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Comentário ao artigo “Valores, Verdade e Investigação: uma alternativa pragmatista ao não cognitivismo de Russell”

Referência do texto comentado: Cunha (2020)1. CUNHA, Ivan Ferreira da. Valores, Verdade e Investigação: uma alternativa pragmatista ao não cognitivismo de Russell. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 245 –268, 2020 , I. F. da.Valores, Verdade e Investigação: uma alternativa pragmatista ao não cognitivismo de Russell. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 245 - 268 2020.

O artigo ‘Valores, verdade e investigação: uma alternativa pragmatista ao não cognitivismo de Russell’, de autoria de Ivan Ferreira da Cunha (2020) , em uma apresentação clara e objetiva, propõe uma teoria pragmatista do conhecimento inspirada nos trabalhos de Clarence Lewis e John Dewey. A teoria proposta pelo autor teria o mérito de permitir a avalição do estatuto epistêmico de juízos valorativos, como, por exemplo, “um arranjo social de determinado tipo é benéfico/agradável/utópico”. Em pensamentos como o de Bertrand Russell, apoiados sobre uma noção correspondencial de verdade, juízos valorativos como esses não seriam passíveis de avaliação do ponto de vista epistêmico: enquanto juízos subjetivos, permanecendo no domínio das preferências pessoais, eles não guardariam qualquer correspondência com a realidade. Cunha (2020) nota, no entanto, que cada um de nós tem uma intuição de que esses juízos constituem conhecimento. Por exemplo, temos a “sensação” de que os juízos valorativos do próprio Russell - e também de Aldous Huxley - sobre os impactos negativos dos avanços tecnológicos em sociedades futuras são verdadeiros. A teoria pragmatista proposta pelo autor pretende explicar o estatuto epistêmico desses juízos que intuitivamente aceitamos como conhecimento.

Em sua teoria, Cunha (2020)1. CUNHA, Ivan Ferreira da. Valores, Verdade e Investigação: uma alternativa pragmatista ao não cognitivismo de Russell. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 245 –268, 2020 recorre à compreensão de Lewis sobre os “juízos de atribuição de propriedade objetiva” (a avaliação de que um objeto tem determinado valor), valorações que, do ponto de vista da ciência, seriam como hipóteses que criariam uma expectativa de que, se certas ações forem realizadas, seria possível presenciar certos acontecimentos (por exemplo, a excelente performance de um músico) e/ou experienciar certas sensações (por exemplo, o prazer ao ouvir o músico a tocar). O juízo valorativo é verdadeiro, desde que a ação concretizada leve a presenciar os acontecimentos previstos e/ou experienciar as sensações esperadas. Cunha (2020) também recorre à teoria da investigação de Dewey. A valoração é compreendida como uma estratégia de ação para se resolver um problema formulado em virtude de se estar em um estado de dúvida. As hipóteses (juízos valorativos) são apresentadas para se deixar esse estado, rumo a um estado de crença. Essa hipótese só adquire valor de verdade, quando considerada dentro de seu contexto de investigação. Na teoria pragmatista proposta por Cunha (2020) , um juízo valorativo determina um curso de ação que é a solução para o estado da dúvida. A ação, quando realizada, conclui o processo investigativo. Quando certos acontecimentos são presenciados e certas sensações experimentadas, a hipótese (juízo valorativo) está confirmada. A avaliação da verdade do juízo valorativo (o teste operacional) depende da possibilidade de se verificar se esse juízo corresponde às expectativas que ele propõe. Conhecimento é saber que uma crença é um bom guia para ação, enquanto a justificação dessa crença é a própria investigação realizada.

Ao meu ver, Cunha (2020)1. CUNHA, Ivan Ferreira da. Valores, Verdade e Investigação: uma alternativa pragmatista ao não cognitivismo de Russell. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 245 –268, 2020 argumenta de maneira pertinente em favor de sua teoria pragmatista do conhecimento, apropriando-se de maneira original de aspectos do pensamento de Lewis e Dewey. Se estou certo em minha leitura, a estratégia do autor consiste em apontar a objetividade presente em cada uma das quatro etapas do processo de formulação de juízos valorativos. Isto é, a objetividade (que parece ser exigida, para que haja verdade e, consequentemente, o conhecimento) encontra-se nos processos da dúvida, da formulação de um problema, da elaboração de uma hipótese (juízo valorativo) e do teste operacional dessa hipótese. Desse modo, juízos valorativos (resultados de processos de investigação), passando por cada uma dessas etapas, tornar-se-iam conhecimento, desde que atendessem às expectativas - que também poderiam ser avaliadas objetivamente - pelos juízos propostos.

Gostaria de apresentar duas observações pontuais acerca do projeto de Cunha (2020)1. CUNHA, Ivan Ferreira da. Valores, Verdade e Investigação: uma alternativa pragmatista ao não cognitivismo de Russell. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 245 –268, 2020 de fundamentar uma teoria pragmatista do conhecimento. Em primeiro lugar, não estou certo se todos os juízos valorativos poderiam ser avaliados a partir dessa teoria. Os processos de avaliação dos próprios juízos valorativos expostos por Russell e Huxley acerca de sociedades distópicas parecem precisar de um esclarecimento adicional, em específico, no que diz respeito ao teste operacional das hipóteses. A princípio, não parece que dispomos dos fatos necessários - ou pelo menos de uma quantidade suficiente desses fatos - para empreender a verificação dos juízos valorativos de Russell e Huxley. Os fatos para se avaliar o estatuto epistêmico de um juízo factual “todos os corvos são pretos” estão, é claro, quase que imediatamente disponíveis. Com efeito, posso dirigir-me a uma praça ou a um zoológico, para observar um número considerável de corvos pretos. Do mesmo modo, o teste operacional da hipótese valorativa “meu vizinho é um bom músico” também me parece realizável, na medida em que posso dirigir-me ao conservatório e ouvir atentamente ao ensaio de meu vizinho, ou mesmo esperar até o momento de sua apresentação.

Contudo, no caso da avaliação das hipóteses a propósito de sociedades distópicas, os fatos a partir dos quais os testes operacionais devem ser realizados não parecem estar disponíveis da mesma maneira daqueles dois outros exemplos. As hipóteses de ambos concernem ao futuro e a uma diversidade de fatores que não são passíveis de observação imediata, ainda que possamos especular sobre eles. Podemos conjecturar, com certo grau de probabilidade, sobre os impactos de certos avanços tecnológicos sobre nossa sociedade (a partir, por exemplo, do efeito de outros avanços em nossa sociedade, presentemente); podemos conjecturar com certo grau de probabilidade sobre efeitos danosos desses avanços, na vida humana futura. Contudo, a impressão que tenho é de que, nesses casos, estaríamos testando as hipóteses com o que me parecem ser conjecturas, não fatos, como no caso dos corvos e do músico. Talvez este seja um ponto que merecesse um esclarecimento adicional.

A segunda observação é mais intuitiva que teórica. Tenho a impressão de que, mesmo após a avaliação do estatuto epistêmico dos juízos valorativos de Russell e Huxley, na perspectiva proposta por Cunha (2020) , não conhecemos o que é uma sociedade prejudicial/desagradável/distópica. Em outras palavras, julgo que podemos conhecer apenas o que seria uma sociedade distópica “para” Russell e Huxley. É possível que esses autores tenham sido capazes de enumerar diversas ocorrências que podemos esperar em sociedades futuras, em função dos avanços científicos e suas consequências sociais negativas.

Porém, não estou certo de encontrar uma compreensão clara do que constitui uma sociedade distópica, na realidade. Intuitivamente, parece-me que podemos avaliar adequadamente a verdade - algo como a “pertinência” - dos juízos desses autores, sem podermos, no entanto, dizer o que é uma sociedade indesejável, independentemente de suas visões. As referências de Cunha (2020) à relevância do contexto reforçam essa impressão: “esse conhecimento tem seu domínio restrito ao contexto de investigação que foi instituído naquela ocasião”. A verdade e o conhecimento dos juízos valorativos estão restritos aos pensamentos de Russell e Huxley, ao contexto das investigações empreendidas por esses autores. Como consequência, não sei se conheço o que é uma sociedade distópica, mesmo que, a partir da leitura de seus escritos, eu possa julgar que tenho o conhecimento do que é uma sociedade indesejável para Russel e Huxley.

Referências

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    CUNHA, Ivan Ferreira da. Valores, Verdade e Investigação: uma alternativa pragmatista ao não cognitivismo de Russell. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 245 –268, 2020

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2020
  • Aceito
    23 Jun 2020
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