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Algumas reflexões sobre o filisteu da formação (Bildungsphilister) e o espírito livre em nossos estabelecimentos de ensino

Some reflections on the philistine of education (Bildungsphilister) and the free spirit in our educational institutions

Resumo:

O objetivo deste texto é, tendo como pano de fundo a distinção entre as noções nietzschianas de filisteu da formação (Bildungsphilister) e de espírito livre (Freigeist), investigar de qual dessas duas personagens nós, professores das instituições de ensino superior brasileiras, estamos mais próximos. O filisteu é o antípoda do genuíno homem de cultura, do artista (Künstler). Por outro lado, o espírito livre é a exceção, é aquele que está desvinculado dos valores e dos hábitos vigentes, ele não se prende às coisas, caminha livremente. Trata-se, neste artigo, de fazer algumas reflexões, pois trazemos mais perguntas que respostas.

Palavras-chave:
Espírito livre; filisteu da formação; educação; universidade

Abstract:

The purpose of this paper is, in the context of the distinction between Nietzsche's notions of cultural philistine (Bildungsphilister) and free spirit (Freigeist), to discuss which of these two types we, professors at Brazilian higher education institutions, are more similar. The philistine is the opposite of the genuine man of culture and the artist. The free spirit, on the other hand, is the exception, he is one who is disconnected from the values and habits in force, he doesn't cling to anything and walks freely. In this article, it is a matter of making some reflections, as we bring more questions than answers.

Keywords:
Free spirit; Cultural philistine; Education; University

Talvez possamos considerar o filósofo-professor universitário um acontecimento relativamente recente na história da filosofia: Kant (Königsberg), Schopenhauer (Berlim), Hegel (Jena, Heidelberg, Berlim), Nietzsche (Basileia), Heidegger (Marburg, Freiburg), Foucault (Túnis, Paris VIII, Colège de France) e Deleuze (Paris, Lyon) lecionaram em Universidades, mas Hobbes, Descartes, Espinosa, Locke, Hume, Leibniz, Rousseau e Marx não foram professores universitários, embora alguns destes últimos ministrassem aulas de alguma forma, como Hobbes, ou tentaram ingressar em universidades como docentes e foram rejeitados, como Hume, ou ainda recusaram convites de universidades, como Espinosa.

A Academia de Platão e o Liceu aristotélico não podem ser comparados com as nossas universidades. Essas escolas fundadas em bosques nos arredores de Atenas no século IV a.C. e fechadas, respectivamente, no século VI pelo imperador bizantino Justiniano I e no século III com a invasão de Atenas pelos hérulos e godos, não só ministravam aulas e debates públicos, mas também possuíam um círculo mais restrito de discípulos que muitas vezes residiam no próprio local.1 1 Sobre a Academia, cf. Malato, 2009, p. 7. Parece que o fundador do Liceu enquanto instituição foi Teofrasto e não Aristóteles (cf. Mesquita, 2005, pp. 99-106). É possível afirmar que cinquenta anos após a morte de Aristóteles o Liceu já teria se apagado. De qualquer forma, o último escolarca foi Andrônico de Rodes por volta de 40 a.C. A ligação à escola era uma decisão de seguir e vivenciar a doutrina de seu mestre. Algo similar foi pensado pelo próprio Nietzsche, talvez sem as aulas públicas e a relação mestre-discípulo nos moldes antigos. Nesse projeto do filósofo alemão, temos presente a concepção de mestre de si mesmo. Em uma carta a Erwin Rohde de 15 de dezembro de 1870, Nietzsche destaca a necessidade de se descolar dos valores vigentes, pois da universidade não podemos esperar nada realmente revolucionário:

somente poderemos chegar a ser mestres de verdade [wirklichen Lehrern] desde que nos elevemos por todos os meios do clima desta época e sejamos não somente homens sábios [weisere], mas, sobretudo, melhores [bessere]. Aqui também sinto, antes de tudo, a necessidade [Bedürfniß] de sermos verdadeiros [wahr]. E é por isso que não posso suportar a atmosfera da academia muito tempo mais. (Correspondencia II, p. 174, KSB 3.165)

Diante disso, o filósofo alemão propõe uma nova Academia grega: “Estou refletindo com toda tranquilidade se, ao mesmo tempo, nós não deveríamos produzir uma ruptura com a filologia existente até agora e sua perspectiva formadora [Bildungsperspektive]. Estou preparando uma exortação a todas as naturezas não completamente sufocadas e enredadas no tempo atual” (Correspondencia IINIETZSCHE, Friedrich W. Correspondencia II: abril 1869 - diciembre 1874. Org.: L. E. de Santiago Guervós. Madrid: Trotta , 2007., p. 175, KSB 3.165-166). Nietzsche ressalta a Rohde que essa ideia não é uma excentricidade de sua parte, mas uma “necessidade ou exigência (Noth)”. Ele acrescenta que, mesmo que sejam poucos os companheiros que consigam juntar, alguns conseguirão chegar a “essa ilha na qual não se precisa mais tampar os ouvidos com cera”: “Então, seremos nossos mestres mútuos, nossos livros serão apenas anzóis para atrair alguém para nossa comunidade monacal e artística” (Correspondencia IINIETZSCHE, Friedrich W. Correspondencia II: abril 1869 - diciembre 1874. Org.: L. E. de Santiago Guervós. Madrid: Trotta , 2007., p. 175, KSB 3.165-166). Todos os modos lícitos seriam utilizados para fundar essa Academia, inclusive exigir honorários mais elevados das instituições em que eles já estavam integrados. Nietzsche finaliza a carta esclarecendo o caráter dessa Academia: “Claro que nossa escola filosófica não é uma reminiscência histórica ou um capricho arbitrário - não nos impulsiona por esse caminho uma necessidade [Noth]?” (Correspondencia IINIETZSCHE, Friedrich W. Correspondencia II: abril 1869 - diciembre 1874. Org.: L. E. de Santiago Guervós. Madrid: Trotta , 2007., p. 175-176, KSB 3.165-166). Esse projeto, de alguma forma, dura ainda alguns anos, pelo menos até 1877, quando Malwida von Meysenbug pretende ajudar o filósofo a organizar um falanstério2 2 O falanstério é uma comunidade idealizada pelo socialista e cooperativista francês Charles Fourier, visando a uma plena realização da natureza humana. pessimista e aristocrático.3 3 Cf. Halévy, 1989, pp. 160-161.

Mas nós - professores universitários de uma instituição pública brasileira - precisamos chegar a tal ponto? Temos a mesma necessidade ou exigência que impulsionava Nietzsche a querer se elevar dos valores e das condições vigentes? Valeria para nós as críticas que o filósofo alemão faz aos colegas alemães em Schopenhauer como educador (1874)? Eis algumas delas: o Estado paga e escolhe quais professores-filósofos podem ensinar, quantos e onde eles vão trabalhar: o Estado, assim, tem a prerrogativa de dizer quem é um bom filósofo, quantos são e onde são necessários; e, além disso, o Estado força os escolhidos a estarem entre determinadas pessoas para determinadas atividades, a ensinarem para todo jovem acadêmico que se dispor a estudar filosofia num estabelecimento de ensino, diariamente, em horários fixos (cf. SE/Co. Ext.III 8, KSA I.411-427). Nietzsche pergunta:

pode propriamente um filósofo, com boa consciência, comprometer-se a ter diariamente algo para ensinar? E a ensiná-lo diante de qualquer um que queira ouvir? Ele não tem de se dar a aparência de saber mais do que sabe? não tem de falar, diante de auditório desconhecido, sobre coisas das quais somente com o amigo mais próximo poderia falar sem perigo? E, em geral: não se despoja de sua mais esplêndida liberdade, a de seguir seu gênio, quando este chama e para onde este chama? - por estar comprometido a pensar publicamente, em horas determinadas, sobre algo pré-determinado. (SE/Co. Ext. III 8, KSA I.416)4 4 Conforme tradução de Rubens R. Torres Filho, em Nietzsche, 1978, p. 80. A partir de agora RRTF.

E o filósofo alemão ainda exclama: “E isso diante de jovens!”, os quais não têm muita experiência de vida. Para ele, as autênticas cultura e formação sempre foram antagônicas ao Estado. Por mais que o Estado promova a cultura, segundo Nietzsche, ele o faz apenas para promover a si mesmo, tem como alvo somente seu bem e sua existência. Há no Estado também uma mentalidade de acúmulo de dinheiro: “O que os negociantes querem, quando exigem incessantemente instrução [Unterricht] e formação [Bildung], é sempre, no final das contas, lucro” (SE/Co. Ext. III 6, KSA I.400).5 5 Tradução de RRTF, modificada, em Nietzsche, 1978, p. 76.

Não é tema deste texto abordar essa complicada relação entre Estado e universidade em nossa época. Desse modo, responder às questões acima, para nós, implica investigar se é possível hoje um professor universitário filósofo. Os exemplos de filósofos acima talvez já nos mostrassem que é possível o caráter filosófico prosperar junto às obrigações institucionais. Entretanto, temos que reduzir um pouco mais o escopo de nossa questão condutora: a filosofia é compatível com certas regras da Universidade, com certas atividades que um professor universitário tem a obrigação de realizar? Mas precisamos especificar ainda mais nosso problema: não queremos pensar a questão por meio de um rol imenso de filosofemas ou de forma geral, nem na universidade de modo muito abstrato. Portanto, lançaremos mão de uma certa perspectiva nietzschiana acerca da filosofia e teremos como referência, na medida do possível, a universidade brasileira. Dissemos “na medida do possível, a universidade brasileira”, pois nossa referência só pode ser o que nós próprios vivenciamos e conhecemos.

A concepção nietzschiana de filosofia que mais nos move é aquela que afirma que a filosofia deve ser a má consciência de sua época. No parágrafo 212 de Para além de bem e mal, ao descrever as características dos filósofos do futuro, Nietzsche declara:

Parece-me cada vez mais que o filósofo, enquanto um homem necessário [nothwendiger Mensch] do amanhã e do depois do amanhã, encontrou-se e teve de encontrar-se sempre em antagonismo [Widerspruch] com seu hoje: seu inimigo sempre foi o ideal de hoje. Até agora todos esses extraordinários promotores do homem aos quais se dá o nome de filósofos, e que raras vezes se sentiram como amigos da sabedoria, mas antes como néscios desagradáveis e como perigosos pontos de interrogação, - encontraram sua tarefa, sua dura, involuntária, irrecusável tarefa, mas finalmente a grandeza de sua tarefa, em ser a má consciência [böse Gewissen] de seu tempo. (JGB/BM 212, KSA 5.145)

Ser contra sua época é apontar contra os valores vigentes, lançar um olhar de desconfiança contra aquilo que parece ser o mais sólido e inquestionável. Nietzsche pergunta por que o bem é considerado superior ao mal, por que a verdade é superior à falsidade. Esse movimento não tem por objetivo apenas questionar (e, eventualmente, destruir) os valores vigentes, tem por meta abrir espaço para as várias possibilidades da capacidade criativa humana, ou seja, construir novos valores que propiciem o surgimento de outros aspectos do humano, que nos levem para além das expressões com as quais estamos acostumados. Essa postura é a mesma do espírito livre, a personagem elevada de Humano, demasiado humano.

O espírito livre não se aprisiona em sistemas filosóficos rígidos. Tomamos a palavra de Schelling, da quinta carta de Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo:

Nada indigna mais uma cabeça filosófica do que ouvir dizer que, de agora em diante, toda filosofia tem de ficar aprisionada nos grilhões de um único sistema. Nunca esse espírito se sentira maior do que ao ver diante de si a infinidade do saber. Toda a sublimidade de sua ciência consistiria justamente em nunca poder perfazer-se. No instante em que ele próprio acreditasse ter perfeito o seu sistema, ele se tornaria insuportável para si mesmo. Nesse mesmo instante, deixaria de ser criador e se reduziria a um instrumento de sua criatura. [...] nada pode ser mais pernicioso para a dignidade da filosofia que a tentativa de forçá-la a entrar nos limites de um sistema teórico universalmente válido.6 6 Schelling, 1973, p. 191. Tradução de RRTF.

Em termos nietzschianos, o tipo espírito livre é a exceção, é aquele que está desvinculado dos valores e dos hábitos vigentes, ele não se prende às coisas, caminha livremente (cf. MA I/HH I 291, KSA 2.234-235). Por isso, por ser “um andarilho sobre a terra” (MA I/HH I 638, KSA 2.363), a sociedade o considera um louco ou criminoso (cf. MA I 282, KSA 2.230-231). Ele afronta a cultura vigente porque é capaz de produzir novos hábitos, uma nova filosofia e, principalmente, uma nova cultura.7 7 Cf, também MA I/HH I 34, 225-227 e 230, KSA 2.53-55, 189-191 e 193. Porém, um mesmo espírito livre não é em todas as épocas e em todos os lugares um espírito livre, ele deve afrontar a tradição, deve ser a má consciência de sua época e lugar. O que caracteriza o espírito livre é a liberdade em face da tradição. Desse modo, é um conceito relativo:

Espírito livre [Freigeist], um conceito relativo. - Chama-se de espírito livre alguém que pensa diferente do que se esperaria com base em sua proveniência, seu ambiente, seu status e sua função ou com base nas visões predominantes em seu tempo. Ele é a exceção, os espíritos cativos [gebundenen Geister] são a regra; estes o censuram pelo fato de que seus princípios livres têm origem no desejo de sobressair-se ou mesmo provocam ações livres, isto é, ações que são incompatíveis com a moral cativa. (MA I/HH I 225, KSA 2.189)

Nietzsche, em Humano, demasiado humano, vê no antidogmatismo do espírito científico o espírito livre, o qual deve introduzir dúvida e desconfiança contra a certeza. As convicções metafísicas levam a crer que nelas se encontra o fundamento último e definitivo sobre o qual deve se assentar todo o futuro da humanidade. A ciência, por sua vez, requer a dúvida e a desconfiança (cf. MA I/HH I 22, KSA 2.43-44). O espírito científico não se agarra às suas hipóteses com fanatismo, não considera suas opiniões como convicções (cf. MA I/HH I 635, KSA 2.360-361).

Embora apareçam em momentos diferentes da produção filosófica nietzschiana, podemos considerar o filisteu da formação (Bildungsphilister) o tipo antagonista do espírito livre.8 8 Cf. DS/Co. Ext. I 2, 3 e 8, KSA I.164-177 e 201-208. Nietzsche acredita ter sido responsável pela criação do termo “filisteu da formação”. Embora o filósofo alemão utilize o termo por toda sua produção, o uso concentra-se especialmente no texto sobre David Strauss, de 1873, e nos fragmentos póstumos até meados de 1875. Embora na maior parte dos textos em português se traduza Bildungsphilister por filisteu da cultura, preferimos traduzir aqui Bildung por formação. Em nossa concepção de tradução, pensamos que os termos utilizados na língua final devem se aproximar, o máximo possível, dos termos na língua original, inclusive em sua origem etimológica. O significado da palavra deve ser explicado por nós, e não devemos assumir que a escolha da palavra na tradução já seja suficiente para isso. No entanto, devemos considerar que, como no português, há no alemão uma zona de sobreposição entre os significados dos termos “Kultur” (cultura) e “Bildung” (formação). Nietzsche, ao usar Bildungsphilister, está criticando o que seus contemporâneos chamam de formação e cultura, ou seja, a confusão que fazem entre cultura e mercadoria e entre formação ou instrução, ou ainda erudição. Ele é o antípoda do genuíno homem de cultura, do artista (Künstler). Acredita ser um valoroso representante da cultura, que sua formação (Bildung) é a completa expressão da autêntica cultura alemã, porém é um ámousos, totalmente estranho às musas, não tem nenhum senso artístico. O filisteu não é um criador, é apenas um reprodutor de pretensas obras de arte e também um comerciante da cultura e da formação. Sua divisa é “não se deve mais buscar”, pois acredita já ter posse de tudo - e tudo pode ser comercializado. As obras, para serem vendidas, devem ser de fácil entendimento e adaptadas ao gosto dominante. Para Nietzsche, os verdadeiros artistas e intelectuais se caracterizam por uma busca corajosa e insaciável, não são eruditos como o filisteu. O pensamento do filisteu é a apoteose do lugar comum, a racionalização de todas as esferas da vida e o nivelamento de todas as coisas. A cultura filisteia, a rigor, não é uma cultura, pois é uma mistura caótica de estilos, doente e decadente. Parafraseando o fragmento 83 de Heráclito, Nietzsche afirma que: “o filisteu mais inteligente (homem) é um símio diante do gênio (deus)” (NF/FP 1873, 27 [67], KSA 7.607).9 9 Nietzsche já havia se referido a esse fragmento no NF/FP 1873, 26 [2], KSA 7.572: “Imitação da natureza. / ‘O homem mais sábio é um símio diante de deus’. Heráclito / Édipo, o ‘homem da dor’, resolve o enigma do homem”. A analogia entre a condição humana e a simiesca aparece durante toda obra de Nietzsche, por exemplo: “O que para nós é o símio, objeto de dolorosa vergonha - isso é o que nós devemos [sollen] ser para o além-do-homem” (NF/FP 1882/1883, 4 [181], KSA 10.164); o NF/FP 1882/1883, 5 [1] 255 tem redação semelhante; “Queres ser apenas o símio de teu deus?” (NF/FP 1888, 20 [28], KSA 13.553); e “O desiludido fala. - Eu procurava grandes homens, sempre encontrei apenas os símios desses ideais” (GD/CI, “Máximas e setas” 39, KSA 6.65). O fragmento 83 de Heráclito é o seguinte: “O mais sábio dos homens em face do deus se manifestará como um símio, em sabedoria, beleza e tudo mais” (Pré-Socráticos, 1978, p. 87, conforme tradução de José Cavalcanti de Souza). O fragmento 82 nos diz: “O mais belo símio é feio, a se confrontar com o gênero humano”

Não seria difícil associarmos o filisteu da formação à média dos professores universitários e o espírito livre a um ideal inspirado na filosofia nietzschiana. No parágrafo 8 de Schopenhauer como educador, Nietzsche afirma que o filósofo, ao se tornar professor de filosofia de uma instituição estatal, troca sua liberdade por uma função que é o seu ganha-pão. O Estado favorece apenas os filósofos dos quais não tem medo, e tenta atrair para dentro de suas instituições os filisteus da formação justamente para aparentar que a filosofia está a seu lado. O espírito livre seria tratado como inimigo, pois este não reconhece o Estado como seu superior, nem sua ordem social. Um tal professor, afirma o filósofo alemão, não é um pensador, mas um repensador: ele não cria, só reproduz, ou seja, temos a história da filosofia ao invés de filosofia. Não se educa para a filosofia ou para a vida, mas para a prova de filosofia. Para Nietzsche, o valor de um pensamento não está no conhecimento que ele pode fornecer, mas na vida que ele pode sugerir.

Talvez possamos pensar que nossa dependência do Estado não seja semelhante à descrita acima por Nietzsche. Enfim, somos escolhidos e avaliados por nossos pares. Porém, insistiremos no “talvez”, já que, se não seguirmos de forma adequada os critérios de avaliação, nossos programas de pós-graduação até podem funcionar, mas sem reconhecimento estatal e sem verbas públicas. Será que, ao avaliarmos nossos colegas docentes, seríamos uma extensão do Estado? De qualquer forma, consideramos que o filósofo alemão trata da relação entre Estado e universidade de um modo simplificado.

Os outros aspectos da crítica, no entanto, parecem valer para nós ainda hoje: ementas e grades curriculares pré-fixadas diretamente por meio de diretrizes ou mesmo indiretamente por meio de uma prova universal, o ENADE (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes). Além disso, achamos que outra crítica ao filisteu da formação também se aplica à nossa situação: esse tipo pensa que a formação serve para nos tornarmos um bom cidadão, um erudito ou um profissional, pois o filisteu vê a educação e a cultura como mercadorias que se adquire e se toma posse, que podem ser vendidas para o maior número possível de pessoas. O fechamento de cursos considerados “inúteis” e de baixa procura não nos engana sobre isso.

Perguntamos ainda se devemos levar a sério uma frase pichada em uma parede próxima ao Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maringá (UEM), no norte do Paraná: “As flores da filosofia não nascem na universidade”. Devemos cultivar flores raras, a exceção, ou seja, o gênio filosófico em estufas com o ambiente estabilizado e isolado? Não, não devemos criar pensadores em ambientes especiais. Parece-nos que podemos extrair outro sentido da ideia de que os destaques da filosofia nascem fora da universidade. Queremos associar esse sentido com outra frase pichada na UEM, desta vez no próprio Departamento de Filosofia: “Sai e busca”.10 10 Em outubro de 2017, a parede pichada com essa frase já havia sido pintada novamente. A outra frase ainda permanecia. Devemos vivenciar a filosofia em meio ao mundo, na relação com o mundo, assim devemos não nos restringir à própria universidade. Concordamos que a universidade não é suficiente - especialmente hoje, nas condições brasileiras dos últimos anos - ou que não é o único lugar onde a filosofia possa desabrochar.

Em um certo o sentido, podemos pensar que a estufa que rejeitamos acaba sendo a própria universidade, se não como explicar certas condições que parecem nos isolar do mundo e do tempo: por exemplo, por que avaliar o impacto de um livro ou um artigo no mesmo ano em que é escrito, na avaliação da produção de um programa de pós-graduação? Como explicar o predomínio de critérios quantitativos puros de produção sobre critérios qualitativos? As flores da filosofia são selvagens e nascem em qualquer fresta de uma rocha qualquer e, por vezes, hibernam ou crescem lentamente.

Os problemas que apontamos devem ser investigados com a discussão, ao mesmo tempo, de uma outra questão: quem ou o que somos nós: filósofos, pesquisadores ou professores? Ou tudo isso junto? Se nós estamos em uma instituição pública de ensino, temos a tarefa de formar professores para o Ensino Médio11 11 Neste texto, tratamos apenas da filosofia no Ensino superior. Acreditamos que há particularidades no Ensino Médio que tornam a questão ainda mais complexa: nele a filosofia é mais uma disciplina entre muitas outras. Obviamente, essa nossa posição é questionável. e para a própria universidade? Há produção filosófica na universidade brasileira? Se somos apenas professores e/ou pesquisadores, isso é vergonhoso? Somos espíritos livres ou filisteus da formação? Quero acreditar que Nietzsche, em Schopenhauer como educador, nos inspira uma possível resposta. Ao perguntar se a verdade é servida quando se mostra um caminho pelo qual se pode viver dela, o próprio filósofo responde: “isso não sei dizer em geral, porque aqui tudo depende do modo de ser e da qualidade do homem singular, a quem se sugere que siga esse caminho” (SE/Co. Ext. III 8, KSA 1.414).

Os exemplos de homens dados por Nietzsche que seguiram esse caminho com grandeza de sentimento e de expressão são Platão, que foi temporariamente filósofo na corte dos tiranos de Siracusa Dionísio I e Dionísio II, e Schopenhauer, que foi professor na Universidade de Berlim. A experiência não foi muito agradável a Platão, pois foi vendido como escravo por Dionísio I e teve que fugir de Dionísio II. Longe de sugerir que utilizemos esses filósofos como modelo para nós próprios, queremos dizer que podemos nos aproximar como uma assíntota de um espírito livre, tendo-o como uma ideia reguladora, sendo um filisteu o mínimo possível.

Em outras palavras, devemos criar condições para podermos abrirmos nossos próprios caminhos na universidade e garantirmos que todos possam fazer isso também. A liberdade de pesquisa, de organizar grupos de estudos abertos a todos e mesmo eventos torna-se aqui axial. Devemos lutar para manter essas possibilidades. Além disso, se acreditarmos que, independentemente do Estado, é possível assumirmos a responsabilidade de algumas atividades normalmente atribuídas a ele, tratemos de entender como nossa tarefa formar nossos alunos. E que tenhamos como meta formá-los como espíritos livres. Que nos preservemos de sermos filisteus, como o próprio Nietzsche declara em uma carta a Carl von Gersdorff de 11/04/1869, ocasião em que assume a cátedra de Filologia na Universidade da Basileia:

Que Zeus e todas as Musas me preservem de ser filisteu, um ανθροπος αμουσος [homem abandonado pelas Musas], homem de rebanho! Ademais, não sei o que teria de fazer para conseguir me tornar um filisteu, já que não o sou. É certo que agora faço parte de uma classe de filisteismo, da espécie do “especialista”; porém é demasiado natural que o peso diário e a concentração incessante do pensamento em certos campos e problemas do saber entorpeçam um pouco a sensibilidade espontânea do espírito e ataquem, em suas raízes, o senso filosófico. (Correspondencia INIETZSCHE, Friedrich W. Correspondencia I: junio 1850 - abril 1869. Org.: L. E. de Santiago Guervós. Madrid: Trotta, 2005., p. 582-583)

Se não podemos ser totalmente um espírito livre, que nos afastemos do filisteísmo o máximo possível. Afinal, o pensamento nietzschiano nos mostra que nunca estamos prontos, sempre estamos nos construindo, não há uma meta final pré-estabelecida a ser atingida; o mundo é um fluxo constante de movimento, ou seja, vir-a-ser. Não tratemos a formação como uma mercadoria ou como massificação. Nós não temos uma fórmula pronta, mas entendemos que a grandeza de postura pedida por Nietzsche passa por não limitarmos o horizonte de nossos alunos, por não sermos dogmáticos, não apenas com a filosofia de Nietzsche, mas com qualquer outra filosofia. A universidade não pode ser uma estufa fechada com um ambiente estável e controlado. Caso isso não ocorra, não vemos outra saída, a não ser sair da universidade como fez o próprio Nietzsche. Se a escolha for essa, esta apresentação12 12 Este texto foi apresentado pela primeira vez no XXXIX Encontros Nietzsche: Nietzsche e a formação, realizado na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), Campus Jacarezinho, em 2017. mesma perde o sentido, já que se realiza dentro da própria universidade. Devemos sempre lembrar que a filosofia não está restrita às instituições universitárias, sendo que elas não são os únicos lugares da sociedade em que ela pode acontecer.

Referências

  • HALÉVY, Daniel. Nietzsche: uma biografia Tradução: R. C. de Lacerda e W. Dutra. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
  • MALATO, Maria Lúcia. A Academia de Platão e a Matriz das Academias Modernas. Notandum, EDF/FEUSP - IJI/Universidade do Porto, n. 19, p. 5-16, jan-abr 2009.
  • MESQUITA, António Pedro. Aristóteles: Obras completas, vol. I, t. I: Introdução geral. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2005.
  • NIETZSCHE, Friedrich W. Obras incompletas 2a ed. Tradução: Rubens R. Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores)
  • NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1986. 8Bd
  • NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe G. Colli und M. Montinari (Hg). Berlin: Walter de Gruyter, 1999. 15 Bd.
  • NIETZSCHE, Friedrich W. Correspondencia I: junio 1850 - abril 1869 Org.: L. E. de Santiago Guervós. Madrid: Trotta, 2005.
  • NIETZSCHE, Friedrich W. Correspondencia II: abril 1869 - diciembre 1874 Org.: L. E. de Santiago Guervós. Madrid: Trotta , 2007.
  • PRÉ-SOCRÁTICOS, -. Fragmentos, Doxografia e Comentários Org. J. C. de Souza. Tradução: J. C. Souza et al. São Paulo: Abril Cultural , 1978. (Os Pensadores)
  • SCHELLING, Friedrich von. Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo Tradução: R. R. Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural , 1973. (Os Pensadores)
  • 1
    Sobre a Academia, cf. Malato, 2009MALATO, Maria Lúcia. A Academia de Platão e a Matriz das Academias Modernas. Notandum, EDF/FEUSP - IJI/Universidade do Porto, n. 19, p. 5-16, jan-abr 2009., p. 7. Parece que o fundador do Liceu enquanto instituição foi Teofrasto e não Aristóteles (cf. Mesquita, 2005MESQUITA, António Pedro. Aristóteles: Obras completas, vol. I, t. I: Introdução geral. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2005., pp. 99-106). É possível afirmar que cinquenta anos após a morte de Aristóteles o Liceu já teria se apagado. De qualquer forma, o último escolarca foi Andrônico de Rodes por volta de 40 a.C.
  • 2
    O falanstério é uma comunidade idealizada pelo socialista e cooperativista francês Charles Fourier, visando a uma plena realização da natureza humana.
  • 3
    Cf. Halévy, 1989HALÉVY, Daniel. Nietzsche: uma biografia. Tradução: R. C. de Lacerda e W. Dutra. Rio de Janeiro: Campus, 1989., pp. 160-161.
  • 4
    Conforme tradução de Rubens R. Torres Filho, em Nietzsche, 1978NIETZSCHE, Friedrich W. Obras incompletas. 2a ed. Tradução: Rubens R. Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores), p. 80. A partir de agora RRTF.
  • 5
    Tradução de RRTF, modificada, em Nietzsche, 1978NIETZSCHE, Friedrich W. Obras incompletas. 2a ed. Tradução: Rubens R. Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores), p. 76.
  • 6
    Schelling, 1973SCHELLING, Friedrich von. Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo. Tradução: R. R. Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural , 1973. (Os Pensadores), p. 191. Tradução de RRTF.
  • 7
    Cf, também MA I/HH I 34, 225-227 e 230, KSA 2.53-55, 189-191 e 193.
  • 8
    Cf. DS/Co. Ext. I 2, 3 e 8, KSA I.164-177 e 201-208. Nietzsche acredita ter sido responsável pela criação do termo “filisteu da formação”. Embora o filósofo alemão utilize o termo por toda sua produção, o uso concentra-se especialmente no texto sobre David Strauss, de 1873, e nos fragmentos póstumos até meados de 1875. Embora na maior parte dos textos em português se traduza Bildungsphilister por filisteu da cultura, preferimos traduzir aqui Bildung por formação. Em nossa concepção de tradução, pensamos que os termos utilizados na língua final devem se aproximar, o máximo possível, dos termos na língua original, inclusive em sua origem etimológica. O significado da palavra deve ser explicado por nós, e não devemos assumir que a escolha da palavra na tradução já seja suficiente para isso. No entanto, devemos considerar que, como no português, há no alemão uma zona de sobreposição entre os significados dos termos “Kultur” (cultura) e “Bildung” (formação). Nietzsche, ao usar Bildungsphilister, está criticando o que seus contemporâneos chamam de formação e cultura, ou seja, a confusão que fazem entre cultura e mercadoria e entre formação ou instrução, ou ainda erudição.
  • 9
    Nietzsche já havia se referido a esse fragmento no NF/FP 1873, 26 [2], KSA 7.572: “Imitação da natureza. / ‘O homem mais sábio é um símio diante de deus’. Heráclito / Édipo, o ‘homem da dor’, resolve o enigma do homem”. A analogia entre a condição humana e a simiesca aparece durante toda obra de Nietzsche, por exemplo: “O que para nós é o símio, objeto de dolorosa vergonha - isso é o que nós devemos [sollen] ser para o além-do-homem” (NF/FP 1882/1883, 4 [181], KSA 10.164); o NF/FP 1882/1883, 5 [1] 255 tem redação semelhante; “Queres ser apenas o símio de teu deus?” (NF/FP 1888, 20 [28], KSA 13.553); e “O desiludido fala. - Eu procurava grandes homens, sempre encontrei apenas os símios desses ideais” (GD/CI, “Máximas e setas” 39, KSA 6.65). O fragmento 83 de Heráclito é o seguinte: “O mais sábio dos homens em face do deus se manifestará como um símio, em sabedoria, beleza e tudo mais” (Pré-Socráticos, 1978PRÉ-SOCRÁTICOS, -. Fragmentos, Doxografia e Comentários. Org. J. C. de Souza. Tradução: J. C. Souza et al. São Paulo: Abril Cultural , 1978. (Os Pensadores), p. 87, conforme tradução de José Cavalcanti de Souza). O fragmento 82 nos diz: “O mais belo símio é feio, a se confrontar com o gênero humano”
  • 10
    Em outubro de 2017, a parede pichada com essa frase já havia sido pintada novamente. A outra frase ainda permanecia.
  • 11
    Neste texto, tratamos apenas da filosofia no Ensino superior. Acreditamos que há particularidades no Ensino Médio que tornam a questão ainda mais complexa: nele a filosofia é mais uma disciplina entre muitas outras. Obviamente, essa nossa posição é questionável.
  • 12
    Este texto foi apresentado pela primeira vez no XXXIX Encontros Nietzsche: Nietzsche e a formação, realizado na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), Campus Jacarezinho, em 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2022
  • Aceito
    07 Jul 2022
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