Acessibilidade / Reportar erro

Sobre a unidade da cultura: diálogos entre Cassirer, Medviédev, Volóchinov e Bakhtin

RESUMO

Muitos estudos têm se debruçado sobre as contribuições e/ou convergências entre as ideias de Bakhtin, Volóchinov e Medviédev e as ideias de outros autores contemporâneos dos autores russos. Pesquisadores brasileiros e estrangeiros têm mostrado convergências entre o pensamento do filósofo alemão Ernst Cassirer e dos pensadores russos supracitados. Cassirer problematiza o que conferiria unidade à cultura - e esse é um problema do qual também se ocupam Bakhtin, Volóchinov e Medviédev. Assim, este artigo analisa como essa questão (“o que confere unidade à cultura?”) foi respondida, buscando as convergências entre os pensamentos. Percorremos alguns escritos de Cassirer para mostrarmos como o filósofo analisou a cultura a partir de uma unidade constituída pela simbolização. Em seguida, vemos como essa questão foi abordada por Medviédev e Volóchinov. Por fim, buscamos o modo como Bakhtin procurou compreender a unidade cultural no ensaio “O problema do conteúdo, do material e da forma”.

PALAVRAS-CHAVE:
Unidade cultural; Círculo de Bakhtin; Ernst Cassirer

ABSTRACT

Many studies have focused on the contributions and/or convergences among the ideas of Bakhtin, Vološinov and Medvedev, and other authors. Brazilian and foreign researchers have shown convergences between the thought of the German philosopher Ernst Cassirer and the aforementioned Russian thinkers. Cassirer problematizes what would give unity to culture, and this is a problem with which Bakhtin, Vološinov and Medvedev are also concerned. Thus, this article analyzes how this question (“what gives unity to culture?”) was answered, seeking convergences among thoughts. We have gone through some of Cassirer’s writings to show how the philosopher has analyzed culture from a unity constituted by symbolization. Next, we see how this issue was addressed by Medvedev and Vološinov. Finally, we seek the way in which Bakhtin sought to understand cultural unity in the essay “The problem of content, material and form”.

KEYWORDS:
Cultural unity; Bakhtin Circle; Ernst Cassirer

Introdução

A obra de Mikhail Bakhtin, Pavel Medviédev e Valentín Volóchinov tem sido recebida, ao longo dos anos, com reações que variam do “radicalismo à exaltação” ao “descrédito das contribuições” de seus autores (MARCHEZAN, 2019MARCHEZAN, R. C. M. Bakhtin e a “Virada linguística” na filosofia. In: BRAIT, B.; PISTORI, M. H. C.; FRANCELINO, P.F. (orgs.). Linguagem e conhecimento (Bakhtin, Volóchinov, Medviédev). Campinas, SP: Pontes Editores, 2019, p.261-291., p.261). Em resposta à primeira reação, muitos estudos têm se debruçado sobre as contribuições e/ou convergências entre o pensamento dos autores russos e outros pensadores contemporâneos à época em que os escritos de Bakhtin, Volóchinov e Medviédev foram publicados. Autores brasileiros (MARCHEZAN, 2019; FARACO, 2009FARACO, C. A. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.; GRILLO, 2017GRILLO, S. Ensaio introdutório. In: VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. p.7-79.) e estrangeiros (POOLE, 1998POOLE, B. Bakhtin and Cassirer: The Philosophical Origins of Carnival Messianism. The South Atlantic Quarterly, v. 97, n. 3 /4, p.537-78, 1998.; BRANDIST, 2002BRANDIST, C. The Bakhtin Circle: Philosophy, Culture and Politics. London; Sterling, VA: Pluto Press, 2002., 1997; LOFTS, 2016LOFTS, S. G. Bakhtin e Cassirer: o evento e a máquina. Bakhtiniana, São Paulo, v. 11, n.1, p.77-98, jan./abr. 2016. https://www.scielo.br/j/bak/a/jtcbymK6f93hK8yT6KzkRSw/ https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/24739
https://www.scielo.br/j/bak/a/jtcbymK6f9...
) têm, nesse sentido, mostrado algumas convergências entre o pensamento do filósofo alemão Ernst Cassirer e dos pensadores russos supracitados.

Lofts (2016LOFTS, S. G. Bakhtin e Cassirer: o evento e a máquina. Bakhtiniana, São Paulo, v. 11, n.1, p.77-98, jan./abr. 2016. https://www.scielo.br/j/bak/a/jtcbymK6f93hK8yT6KzkRSw/ https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/24739
https://www.scielo.br/j/bak/a/jtcbymK6f9...
) argumenta haver uma “harmonia” entre Bakhtin e Cassirer, em decorrência da forma como esses dois pensadores “sintonizam” com as grandes questões filosóficas do início do século XX, isto é, a filosofia transcendental de Kant e a filosofia da vida. Esses dois pensadores, segundo Lofts (2016), em oposição ao pessimismo cultural que adentra as reflexões filosóficas da época, demonstram uma atitude que ressalta a positividade da cultura humana.

Cassirer, conforme sublinha Verene (2000VERENE, D. P. Foreword. In: CASSIRER, E. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. New Haven and London: Yale University Press, 2000. p.xiii-xliii.), é um dos pensadores mais associado com a filosofia da cultura e esta - a cultura - é o grande problema filosófico do século XX. Nas palavras de Verene (2000, p.vii): “Nunca antes houve tanta consciência da variedade de culturas”1 1 Tradução nossa. No original, em inglês: “Never before has there been such an awareness of the range and variety of cultures”. . Essa consciência da variedade e da multiplicidade das manifestações culturais leva Cassirer a problematizar, em sua Filosofia das formas simbólicas, o que conferiria unidade à cultura humana - o próprio conceito de “forma simbólica” enquanto manifestação cultural, conforme argumenta Porta (2011PORTA, M. A. G. Estudos neokantianos. São Paulo: Edições, Loyola, 2011.), tem como corolário a questão da unidade a despeito dos multifacetados produtos culturais.

Esse é um problema do qual também se ocupam Bakhtin, Volóchinov e Medviédev. Vemos, como menor ou maior ênfase, os pensadores russos debatendo essa questão (o que confere unidade à cultura?) em seus escritos - o que evidencia a “harmonia” ou “sintonia” entre esses autores e o filósofo alemão, descrita no artigo de Lofts (2016LOFTS, S. G. Bakhtin e Cassirer: o evento e a máquina. Bakhtiniana, São Paulo, v. 11, n.1, p.77-98, jan./abr. 2016. https://www.scielo.br/j/bak/a/jtcbymK6f93hK8yT6KzkRSw/ https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/24739
https://www.scielo.br/j/bak/a/jtcbymK6f9...
).

Neste sentido, este artigo analisa como cada autor responde a essa questão, buscando as convergências/confluências entre os pensamentos. Percorreremos os escritos de Cassirer, notadamente sua A filosofia das formas simbólicas (CASSIRER, 2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001.; 2004; 2011), seu Ensaio sobre o homem (2012), bem como ensaios menos conhecidos do autor (CASSIRER, 1979), para mostrarmos como o filósofo pensou a cultura a partir de uma unidade que se faz pelo processo de simbolização. Em seguida, veremos como a mesma questão foi abordada por Medviédev, em sua crítica ao método formal nos estudos literários (MEDVIÉDEV, 2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.); e por Volóchinov, em suas reflexões sobre a linguagem, em específico, e sobre os produtos culturais, em geral, concebidos, em seu livro Marxismo e filosofia da linguagem (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), como produtos semiotizados. Por fim, buscaremos o modo como Bakhtin procurou responder a essa questão no ensaio “O problema do conteúdo, do material e da forma” (BAKHTIN, 2014BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução Aurora Formoni Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Spryndis Nazário, Homero Freitas de Andrade. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p.13-70.).

1 A visão de Cassirer sobre a unidade da cultura

Mito, ciência, arte, linguagem são, para o filósofo alemão Ernst Cassirer, diferentes formas espirituais que coexistem em unidade. Para respondermos à questão posta na introdução deste artigo - o que confere unidade a essas diferentes manifestações espirituais? -, é preciso que entendamos o conceito de forma simbólica proposta pelo filósofo.

As formas simbólicas, segundo Cassirer (2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001.), são modos específicos de objetivação, caminhos de criação do real. Ao formular o conceito de “forma simbólica”, Cassirer (2001) opõe-se à visão empirista, segundo a qual o real apresentar-se-ia como reflexo de nossas sensações, e à visão racionalista, que concebe o real como produto da razão. Subjaz a ambas as visões filosóficas (empirismo e racionalismo) a ideia de um real substancial, de “coisa” em si a que o conhecimento acessaria. Em contraposição, Cassirer concebe que o que se estabelece como o “real” não é simplesmente “acessado”, mas produzido, criado por uma forma de simbolização.

Na visão de Cassirer (2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001.), não se pode falar em um “real” a priori - o mundo é criado a partir da “fonte de luz” que ilumina o caminho, da condição de visão. A metáfora da luz, do foco de visão, é utilizada pelo filósofo para mostrar os diferentes meios através dos quais o mundo é configurado. Em Linguagem e mito, Cassirer (2013) compara o mito, a linguagem e a ciência do ponto de vista dos mecanismos básicos de semiotização de cada uma dessas configurações. Se pensarmos no real como um jogo de luz e sombras, a ciência pode ser entendida como uma luz constante que se espraia; o mito e a linguagem, por outro lado - dada sua parcial identidade - funcionam como focos de luz que iluminam determinados pontos e obscurecem outros, “aprisionando” o espírito no ponto focalizado.

Cada uma dessas “fontes de luz” não existe de forma estática, elas obedecem a um princípio de progressão (CASSIRER, 2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p.21), sendo concebidas como energias criativas que permitem a autolibertação do homem da imediatez do aqui-agora, do caos do mundo orgânico (CASSIRER, 1979; 2012). Ao analisar as formas simbólicas linguagem, mito e ciência, Cassirer, considerando esse princípio (a progressão das formas simbólicas como energias criativas), mostra como a linguagem (CASSIRER, 2001), em estágios iniciais, entrelaça-se ao corpóreo e, aos poucos, tende a assumir traços mais abstratos. No que concerne ao mito (Volume 2 de A filosofia das formas simbólicas), Cassirer (2004) demonstra como o pensamento mítico “alarga-se” de uma experiência muito vinculada ao momento concreto em direção a formas de vivência mais abrangentes. A ciência - pensando-se especificamente as ciências exatas (CASSIRER, 2011) -, última etapa do desenvolvimento espiritual do homem, caminha, por fim, em direção a uma “de-substancialização” total, por meio dos signos de ordem em oposição aos signos de “coisas” (cf. cap.III. “Língua e ciência”, CASSIRER, 2011).

Na conclusão da obra Ensaio sobre o homem, Cassirer (2012CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. Tradução Tomás Rosa Bueno. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.) enfatiza esse caráter não estático das formas simbólicas (a “transformação” das energias criativas), ao argumentar que elas se movem entre uma tendência estabilizadora e uma tendência de transformação. A preponderância de uma ou outra força (estabilização ou transformação) confere a fisionomia de cada forma cultural.

Assim, o mito tende, por exemplo, à estabilização, à conservação de suas formas primitivas, por meio dos rituais, da sacralidade da palavra e da fórmula mágica. A linguagem, por seu turno, equaliza as forças estabilizadoras e inovadoras: a conservação é necessária para que a linguagem cumpra seu papel comunicativo. No entanto, a cada nova enunciação, a energia criativa manifesta-se na linguagem. Os processos de aquisição da linguagem e de mudanças fonéticas e semânticas, conforme Cassirer (2012CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. Tradução Tomás Rosa Bueno. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.), ilustram esse caráter produtivo. A ciência, por fim, tende à conservação, embora a criatividade seja pré-requisito para a construção de novas teorias.

No ensaio Language and art II, o filósofo (CASSIRER, 1979CASSIRER, E. Language and Art II [1942]. In: CASSIRER, E. Symbol, Myth, and Culture: Essays and Lectures of Ernst Cassirer 1935-1945. Edited by Donald Phillip Verene. London: Yale University Press, 1979. p.145-165.) apresenta-nos a linguagem, a arte e o mito como o resultado de uma “luta” entre diferentes faculdades humanas - o logos e a imaginação. A linguagem caracterizar-se-ia pela predominância do logos em sua constituição, ao passo que o mito teria o poder da imaginação como predominante. A arte, por seu turno, seria constituída por um equilíbrio relativo entre essas duas faculdades.

O autor, no entanto, enfatiza que seria errôneo traçar uma “fórmula geral” para definir esses três modos de objetivação (arte, mito, linguagem) - fórmula essa a partir da qual o mito seria uma objetivação imaginativa; a arte, uma objetivação intuitiva; a linguagem, uma objetivação conceitual (CASSIRER, 1979CASSIRER, E. Language and Art II [1942]. In: CASSIRER, E. Symbol, Myth, and Culture: Essays and Lectures of Ernst Cassirer 1935-1945. Edited by Donald Phillip Verene. London: Yale University Press, 1979. p.145-165., p.187). Propor tal fórmula geral seria admitir que o homem é uma simples mistura de faculdades isoladas; não há, segundo Cassirer (1979CASSIRER, E. Language and Art II [1942]. In: CASSIRER, E. Symbol, Myth, and Culture: Essays and Lectures of Ernst Cassirer 1935-1945. Edited by Donald Phillip Verene. London: Yale University Press, 1979. p.145-165., p.187), províncias estritamente separadas na mente humana, isto é, uma província estritamente dedicada à intuição, outra à atividade conceitual e assim por diante. O que se observam, nas formas simbólicas, são tendências a diferentes direções. Nesse sentido, o mito, por exemplo, tende à atividade imaginativa, o que não significa que nele não atue, de forma alguma, qualquer manifestação do logos.

Ainda no ensaio Language and art II, Cassirer apresenta as diferentes formas de objetivação humana a partir da metáfora do espelho com diferentes ângulos de refração. Em suas palavras: “Cada uma delas é um espelho da nossa experiência humana, que possui seu próprio ângulo de refração”2 2 Tradução nossa. No original, em inglês: “Each of them is a mirror of our human experience which, as it were, possesses its own angle of refraction”. (CASSIRER, 1979CASSIRER, E. Language and Art II [1942]. In: CASSIRER, E. Symbol, Myth, and Culture: Essays and Lectures of Ernst Cassirer 1935-1945. Edited by Donald Phillip Verene. London: Yale University Press, 1979. p.145-165., p.194). Segundo essa definição, as formas simbólicas são “espelhos” porque ao olharmos para o mito, para a arte, para a linguagem etc., vemos o humano refletido - as formas simbólicas concernem à cultura humana, logo, não encontramos na arte, no mito algo como uma deidade, mas um reflexo de nossa própria atividade cultural. Todavia, não temos, nesse espelho, um puro reflexo, e sim ângulos diferentes que refratam o humano.

Por fim, ainda no ensaio supracitado (CASSIRER, 1979CASSIRER, E. Language and Art II [1942]. In: CASSIRER, E. Symbol, Myth, and Culture: Essays and Lectures of Ernst Cassirer 1935-1945. Edited by Donald Phillip Verene. London: Yale University Press, 1979. p.145-165.), é interessante observar que Cassirer nega ser um representante de um “subjetivismo idealista” (apropriando-nos, aqui, da expressão enfaticamente utilizada por Volóchinov, 2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.). Vejamos o trecho abaixo:

Nas nossas últimas discussões eu frequentemente tive a impressão de que alguns de vocês estavam pensando que o que eu defendo aqui é um sistema de idealismo subjetivo no qual o ego, a mente subjetiva, o eu pensante é considerado como o centro e como o criador do mundo, como a realidade única ou última. Eu não gostaria de discutir termos aqui. Sabemos que Kant sentiu-se muito surpreso e muito escandalizado quando sua Crítica da razão pura na primeira aparição encontrou a mesma objeção, quando foi descrita por um crítico como um sistema de idealismo subjetivista (CASSIRER, 1979CASSIRER, E. Language and Art II [1942]. In: CASSIRER, E. Symbol, Myth, and Culture: Essays and Lectures of Ernst Cassirer 1935-1945. Edited by Donald Phillip Verene. London: Yale University Press, 1979. p.145-165., p.194)3 3 Tradução nossa. No original, em inglês: “In our former discussions I often had the impression that some of you were thinking that what I defend here is a system of subjective idealism in which the ego, the subjective mind, the thinking self is considered as the center and as the creator of the world, as the sole or ultimate reality. I do not wish to argue here about terms. We know that Kant felt very much surprised and very much scandalized when his Critique of Pure Reason at first appearance met the same objection, when it was described by a reviewer as a system of subjetive idealism”. .

Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), conforme discutiremos adiante, embora faça uma ressalva à filosofia de Cassirer como um “avanço” no neokantismo, inclui o autor no “subjetivismo idealista” tão criticado pelo teórico russo. Destacamos, porém, que essa forma de idealismo pressupõe algo “substancial” - o ego, a mente - como centro criador do mundo. Cassirer (1979) nega essa existência substancial. Afirma, enfaticamente, que as formas simbólicas não são formas de criação de uma realidade pronta, dada previamente; são, antes, “as fontes de luz” no processo progressivo de objetivação da consciência, conforme sublinhamos acima. Com essa ideia, o filósofo não nega a existência de um “real” - ao fazê-lo, Cassirer inscrever-se-ia em um idealismo ortodoxo, que é pelo autor criticado ainda no primeiro volume da sua A filosofia das formas simbólicas (CASSIRER, 2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001.).

Na conclusão de Language and art II, Cassirer (1979CASSIRER, E. Language and Art II [1942]. In: CASSIRER, E. Symbol, Myth, and Culture: Essays and Lectures of Ernst Cassirer 1935-1945. Edited by Donald Phillip Verene. London: Yale University Press, 1979. p.145-165.) afirma que o ego, a mente individual não pode criar a realidade. O homem é cercado por uma realidade que ele não criou, mas que precisa ser interpretada, ser apreendida, ser inteligível. Tornar o mundo inteligível é o papel da arte, do mito, da religião, da ciência. Ao fazê-lo, ao empreender a tarefa de tornar o mundo inteligível, as formas de objetivação revelam um aspecto criativo e ativo, pois o homem não pode ser concebido como mero receptáculo de sensações advindas do mundo. Nesse sentido, o homem, por meio das formas simbólicas, não cria algo “substancial”, mas uma representação do mundo.

As formas simbólicas, na visão de Cassirer, são formas de síntese (sensível/inteligível, objetivo/subjetivo) que devem ser entendidas segundo suas especificidades, suas leis imanentes, isto é, as leis de funcionamento do mito, por exemplo, são imanentes a essa forma simbólica, que não pode ser compreendida a partir das leis de funcionamento da ciência ou da arte. As diferentes formas simbólicas, também, não podem ser caracterizadas como superiores umas às outras - mito, ciência, arte, cada qual a seu modo, cumprem sua função de construção do mundo humano.

Embora formem uma unidade funcional - ou seja, embora os diferentes caminhos de objetivação estejam unidos por um vínculo funcional, simbolizante -, as formas simbólicas não coexistem pacificamente. Segundo Cassirer (2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p.25): “As diversas orientações espirituais não comparecem pacificamente uma ao lado da outra, no intuito de se completarem mutuamente, mas, ao contrário, cada uma delas se torna aquilo que é na medida em que se opõe às outras”. Cada forma simbólica quer se estabelecer como “o real” - o que leva à existência de antinomias da cultura (mito versus religião; religião versus ciência etc.)

Em síntese, a partir das explanações tecidas, podemos afirmar que a cultura, na visão de Cassirer, é uma unidade constituída por diferentes formas de simbolização ou por diferentes formas simbólicas. Estas - as formas simbólicas - são definidas em termos de: 1. especificidade (não se reduzem umas às outras: são, antes, estabelecidas com base em leis imanentes); 2. sistematicidade (formam uma unidade orgânica, um sistema cultural); 3. “luta” (cada forma simbólica quer se estabelecer como o “real”, por isso elas não coexistem pacificamente, instituindo, ao revés, as antinomias da cultura); 4. tensão entre forças reprodutoras e forças criativas (a equalização ou preponderância de uma ou outra força definirá cada forma de objetificação) e entre faculdades imaginativas, intuitivas e de conceitualização lógica.

A função simbolizante, inerente a cada forma simbólica, confere unidade à cultura. Segundo mencionamos brevemente acima, as diferentes formas simbólicas - mito, ciência, arte, linguagem - são plurais, heterogêneas, consideradas em suas diversas manifestações. Todavia, a cultura não é algo disperso, é um todo orgânico (CASSIRER, 2012CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. Tradução Tomás Rosa Bueno. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012., p.361). Em Linguagem e mito, Cassirer (2013CASSIRER, E. Linguagem e mito. Tradução J. Guinsburg, Miriam Schbaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2013.), ao mencionar as formas de simbolização humana, faz uma interessante analogia entre esse conceito e a ideia de órgãos em funcionamento sistemático, esclarecendo o modo como ocorre esse vínculo funcional: afirma que cada forma simbólica pode ser entendida como um órgão com modos específicos de funcionamento. Esses “órgãos”, no entanto, embora tenham suas peculiaridades, seus modos próprios de funcionar, seus “tecidos” e “fisiologias”, compõem uma totalidade. A analogia com os órgãos em funcionamento em um corpo parece sobremaneira interessante porque é capaz de sintetizar a cooperação entre esses diversos órgãos na manutenção do todo: cada órgão do corpo humano tem, evidentemente, sua morfologia e sua fisiologia própria. No entanto, conjuntamente, todos estão a serviço do funcionamento da vida. Assim são as diversas manifestações culturais: como órgãos distintos, possuem morfologias e tarefas específicas, mas todas cooperam para a construção do humano por meio da função simbolizante.

No primeiro volume de A filosofia das formas simbólicas, o autor (CASSIRER, 2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001.) concebe que a função simbolizante ou função simbólica é o elemento comum, o elemento que permite equacionar a diversidade dessas formas simbólicas e a unidade dessas manifestações no todo da cultura. O conceito de “função simbólica” pode ser definido, de forma geral, como sendo o modo de criação de símbolos, entendendo-se que esse último - o símbolo - segundo Porta (2011PORTA, M. A. G. Estudos neokantianos. São Paulo: Edições, Loyola, 2011.), consiste na atribuição de sentido a um dado sensível. As diferentes formas simbólicas possuem regras próprias, leis imanentes por meio das quais o dado sensível é representado, adquirindo uma forma inteligível - universalmente acessada.

Em suma, a função simbolizante que constitui cada forma simbólica constitui não apenas o elemento comum entre esses modos de objetivação, mas também (e, em decorrência desse princípio) é responsável pela unidade que vincula as formas simbólicas em um todo orgânico.

Apresentada a visão de Cassirer sobre a unidade da cultura, no próximo tópico centraremos nossa análise nas ideias de Medviédev.

2 Medviédev e sua ênfase nas “leis” e no “sistema” da criação ideológica

Conforme expusemos acima, o conceito de “forma simbólica” é central para compreendermos a unidade da cultura humana em Cassirer. Em Medviédev, por seu turno, o conceito-chave que se apresenta é o de meio ideológico ou campo da criação ideológica.

Pável Medviédev inicia o capítulo primeiro da obra O método formal nos estudos literários (MEDVIÉDEV, 2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.) afirmando que o estudo da literatura (seu objeto de análise) é um campo da ciência das ideologias - trata-se de uma criação ideológica como o são a política, a ciência etc. Reclama a análise desse campo específico dentro das premissas do método sociológico e argumenta que o marxismo não conseguiu abordar o fenômeno das superestruturas em suas particularidades específicas. Para o teórico, haveria, no marxismo, uma lacuna entre a lei geral que governa a base socioeconômica e as leis internas, particulares, que regem qualitativamente a ciência, a arte, a moral, a religião.

Medviédev (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.) busca equalizar a unidade ideológica com as especificidades dos diferentes campos ideológicos. Arte, ciência, moral, religião possuem leis específicas de refração. No entanto, constituem uma unidade, não simplesmente por estarem assentadas por uma mesma lei geral de produção econômica, mas por serem todas elas formas de criação e de sustentação da vida ideológica.

“Lei”, “unidade” ou “totalidade”, “especificidade” ou “particularidade” são conceitos recorrentes, tanto em Medviédev, quanto em Cassirer, embora os dois teóricos filiem-se a campos diferentes. A busca pela equalização entre a totalidade dos campos e a especificidade de cada uma dessas esferas é algo notório em ambos os teóricos. Vejamos, por exemplo, o trecho abaixo, retirado de Cassirer (2001, p.29, grifos no original):

Um meio de escapar deste dilema metodológico somente poderia ser encontrado se fosse possível descobrir e fixar um momento que se reencontra em cada uma das formas espirituais fundamentais, mas que, por outro lado, não se repete completamente da mesma forma em nenhuma delas. (…) Se fosse possível encontrar um elemento intermediário pelo qual tivessem que passar todas as configurações, tais como se realizam nas diversas direções fundamentais do espírito, e no qual a sua natureza particular bem como o seu caráter específico fossem preservados, ter-se-ia obtido o elo necessário para uma análise que transferiria para a totalidade das formas espirituais aquilo que a crítica transcendental realiza para o conhecimento puro.

O dilema a que se refere Cassirer (2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001.), no trecho acima, concerne à subordinação das formas simbólicas à lógica4 4 Considerando que, nesse trecho, Cassirer (2001) busca fundamentar sua filosofia das formas simbólicas traçando uma crítica a Kant - crítica por meio da qual argumenta que Kant teria subordinado a teoria do conhecimento a apenas uma forma específica de se conceber o real, isto é, à forma lógica. Cassirer (2001) pontua que, ao lado dessa forma de se conhecer o real, há outras possíveis, com a mesma validez (mito, linguagem, arte etc.). . O filósofo afirma que, se nos ativermos à unidade lógica, a especificidade das formas simbólicas dissolver-se-ia em uma universalidade da forma lógica. Por outro lado, a análise da particularidade das formas simbólicas, sem que se encontre um elo comum a todas elas, impediria de se propor “o caminho de volta para o universal” (CASSIRER, 2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p.29), isto é, impediria que se analisasse a totalidade da criação simbólica. O elo que conecta esses diferentes campos, conforme destacamos no tópico anterior, está na função simbólica ou na função simbolizante - comum ao mito, à arte, à ciência. A função simbolizante equalizaria a totalidade das formas simbólicas e a especificidade de cada uma delas.

Medviédev (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.) não cita propriamente Cassirer, mas critica o idealismo e particularmente o neokantismo (corrente filosófica a que se filia Cassirer). Segundo Medviédev (2016), essa corrente filosófica teria reduzido tudo a um sistema: “No neokantismo, predominava a tendência a reduzir os princípios e os métodos autossuficientes a um sistema” (MEDVIÉDEV, 2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016., p.47). Nessa visão “reducionista”, não seria possível conceber os fatos históricos como algo vivo, “em sua irrepetibilidade e individualidade” (MEDVIÉDEV, 2016, p.47). Na crítica de Medviédev ao neokantismo, transparece uma ideia recorrente em Volóchinov e Bakhtin: a concepção dos fatos ideológicos como fenômenos vivos, irrepetíveis, únicos - essa é a ideia que fundamenta o conceito de enunciado concreto, por exemplo.

Se o idealismo, para Medviédev, não consegue abarcar a análise dos campos ideológicos em sua concretude viva, o marxismo, por outro lado, conforme mencionamos, reduzindo tudo a leis socioeconômicas de produção, não conceberia as especificidades dos diferentes campos de criação ideológica, além de propor uma relação mecânica e direta entre a base e a superestrutura. Não há, na visão de Medviédev (2016), uma relação direta entre essa base e as criações ideológicas, uma vez que a arte, a moral, a ciência não apenas refletem, mas refratam as condições de existência. O conceito de refração, também formulado de modo similar em Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), é importante para Medviédev analisar a forma como a literatura não “absorve” simplesmente as ideologias correntes, mas as reconfigura com propósitos artísticos.

Para resolver o problema da especificidade de cada campo de criação versus a unidade do meio ideológico, Medviédev inscreve-se no materialismo; afirma que apenas o método sociológico pode ser capaz de estudar a arte em suas particularidades sem perder de vista a unidade que essa compõe na cultura humana. Os campos ideológicos, para o autor, têm em comum o fato de serem semióticos, diferentes dos instrumentos de produção e dos meios de consumo. A arte, a ciência, a religião têm uma base material, sígnica, fora da qual não podem existir. Essa existência material realiza-se exteriormente, isto é, não se encontra “nas cabeças, nas ‘almas’ das pessoas” (MEDVIÉDEV, 2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016., p.48), está presente “nas palavras, na roupa, nas maneiras, nas organizações das pessoas e dos objetos” (MEDVIÉDEV, 2012, p.48-49).

Medviédev (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.) enfatiza a comunicação como sendo responsável pelo processo de semiotização. Afirma que o elo em comum entre a obra de arte e os demais produtos ideológicos é a existência semiotizada em prol da comunicação, ou seja, uma obra de arte, uma conferência científica, um rito religioso, existem para comunicar algo. Essa - a comunicação - pressupõe a interação entre os indivíduos e a existência de uma coletividade social, organizada. Encontramos, nessa ideia, uma confluência com o pensamento de Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), que também defende ser a interação social o “fator de síntese” dos produtos ideológicos. Ademais, Volóchinov (2017) também argumenta que, para que ocorra a semiotização, a interação deve se dar entre um grupo social organizado, ou seja, não basta colocar face a face dois homo sapiens; é necessário, antes, que esses homens constituam uma coletividade, uma classe social.

Uma vez definido que os diferentes campos ideológicos têm uma natureza semiótica, assentada na necessidade de comunicação de uma coletividade socialmente organizada (essa natureza “unifica” os campos de criação ideológica), Medviédev (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.) propõe que se analisem as particularidades de cada campo. Para o teórico, a análise dessas especificidades não deve pautar-se em significados “abstratos”, como teria feito o idealismo, mas a partir da “realidade concreta e material” e das “significações sociais, que se realizam nas formas de comunicação concreta” (MEDVIÉDEV, 2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016., p.54).

Assim, em um primeiro momento, o autor propõe a análise dos significados em relação ao corpo material que absorve e transmite esses significados. Na arte, predominaria uma relação em que todo o material é significativo, em que não há momentos acessórios. O objeto artístico é um “corpo-signo” singular, que não pode ser traduzido de uma materialidade para outra. Nesse sentido, um objeto artístico como um romance é uma totalidade, uma unidade singular que se encerra em si. Nesse objeto, a palavra é o meio material que constitui a forma e o sentido da obra. Se a “mesma história” desse romance for narrada em um filme, por exemplo, não se pode dizer que estamos diante do mesmo objeto, pois encontramos - no romance e no filme - materialidades diversas, constituídas por signos distintos: verbais e verbo-visuais, respectivamente.

A ciência já não tem essa dependência do significado com o material, conforme afirma Medviédev (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.). A materialidade da ciência é convencional e substituível, uma vez que “Um significado científico traduz-se facilmente de um material para outro, reproduz-se e repete-se sem dificuldade” (MEDVIÉDEV, 2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016., p.55). Um conceito científico, como a força na física, por exemplo, pode ser representado por diversas materialidades: a força pode ser definida verbalmente, como a “capacidade de realizar trabalho”; pode, também, ser expressa por uma fórmula (f = m.a) e, em última instância, pode ser representada simplesmente por um vetor (→). As três materialidades são capazes de realizar o mesmo sentido, o que não ocorre na arte.

Cassirer aborda essa relação do significado com a materialidade (ou do representante com o representado) em sua filosofia das formas simbólicas. Cada forma simbólica desenvolve uma dependência/relação específica com o meio material que a ordena. O mito, por exemplo, estabelece uma relação de “aprisionamento” do espírito no signo, na imagem mítica. Assim, no mito, não há a percepção da representação da coisa em si; a imagem passa a ser, na percepção mítica do mundo, o próprio representado. Já o significado científico tem uma relação de independência com o material que o expressa. O signo científico estabelece-se em uma visão puramente relacional (“dentre todas as formas espirituais apenas a forma da lógica, a forma do conceito e do conhecimento têm direito a uma autêntica e verdadeira autonomia”, CASSIRER, 2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p.28). Nesse ponto, podemos aproximar, ao menos parcialmente, as teses defendidas por Medviédev (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.) e Cassirer, pois ambos os autores confluem nos modos como pensam a relação entre a materialidade sígnica e o sentido instituído a partir dessa materialidade na arte e na ciência (“dependência” ou absorção do sentido pelo material, na arte; independência material/sentido na ciência).

Após o estabelecimento dessa relação material/sentido, Medviédev (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.) afirma que se devem buscar as funções da obra na unidade da vida social, e analisa seu objeto - a literatura - segundo as “leis de refração” desse campo ideológico: a refração de conteúdos previamente refratados; a reelaboração estética desses conteúdos a partir da exotopia; a refração de ideologias vivas, “em curso” - essas seriam as especificidades desse campo (do campo artístico-literário); sua natureza semiótica, constituída em prol da comunicação, por outro lado, seria o princípio geral da literatura - princípio este que estabeleceria a conexão entre os demais campos ou meios ideológicos.

Em síntese, na visão de Medviédev (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.), a cultura humana forma uma unidade em decorrência da natureza semiótica dos campos ideológicos. O autor enfatiza a comunicação entre grupos socialmente organizados como sendo a “origem” do processo de semiotização.

3 Volóchinov: a centralidade da palavra

Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), assim como Medviédev (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.), aborda a dialética entre as especificidades da arte, da ciência, da religião etc. (isto é, das esferas ideológicas) e a unidade/totalidade que essas esferas formam na cultura humana. Vejamos:

1.(…) qualquer área ideológica é uma totalidade que reage com toda a sua composição à alteração da base. Por isso a explicação deve preservar toda a diferença qualitativa dos campos em interação e observar todas as etapas que acompanham essa mudança. Apenas nessa condição o resultado da análise não será uma correspondência externa de dois fenômenos ocasionais e que se encontram em diferentes planos, mas um processo de formação dialética de uma sociedade real, que tem início na base e termina nas superestruturas (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.104, grifos no original).

2.(…) Pois está claro que entre as mudanças econômicas na vida da nobreza e o surgimento do “homem supérfluo” no romance existe um caminho muito longo que passa por uma série de esferas qualitativamente distintas, cada uma das quais com suas próprias leis específicas e singularidade (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.105, grifos no original).

No trecho 1 acima destacado, o autor trata da relação entre a base econômica e a superestrutura. Seguindo as teses marxistas, considera a base como sendo as condições econômicas de produção e a superestrutura como os produtos ideológicos - arte, ciência, moral etc. - assentados sobre a base. O autor, no entanto, questiona a ideia defendida pelo marxismo segundo a qual a base determina a ideologia de forma causal. Não se pode estabelecer, na visão de Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), uma causalidade mecânica e direta entre as condições de produção e os produtos ideológicos, uma vez que estamos diante de fenômenos distintos, que se encontram em diferentes planos. A base concerne às condições materiais de existência, não semiotizadas; a superestrutura, por sua vez, integra um mundo qualitativamente distinto - o “mundo dos signos”.

A diferença pautada em termos de “quantitativo” e “qualitativo” é relevante no constructo teórico de Volóchinov. O mundo dos signos é um mundo semiotizado, humano, cultural, que se ordena na comunicação discursiva e integra diferentes esferas da criação ideológica. Os signos têm diferentes naturezas - podem ser pictóricos, verbais, verbo-visuais. Essas diferenças, todavia, são qualitativas. Já o mundo natural é uma realidade não semiotizada, que apresenta uma diferença quantitativa em relação ao mundo dos signos. Assim, um grito animal é quantitativamente distinto da fala humana, por exemplo. Essa última - a fala, representada por um signo verbal - é qualitativamente diferente de um signo pictórico.

No primeiro capítulo de Marxismo e filosofia da linguagem, Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) centra-se nas especificidades do signo e na distinção da realidade sígnica em relação a outros fenômenos não semiotizados, como os instrumentos de produção e os bens de consumo (Nesse sentido, vemos a mesma questão abordada por Medviédev em sua obra). As condições materiais de existência são fenômenos não sígnicos; integram, portanto, realidades distintas da realidade do mundo sígnico. Esse - o mundo sígnico - é produto da base material, embora a correlação não possa ser estabelecida de modo mecânico não apenas por serem fenômenos distintos quanto à natureza, mas também porque, na visão de Volóchinov (2017) - e, também, na visão de Medviédev (2012), conforme discutimos acima -, a superestrutura reflete e refrata as condições materiais de existência.

A superestrutura, segundo lemos no trecho 1, compõe uma totalidade. Como tal, reage integralmente às mudanças econômicas. No trecho 2, o autor, no âmbito da literatura, argumenta como alterações nas condições de vida não podem ter um reflexo direto, causal na ideologia. O “homem supérfluo” não surge diretamente pela falência da nobreza. Esse tipo de correlação, defende Volóchinov, simplifica o fenômeno ideológico, e não considera que as diferentes esferas ideológicas possuem leis específicas e singularidades. Assim, para que apareça o “homem supérfluo” no romance, há uma série de transformações operadas na totalidade das esferas e na totalidade da obra.

Chama-nos a atenção, no trecho 2, o destaque que o autor confere às leis específicas de funcionamento das esferas. A arte, a religião, a ciência possuem modos específicos de refratar o real - e esses modos específicos constituem as diferenças qualitativas que pautam essas esferas distintas. Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) cita a existência dessas leis específicas, mas não se detém na questão. Medviédev (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.), por outro lado, segundo discutimos anteriormente, parece conferir mais ênfase a essas leis de funcionamento das esferas ou do “meio ideológico”. A análise do autor, no entanto, centra-se nas leis de funcionamento de seu objeto de estudo - a literatura e mais especificamente o romance.

A ênfase de Volóchinov recai sobre a natureza sígnica do mundo ideológico, pois, na visão do autor, é essa natureza que confere unidade às diversas manifestações do mundo ideológico. Nas palavras de Volóchinov (2017, p.94, grifos no original),

No interior do próprio campo dos signos (…) há profundas diferenças, pois fazem parte dela a imagem artística, o símbolo religioso, a fórmula científica, a norma jurídica e assim por diante. Cada campo da criação ideológica possui seu próprio modo de se orientar na realidade, e a refrata a seu modo. Cada campo possui sua função específica na unidade da vida social. Entretanto, o caráter sígnico é um traço comum a todos os fenômenos ideológicos.

Destacamos, no trecho supracitado, a afirmação de que os campos da criação ideológica possuem formas próprias “de se orientar na realidade”, de refratar esse “real” a seu modo. Por essa afirmação, infere-se que esses campos de criação seriam - e aqui tomamos “emprestada” a definição cassireriana - as autênticas fontes de luz que incidem sobre o caminho. Também, assim como Cassirer (e Medviédev), Volóchinov enfatiza a especificidade dessas “fontes de luz”, dessas lentes de refração ou construção (refratada) do real, ao tempo em que afirma a unidade desses campos na vida social. Para Volóchinov (2017), conforme se lê no trecho acima, o caráter sígnico é o “traço comum”, é o que unifica os diferentes campos. Arte, religião, política, ciência possuem suas especificidades, refratam o mundo de forma singular. No entanto, são todos esses campos, não obstante a diversidade funcional, constituídos qualitativamente por uma matéria sígnica.

A dinâmica especificidade versus unidade cultural pautada por Volóchinov recai, portanto, sobre o signo - e a esse tema (ao signo) o autor confere atenção especial, dedicando todo o primeiro capítulo de Marxismo e filosofia da linguagem à discussão sobre a natureza do signo ideológico. Duas questões são, então, centrais na leitura do “mundo sígnico” de Volóchinov: a natureza do signo e o processo de semiotização, isto é, o processo através do qual determinada realidade passa a integrar o “mundo dos signos”.

Sobre a natureza do signo, o autor defende que os produtos ideológicos, sígnicos, têm uma existência material. Como Medviédev (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.), discute a diferença entre os signos, os objetos da natureza e os instrumentos de consumo, afirmando que todos têm em comum a existência material, mas apenas os signos podem refletir e refratar uma realidade outra, ao passo que um objeto de consumo ou um objeto natural encerra seu significado em si mesmo.

Ao defender o primado da materialidade sígnica, Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) contrapõe-se ao idealismo, que, segundo o autor, situa “a ideologia na consciência” (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.94). A ideologia, para Volóchinov, não pode situar-se na consciência individual, pois é um dado objetivo, material e exterior do mundo da cultura. Em nota de rodapé, Volóchinov (2017) faz, no entanto, uma ressalva à filosofia de Cassirer, afirmando haver uma mudança no neokantismo moderno, pois Cassirer, “Sem abandonar o terreno da consciência”, consideraria “a representação como o seu traço principal” (VOLÓCHINOV, 2017, p.94). Conclui que a ideia, na visão de Cassirer, “é tão sensorial quanto a matéria”, mas que a natureza sensorial, na filosofia das formas simbólicas, “pertence ao signo simbólico, possui um caráter representativo” (VOLÓCHINOV, 2017, p.95).

Com efeito, no primeiro volume de A filosofia das formas simbólicas, Cassirer (2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001.) não nega a existência material dos signos. O filósofo alemão argumenta que todas as formas simbólicas possuem um substrato sensorial (CASSIRER, 2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p.31) e que “a forma ideal é reconhecida somente na e pela totalidade dos signos sensoriais dos quais se serve para expressar-se” (CASSIRER, 2001, p.32). É interessante observar que, nesse ponto, Cassirer critica o idealismo dogmático, que colocaria em oposição o mundo sensível e o mundo inteligível. O mundo simbólico, na visão cassireriana, constitui-se pela síntese entre o sensível e o inteligível, uma vez que esse último precisa daquele para expressar-se e, ao mesmo tempo, o sensível sem a expressão inteligível nada poderia representar simbolicamente.

No entanto, o signo, na tese defendida por Cassirer, ao mesmo tempo em que tem uma representação sensível, transcende essa representação. O autor, para definir o mundo simbólico e o modo de ser particular do simbolismo, baseia-se na formulação de Kant, que, segundo Cassirer (2001, p.61), “buscava entender por que razão o fato de ‘algo’ existir implica necessariamente a existência simultânea de uma ‘outra coisa’, totalmente diferente”. Essa questão norteia o simbolismo: o mundo simbólico, sem deixar de ter sua representação sensível, tem, ao mesmo tempo, uma representação que transcende o sensível. Assim, o signo linguístico, por exemplo, tem uma materialidade sonora, mas o seu sentido, ao mesmo tempo em que pressupõe essa materialidade, não pode encerrar-se em si; adquire valor apontando para fora de si, para as conexões que são estabelecidas quando o signo é representado. Dessa forma, na definição de Cassirer, os signos simbólicos existem como conteúdos sensíveis que, sendo sensíveis, transcendem, ao mesmo tempo, essa existência. Em suas palavras: “um conteúdo particular sensível, sem deixar de ser o que é, adquire o poder de apresentar à consciência algo universalmente válido” (CASSIRER, 2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p.69).

Essa última citação lembra-nos, sobremaneira, o trecho em que Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) afirma que um objeto físico pode ser transformado em signo. Nas palavras do filósofo russo: “Sem deixar de ser uma parte da realidade material, esse objeto em certa medida, passa a refratar e a refletir outra realidade” (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.92).

O princípio da materialidade, defendido por Volóchinov, ao mesmo tempo em que é construído em negação ao idealismo, parece ter influência da ideia de representação proposta por Cassirer, pois a materialidade sígnica a que se refere Volóchinov (2017) fixa-se no substrato material, mas, ao mesmo tempo, a transcende. Nesse sentido, um objeto físico, ao ser transformado em signo, passa a ser, simultaneamente, parte da realidade material a que era vinculado (“Sem deixar de ser uma parte da realidade material”) e parte de outra realidade - a realidade do “mundo dos signos”.

Sobre o processo de semiotização - o processo por meio do qual determinada realidade passa a uma segunda ordem - a ordem do “mundo dos signos”, destacamos, inicialmente, que Volóchinov confere à interação ou à comunicação entre grupos socialmente organizados a gênese sígnica. Volóchinov (2017, p.98) afirma que “A realidade do signo é inteiramente determinada por essa comunicação” e que a “existência de um signo não é nada mais que a materialização dessa comunicação”. Adiante, ressalta que “o signo é uma parte da comunicação social organizada e não existe, como tal, fora dela, pois se tornaria um simples objeto físico” (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.110). Essa última citação assinala particularmente o que denominamos como “gênese sígnica” enquanto resultado do processo comunicativo.

Vimos, no tópico antecedente, que Medviédev (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.) também defende a tese de que a comunicação é responsável pela gênese do mundo sígnico. Volóchinov, porém, diferentemente de Medviédev (2012), destaca atenção especial ao signo verbal, concebido como “fenômeno ideológico por excelência” (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.98), capaz de figurar nas mais diversas esferas comunicativas, devido à neutralidade sígnica da palavra verbal. Afirma Volóchinov (2017, p.99, grifo no original): “a palavra é neutra em relação a qualquer função ideológica específica. Ela pode assumir qualquer função ideológica: científica, estética, moral, religiosa”.

Por fim, ainda sobre o processo de semiotização, Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) problematiza o conteúdo do signo e a ênfase valorativa que acompanha esse conteúdo. O autor afirma que, em cada etapa do desenvolvimento social há “um conjunto específico e limitado de objetos que, ao chamarem a atenção da sociedade, recebem uma ênfase valorativa” e que “Apenas esse conjunto de objetos obterá uma forma sígnica, isto é, será objeto da comunicação sígnica” (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., p.110).

Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), em seguida, questiona o que determinaria a ênfase valorativa sobre um conjunto de objetos e conclui que apenas os objetos que estejam relacionados às premissas socioeconômicas de existência de um grupo passariam para a ordem do mundo sígnico.

Consideramos a citação acima interessante porque, nela, Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) condiciona a gênese sígnica a uma certa necessidade de “atenção” de um grupo específico. Isto é, diferentemente de Medviédev (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.), Volóchinov não destaca apenas a comunicação como sendo essencial ao processo de semiotização, mas também inclui a ênfase valorativa como necessária a esse processo.

Excetuando-se (por obviedade) as teses relativas às premissas socioeconômicas ressaltadas por Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), encontramos ideia parecida em Cassirer sobre a gênese semiótica do mito e da linguagem. Cassirer (2013CASSIRER, E. Linguagem e mito. Tradução J. Guinsburg, Miriam Schbaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2013.), em Linguagem e mito, argumenta que o selo da significação é dado aos objetos que “despertam” o interesse da comunidade, que, de certa forma, recebem, portanto, uma ênfase valorativa.

Também no primeiro volume de A filosofia das formas simbólicas - obra citada ao menos três vezes em nota de rodapé por Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) - encontramos essa ideia sobre a gênese semiótica a partir do foco (valorativo) que determinado objeto ou determinada atividade desperta na vida humana. Nessa última obra, Cassirer (2011CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Terceira parte. Fenomenologia do conhecimento. Revisão técnica e tradução Flávio Benno Wiebeneichler. Tradução Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2011.) ressalta o papel ativo da linguagem no processo de semiotização. A linguagem, para o filósofo, não recebe as impressões de forma passiva: opõe-se a essas impressões, “distingue, elege, julga” (CASSIRER, 2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p.385), e, tomando certa posição ao conteúdo percebido, “cria determinados centros, certos pontos nodais da própria intuição objetiva” (CASSIRER, 2001, p.386).

Em resumo, a visão de Volóchinov sobre a unidade da cultura humana é bastante próxima daquela desenvolvida por Medviédev (e, também, em certo sentido, por Cassirer): mito, ciência, arte, política etc. - isto é, as diferentes esferas criativas - possuem especificidades, mas são reunidas por um mesmo princípio semiótico, pois integram o mundo da cultura, um mundo semiótico, quantitativamente distinto do mundo natural. A gênese semiótica, em Volóchinov, é atribuída à comunicação e aos modos como determinado objeto recebe ênfase valorativa - aos modos como “tocam” as condições de vida da comunidade. Volóchinov (2017), todavia, confere especial destaque ao signo verbal em relação aos demais sistemas sígnicos.

Na próxima seção, analisaremos como Bakhtin aborda a questão da unidade da cultura humana. Veremos que esse último autor apresenta uma visão diferencial em relação a Medviédev (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.) e a Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), ao ressaltar como os diferentes domínios culturais representam não apenas modos específicos de “semiose”, mas, sobretudo, modos de valoração do mundo.

4 Bakhtin: a inovação bakhtiniana

Bakhtin pensa os diferentes domínios da cultura humana não apenas em seu aspecto semiótico, que reduziria o estudo da arte, ciência, religião à tecnicalidade - os diferentes domínios da cultura são, em essência, fenômenos conscientizados, fenômenos valorativos. Centremos, aqui, nosso olhar sobre o ensaio “O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária”, datado de 1924 (PCMF, doravante).

Nesse texto, ao traçar uma crítica aos estudos de poética que visam construir a ciência de cada arte em particular, sem correlacioná-las a uma visão sistemática da arte na unidade da cultura humana, Bakhtin (2014BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução Aurora Formoni Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Spryndis Nazário, Homero Freitas de Andrade. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p.13-70., p.16) defende que o conceito de estético deve ser estudado por uma filosofia sistemática, a partir de uma “definição recíproca com outros domínios” (BAKHTIN, 2014BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução Aurora Formoni Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Spryndis Nazário, Homero Freitas de Andrade. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p.13-70., p.16). Isto é, a arte, para o filósofo, constrói sua autonomia à medida que participa da cultura e se diferencia de outros domínios culturais: ciência, mito, religião etc.

É interessante observar que Bakhtin reclama à filosofia da cultura a tarefa de elucidar a singularidade da arte na unidade cultural. Essa tarefa, segundo vimos anteriormente, caberia, na visão de Medviédev (e também de Volóchinov), ao marxismo. Aqui, sublinha-se, portanto, uma primeira distinção entre a concepção de Bakhtin e a dos dois outros autores supracitados.

Em Cassirer (2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001.) também encontramos a ideia de que só a filosofia da cultura tem a metodologia necessária para descrever as diferentes formas simbólicas, preservando a singularidade de cada forma e relacionando-as no todo da cultura. A tarefa central da filosofia seria compreender e elucidar o “princípio formador fundamental” (CASSIRER, 2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p.74) das formas simbólicas. Esse princípio, segundo assinalamos nas páginas acima, remete à função simbolizante inerente a todos os domínios culturais.

Em certo sentido, essa “função simbolizante” aproxima Cassirer (2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001.) de Medviédev (2012) e Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) - embora os dois últimos autores situem-se no marxismo e construam sua posição criticando o idealismo (corrente a que se filia Cassirer), a “função semiótica” do signo, que constrói mundos quantitativamente distintos do mundo natural, aproxima-se da função simbolizante das formas simbólicas. Encontramos em Medviédev, Volóchinov e Cassirer a tese de que o mundo da cultura é um mundo semiótico, um mundo de signos ou de símbolos. A gênese sígnica será, no entanto, um ponto que diferenciará os autores. Volóchinov e Medviédev enfatizam a comunicação como sendo algo que incide sobre o “início do mundo sígnico” (ou seja, enfatizam a ideia de que a comunicação entre grupos socialmente organizados seria responsável pela gênese de um mundo quantitativamente distinto do mundo natural). Não encontramos a mesma ênfase em Cassirer.

A visão de Bakhtin, ao que nos parece, representa “um passo a adiante”, uma inovação: a arte, a ciência, a religião e a vida não são apenas fenômenos sígnicos; são, também (ou são, “sobretudo”) fenômenos valorativos - fenômenos que expressam diferentes posições, diferentes modos de construção axiológica. A ideia de “valor”, na constituição da unidade da cultura humana, tem, em Bakhtin, caráter central.

Vejamos o trecho abaixo do ensaio PCMF:

O problema deste ou daquele domínio da cultura no seu conjunto - conhecimento, ética, arte - pode ser compreendido como o problema dos limites desse domínio. Este ou aquele ponto de vista criador, possível ou realizado de fato, só se torna necessário e indispensável de modo convincente quando relacionado com outros pontos de vista criadores: só quando nas suas fronteiras nasce a necessidade absoluta desse ponto de vista, em sua singularidade criativa, é que ele encontra seu fundamento e sua justificativa sólida; mas no seu próprio interior, fora da sua participação na unidade da cultura, ele é apenas um mero fato, e sua singularidade pode ser representada simplesmente como um arbítrio, como um capricho (BAKHTIN, 2014BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução Aurora Formoni Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Spryndis Nazário, Homero Freitas de Andrade. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p.13-70., p.29, grifos nossos).

Destacamos, no trecho acima, as expressões “ponto de vista criador / ponto de vista” porque elas nos remetem não apenas ao deslocamento do produto para a vida do processo (isto é, não se trata de considerar a “arte”, mas o ato de (co)criação, vivo, da obra artística), mas também porque essas expressões remetem à tese central de Bakhtin: arte, ciência, vida etc. são, em essência, diferentes modos de construção valorativa do real; representam pontos de vista - sistemáticos e, ao mesmo tempo, concretos - criativos. Os atos criativos (criativos no sentido mesmo de “criação”) são sistemáticos, pois obedecem a um princípio sobre o modo como se relacionam com o objeto e com os demais atos culturais criadores: há modos próprios como a arte “olha”, acolhe seu objeto em oposição aos modos como a ciência o faz, por exemplo. São, também, concretos - e a ênfase na concretude da cultura faz com que Bakhtin estabeleça uma ruptura com qualquer sistematicidade rígida - porque são atualizados no processo, na eventicidade única de cada processo de criação.

Vida, ciência, arte possuem uma unidade não apenas porque são todos fenômenos culturais, semióticos, mas porque representam determinados modos como valorativamente constituem seu objeto em relação mútua.

A análise dos fenômenos culturais pressupõe, portanto, a observação de como o ato criador posiciona-se frente a uma realidade preexistente. Na ciência, não são aceitos os valores éticos nem os valores estéticos. “A avaliação preexistente e a formalização estética não penetram no interior do conhecimento” (BAKHTIN, 2014BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução Aurora Formoni Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Spryndis Nazário, Homero Freitas de Andrade. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p.13-70., p.31). O mundo da ciência é um mundo uno de valores, à medida que os valores ético e estético não conseguem adentrar o mundo da ciência. O ato criador da ciência - isto é, o ato cognoscível -, no interior desse domínio, pressupõe outros atos, pois “o caráter isolado e único do ato cognoscível (…) não é significativo do ponto de vista do próprio conhecimento” (BAKHTIN, 2014, p.32). A obra científica, nesse sentido, não existe em isolamento: pressupõe outras obras. A ciência, ademais, não tem acabamento, pois esse é impossível ao ato cognoscível.

A arte, por seu turno, é “acolhedora”, “benevolente”, uma vez que os valores ético e cognitivo são acolhidos, são necessários para a construção do mundo estético. Nesse sentido, segundo Bakhtin (2014BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução Aurora Formoni Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Spryndis Nazário, Homero Freitas de Andrade. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p.13-70., p.33), “a vida não se encontra só fora da arte, mas também nela”. Os valores da vida e da ciência, ao penetrarem a arte, são obviamente trabalhados no interior da obra, são “estetizados”, mas a arte não pode se constituir em um mundo uno de valores, como a ciência, considerando que o trabalho autoral artístico consiste no recorte de um valor - ético ou cognitivo -, na enformação desse valor, na estetização e no acabamento. A obra artística é isolada, autossuficiente, pois cada obra “ocupa uma posição autônoma no tocante à realidade do conhecimento e do ato, o que cria a historicidade imanente da obra de arte” (BAKHTIN, 2014BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução Aurora Formoni Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Spryndis Nazário, Homero Freitas de Andrade. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p.13-70., p.32). O ato criativo obedece, também, a um princípio de exotopia, ao “olhar” de fora do autor criador, que, tendo um excedente de visão em relação ao objeto criado, enforma e acaba artisticamente esse objeto.

A vida, por fim, caracteriza-se por uma relação de dever para com a realidade (BAKHTIN, 2014BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução Aurora Formoni Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Spryndis Nazário, Homero Freitas de Andrade. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p.13-70., p.32), uma relação na qual o sujeito deve se posicionar, deve ocupar uma posição única no processo ininterrupto da vida e responder por esse ato, não tendo álibi para sua existência. A relação, com a realidade pré-existente, segundo Bakhtin (2014BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução Aurora Formoni Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Spryndis Nazário, Homero Freitas de Andrade. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p.13-70., p.32-33), “assume um caráter negativo, embora diferente do encontrado no domínio do conhecimento”. Essa diferença a que se refere Bakhtin concerne ao caráter conflitante de valores que são estabelecidos nos atos éticos. Na ciência, por seu turno, não pode haver conflito, devido à homogeneidade de valores que constituem o mundo cognoscível. Conforme afirma Bakhtin (2014, p.33), “Não é a ciência que pode entrar no conflito, mas o sábio (…)”.

Em síntese, a “inovação” de Bakhtin recai na centralidade da axiologia como elemento constitutivo da cultura. Arte, ciência, mito etc. são mais que produtos culturais de natureza sígnica; são diferentes visões de mundo, representam modos sistemáticos e concretos por meio dos quais o sujeito ocupa uma posição em relação a outras posições, a outros valores. Cabe destacar, também, a ênfase que Bakhtin confere a ideia de “fronteira”: a cultura, segundo o autor russo, não deve ser concebida como uma entidade espacial qualquer, com limites estritos, pois a unidade cultural é construída pela inter-relação valorativa entre os diferentes domínios.

Considerações finais

Considerando que a cultura é o grande problema filosófico do início do século XX, e que sobre esse tema se debruçam Cassirer e os autores russos P. Medviédev, V. Volóchinov e M. Bakhtin, na introdução deste artigo questionamos como cada um desses pensadores responde à pergunta: o que confere unidade à cultura, dada a pluralidade de manifestações culturais?

Cassirer defende que a investigação filosófica deve considerar a cultura não a partir da ideia de substância, mas da ideia de função. Formula, assim, os conceitos correlatos de formas simbólicas como diferentes modos de objetivação do real e de função simbolizante como modos de atribuição de sentido por cada forma simbólica. Entende que a função simbolizante é responsável pela unidade que vincula as formas simbólicas em um todo orgânico.

Na obra de P. Medviédev, O método formal nos estudos literários (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.), encontramos, como conceitos recorrentes, em sua busca por uma equalização entre a totalidade dos campos ideológicos e a especificidade desses mesmos campos, os termos “Lei”, “unidade” ou “totalidade”, “especificidade” ou “particularidade”. Chama-nos a atenção o fato de esses termos serem também recorrentes em A filosofia das formas simbólicas de Cassirer (2001CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001.). Para Medviédev (2016), os campos ideológicos têm uma natureza semiótica, assentada na necessidade de comunicação de uma coletividade, e é essa natureza que “unifica” os campos de criação ideológica, diferenciando-os de outros produtos não semióticos (o mundo “natural”).

Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.) também considera o caráter sígnico como um “traço comum”, responsável por unificar os diferentes campos. Arte, religião, política, ciência possuem suas especificidades, refratam o mundo de forma singular. No entanto, são todos esses campos constituídos por uma matéria sígnica.

Em resumo, a visão de Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.), Medviédev (2016MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.) e Cassirer sobre o problema apresentado na introdução deste artigo é similar: mito, ciência, arte, política etc. possuem especificidades, mas são reunidas por um mesmo princípio semiótico, pois integram o mundo da cultura - mundo esse quantitativamente distinto do mundo natural.

A visão de Bakhtin, ao que nos parece, representa “um passo adiante”, uma inovação, pois, para esse autor, a arte, a ciência, a religião e a vida não são apenas fenômenos sígnicos (ou “simbólicos”); são, sobretudo, fenômenos valorativos, isto é, diferentes modos de construção axiológica. A ideia de “valor”, na constituição da unidade da cultura humana, tem, em Bakhtin, caráter central.

Declaração de disponibilidade de conteúdo

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução Aurora Formoni Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Spryndis Nazário, Homero Freitas de Andrade. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p.13-70.
  • BRANDIST, C. Bakhtin, Cassirer and Symbolic Forms. Radical Philosophy, n. 85, September/October, 1997, p.20-27.
  • BRANDIST, C. The Bakhtin Circle: Philosophy, Culture and Politics. London; Sterling, VA: Pluto Press, 2002.
  • CASSIRER, E. Linguagem e mito. Tradução J. Guinsburg, Miriam Schbaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2013.
  • CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. Tradução Tomás Rosa Bueno. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
  • CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Primeira parte. A linguagem. Tradução Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
  • CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Segunda parte. O pensamento mítico. Tradução Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas: Terceira parte. Fenomenologia do conhecimento. Revisão técnica e tradução Flávio Benno Wiebeneichler. Tradução Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
  • CASSIRER, E. Language and Art II [1942]. In: CASSIRER, E. Symbol, Myth, and Culture: Essays and Lectures of Ernst Cassirer 1935-1945. Edited by Donald Phillip Verene. London: Yale University Press, 1979. p.145-165.
  • FARACO, C. A. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
  • GRILLO, S. Ensaio introdutório. In: VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. p.7-79.
  • LOFTS, S. G. Translator’s Introduction: The Historical and Systematic Context of The Logic of the Cultural Sciences. In: CASSIRER, E. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. New Haven and London: Yale University Press, 2000. p.xiii-xliii.
  • LOFTS, S. G. Bakhtin e Cassirer: o evento e a máquina. Bakhtiniana, São Paulo, v. 11, n.1, p.77-98, jan./abr. 2016. https://www.scielo.br/j/bak/a/jtcbymK6f93hK8yT6KzkRSw/ https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/24739
    » https://www.scielo.br/j/bak/a/jtcbymK6f93hK8yT6KzkRSw» https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/24739
  • MARCHEZAN, R. C. M. Bakhtin e a “Virada linguística” na filosofia. In: BRAIT, B.; PISTORI, M. H. C.; FRANCELINO, P.F. (orgs.). Linguagem e conhecimento (Bakhtin, Volóchinov, Medviédev). Campinas, SP: Pontes Editores, 2019, p.261-291.
  • POOLE, B. Bakhtin and Cassirer: The Philosophical Origins of Carnival Messianism. The South Atlantic Quarterly, v. 97, n. 3 /4, p.537-78, 1998.
  • MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e Nota das tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016.
  • PORTA, M. A. G. Estudos neokantianos. São Paulo: Edições, Loyola, 2011.
  • VERENE, D. P. Foreword. In: CASSIRER, E. The Logic of the Cultural Sciences: Five Studies. New Haven and London: Yale University Press, 2000. p.xiii-xliii.
  • VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtinina. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.
  • 1
    Tradução nossa. No original, em inglês: “Never before has there been such an awareness of the range and variety of cultures”.
  • 2
    Tradução nossa. No original, em inglês: “Each of them is a mirror of our human experience which, as it were, possesses its own angle of refraction”.
  • 3
    Tradução nossa. No original, em inglês: “In our former discussions I often had the impression that some of you were thinking that what I defend here is a system of subjective idealism in which the ego, the subjective mind, the thinking self is considered as the center and as the creator of the world, as the sole or ultimate reality. I do not wish to argue here about terms. We know that Kant felt very much surprised and very much scandalized when his Critique of Pure Reason at first appearance met the same objection, when it was described by a reviewer as a system of subjetive idealism”.
  • 4
    Considerando que, nesse trecho, Cassirer (2001) busca fundamentar sua filosofia das formas simbólicas traçando uma crítica a Kant - crítica por meio da qual argumenta que Kant teria subordinado a teoria do conhecimento a apenas uma forma específica de se conceber o real, isto é, à forma lógica. Cassirer (2001) pontua que, ao lado dessa forma de se conhecer o real, há outras possíveis, com a mesma validez (mito, linguagem, arte etc.).

Parecer I

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer I

O artigo parte das convergências, apontadas por diferentes estudiosos, entre o pensamento de Bakhtin, Volóchinov e Medviédev e o pensamento de Cassirer, para dedicar-se a refletir sobre uma questão importante para esses pensadores: “o que confere unidade à cultura?”. Vai colocando frente a frente os pensadores, intercalando-os, e mostrando suas afinidades e contraposições. O texto já vai construindo sua conclusão, que indica, no domínio da cultura traçado, o que recebe mais atenção de cada um dos pensadores. A reflexão apresentada é excelente e, em nossa opinião - obviamente, sem deixar de lembrar as lentes marxistas, especialmente, de Volóchinov e Medviédev -, reafirma a importância de Cassirer para o conhecimento das bases filosóficas desses pensadores russos. Contribuição importante, o artigo merece ser publicado, lido e debatido. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    10 Jan 2023

Parecer II

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer II

O artigo é de altíssimo nível. Sinto-me privilegiado por ter sido o primeiro a lê-lo. Certamente o conteúdo oferecerá contribuição significativa para os pesquisadores que pretendem se aprofundar na discussão vigente sobre a relação do Círculo de Bakhtin e a filosofia de Ernst Cassirer. Algumas pequenas correções, no entanto, são necessárias: - A referência à obra de Cassirer de 1979 aparece com a letra "b" dentro de parênteses em seguida à menção ao ano na página 6. Há apenas uma obra de Cassirer de 1979, por isso essa letra colocada depois do ano deve ser retirada. - A palavra inglesa "art", que está no título do livro de Cassirer aparece com a grafia da língua portuguesa "arte" nas páginas 4 e 5. - Os títulos dos livros deveriam ser colocados em itálicos, mas são colocados entre aspas. Isso não é permitido pela Revista Bakhtiniana. Itálico deve ser usado apenas para títulos de obras, que muitas vezes foram colocados entre aspas, assim como termos estrangeiros como "homo sapiens", que não foi colocado em itálico pelo(a) autor(a). Creio que na página 13, no último parágrafo, o(a) autor(a) tenha colocado o termo "casual" onde pretendia colocar "causal". Volóchinov escrito com letra minúscula na página 15. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    08 Dez 2022

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2022
  • Aceito
    12 Fev 2023
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com