do equilíbrio reflexivo), bem como atribui um papel central para os valores. Essa visão, juntamente com o alargamento do horizonte axiológico, permite encontrar um compromisso adequado entre contingência e invariância, mostrando-se apta a modelar uma racionalidade em fluxo, sem pontos fixos. Os elementos estruturais e dinâmicos de ambas as dimensões da concepção aqui exposta são compatíveis com os modelos de Hugh Lacey, Larry Laudan e com a metateoria estruturalista, de modo que os elos principais de ligação entre a epistemologia e a racionalidade residem na coerência e nos valores, tendo como pano de fundo uma imagem não dedutiva da ciência.

Racionalidade científica; Justificação epistêmica; Coerência; Inconsistência; Equilíbrio reflexivo; Metateoria estruturalista; Lacey; Laudan; Imagem não dedutiva de ciência


In this work, a philosophical account of two distinct, closely related dimensions of scientific knowledge is argued for. The first one is a view of knowledge that, starting from a principled criticism of the classical tripartite view of knowledge, incorporates a coherentist notion of epistemic justification as well as a role for values in an organic, constitutive manner, departing from an inferential-deductive, propositional, realist image of science. Second, an account of scientific rationality, called a "co-variant" one, is proposed, also incorporating coherentist justification (under the "macroscopic" guise of reflective equili brium), as well as giving values a major role, which, together with the notion of widening the axiological horizon, allows one to find a adequate balance between contingency and invariance, and proves to be appro priate for modelling a rationality in permament flux, with no fixed points. The structural and dynamic elements of both dimensions of the present account are compatible with the models proposed by Hugh Lacey, Larry Laudan and the structuralist metatheory, and the main links between epistemolo gy and rationality are seen to be coherence and values, against the background of a nondeductive picture of science.

Scientific rationality; Epistemic justification; Coherence; Inconsistency; Reflective equilibrium; Structuralist metatheory; Lacey; Laudan; Non-deductive image of science


Introdução

O presente artigo apresenta as linhas gerais de um programa de pesquisa que resgata algumas reflexões que serviram de pano de fundo de estudos realizados durante os últi mos anos, porém que ainda não haviam recebido uma formulação integrada, bem como alguns resultados parciais. O objetivo é chegar a uma imagem de ciência na qual papéis centrais sejam desempenhados por dois elementos: a coerência e os valores, e indicar a fer tilidade metacientífica dessa perspectiva. Mostra-se aqui que há dois caminhos que convergem para esses dois elementos. Um caminho é epistemológico, envolvendo uma reflexão sobre o conhecimento científico, e o outro é do tipo que poderíamos chamar de "normativo", envolvendo uma reflexão sobre a racionalidade científica e a justificação.

1 Valores e coerência como constitutivos do conhecimento

Partimos de um exame de algumas dificuldades e obstáculos relacionados com os elementos constituintes da análise tradicional do conhecimento como "crença verdadeira justificada" (JTB, de justified true belief). Tentaremos mostrar que essa concepção tripartida é demasiado restritiva em vários aspectos, e necessita revisão e expansão. Faremos isso por um caminho distinto daquele usualmente adotado na discussão dos chamados "casos de Gettier" na epistemologia contemporânea (discussão deflagra da por Gettier (1963), e representada, por exemplo, por Dancy (1990), Bernecker & Dretske (2000), Pappas (2000), Luz (1998)). Procuraremos mostrar que os problemas, que levam a propor uma alternativa à concepção JTB, já começam em um nível ainda mais básico do que aquele característico dos casos de Gettier. Veremos que o com ponente da crença precisa ser substituído por outro mais geral, que o componente da verdade deve ser abandonado e que o componente da justificação precisa ser modifi cado no seu teor e receber o acréscimo de um novo elemento. Sustento que tais modificações e expansões nos encaminham para os conceitos de "coerência" e de "valores", dentro de uma imagem não estritamente dedutiva de ciência. A seguir, discutiremos cada um dos componentes da visão tradicional em sequência.

1.1 Crença

A crença é uma atitude proposicional. Mas há um espectro de outras atitudes pro po sicionais que também poderiam aspirar a ser qualificadas como conhecimento, tais como aceitação, prospecção, pressuposição, adesão, endosso, conhecimento de fundo, tentativa, dúvida, crítica (cf. Laudan, 2011; Lacey, 2010). E, em muitos corpos de conhecimento complexos, encontram-se, com frequência, inclusive, atitudes cog ni tivas que nem mesmo são proposicionais. Pensemos, por exemplo, na epistemologia da imagem, dos diagramas, da iconografia etc. Reduzi-las a conteúdos proposicionais seria descaracterizar aquilo que elas têm de mais singular (cf. Casanueva & Bolaños, 2007). Esta é uma primeira indicação de que analisar o conceito de "conhecimento" em termos do conceito de "crença" é demasiado restritivo.

O primado da noção de "crença" na epistemologia defronta-se com um problema adicional quando se pensa em um sujeito epistêmico coletivo. Por meio de uma noção como esta, procurar-se-ia levar a sério, por assim dizer, o importe episte mo lógico singular da noção de "comunidade científica", invocada tantas vezes em diferentes imagens de ciência, porém geralmente de maneira superficial, relegada a uma função mais retórica. Digo "retórica" porque, nas imagens de ciência de Kuhn, Lakatos e outros, não fica claro se - e, caso afirmativo, quais - características epistemologi ca mente peculiares dependem diretamente do fato de o sujeito ser um grupo ou comu nidade. Ora, o problema que se coloca é saber o que seria a crença no caso da comunidade científica. Questões dessa natureza não deveriam ser passadas por alto na epis temologia associada à filosofia da ciência. Elas dizem respeito ao que chamo de "ontologia de suporte" dos processos que envolvem conhecimento, pois, além de discutir sobre (1) o que é o conhecimento e (2) qual o seu portador (knowledge-bearer), a epistemologia também deve preocupar-se com (3) do que esse conhecimento é conhecimento e (4) o que é que tem conhecimento. Pode-se supor que o estado epistêmi co de uma comunidade não é obtido simplesmente ao multiplicar por n o estado cogniti vo dos indivíduos que a compõem. Uma proposta recente, que vai na direção de conferir um estatuto epistemológico definido ao coletivo, é a "cognição distribuída", formulada por Ronald Giere (2002)Giere, R. Scientific cognition as distributed cognition. In: Carruthers, P.; Stitch, S.; & Siegal, M. (Ed). Cognitive bases of science. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. p. 285-99..

Além do mais, essa problematização da noção de crença em um contexto coletivo caminha no sentido de atender ao desafio reiterado por numerosos autores, tanto ligados ao construtivismo social quanto não ligados a ele, de contemplar efetivamente a dimensão social do conhecimento. Nas imagens de ciência mais conhecidas da tradição analítica, costuma-se inserir o aspecto social de maneira ad hoc, como um apêndice ou como um expediente de emergência, e muitas vezes presta-se meramente uma satisfação retórica a essa demanda. O mais usual é relegar o aspecto social às discussões sobre a escolha teórica, o consenso teórico e a racionalidade (em Lakatos, Laudan, Kuhn, Agassi), especialmente quando se trata de apontar os "suspeitos de sempre", responsáveis por algum "resíduo irracional" que escapa aos critérios e regras de escolha teórica. Mas seria justo que nos sentíssemos intrigados. Por que somente a racionalidade haveria de ser social ou comunitária, mas não o próprio conhecimento? Em todo caso, seria difícil incorporar o aspecto social, de maneira plena, dentro de uma perspectiva epistemológica tradicional.

1. 2 Verdade

De um ponto de vista teórico, uma definição de conhecimento estribada na noção de crença verdadeira envolve-nos com o problema da controvérsia realismo x antirrea lismo. Além, é claro, de envolver-nos com as teorias da verdade. Há relativamente pouca discussão direta na literatura acerca dessa conexão entre um aspecto epistemológico e a questão do estatuto cognitivo. No caso das crenças mais "observacionais", poder-se-ia tentar evitar esse problema afirmando que, nesse caso, trata-se da verdade factual (adequação empírica, correspondência), e que nesse contexto seria relativamente não problemático falar em "verdade". Mas tão logo se passa para as teorias científicas avançadas, as quais envolvem entidades, mecanismos e processos inobserváveis, a afirmação de que uma teoria constitui conhecimento acarreta, necessariamente, afirmar que se acredita nessa teoria e que ela é verdadeira. Ora, como se sabe, esse tipo de afirmação é altamente controverso, tendo dado origem a um debate dos mais acalorados na filosofia da ciência. O que significa dizer que uma teoria científica é verdadeira (ou aproximadamente verdadeira)? Como determinar (isto é, por meio de quais indicadores determinar) essa veracidade na prática científica? Finalmente, como demonstrar a existência de uma conexão entre os métodos e técnicas da ciência moderna e a obtenção de crenças verdadeiras?

No presente artigo não seria possível estendermo-nos sobre esse debate e fazer uma análise crítica do realismo, pois nosso foco aqui é outro (embora tendamos a uma posição antirrealista ou, no máximo, realista estrutural acerca do conhecimento científico). De fato, há outro caminho que nos indica a necessidade de desvencilharmo-nos da noção de crença verdadeira. Há um tipo de construto, bastante frequente na ciência contemporânea, cujo caráter disseminado e cuja reconhecida utilidade enquanto estratégia de investigação mostra-nos que o conhecimento nem sempre precisa envolver portadores verdadeiros, nem estar baseado em crença para constituir conhecimento autêntico (no sentido de conhecimento genuíno, viável). Trata-se dos modelos. Os modelos são assumidamente idealizados, simplificados, aproximados, em uma palavra, estritamente falando, são falsos. Mais sério ainda, eles muitas vezes repousam sobre pressupostos mutuamente inconsistentes (pensemos nos chamados "modelos semiclássicos" ou nas aproximações assintóticas e perturbativas). Como diz a famosa frase do estatístico George Box: "todos os modelos estão errados, mas alguns são úteis mesmo assim" (Box, 1987Box, G. E. P.; & Draper, N. R Empirical model-building and response surfaces. New York: John Wiley and Sons, 1987., p. 424). O cientista sente-se perfeitamente confortável com esse tipo de instrumento. E, no que se refere ao filósofo, excluir os modelos enquanto portadores de conhecimento genuíno, em favor de uma imagem de ciência exclusivamente "teórico-cêntrica", levaria a um empobrecimento e a uma distorção do objeto de estudo da metaciência.

Há uma última consideração que nos permite reconectar e fazer convergir o ques tionamento do papel da crença no conhecimento e o questionamento da noção de verdade aplicada ao conhecimento. Trata-se da distinção entre contexto da aceitação e contexto prospectivo proposta por Larry Laudan (cf. 2011 _____. O progresso e seus problemas: rumo a uma teoria do crescimento científico. Tradução R. L. Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2011., p. 152-60).1 À parte o fato de sua imagem de ciência ser explicitamente antirrealista, Laudan tem uma argumentação independente visando estabelecer a possibilidade de prospectar racionalmente - mesmo sem aceitar - as teorias e tradições de pesquisa que venham a apresentar uma alta taxa de progressividade. Note-se que mesmo a aceitação de teorias é pensada por ele em termos não realistas (cf. Laudan, 1981aLaudan, L. A confutation of convergent realism. Philosophy of Science, 48, p. 19-49, 1981a., 2004 _____. The epistemic, the cognitive and the social. In: Machamer, P. & Wolters,G. (Ed.). Science, values and objectivity. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2004. p. 14-23., 2011 _____. O progresso e seus problemas: rumo a uma teoria do crescimento científico. Tradução R. L. Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2011.). Tal progressividade, Laudan tenta caracterizá-la de maneira precisa e, diga-se, não insensível às vicissitudes da história, de maneira não anacrônica e sensível ao contexto histórico, em termos da taxa de crescimento da eficácia na solução de problemas, e não o valor absoluto dessa eficácia (cf. Laudan, 2011 _____. O progresso e seus problemas: rumo a uma teoria do crescimento científico. Tradução R. L. Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2011., p. 149-51).

1. 3 Justificação

O terceiro elemento da análise clássica de conhecimento também deve ser problema tizado. A tese que aqui se defende é que a justificação não é de tipo fundacionista,2 nem deve ser pensada exclusivamente em termos de relações dedutivas. Vejamos o que se pode afirmar a respeito desses dois pontos, começando pelo último. Argumentar-se-á aqui que, de um lado, a justificação não se estabelece exclusivamente em função de relações dedutivas (quer sejam vistas de uma perspectiva fundacionista, quer coerentista). De outra parte, a justificação também não se propaga ou se transmite pelo sistema de conhecimento exclusivamente através de relações dedutivas. Já se pensou, durante a fase áurea da chamada concepção standard ou recebida de teorias, que a inferência dedutiva (por meio da implicação lógica) seria suficiente para pensar a estrutura e o formalismo da ciência e, segundo determinados autores, não positivistas, mas também ligados à visão ortodoxa, como Popper, seria possível até mesmo pensar sua dinâmica. Porém a inferência dedutiva não basta para uma imagem de ciência que faça justiça à complexidade do sistema de conhecimento científico.

Um primeiro motivo para isso é que a tipologia das relações que vigem no sistema de conhecimento científico é caracterizada por uma riqueza que ultrapassa em muito a inferência dedutiva. Tal tipologia inclui, por certo, elementos como analogias, metáforas, similaridades de família, fatores heurísticos, aproximações, condições limítro fes, considerações de simetria etc., que dificilmente poderiam ser reduzidas a complexos de relações dedutivas. O aspecto crucial a notar é que todos esses tipos de relações (e possivelmente ainda outros que não mencionamos aqui) contribuem para formar fluxos - ou, melhor dizendo, campos - de suporte justificativo. Notemos que reco nhecer que a justificação não resulta apenas de relações inferenciais/dedutivas é algo que afeta, por igual, tanto uma concepção fundacionista de justificação quanto uma concepção coerentista. Pode ser oportuno esclarecer aqui que se, por um lado, as noções de relações dedutivas entre proposições e justificação inferencial entre crenças são ex cessivamente restritivas, por outro lado, não há problema em supor que a noção de "estrutura" seja importante para compreender as relações acima mencionadas. Ser modelo de uma estrutura é uma relação que (somada às noções de "homomorfismo" e "isomorfismo" entre estruturas) permite capturar tanto aquilo que tradicionalmente é pensado em termos de demonstração de teoremas a partir de axiomas, dedução de consequências empiricamente testáveis, aplicação de uma teoria à solução de um problema etc., quanto muitos outros processos. Voltaremos ao tema das estruturas mais vezes neste artigo.

Complementar ao ponto anterior é a pergunta pela natureza da justificação. No presente trabalho privilegia-se uma concepção coerentista de justificação, por uma variedade de razões. A primeira delas é que a noção de coerência proporciona uma formulação precisa para a ideia intuitiva de que os sistemas que constituem o conhecimento científico são, de alguma maneira, coesos ou "bem amarrados"; e, com isso, transforma essa ideia, inicialmente metafórica, no pilar central de uma imagem de ciência, passível de formulação precisa, sem no entanto perder o seu poder metafórico. Em segundo lugar, o coerentismo é compatível com um enfoque particularmente bem-sucedido acerca da estrutura e dinâmica das teorias científicas que é a metateo ria estruturalista. Tal enfoque apresenta soluções profícuas para problemas notoriamente difíceis dentro da filosofia da ciência, tais como os da relação teoria-experimento, a teoricidade, a impregnação teórica da observação, a estrutura hierárquica das teorias, sua evolução diacrônica, a redução interteórica, a incomensurabilidade etc. (cf. Balzer, Moulines & Sneed, 1987; Díez & Moulines, 1999Díez, J. A.; & Moulines, C. U. Fundamentos de filosofía de la ciencia. 2 ed. Barcelona: Ariel, 1999.; Moulines, 2010, 2011). A conexão entre estruturalismo metateórico e epistemologia coerentista já fora sugerida no texto clássico do estruturalismo (cf. Balzer, Moulines & Sneed, 1987, cap. 8, seção 6). Em terceiro lugar, os problemas da procura dos fundamentos (especialmente na sua versão empírica) são bem conhecidos da filosofia da ciência; de maneira geral, quase todos eles estão relacionados, de alguma forma, com o fato de que, nas ciências, apesar de persistir um caráter empírico, é estabelecido um distanciamento entre a teoria e a experiência. A história da ciência apresenta-nos outro ângulo desse mesmo aspecto, quando nos fornece numerosos exemplos nos quais a dinâmica do conhecimento científico foi guiada - e escolhas científicas foram determinadas - por uma miríade de fatores além do acordo com a experiência, fatores de caráter teórico, conceitual, sis tê mico. Finalmente, deve-se mencionar uma razão heurística para defender uma concepção coerentista: ela é capaz de proporcionar, de maneira bastante natural, um embasamento epistemológico para mecanismos que se afiguram promissores para a compreensão da racionalidade científica, a saber, o equilíbrio reflexivo e o processo reticular (como veremos adiante).

Cabe interrogar se a justificação predica-se, de fato, às crenças. De uma perspectiva coerentista, pode-se sustentar que a coerência é uma propriedade dos sistemas de crenças, e não das crenças individuais. É em parte devido a oscilar nesse espaço entre a crença e o sistema de crenças que um importante autor coerentista, o Laurence Bonjour da segunda metade dos anos 1980, foi levado a falar de uma "concepção não linear de justificação" e procurou distinguir dois registros de justificação, a saber, o local e o global (Bonjour, 1985Bonjour, L. The structure of empirical knowledge. Cambridge: Harvard University Press, 1985., p. 91). Para ele, a justificação apenas parece linear quando considerada no nível local, porém revela-se não linear no nível global. A preocupação de Bonjour é com o problema da circularidade, que pareceria afetar uma teoria coerentista da justificação que fosse inferencial e linear. De fato, se a justificação se propagasse em cadeias inferenciais, e se recusássemos tanto o infinitismo quanto o fundacionismo, seria difícil evitar o aparecimento de círculos na justificação, do tipo "a é justificado por b, que é justificado por c, e assim por diante... até y, que é justificado por z, que é por sua vez justificado por a". A alegação de alguns coerentistas de que "um círculo é tão menos vicioso quanto maior ele for" não parece ter sensibilizado muitos críticos. No entanto, Bonjour não conseguiu mostrar precisamente onde residiria essa não linearidade, e no que ela consistiria. Por várias vezes ele recai no jargão inferencial, e continua pensando-a, o mais das vezes, como uma simples multiplicidade de linearidades tomadas em conjunto.

Pode-se objetar que a questão da justificação coerentista simplesmente não se coloca no nível local, e a concepção não linear apenas pareceria um expediente necessário quando se tenta, não obstante, tratar desse nível, como faz, por exemplo, Day (1989)Day, T. J. Circularity, non-linear justification and holistic coherentism. In: Bender, J. W (Ed.). The current state of the coherence theory. Critical essays on the epistemic theories of Keith Lehrer and Laurence Bonjour, with replies. Dordrecht: Kluwer, 1989. p. 134-41.. Segundo essa linha de argumentação, as inferências podem ser lineares, porém isso não constituiria um problema, na medida em que elas não transmitem justificação, mas sim apenas estabelecem a pertinência de uma crença ao sistema; este, sim, o objeto legítimo da justificação.

Tem méritos a ideia de que a justificação é uma propriedade que se predica dos sistemas, sendo que as crenças "herdam" a justificação indiretamente, pelo fato de fazerem parte de um sistema justificado. Essa ideia é afirmada também por Dancy (1990Dancy, J. Epistemologia contemporânea. Tradução T. L. Pérez. Lisboa: Edições 70, 1990., p. 143). Porém, resta a questão de por que a justificação nos parece à primeira vista ser local, singular e inferencial. Isso pode ser mais bem compreendido considerando-se outra proposta que existe no sentido de aplicar-se o predicado "x está justificada" a uma dada crença (ou portador de conhecimento) x. Trata-se da visão contextual. Sob esse ponto de vista, quando se fala acerca da justificação de crenças específicas, a rigor está ocorrendo um abuso de linguagem; seria preciso ter em conta o contexto de crenças (mais ou menos extenso, dependendo do caso) a que essa justificação se refere (ainda que implicitamente). Desse modo, uma concepção coerentista de justificação precisaria ser complementada por uma visão contextualista. (Vale lembrar que a necessidade de levar em consideração o aspecto contextual da justificação já era indicada por algumas discussões dos casos de Gettier (cf. Pappas, 1979Pappas, G. S (Ed.). Justification and knowledge. New studies in epistemology.Dordrecht: Reidel, 1979 (Philosophical Studies Series in Philosophy, 17). .).

Contudo, é preciso cautela para caracterizar a natureza de tais contextos de justificação, de modo a não recair na consequência perversa de que crenças injustificadas, convenientemente escolhidas, pudessem fornecer justificação a qualquer crença arbitrária. O problema da determinação do que é um contexto relevante para a justificação, e do espectro de tipos de relações que podem entrar em jogo no processo de justificação, é algo que remete a critérios ou parâmetros. Tais critérios colocam, por sua vez, a possibilidade de que essa determinação seja relativa aos valores admitidos em cada situação. Em um primeiro momento, pensa-se nos valores cognitivos (tais como poder unificador, potencial heurístico, capacidade de solução de problemas, simplicidade etc.). Os valores cognitivos são os que entram em jogo, exclusivamente, no momento da avaliação teórica tal como concebida por Lacey (2008)Lacey, H. Valores e atividade científica 1. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia/Editora 34, 2008.; daí a possibilidade da imparcialidade nesse momento. Mas o conhecimento científico não é apenas uma questão de avaliação teórica imparcial. Há outros momentos essenciais à atividade científica, tais como a escolha de uma estratégia e a aplicação, que também têm impacto (direto ou retroativo) na constituição do conhecimento; e, nestes últimos, entram em jogo também os valores sociais. Como cabe supor que o processo de justificação se estenda a todos esses momentos, segue-se que os valores sociais também possuem relevância para a justificação envolvida no conhecimento científico (cf. Lacey & Mariconda, 2014Lacey, H.; & Mariconda, P. R O modelo das interações entre os valores e as atividades científicas. Scientiae Studia, 12, 4, p. 643-68, 2014.). Assim, o que determina a extensão e o teor do contexto de justificação serão as várias "virtudes epistêmicas" que se pretende implementar. De todo modo, no limite, e no caso global, quando se tivesse acesso epistêmico ao sistema coerente como um todo, o sistema proporcionaria o contexto necessário.

1. 4 Conhecimento, coerência e valores

À luz do que foi exposto sucintamente acima, sugere-se aqui uma concepção de conhecimento que possui as seguintes características principais:

(1) não deveria estar restrita às proposições e às crenças, abrindo espaço para outros tipos de portadores de conhecimento;

(2) não pressupor a noção de "crença verdadeira";

(3) não há de ser exclusivamente inferencial/dedutiva.

De que maneira seria possível, então, entender a noção central de "conhecimento"? Propõe-se aqui que o núcleo dessa noção, que precisaria ser preservado a todo custo, está em requerer minimamente que nossas atitudes cognitivas - não necessariamente atitudes de crença, com a inclusão de algumas atitudes cognitivas que podem nem mesmo ser proposicionais - precisam estar coletivamente justificadas. Propõe-se aqui que

(4) essa justificação deve ter caráter primariamente global, voltada para o sistema, mais do que para os seus constituintes individuais;

(5) o mecanismo de justificação é coerentista, podendo ser relativo a contextos (na seção 3, voltaremos ao problema de caracterizar a coerência);

(6) essa justificação deve dar-se, não em função da busca da verdade, mas sim em função da satisfação de um amplo espectro de valores.

O conhecimento seria, então, entendido da seguinte forma:

um complexo de atitudes cognitivas (sejam crenças ou de outro tipo, pro po sicionais ou não, verdadeiras ou não) justificadas coerente e contextual men te em um sistema que inclui uma dada estrutura de valores.

Como se percebe de imediato, os principais elementos de divergência em relação à ca racterização tradicional são a amplitude do espectro de atitudes cognitivas, a desvin culação em relação à verdade e o lugar dos valores.3

Na realidade, a necessidade de inclusão dos valores em uma imagem filosófica da ciência não é uma novidade. Ela já é um resultado das críticas e metamorfoses que o empirismo sofreu ao longo do século xx, seja pelo ângulo da análise filosófica, seja pelo da historiografia da ciência, seja pelo da sociologia do conhecimento. Desejo evocar aqui, em particular, um aspecto que tem sido mais discutido no âmbito da filosofia geral da ciência, a saber, o problema da subdeterminação empírica. Suponhamos um domínio experimental D de relatos observacionais e resultados experimentais (D não precisa remeter, de maneira alguma, a algo como uma "observação pura". Ele pode ser ricamente estruturado e teoricamente impregnado). Suponhamos também que existe uma teoria T0 que dá conta de D, dentro de certos limites de precisão. Este "dar conta" pode ser conceituado de várias formas, seja em termos clássicos, por meio da derivação dos enunciados que descrevem D a partir dos postulados de T0, seja em termos estruturalistas, pela extensão dos "modelos de dados" de D a modelos plenos de T0 etc. O argumento não é afetado por tal diversidade de formulações, sendo aplicável a todas elas. (Utilizo a expressão "modelos de dados" no sentido de Suppes.) É logicamente possível formular uma teoria T1 (conceitualmente e estruturalmente diferente de T0) que seja empiricamente equivalente a T0, isto é, que reproduza exatamente a mesma descrição de D que é dada por T0, com o(s) mesmo(s) grau(s) de precisão, isto é, possuidora das mesmas subestruturas empíricas. Mais do que isso, é logicamente possível formular outras teorias T1, T2 etc., todas diferentes de T0, no seu aparato conceitual e na sua estrutura, e que, no entanto, reproduzem igualmente a descrição do domínio empírico D. Com efeito, essa não é apenas uma possibilidade lógica, pois a história da ciência apresenta-nos uma variedade de casos em que múltiplas teorias diferentes davam conta dos mesmos fenômenos.

Em tal situação, a pergunta - que interessa tanto à epistemologia e à metodologia, quanto à teoria da racionalidade científica - é a de como se chega a uma escolha entre T0 e suas concorrentes T1, T2 etc., visto que essa escolha é subdeterminada pela experiência, isto é, a experiência, por si só, não basta para dirimir a controvérsia e resolver o impasse. A resposta é que cabe recorrer a critérios de avaliação teórica além da mera adequação empírica. As teorias T0, T1, T2, embora sejam igualmente adequadas em pi ricamente, podem diferir no que respeita a outros parâmetros, tais como o poder uni ficador, a simplicidade, o potencial heurístico, a compatibilidade com outras teorias já aceitas etc. Esses critérios remetem a aspectos conceituais, que vão além do registro empírico, e possuem o caráter de valores, com todas as consequências que isso pode acarretar, a saber, questões sobre ponderação relativa, decidibilidade de conflitos de valores, aceitabilidade dos próprios valores, ambiguidade na aplicação etc. Ou seja, a partir do reconhecimento da subdeterminação empírica, toda e qualquer imagem de ciência de tipo empirista não pode estar inteiramente calcada no empirismo. É preciso levar em conta critérios conceituais e abrir espaço para os valores na dinâmica da ciência e na racionalidade científica.4

A esse propósito, temos aqui uma parte da explicação para o mistério que intrigava Quine. Como é possível que nossa cognição produza um output "torrencial" a partir de um input "ralo" ou "magro"? Perguntava Quine (1980Quine, W. v. O. Epistemologia naturalizada. Tradução A. Loparic. In: Ryle, G.; Strawson, P. F.; Austin, J. L.; & Quine, W. v O. Ensaios. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 115-213 (Os Pensadores). ., p. 164): como acontece de nossas teorias sobre a natureza transcenderem toda a evidência disponível? A resposta é que nossas teorias não são meras compressões ou compactações do input, mas são criações intelectuais que buscam atender, além desse input, a variadas (e historicamente cambiantes) estruturas de valores.

Os valores na ciência não são estáticos; eles possuem uma dinâmica extremamente rica. Para melhor apreciar esse aspecto, convém acrescentar a nossa discussão outra perspectiva, que é complementar, em um sentido muito forte, à discussão sobre a natureza do conhecimento, ou seja, a perspectiva da racionalidade. É o que faremos na sequência, com o objetivo de, posteriormente, interligar ambas as perspectivas por meio de seu substrato comum que é a coerência.

2 Dos valores como constitutivos do conhecimento aos valores constitutivos da racionalidade

Os valores estão entre os fatores dotados de eficácia causal (em termos de cognição e ação) e com poder explicativo (quando tomados no registro metacientífico), que permitem fazer a transição de uma descrição que poderíamos chamar de cinemática da mudança científica para uma teoria propriamente dinâmica dessa mudança. Outros fatores com esse perfil seriam a solução de problemas e os temas científicos no sentido de Holton (cf. Laudan, 2011; Holton, 1988). No que diz respeito a especificar precisamente a maneira pela qual os valores operam na constituição do conhecimento e na racionalidade científica, há pelo menos duas perspectivas filosóficas que são de interesse para o presente trabalho. Os modelos de Lacey e de Laudan já são bem conhecidos e discutidos na literatura, de modo que não caberia nos limites deste artigo uma exposição detalhada (cf. Lacey, 2008, 2010; Laudan, 1981b, 1984, 1996; Tambolo, 2008). Os dois modelos, combinados, fornecem os contornos fundamentais de uma dinâmica dos valores na ciência. O modelo de Lacey de interação entre as atividades científicas e os valores, por meio da introdução da noção de "estratégias de pesquisa", proporciona uma perspectiva sobre os processos de constituição do conhecimento científico e de condicionamento da atividade científica, todos os quais envolvem valores de maneira inescapável, impregnando o conhecimento científico desde a sua gênese. Por outro lado, o modelo reticular de Laudan pode ser visto como parte de uma resposta à pergunta sobre a dinâmica por meio da qual os valores cognitivos se transformam. Laudan leva em conta originalmente apenas os valores cognitivos, mas é plausível supor que os mecanismos por ele postulados possam ser estendidos também a outros âmbitos de valores. Para ele, os valores entram na dinâmica do conhecimento desempenhando o papel de fins ou alvos da investigação. As teorias podem ser entendidas como soluções aos problemas científicos que buscam atender a uma série de valores. Tanto as teorias quanto a metodologia atuam como meios para que se atinja esses fins.

Há ainda uma questão que é particularmente relevante para a presente discussão. Trata-se do problema do individualismo axiológico. Ele pode ser desdobrado nas seguintes questões. Primeiro, os fins justificam os meios? E quais fins? Seriam quaisquer fins? Como arbitrar isso? Mais especificamente, o que impediria que um agente cognitivo operasse segundo fins exclusivamente egoístas, incompatíveis com os fins defendidos pelos demais agentes?

Uma solução pode ser dada em um espírito compatível com aquele do modelo reticulado: o alargamento do horizonte axiológico. Imaginemos uma situação hipotética de individualismo extremo, na qual diferentes indivíduos i adotam diferentes reticu lados {Ai, Mi, Ti}, com diferentes configurações axiológicas, e tentam conduzir suas respectivas pesquisas nessas condições. É possível manter essa situação indefinidamente? O primeiro aspecto a notar é que a pesquisa (especialmente na ciência contemporânea) é uma atividade eminentemente coletiva, que requer divisão de tarefas, coordenação, discussão crítica, interação (muitas vezes à distância), troca de informação etc. Nesse contexto, para que a pesquisa possa ocorrer, a interação social e cogni tiva irá obrigar cada agente i a tomar conhecimento das axiologias Aj de seus pares j com i ≠ j, até que começará a haver uma intersecção entre os componentes axiológicos dos reticulados adotados por diferentes agentes. Os agentes i e j não conseguirão traba - lhar, nem sequer discordar, enquanto não se estabelecer alguma intersecção não vazia Ai ∩ Aj entre suas axiologias (a extensão dessa intersecção pode variar). É inevitável que, no nível coletivo, acabe ocorrendo um processo de negociação e condicionamento recíproco entre as axiologias individuais, nos diferentes reticulados, assim como também há condicionamento recíproco entre teorias, metodologia e axiologia, internamente a um reticulado (cf. Laudan, 1984Laudan, L. A confutation of convergent realism. Philosophy of Science, 48, p. 19-49, 1981a.).

Poderia esse processo de construção de consenso ser impedido por algo semelhante a uma "incomensurabilidade" que porventura se estabelecesse entre os valores presentes nas diferentes axiologias? Se os atores i e j pertencerem à mesma comunidade científica, compartilhando uma mesma agenda de investigação, isso parece muito pouco provável; as divergências, se houver, podem ser resolvidas recorrendo-se aos elementos acerca dos quais existe consenso. Tanto a historiografia mais recente da ciên cia quanto as teorias atuais sobre a mudança científica tendem a convergir nesse aspecto de que o sistema de conhecimento científico transforma-se gradualmente, e mesmo uma mudança que, à primeira vista, aparenta ser abrupta e global, quando examinada em "alta resolução", revela-se composta por várias sucessivas mudanças lo cais. Assim, parece lícito supor que sempre existem alguns elementos que perma necem fixos em cada etapa da transformação. Se eles pertencerem a comunidades rivais ou a gerações científicas diferentes, ainda que haja diferenças no que diz respeito aos valores, a impossibilidade de discussão racional não se impõe necessariamente. Isso porque o processo de discussão axiológica envolve pelo menos duas dimensões. Em primeiro lugar, cabe formular juízos acerca da possibilidade ou impossibilidade da implementação prática daqueles valores (isto é, o fato de que as teorias, os modelos, os experimentos, as aplicações possam ou não ser realizados atendendo a eles), e de sua fertilidade no guiar a pesquisa. Um sistema axiológico que desqualifique todos os sistemas de conhecimento já desenvolvidos anteriormente, e que não consiga dar origem a sistemas minimamente articulados capazes de atender aos seus próprios valores, seria de dificílima implementação prática, e teria sua credibilidade afetada. Em segundo lugar, existe a crítica propriamente axiológica, pela qual os elementos de Aj podem ser submetidos a escrutínio crítico. Essa crítica pode acontecer internamente, em função de seus frutos ou desdobramentos, tais como aplicações teóricas, aplicações empíricas, capacidade de solução de problemas, poder heurístico. Mas ela pode ser comparativa, à luz das realizações de outros reticulados, ou até mesmo externa, em um registro de crítica propriamente filosófica.

Desse modo, vê-se que não é qualquer fim arbitrário que será admissível para um dado agente, mas aqueles fins que atenderem aos constritores internos ao reticulado e também aos constritores externos, isto é, aqueles oriundos de outros reticulados. É justamente nesse plano que se dá o encontro entre os registros individual e coletivo. Isso vai ao encontro da necessidade, apontada anteriormente, de levar em conta de maneira substancial o coletivo em um sentido propriamente epistemológico, e de forma constitutiva. A noção aqui defendida de "alargamento do horizonte axiológico" vai ao encontro da sugestão de Lacey (2014)Lacey, H.; & Mariconda, P. R O modelo das interações entre os valores e as atividades científicas. Scientiae Studia, 12, 4, p. 643-68, 2014. de ver diferentes estratégias de restrição e seleção como células dentro de uma rede de estratégias e perspectivas de valores e interações no mundo da vida. Os comentários feitos na primeira parte, sobre a ontolo gia da crença e o sujeito epistêmico coletivo, juntamente com o processo que acabamos de descrever, de expansão do horizonte axiológico, possibilitam, penso eu, vislumbrar os contornos de uma maneira de atender ao desafio de evitar um reducionismo social nos dois sentidos, a saber, tanto do individual ao social quanto do social ao individual.5

O caminho aqui esboçado aponta para uma concepção de racionalidade que poderíamos chamar de "covariante", na medida em que, em vez de estar fundada em categorias sub specie aeternitatis, tais como a verdade, a justificação, uma definição fixa de racionalidade, a racionalidade é plástica a ponto de amoldar-se a diferentes contextos cognitivos, caracterizados por diferentes perspectivas de valor. A estrutura e a forma da racionalidade mantém-se a mesma, mas ela se manifesta diferentemente em diferentes referenciais cognitivos, tal como acontece - se nos permitimos uma analogia transdisciplinar - com a noção de "covariância" na teoria da relatividade. Se a análise filosófica ainda desejar buscar, em meio à avalanche de pluralidade e variabilidade que a história e a sociologia da ciência mostram (bem documentadas, aliás, por evidências históricas, e que afetam os critérios, os padrões, os valores e as metodologias), certos invariantes na racionalidade científica, ela bem poderá descobrir que o que resta de invariante é (de maneira quase kantiana) a estrutura, a forma da racionalidade, ao passo que seu conteúdo, sua configuração, transformam-se sem cessar ao longo do tempo. Assim, pode-se falar em uma racionalidade sem pontos fixos.

2. 1 Conhecimento científico, pré-científico, equilíbrio reflexivo, fatos e normas

A noção de "equilíbrio reflexivo" consegue capturar a ideia geral de condicionamento recíproco presente na racionalidade científica. O equilíbrio reflexivo mostra-se totalmente compatível com a teoria coerentista da justificação, quando vista mais macros copicamente, no contexto das ciências avançadas (cf. Sosa, 1991). Pode-se dizer que o equilíbrio reflexivo ("macroscópico") está para a coerência ("microscópica") assim como a termodinâmica está para a mecânica estatística. O campo organizador mais básico continua sendo a coerência, porém em uma versão de "granulação mais grossa" (coarse-grained). Um campo de coerência que se estenda por entre uma miríade de componentes específicos "atômicos" de um sistema, por exemplo, crenças, enunciados, princípios, definições, aproximações, analogias, imagens etc., pela sua própria vas cularidade e pulverização pelo sistema, não possui direcionamentos que sejam fáceis de discernir. Já o equilíbrio reflexivo nos permite divisar esses direcionamentos de influência ou, se for preferível, esses fluxos de informação, dentro do campo maior.

Quando se passa a uma descrição em termos de equilíbrio reflexivo (ER), o interesse não está tanto em entrar em muito detalhe acerca da "anatomia" detalhada dos níveis, estratos, elementos ou componentes da microestrutura do sistema. Existe uma grande diversidade desses componentes, com propriedades e estruturas formais diferentes, porém não é com respeito a esse nível que se colocam as interrogações. Em tais situações, os aspectos que revestem interesse para a análise podem requerer apenas uma visão mais macro.

O ER permite capturar as relações de "adequação" entre as teorias T (acopladas a seus problemas, experimentos etc. correspondentes), a axiologia A (valores cognitivos) e a metodologia M (imperativos hipotéticos metodológicos), ou seja, as relações que governam o processo reticular em Laudan (cf. Bezerra, 1999Bezerra, V. A. Estruturas em busca do equilíbrio: o lugar da metametodologia e o papel da coerência no modelo reticulado de racionalidade científica. São Paulo, 1999. Tese (Doutorado em Filosofia). Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo., 2003a _____. Racionalidade, consistência, reticulação e coerência: o caso da renormalização na teoria quântica do campo. Scientiae Studia, 1, 2, p. 151-81, 2003a.). De maneira geral, o ER é um dispositivo apropriado para descrever relações do tipo "fato-e-norma", ou entre teoria e prática, onde os dois polos influenciam-se mutuamente, porém sem recair em uma violação da clássica proibição da falácia naturalista.6 Os exemplos já consagrados versam, em Rawls (cf. 1971Rawls, J. A theory of justice. Oxford: Oxford University Press, 1971., p. 19-21), sobre os nossos juízos morais ponderados e os princípios da justiça, em Goodman (1973Goodman, N. Fact, fiction and forecast. 3. ed. Indianapolis/New York: Bobbs-Merrill, 1973., p. 63-4), sobre as inferências realizadas cotidianamente e as regras de inferência da lógica simbólica, em Moser e colaboradores (cf. Moser, Mulder & Trout, 2009Moser, P. K.; Mulder, D. H.; & Trout, J. D. A teoria do conhecimento: uma introdução temática. Tradução M. B. Cipolla. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009., p. 25), sobre nossas intuições comuns sobre o conhecimento e as teorias epistemológicas e, em Abrantes (1998, p. 22-3, nota 10), sobre as imagens de ciência e a prática científica. Poderíamos ainda ampliar essa lista com exemplos que dizem respeito ao equilíbrio entre a prática de uma língua (especialmente falada) e a sua gramática. No caso de Laudan, existe outro importante complicador, que é a falta de sincronia que se pode estabelecer entre a metodologia explícita (os pronunciamentos metodológicos dos cientistas) e a metodologia implícita (efetivamente implementada na prática científica e nas publicações), ou entre axiologia explícita (valores professados) e axiologia implícita (valores efetivamente buscados e alcançados). Nem sempre as declarações e racionalizações a posteriori estão de acordo com a prática. O ER (que, como vimos, deriva do imperativo da coerência) pode atuar como uma importante e persistente influência no sentido de tentar voltar a sincronizá-las.7

O ER não pode ser visto em termos exclusivamente dedutivos; se pudesse, seria difícil ver como ele escaparia de uma circularidade do tipo "A → B & B → A". Isso ocorreria, por exemplo, quando A gera (isto é, governa, condiciona ou determina) B, e este por sua vez também realimenta (isto é, sanciona, corrobora ou apoia), e assim con di ciona retroativamente, A. A circularidade presente aqui, quando trivializa, constitui-se em um defeito grave do mecanismo. Ao contrário, o caráter não puramente deduti vo indica que também a justificação coerentista, da qual o ER é a versão macroscópica, não deveria ser caracterizada em termos inferenciais e lineares. As relações de "ida" e de "volta" não são simplesmente as inversas uma da outra. Por isso, não se dá uma simples circularidade, mas sim uma realimentação mais complexa.

A racionalidade covariante e o equilíbrio reflexivo - com sua ênfase na interação mútua entre sujeitos e no condicionamento recíproco entre teoria e prática - permitem visualizar uma continuidade com a "racionalidade espontânea" mencionada por Lacey (2014)Lacey, H.; & Mariconda, P. R O modelo das interações entre os valores e as atividades científicas. Scientiae Studia, 12, 4, p. 643-68, 2014. (entendida como resposta inteligente responsável a razões). Os agentes racionais, segundo Lacey, procuram responder às críticas de outros, entram em diálogo com outras perspectivas, e ajustam suas ações em função desses processos. O que muda da racionalidade adotada em um contexto científico para a racionalidade comum é a configuração da base axiológica. Outra ideia que também está em Lacey (2014)Lacey, H.; & Mariconda, P. R O modelo das interações entre os valores e as atividades científicas. Scientiae Studia, 12, 4, p. 643-68, 2014., e para a qual o equilíbrio reflexivo também resulta esclarecedor, é a de que existiria uma "imbricação" (sem, porém, abolir a distinção) entre fato e valor.

3 Conhecimento e racionalidade: o papel da coerência

O elo de ligação entre os dois âmbitos anteriormente discutidos, o do conhecimento e o da racionalidade, está na noção de "justificação via coerência". Essa conexão não é fortuita. Como se argumentou nas seções precedentes, essa noção é constitutiva tanto de uma concepção de conhecimento quanto de uma concepção de racionalidade. A coerência, dir-se-ia, constitui o "cimento" tanto de um quanto de outra. Esquematicamente:

Figura 1.
As interrelações entre as noções epistemológicas e metacientíficas envolvendo a coerência, os valores, o conhecimento e a racionalidade.

Uma questão poderia ser levantada nesta altura. Já nos referimos acima aos modelos que, por sua própria natureza, podem não ser totalmente coerentes. Mas, ao mesmo tempo, estamos sugerindo que a coerência desempenha um importante papel no conhecimento e na racionalidade. Como deve ser entendida, então, a presença dos modelos (possivelmente incoerentes) dentro do sistema do conhecimento (que busca ser governado, em grande escala, pela coerência)? Para compreender melhor esse ponto, precisamos responder à questão: o que é, afinal, a coerência?

O primeiro ponto a notar é que a coerência difere da consistência lógica. A con sistência não é uma condição necessária para a coerência, pois existem sistemas inconsistentes que não deixam de operar de maneira plena e desenvolta como sistemas de conhecimento e aos quais, a fortiori, se adotarmos a associação anteriormente proposta entre conhecimento e coerência, seria difícil negar o estatuto de coerentes, como já foi notado por vários autores (cf. Lakatos, 1979Lakatos, I.; & Musgrave, A. (Ed). A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1979.; Neurath, 1983Cohen, R. S.; & Neurath, M. (Ed). Philosophical papers, 1913-1946. With a bibliography of Neurath in English. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1983., p. 109; Otávio Bueno, 2002Bueno, O. Why inconsistency is not hell: making room for inconsistency in science. In: Olsson, E. J (Ed.). Knowledge and inquiry essays on the pragmatism of Isaac Levi. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 70-86.). A consistência também não é uma condição suficiente para a coerência, pois, nesse caso, estaríamos sujeitos à objeção do isolamento e ao problema da falta de poder heurístico, como já foi apontado por autores desde Moritz Schlick, passando por Bonjour, Moser, Thagard, entre outros. Segundo essa objeção, uma peça de ficção ou um sistema teórico totalmente desvinculado da realidade, caso fossem coerentes, no sentido limitado de consistentes, teriam que ser consideradas tão aceitáveis quanto uma teoria científica bem articulada e avaliada (cf. Schlick, 1959Schlick, M. The foundation of knowledge. Tradução D. Rynin. In: Ayer, A. J (Ed.). Logical positivism. New York: Free Press, 1959. p. 209-27., seção 3; Bonjour, 1985Bonjour, L. The structure of empirical knowledge. Cambridge: Harvard University Press, 1985., p. 108; Moser et al, 2009Moser, P. K.; Mulder, D. H.; & Trout, J. D. A teoria do conhecimento: uma introdução temática. Tradução M. B. Cipolla. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009., p. 93-4; Thagard, 2000Thagard, P. Coherence in thought and action. Cambridge: The MIT Press, 2000., p. 72-3).

É importante notar que, afastando-se da noção de simples consistência, a coerência não é uma propriedade "booleana", cujos estados são apenas a presença ou a ausência dessa propriedade, mas sim uma questão de grau. Há diferentes fatores que podem encorajar, incrementar ou contribuir para a coerência, estreitando os vínculos no sistema, mas que não constituem condições necessárias nem suficientes (portanto, não entrariam como condições em uma definição de coerência). Em primeiro lugar, as conexões interteóricas (e até interdisciplinares) de transferência de informação entre termos T1-teóricos de uma teoria T1 e T2-não-teóricos de uma teoria T2 (no dizer da metateoria estruturalista) são fatores que aumentam a coerência. O mesmo vale para a presença de vínculos (links) de teorização (acréscimo de termos T-teóricos novos a uma teoria T em relação ao arcabouço teórico de uma teoria previamente disponível T0). Outro fator que encoraja a coerência é a ausência da chamada "incon sistência probabilística", sendo esta definida como o grau de implausibilidade de alguma parte do sistema diante de alguma outra parte (e isso por várias razões), ainda que não exista uma contradição direta (cf. Bonjour, 1985Bonjour, L. The structure of empirical knowledge. Cambridge: Harvard University Press, 1985., p. 95; Foley, 1987Foley, R. The theory of epistemic rationality. Cambridge/London: Harvard University Press, 1987., p. 98). Também con tribuem para a coerência as relações de analogia, ou seja, o estabelecimento de iso mor fis mos (totais ou parciais) entre estruturas em diferentes domínios de aplicação. Finalmente, a coerência ver-se-á diminuída na medida em que houver, dentro do sistema, "bolsões" autossuficientes que possam funcionar (e tendam a operar) de maneira isolada (seja no registro explicativo, seja no de solucionador de problemas, heurístico etc.).

Além do mais, podem ocorrer situações nas quais aconteçam conflitos entre diferentes fatores, dentre aqueles capazes de contribuir, positiva ou negativamente, para a coerência. Um exemplo seria, evidentemente, a presença de inconsistência. Ela, em geral, irá reduzir a coerência global do sistema, mas isso pode ser contrabalançado, se esse sistema, mesmo com inconsistências localizadas, possuir uma elevada eficácia solucionadora de problemas ou um elevado potencial heurístico ou uma elevada capacidade unificadora ou sugira interpretações cognitivamente ricas. Exemplos que podem ser mencionados incluem a eletrodinâmica de Maxwell, na qual há tensão do arcabouço metafísico-metodológico mecanicista com o conceito de campo e com o for malismo lagrangiano (cf. Abrantes, 1998Abrantes, P. Imagens de natureza, imagens de ciência. Campinas: Papirus, 1998.; Bezerra, 2006 _____. Maxwell, a teoria do campo e a desmecanização da física. Scientiae Studia, 4, 2, p. 177-220, 2006.); o modelo de Bohr, com seus postulados ao mesmo tempo consistentes e inconsistentes com a mecânica clássica e o eletromagnetismo (cf. Lakatos, 1979Lakatos, I.; & Musgrave, A. (Ed). A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1979., seção 3.c.2; Bezerra, 2003b _____. Schola quantorum: progresso, racionalidade e inconsistência na antiga teoria atômica Parte I: desenvolvimento histórico, 1913-1925. Scientiae Studia, 1, 4, p. 463-517, 2003b.; 2004; Souza, 2000Souza, E. G Multideductive logic and the theoretic-formal unification of physical theories. Synthese, 125, p. 253-62, 2000.); a renormalização na teoria quântica do campo (cf. Bezerra, 2003aBezerra, V. A. Estruturas em busca do equilíbrio: o lugar da metametodologia e o papel da coerência no modelo reticulado de racionalidade científica. São Paulo, 1999. Tese (Doutorado em Filosofia). Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.); vários métodos de aproximação utilizados em mecânica analítica, eletromagnetismo, química teórica mo lecular e física da matéria condensada (tanto no cálculo numérico quanto nas demonstrações teóricas), baseiam-se em condições inconsistentes.8

Paul Thagard, ao propor sua concepção de coerência como satisfação de constritores (constraints), coloca em destaque a natureza multifacetada e contingente da coerência (cf. Thagard, 2000Thagard, P. Coherence in thought and action. Cambridge: The MIT Press, 2000.; Thagard & Verbeurgt, 1998Thagard, P.; & Verbeurgt, K. Coherence as constraint satisfaction. Cognitive Science, 22, 1, p. 1-24, 1998.). Na teoria de Thagard, a coerência é entendida como uma quantidade que deve ser maximizada em um grafo que representa o sistema, no qual os elementos - crenças, proposições, conceitos, representações ou, em geral, outros portadores de conteúdo - acham-se interligados dois a dois por constritores aos quais são atribuídos determinados pesos. A maximização da coerência deve ser obtida com base no complexo de tais relações ponderadas, partindo o conjunto dos elementos em duas classes disjuntas, a dos elementos que deveriam ser aceitos e a dos que deveriam ser rejeitados. Surgem problemas interessantes relativos ao cômputo da coerência, que decorrem da complexidade computacional do problema, o qual não deixa de apresentar analogias com o funcionamento das redes neurais.

Thagard distingue vários tipos diferentes de "problemas de coerência", corres pondendo a formas de coerência, distintas, porém relacionadas, em diferentes registros. Na coerência explicativa, os elementos são crenças ou proposições, e os constri tores incluem poder explicativo, prioridade dos dados, analogia. Na coerência visual, sobre os elementos que são as representações visuais e suas interpretações, estabelecem-se os constritores que incluem proximidade, semelhança, continuidade, prioridade sensorial. Já na coerência conceitual, os constritores incluem associação negativa e positiva, aplicabilidade e proveniência dos conceitos. Os outros tipos delineados por Thagard são a coerência deliberativa, a coerência ética e a coerência dedutiva.

Desse modo, o enfoque de Thagard caminha ao longo de algumas das mesmas linhas já indicadas acima:

(a) ele não trabalha com uma definição de coerência, pois, embora alguns tipos gerais de constritores possam ser antecipados, outros serão próprios da singularidade do sistema em questão; abre-se espaço, assim, para a contingência das situações de coerência, caso a caso;

(b) o modelo não está restrito às inferências dedutivas, nem às atitudes pro posicionais, sendo a coerência tomada como uma noção de escopo bem mais amplo;

(c) a consistência é tomada como um constritor entre outros, não como uma condição necessária nem suficiente; sua ausência pode provocar um decréscimo da coerência e, assim, influenciar na rejeição de determinados elementos do sistema, mas isso não é predeterminado a priori;

(d) o modelo incorpora objetivamente a noção de que a coerência é uma questão de grau, sendo também suscetível de desenvolvimento computa cional, permitindo a modelagem de estudos de casos históricos.

É instrutivo perguntarmo-nos por que, apesar da possível presença de inconsistências em um sistema teórico, não se observa necessariamente a catástrofe cognitiva que deveria seguir-se do problema da trivialidade ou da explosão, característico da lógica clássica. A inconsistência não significa automaticamente um "inferno epistêmico", na expressão de Bueno (2002). Por quê? Suspeito que a resposta está em que os sis temas científicos não são bem caracterizados como sistemas axiomáticos dedutivos. Este aspecto já foi arguido com verve por Otto Neurath (2002, seção 2; 1983, p. 109). Os sistemas dedutivos correspondem apenas a uma pequena parte (e um tanto idealizada) da atividade cognitiva científica. Por isso, uma imagem de conhecimento com um perfil estritamente dedutivo tem dificuldades para capturar o caráter multifacetado e fluido do conhecimento e da racionalidade científicos.9

O que acontece nas teorias científicas e mesmo nas teorias matemáticas - se levarmos a sério a sugestão estruturalista que remonta a Bourbaki (no que se refere à matemática) e a Suppes e Sneed (no que se refere às ciências empíricas) - é

(a) o desdobramento ou mapeamento de propriedades de determinadas estruturas,

(b) o encontro entre estruturas, por meio de relações como subestrutura induzida, homomorfismo, isomorfismo, isomorfismo parcial, imersão etc.

(c) o mapeamento dos modelos dessas estruturas, incluindo o trabalho com os teoremas de representação.

Na matemática (como já anunciado por Bourbaki), as relações inferenciais/dedutivas caracterizariam apenas casos muito particulares, por exemplo, quando se demonstra que, em uma certa estrutura, vale determinada propriedade ou determinado teorema. Porém os objetos matemáticos que continuam no centro da investigação (ainda que os detalhes às vezes possam nos distrair desse fato) são as estruturas. Não se deduz ou infere uma estrutura, pois essa é uma operação que vale para os enunciados, que adquirem seu significado nas estruturas. Na filosofia da matemática mais recente, tanto a organização quanto o funcionamento do conhecimento matemático, seja ele puro ou aplicado, vem sendo pensado em termos de estruturas. Assim, percebe-se que, mesmo na matemática, a noção de implicação ou de acarretamento (entailment) revela-se uma ferramenta bastante limitada para capturar as complexidades de seu fun cionamento. Como já observara Bourbaki, as deduções lógicas são apenas a camada exterior, e talvez a menos interessante, de uma investigação que, na realidade, versa primordialmente sobre as estruturas (cf. Bourbaki, 1950Bourbaki, N. The architecture of mathematics. American Mathematical Monthly, 57, 4, p. 221-32, 1950., p. 223). É por esse motivo que se pode dizer que a matemática não é apenas o desdobrar tautológico (e mecânico) daquilo que já estava contido implicitamente nos axiomas. Ao contrário, o matemático faz descobertas genuínas e necessita desenvolver intuições. Por um lado, ele descobre novas possibilidades insuspeitadas que se abrem no contexto de determinadas estruturas (ou no cruzamento de estruturas); por outro lado, cria novas estruturas, cujas potencialidades ainda não conhece, e aporta elementos para expandir as hierarquias existentes, cujo contorno final não pode prever, embora nesse processo possa ser guiado por determinadas heurísticas e alimentar certas expectativas acerca dos desdobramentos ulteriores.

Voltando agora ao caso das teorias científicas, a sua aplicação empírica, por exemplo, não deve ser vista como "a derivação de consequências dedutivas empiricamente testáveis a partir de axiomas juntamente com hipóteses auxiliares e condições de contorno", tal como queria a concepção "recebida" ou ortodoxa de teoria. A aplicação empírica de uma teoria T pode ser conceituada como sendo a extensão de modelos parciais (sem termos T-teóricos) a modelos plenos de uma estrutura (cf. Moulines, 1996Moulines, C. U Las ideas básicas del estructuralismo metacientífico. Revista de Filosofía, v.9, n.16, p. 93-104, 1996.; Díez & Moulines, 1999Díez, J. A.; & Moulines, C. U. Fundamentos de filosofía de la ciencia. 2 ed. Barcelona: Ariel, 1999.; Lorenzano, 2002Lorenzano, P. La concepción estructuralista en el contexto de la filosofía de la ciencia del siglo xx. In: Díez, J. A & Lorenzano, P. (Ed.). Desarrollos actuales de la metateoría estructuralista problemas y dis cusiones.Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2002. p. 13-78.). Essa ideia básica vem sendo desenvolvida com enorme riqueza de detalhes pelos chamados enfoques semânticos ou modelo-teó ricos, em particular pela metateoria estruturalista. É por essa razão, entre outras, que damo-nos conta de que, tal como na matemática, também nas ciências empíricas (e quiçá até mesmo nas ciências ou disciplinas interpretativas), o pressuposto de que o encadeamento dedutivo seja capaz de mostrar, no plano metacientífico, tudo o que acontece na estrutura e dinâmica da ciência é precisamente aquilo que origina a falsa impressão de completude e generalidade da visão dedutiva. Ao mesmo tempo, é o que está na raiz de algumas limitações e impasses detectados na teoria do conhecimento e na teoria da racionalidade ao longo das últimas décadas. É de se esperar que, na medida em que consigamos libertar-nos desse pressuposto paralisante, abrir-se-á o espaço para desenvolvimentos significativos em nossas imagens filosóficas de ciência.

Agradecimentos. Este texto originou-se de uma apresentação feita no "XXIV Seminário Internacional - Ciência, tecnociência, valores e sociedade" em agosto de 2013 no IEA-USP, iniciativa do Projeto Temático Fapesp "Gênese e significado da tecnociência". Agradeço ao Prof. Hugh Lacey pelo convite para participar do evento, bem como a ele e ao Prof. Pablo R. Mariconda pelos comentários colocados durante o debate, e à audiência presente, pelas questões levantadas. Algumas teses deste artigo foram também apresentadas nos seguintes eventos: HOPOS 2014 em Ghent, Bélgica (viagem financiada pela Fapesp); jornada de pesquisa do grupo de trabalho "Estilos de raciocínio científico" no IEA-USP, 2014; II Ciclo de Palestras Filosofia e Ciência Hoje (a convite da Unisinos, São Leopoldo, RS); e ANPOF 2014, em Campos do Jordão (participação viabilizada pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia do DF-FFLCH-USP). Alguns dos elementos básicos desta investigação remontam ao pós-doutorado que realizei no DF-FFLCH-USP entre 2002 e 2005, com financiamento da Fapesp.

Referências bibliográficas

  • Abrantes, P. Imagens de natureza, imagens de ciência. Campinas: Papirus, 1998.
  • Ayer, A. J (Ed.). Logical positivism.New York: Free Press, 1959.
  • Bender, J. W (Ed.). The current state of the coherence theory. Critical essays on the epistemic theories of Keith Lehrer and Laurence Bonjour, with replies. Dordrecht: Kluwer, 1989.
  • Bernecker, S. & Dretske, F. (Ed.). Knowledge readings in contemporary epistemology. Oxford: Oxford University Press, 2000.
  • Bezerra, V. A. Estruturas em busca do equilíbrio: o lugar da metametodologia e o papel da coerência no modelo reticulado de racionalidade científica. São Paulo, 1999. Tese (Doutorado em Filosofia). Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
  • _____. Racionalidade, consistência, reticulação e coerência: o caso da renormalização na teoria quântica do campo. Scientiae Studia, 1, 2, p. 151-81, 2003a.
  • _____. Schola quantorum: progresso, racionalidade e inconsistência na antiga teoria atômica Parte I: desenvolvimento histórico, 1913-1925. Scientiae Studia, 1, 4, p. 463-517, 2003b.
  • _____. Schola quantorum: progresso, racionalidade e inconsistência na antiga teoria atômica Parte II: crítica à leitura lakatosiana. Scientiae Studia, 2, 2, p. 207-37, 2004.
  • _____. Maxwell, a teoria do campo e a desmecanização da física. Scientiae Studia, 4, 2, p. 177-220, 2006.
  • Blachowicz, J. Reciprocal justification in science and moral theory. Synthese, 110, 447-68, 1997.
  • Bonjour, L. The structure of empirical knowledge. Cambridge: Harvard University Press, 1985.
  • Box, G. E. P.; & Draper, N. R Empirical model-building and response surfaces. New York: John Wiley and Sons, 1987.
  • Bourbaki, N. The architecture of mathematics. American Mathematical Monthly, 57, 4, p. 221-32, 1950.
  • Bueno, O. Why inconsistency is not hell: making room for inconsistency in science. In: Olsson, E. J (Ed.). Knowledge and inquiry essays on the pragmatism of Isaac Levi. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 70-86.
  • Carrilho, M. M (Ed.). Epistemologia posições e críticas. Lisboa: Caloste Gulbenkian, 1991.
  • Carruthers, P.; Stitch, S.; & Siegal, M. (Ed). Cognitive bases of science. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
  • Casanueva, M. & Bolaños, B (Ed.). El giro pictórico epistemología de la imagen.Barcelona/Cidade do México: Anthropos/Universidad Autónoma Metropolitana, 2009.
  • Cohen, R. S.; & Neurath, M. (Ed). Philosophical papers, 1913-1946. With a bibliography of Neurath in English. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1983.
  • Costa, N. C A. O conhecimento científico. São Paulo: Discurso Editorial, 1997.
  • Dancy, J. Epistemologia contemporânea. Tradução T. L. Pérez. Lisboa: Edições 70, 1990.
  • Day, T. J. Circularity, non-linear justification and holistic coherentism. In: Bender, J. W (Ed.). The current state of the coherence theory. Critical essays on the epistemic theories of Keith Lehrer and Laurence Bonjour, with replies. Dordrecht: Kluwer, 1989. p. 134-41.
  • Díez, J. A.; & Moulines, C. U. Fundamentos de filosofía de la ciencia. 2 ed. Barcelona: Ariel, 1999.
  • Díez, J. A.; & Lorenzano, P. (Ed). Desarrollos actuales de la metateoría estructuralista problemas y discusiones. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2002.
  • Foley, R. The theory of epistemic rationality. Cambridge/London: Harvard University Press, 1987.
  • Gettier, E. Is justified belief knowledge?. In: Bernecker, S. & Dretske, F. (Ed.). Knowledge readings in con temporary epistemology. Oxford: Oxford University Press, 2000. p. 13-5.
  • Giere, R. Scientific cognition as distributed cognition. In: Carruthers, P.; Stitch, S.; & Siegal, M. (Ed). Cognitive bases of science. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. p. 285-99.
  • Goodman, N. Fact, fiction and forecast. 3. ed. Indianapolis/New York: Bobbs-Merrill, 1973.
  • Hanson, N. R. A irrelevância da história da ciência para a filosofia da ciência. In: Carrilho, M. M (Ed.). Epistemologia posições e críticas. Lisboa: Caloste Gulbenkian, 1991. p. 133-58.
  • Hempel, C. G. The irrelevance of the concept of truth for the critical appraisal of scientific theories. In: Jeffrey, R. (Ed). Selected philosophical essays of C. G. Hempel. Cambridge: Cambridge University Press, 2000a. p. 75-84.
  • _____. On the cognitive status and the rationale of scientific methodology. In: Jeffrey, R. (Ed). Selected philosophical essays of C. G. Hempel. Cambridge: Cambridge University Press, 2000b. p. 199-228.
  • Holbrook, J. B.; & Mitchan, C. (Ed). Ethics, science, technology and engineering a global resource. 2 ed. Detroit: Macmillan, 2014.
  • Holton, G. Thematic origins of scientific thought - Kepler to Einstein. Cambridge: Harvard University Press, 1988.
  • Jeffrey, R. (Ed). Selected philosophical essays of C. G. Hempel. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
  • Lacey, H. Valores e atividade científica 1. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia/Editora 34, 2008.
  • _____. Valores e atividade científica 2. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia/Editora 34, 2010.
  • _____. Fact/value dichotomy. In: Holbrook, J. B.; & Mitchan, C. (Ed). Ethics, science, technology and engineering a global resource. 2 ed.Detroit: Macmillan, 2014 v. 2, p. 223-6..
  • Lacey, H.; & Mariconda, P. R O modelo das interações entre os valores e as atividades científicas. Scientiae Studia, 12, 4, p. 643-68, 2014.
  • Lakatos, I. O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa científica. In: Lakatos, I.; & Musgrave, A. (Ed). A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1979. p. 109-243.
  • _____. History of science and its rational reconstructions. In: _____. The methodology of scientific research programmes: Philosophical papers. Cambridge: Cambridge University Press, 1978 v. 1, p. 102-38. .
  • Lakatos, I.; & Musgrave, A. (Ed). A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1979.
  • Laudan, L. A confutation of convergent realism. Philosophy of Science, 48, p. 19-49, 1981a.
  • _____. Science and hypothesis Historical essays on scientific methodology.Dordrecht: Reidel, 1981b.
  • _____. Science and values The aims of science and their role in scientific debate. Berkeley: University of California Press, 1984.
  • _____. Beyond positivism and relativism Theory, method and evidence.Boulder: Westeview Press, 1996.
  • _____. The epistemic, the cognitive and the social. In: Machamer, P. & Wolters,G. (Ed.). Science, values and objectivity. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2004. p. 14-23.
  • _____. O progresso e seus problemas: rumo a uma teoria do crescimento científico. Tradução R. L. Ferreira. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
  • Lorenzano, P. La concepción estructuralista en el contexto de la filosofía de la ciencia del siglo xx. In: Díez, J. A & Lorenzano, P. (Ed.). Desarrollos actuales de la metateoría estructuralista problemas y dis cusiones.Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2002. p. 13-78.
  • Luz, A. M. Crença verdadeira justificada é conhecimento? Uma introdução ao problema de Gettier. In: Mortari, C. A.; & Dutra, L. H de A. (Ed.). Anais do IV Encontro de Filosofia Analítica. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1998. p. 133-52.
  • Machamer, P.; & Wolters, G. (Ed). Science, values and objectivity. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2004.
  • Mortari, C. A.; & Dutra, L. H de A . (Ed.). Anais do IV Encontro de Filosofia Analítica. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1998.
  • Moser, P. K.; Mulder, D. H.; & Trout, J. D. A teoria do conhecimento: uma introdução temática. Tradução M. B. Cipolla. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
  • Moulines, C. U Las ideas básicas del estructuralismo metacientífico. Revista de Filosofía, v.9, n.16, p. 93-104, 1996.
  • _____. The nature and structure of scientific theories. Metatheoria, 1, 1, p. 15-29, 2010.
  • _____. Cuatro tipos de desarrollo teórico en las ciencias empíricas. Metatheoria, 1, 2, p. 11-27, 2011.
  • Neurath, O. Radical physicalism and the "real world". In: Cohen, R. S & Neurath, M. (Ed.). Philosophical papers, 1913-1946. With a bibliography of Neurath in English. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1983. p. 100-14.
  • _____. Pseudorracionalismo de la falsación Tradução e notas A. Ibarra. Redes, 10, 19, p. 105-18, 2002.
  • Olsson, E. J (Ed.). Knowledge and inquiry essays on the pragmatism of Isaac Levi. Cambridge:Cambridge University Press, 2006.
  • Pappas, G. S (Ed.). Justification and knowledge. New studies in epistemology.Dordrecht: Reidel, 1979 (Philosophical Studies Series in Philosophy, 17). .
  • Quine, W. v. O. Epistemologia naturalizada. Tradução A. Loparic. In: Ryle, G.; Strawson, P. F.; Austin, J. L.; & Quine, W. v O. Ensaios. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 115-213 (Os Pensadores). .
  • Rawls, J. A theory of justice. Oxford: Oxford University Press, 1971.
  • Ryle, G.; Strawson, P. F.; Austin, J. L.; & Quine, W. v O. Ensaios. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
  • Schlick, M. The foundation of knowledge. Tradução D. Rynin. In: Ayer, A. J (Ed.). Logical positivism. New York: Free Press, 1959. p. 209-27.
  • Sosa, E. Equilibrium in coherence?. In: _____. Knowledge in perspective Essays in epistemology. Cambridge: Cambridge University Press, 1991 Cap. 15, p. 257-69. .
  • Souza, E. G Multideductive logic and the theoretic-formal unification of physical theories. Synthese, 125, p. 253-62, 2000.
  • Tambolo, L. Metametodologia e fini della scienza a partire da Laudan. Trieste, 2008. Tese (Doutorado em Filosofia). Università degli Studi di Trieste.
  • Thagard, P. Coherence in thought and action. Cambridge: The MIT Press, 2000.
  • Thagard, P.; & Verbeurgt, K. Coherence as constraint satisfaction. Cognitive Science, 22, 1, p. 1-24, 1998.
  • Van Der Burg, W.; & Van Willigenburg, T. (Ed). Reflective equilibrium essays in honor of Robert Heeger. Dordrecht: Kluwer, 1998 (Library of Ethics and Applied Philosophy, 2) .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2014
Universidade de São Paulo, Departamento de Filosofia Rua Santa Rosa Júnior, 83/102, 05579-010 - São Paulo - SP Brasil, Tel./FAX: (11) 3726-4435 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretaria@scientiaestudia.org.br