Acessibilidade / Reportar erro
Este documento comenta:

Comentário a “Entre erros férteis e verdades anódinas: sobre “Foucault, a arqueologia e as palavras e as coisas: cinquenta anos depois”, de Ivan Domingues”

Antes de tecer qualquer comentário ao texto, é preciso pontuar que Michel Foucault é conhecido por sua crítica ao comentário e à prática de interpretação, em geral. O filósofo francês argumentava que o comentário tem o efeito de estabelecer uma autoridade entre o texto original e o comentário, sendo este último considerado como a interpretação autorizada e definitiva do texto. Nesse sentido, o próprio texto de Cesar Candiotto (2023CANDIOTTO, C. Entre erros férteis e verdades anódinas: sobre “Foucault, a arqueologia e As palavras e as coisas: cinquenta anos depois”, de Ivan Domingues. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, n. 4, p. 109-126, 2023.) já é um comentário e o texto de nossa autoria soaria como um comentário ao comentário. No entanto, comentemos!

Sem a pretensão de que este comentário exerça algum tipo de controle e dominação do texto que ora analiso, é oportuno frisar que o artigo “Entre Erros Férteis e Verdades Anódinas” trava um importante diálogo entre dois pensadores brasileiros: Ivan Domingues e Cesar Candiotto. Les Mots et Les Choses, de 1966, obra seminal de Michel Foucault, é a via pela qual se estabeleceu o diálogo. Mais que uma discussão catedrática, temos um texto que fomenta o debate e a disseminação do pensamento foucaultiano, no Brasil. Nunca é demais lembrar que Domingues traça importantes reflexões sobre as condições de possibilidade de uma filosofia brasileira, para a qual “[a] velha máxima de Kant e do iluminismo tem ainda grande atualidade e poderá nos servir de guia, elevando a nossa autoestima.” (DOMINGUES, 2018DOMINGUES, I. O Intelectual Cosmopolita Globalizado é um Outsider. Revista IHU On-line. São Leopoldo: Instituto Humanitas - Unisinos, p. 86-94, 2018., p. 90).

Isso se deve ao fato de que nós, os filósofos brasileiros, desconfiamos dos “outros filósofos” brasileiros e, portanto, é preciso ainda ter em mira, segundo, Ivan Domingues, o “[...] sapere aude, ousar pensar por nós mesmos e vencer a nossa minoridade intelectual - ontem por causa de nossa condição de colônia; hoje por causa de nós mesmos, livres e independentes, mas com a cabeça ainda colonizada.” (DOMINGUES, 2018DOMINGUES, I. O Intelectual Cosmopolita Globalizado é um Outsider. Revista IHU On-line. São Leopoldo: Instituto Humanitas - Unisinos, p. 86-94, 2018., p. 91).

Seguindo essa perspectiva e citando Ivan, Candiotto destaca um ponto importante a ser observado, que é a relação entre a arqueologia e a epistemologia, que o livro de Domingues tem o escopo de examinar. A extensão da arqueologia foucaultiana, a qual escava o solo em que as ciências humanas se enraízam e, ao mesmo tempo, apresenta a instabilidade do objeto, isto é, o homem - “[...] aquela invenção recente e que está em vias de se encerrar” (FOUCAULT, 2007FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 9. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007., p. 536) - sobre o qual essas ciências se constituem, é o campo onde os pensadores brasileiros discutem. Por isso, os dois filósofos tupiniquins concordam que Foucault não tem interesse algum por um tipo de arqueologia das ciências humanas que busque pelo estatuto primeiro de uma cientificidade destas mesmas “ciências”. Pela perspectiva do pensador francês, a arqueologia pretende desvelar que seu “[...] objeto, o homem, é um acontecimento instável na ordem do saber.”

Já se vão quase 58 anos da publicação de As palavras e as coisas, e a obra ainda suscita a reflexão e aproxima pensadores, como é o caso de Domingues e Candiotto, cujo interesse é o debate rigoroso e respeitoso entre filósofos brasileiros, os quais, tradicionalmente, não costumam se citar, como o próprio Ivan destaca, em uma entrevista: “[...] continuamos com o complexo de vira-latas e conforme viu o diretor do Scielo, ao comentar a constatação de colegas dos países centrais segundo a qual brasileiro não cita brasileiro.” (DOMINGUES, 2018DOMINGUES, I. O Intelectual Cosmopolita Globalizado é um Outsider. Revista IHU On-line. São Leopoldo: Instituto Humanitas - Unisinos, p. 86-94, 2018., p. 90). Por essa linha, concordamos com o professor Cesar Candiotto, que escreveu sobre o seu colega e a sua obra: “Ciente de diversas incursões realizadas acerca do Opus Magnum de Michel Foucault, não tenho dúvidas de que estamos diante de um dos mais significativos esforços de análise crítica sobre a arqueologia do saber realizados no Brasil.”

Sobre este comentário, quero deixar mais uma vez dito que Foucault é crítico ao comentário, porque, na Idade Clássica, ele mantém uma identidade com a representação. Por essa razão, o comentário é uma forma de explicitar a representação e fixar a linguagem, no interior do discurso e a sacralizar. A atividade crítica, portanto, é uma maneira de profanar o comentário e libertar a linguagem dos limites do discurso, conforme registrou Foucault: “Desde a idade clássica, comentário e crítica opõe-se profundamente. Falando da linguagem em termos de representações e de verdade, a crítica a julga e a profana.” (FOUCAULT, 2007FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 9. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007., p. 111). Sacudir o solo onde os discursos ficam sedimentados e a linguagem petrificada é a tarefa de uma filosofia que se instaura com e a partir da arqueologia foucaultiana e faz da atitude crítica o seu modo de ser e fazer.

Referências

  • CANDIOTTO, C. Entre erros férteis e verdades anódinas: sobre “Foucault, a arqueologia e As palavras e as coisas: cinquenta anos depois”, de Ivan Domingues. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, n. 4, p. 109-126, 2023.
  • DOMINGUES, I. O Intelectual Cosmopolita Globalizado é um Outsider Revista IHU On-line São Leopoldo: Instituto Humanitas - Unisinos, p. 86-94, 2018.
  • FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 9. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    11 Jul 2023
  • Aceito
    17 Jul 2023
Universidade Estadual Paulista, Departamento de Filosofia Av.Hygino Muzzi Filho, 737, 17525-900 Marília-São Paulo/Brasil, Tel.: 55 (14) 3402-1306, Fax: 55 (14) 3402-1302 - Marília - SP - Brazil
E-mail: transformacao@marilia.unesp.br