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Realismo grotesco e corpo grotesco em Bakhtin

RESUMO

Nesse artigo, discutiremos os conceitos bakhtinianos de realismo grotesco e corpo grotesco a partir de diferentes aspectos, a começar pelas abordagens sincrônicas feitas pelos linguistas e semióticos contemporâneos nossos, mas também pela abordagem que o próprio Bakhtin fez desses conceitos desde a pré-história deles, isto é, enquanto o pensador russo elaborava-os em sua tese de doutorado, no contexto da União Soviética na primeira metade do século XX. Depois disso, discutiremos o significado de ambos os conceitos no interior da obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais e, por fim, examinaremos algumas manifestações do grotesco em obras literárias e de artes plásticas do judaísmo antigo e do cristianismo antigo e medieval, as quais foram direta ou indiretamente citadas ou aludidas por Bakhtin.

PALAVRAS-CHAVE:
Bakhtin; Grotesco; Realismo; Corpo; Rabelais

ABSTRACT

In this article, we will discuss the Bakhtinian concepts of Grotesque realism and grotesque body from various perspectives. We will begin by exploring the synchronic approaches taken by contemporary linguists and semioticians. Additionally, we will delve into Bakhtin’s own treatment of these concepts, tracing their origins to his doctoral thesis during the early 20th century within the context of the Soviet Union. Subsequently, we will examine the significance of both concepts within the work Rabelais and His World, Finally, we will scrutinize some instances of the Grotesque in literary and visual arts from Ancient Judaism and early in Medieval Christianity, which were either directly or indirectly referenced by Bakhtin.

KEYWORDS:
Bakhtin; Grotesque; Realism; Body; Rabelais

Introdução

Realismo grotesco e o corpo grotesco figuram entre os mais importantes conceitos de Bakhtin em seu livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais (2010). Vários ensaios e trabalhos acadêmicos nas áreas de ciências humanas que são produzidos a todo momento os abordam; e tantos outros os utilizam como conceitos teóricos para realizar análises ou estudos de obras literárias ou de outros fenômenos culturais de cunho popular tomados como objetos de pesquisa, que aos seus proponentes parecem adequados à metodologia bakhtiniana.

Apesar da frequência com que estudiosos escrevem sobre o realismo grotesco e o corpo grotesco e da frequência com que esses conceitos são retomados para investigações cientificas na área das humanidades em pesquisas realizadas no Brasil e no mundo, nota-se a necessidade de um aprofundamento na explicação do sentido dos conceitos relacionados com o grotesco bakhtiniano de acordo com o que o próprio autor, Mikhail M. Bakhtin, pretendeu, pois, por mais que seja plausível que nas ciências humanas os conceitos sejam ressignificados, como fizeram linguistas e semióticos com a obra de Bakhtin, é sempre importante retomar o sentido original desses conceitos para não perder de vista o legado do pensador russo.

Assim, propomo-nos a rediscutir o grotesco na obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais (2010) a partir de sua gênese e de seu posterior desenvolvimento. Neste artigo, faremos isso, em primeiro lugar, apontando para a proficuidade do conceito de grotesco, que foi tomado por muitos estudiosos nas áreas das ciências humanas, os quais lhe atribuíram novas abordagens. Em seguida, vamos visitar o grotesco na feitura da obra de Bakhtin, antes de ser publicada como livro, nas fases de sua produção em que foi apresentada como tese doutoral ao Instituto de Literatura Mundial Maksim Gorki. Depois, exploraremos os significados do grotesco na obra em que consta ao lado de outros conceitos, como carnavalização e carnavalesco, que são inseparáveis do grotesco. Por fim, apresentaremos o grotesco no imaginário e nas artes plásticas relacionados ao judaísmo antigo e ao cristianismo antigo e medieval, elementos que são citados direta ou indiretamente por Bakhtin em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais (2010).

1 A proficuidade do conceito “grotesco”

Para o bem ou para o mal, realismo grotesco” e “corpo grotesco” são conceitos bakhtinianos que chamaram muito a atenção dos estudiosos de ciências humanas em geral desde a época em que foram debatidos pelos intelectuais que primeiro acessaram a obra de Bakhtin na União Soviética na década de 1930, quando ocorreu sua defesa de doutorado, de acordo com o que veremos abaixo.

Em época mais recente, a frequente e, às vezes, entusiasmada utilização do conceito de “grotesco” como subsídio teórico para pesquisas em ciências humanas é também bastante realizada, como se evidencia por sua recorrente menção em artigos científicos, sobretudo no Brasil - o que é possível de se atestar por meio de uma rápida pesquisa tanto na internet quanto numa biblioteca universitária.

Com efeito, nota-se que boa parte dos estudos que propõem uma reflexão sobre o grotesco bakhtiniano foram feitos a partir de abordagens sincrônicas. Por exemplo, o texto intitulado simplesmente como “Realismo grotesco” (2010), de autoria de Eduardo Peñuela Cañizal, que, ao escrever sobre o tema, confessou que não é um leitor assíduo de Bakhtin e que tomou como referência para tratar do assunto a obra The Dialogical Imagination (1981BAKHTIN, Mikhail. The Dialogic Imagination. Austin: University of Texas Press, 1981.)1 1 O conteúdo que está na compilação de artigos de Bakhtin publicada em língua inglesa e intitulada The Dialogical Imagination (1981) corresponde ao que se tem nas edições brasileiras Questões de literatura e de estética: a teoria do romance (2010) e Teoria do romance em três volumes (2015; 2018; 2019). No inglês, encontram-se na coletânea os seguintes ensaios: O discurso no romance [Discourse in the novel]; Da pré-história do discurso romanesco [From the Prehistory of Novelistic Discourse]; Epos e romance (Sobre a metodologia do estudo do romance) [Epic and Novel]; e Formas de tempo e de cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica) [Forms of Time and of the Chronotope in the Novel]. - e não A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (2010), como seria de se esperar. O estudo elaborado por Cañizal (2010)CAÑIZAL, Eduardo Peñuela. Realismo grotesco. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Editora Contexto, 2010. traz uma abordagem semiótica realizada a partir da leitura que a estudiosa búlgara Julia Kristeva (2014)KRISTEVA, Julia. Semiotike: Recherches pour une sémanalyse. Paris: Editions du Seuil, 2014. faz do intelectual russo; desse modo, é uma abordagem duplamente indireta do tema, tanto porque não parte da obra em que Bakhtin abordou o tema, quanto porque utiliza a leitura de Kristeva (2014)KRISTEVA, Julia. Semiotike: Recherches pour une sémanalyse. Paris: Editions du Seuil, 2014. como mediação.

Também podemos apontar o artigo de Galin Tihanov, “A importância do grotesco” (2012TIHANOV, Galin. A importância do grotesco. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, v. 7, n. 2, p. 166-180, jul./dez. 2012. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/11381. Acesso em: 23 out. 2023.
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), no qual o estudioso relacionou o grotesco bakhtiniano com a subjetividade. Dado o viés de sua perspectiva, o estudioso não explicou em que consiste propriamente o grotesco no Renascimento, no Medievo, na Antiguidade ou em qualquer época ou em qualquer ambiente histórico que pudesse ser situado; em vez disso, trabalhou a noção do conceito em relação com a ideia da subjetividade que lhe interessava particularmente no seu ensaio.

Por sua vez, Tzvetan Todorov, que tanto exaltou o gênio do estudioso russo em sua obra Mikhail Bakhtin: el princípio dialógico (2012TODOROV, Tzvetan. Mijaíl Bajtín: El principio dialógico. Trad. Mateo Cardona Vallejo. Bogotá: Publicaciones del Instituto Caro e Cuervo, 2012. [1981]), ofereceu apenas uma descrição sumária do conceito ao afirmar que o termo grotesco é o oposto do clássico, e não se aprofundou em sua explicação sobre o assunto, apenas afirmou de modo sumário que o grotesco também se opõe ao oficial, sério etc.

Marye Rosse Bernardi (2009)BERNARDI, Rosse Marye. Rabelais e a sensação carnavalesca do mundo. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Editora Contexto, 2009, p. 73-94. ofereceu uma explicação mais elaborada a respeito do grotesco, a qual, no entanto, também é uma abordagem sincrônica, como as outras mencionadas, pois a estudiosa não se preocupou em citar exemplos fora da obra de Bakhtin, nem buscou modos de interpretar seu significado. Vejamos o que a estudiosa escreveu:

Nessa concepção estética praticamente esquecida, o sujeito nunca é o homem na sua intimidade, mas o povo, com seu corpo exagerado, universal, cósmico e abundante, remetendo ao princípio material e corporal, alegre e festivo. É no plano do realismo grotesco que se realiza o fenômeno do rebaixamento, isto é, a transferência de todos os valores abstratos, ideais, espirituais e elevados para o plano material e corporal, correspondente ao ventre, à terra. Assim, construídas pela ótica do rebaixamento, essas imagens tendem a distorcer e deformar também os valores da cultura oficial e religiosa (Bernardi, 2009BERNARDI, Rosse Marye. Rabelais e a sensação carnavalesca do mundo. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Editora Contexto, 2009, p. 73-94., p. 79).

O artigo de Norma Discini, “Carnavalização” (2008), de modo muito interessante, mostrou de forma didática e esclarecedora os efeitos da carnavalização, que é um conceito estritamente relacionado com o grotesco, na obra de Rabelais, que é objeto de estudo de Bakhtin, assim como citou outras obras com as quais Bakhtin trabalhou, a saber, livros de Dostoiévski, Luciano de Samosata e Erasmo de Roterdã; mas a autora do artigo não explora aspectos da história do desenvolvimento do conceito nem sobre seu significado, pois em nenhum momento teve esse objetivo.

As contribuições proporcionadas por esses estudiosos são importantes, pois mostram o potencial do conceito de grotesco bakhtiniano, que é abordado a partir das perspectivas da semiótica, da subjetividade e da teoria da comunicação, e também poderia ser retomado por outras incontáveis perspectivas de estudo como subsídio teórico para pesquisas em diversos ramos das humanidades.

Apesar da relevância de estudos como esses para diversas áreas das humanidades, apontamos a importância de se entender o significado do grotesco do modo como o próprio Bakhtin o concebeu, assim como seu desenvolvimento histórico. Por isso, pretendemos discuti-lo a partir da terminologia utilizada pelo próprio intelectual russo que o fundiu, bem como por suas perspectivas. Assim, na sequência, buscaremos a compreensão do grotesco bakhtiniano desde sua pré-história.

2 Gênese do grotesco como conceito teórico

Em seu artigo “Do livro à tese de Bakhtin sobre Rabelais” (2022), Sheila Vieira de Camargo Grillo analisou o estenograma da defesa de doutorado de Bakhtin no Instituto de Literatura Mundial Maksim Górki. Nesse trabalho, Grillo (2022)GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. Do livro à tese de Bakhtin sobre Rabelais (1930-1952): Projeto, contexto, desfecho. Alfa, São Paulo, v. 66, e15167, 2022. https://doi.org/10.1590/1981-5794-e15167.
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descreveu o longo processo (ocorrido entre 1930 e 1952) pelo qual o texto de Bakhtin, que hoje conhecemos por A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais (2010), passou, desde quando a intenção de seu autor era publicá-lo como livro até sua apresentação e defesa como tese doutoral e a posterior reelaboração de outras versões do trabalho, que foram feitas para atender aos ajustes exigidos pela Comissão de Certificação Superior; e, por fim, sua publicação no formato de livro na União Soviética, já em 1965. Não temos condições metodológicas nem o objetivo de entrar nos pormenores desse processo. Em vez disso, vamos abordar algumas informações que trazem luz à compreensão da teoria bakhtiniana sobre o grotesco, conforme nos dispusemos a discutir.

De acordo com Grillo (2022)GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. Do livro à tese de Bakhtin sobre Rabelais (1930-1952): Projeto, contexto, desfecho. Alfa, São Paulo, v. 66, e15167, 2022. https://doi.org/10.1590/1981-5794-e15167.
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, no processo de defesa de doutorado na União Soviética, entre as décadas de 1940 e 1950, a banca de examinadores poderia conceder ao candidato o título de doutor ou uma titulação equivalente ao que chamamos de livre-docente no Brasil, ou ainda poderia reprovar seu trabalho e assim negar ao candidato qualquer dos dois títulos.

Nesse processo, conforme Grillo (2022)GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. Do livro à tese de Bakhtin sobre Rabelais (1930-1952): Projeto, contexto, desfecho. Alfa, São Paulo, v. 66, e15167, 2022. https://doi.org/10.1590/1981-5794-e15167.
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, além da entrega da tese para os examinadores, o candidato também fazia uma apresentação oral, que naquele contexto tinha bastante peso para a avaliação final. A banca que avaliou a tese de Bakhtin era composta por vários pareceristas, alguns dos quais eram oficiais enquanto outros não, alguns apresentaram seus pareceres por escrito após terem lido o trabalho e outros fizeram arguições orais após a audiência da apresentação oral, sem terem lido a tese.

Segundo Grillo (2022)GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. Do livro à tese de Bakhtin sobre Rabelais (1930-1952): Projeto, contexto, desfecho. Alfa, São Paulo, v. 66, e15167, 2022. https://doi.org/10.1590/1981-5794-e15167.
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, em seu parecer, o examinador Isaak Nucínov, apesar de ter destacado a importância do “realismo gótico” no trabalho de Bakhtin, criticou a afirmação de que “as fontes da literatura de Nikolai Gógol provêm dele” (Grillo, 2022GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. Do livro à tese de Bakhtin sobre Rabelais (1930-1952): Projeto, contexto, desfecho. Alfa, São Paulo, v. 66, e15167, 2022. https://doi.org/10.1590/1981-5794-e15167.
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, p. 7). Já a examinadora Maria Teriáeva, em sua arguição, “critica a ausência de uma definição do realismo gótico” (Grillo, 2022GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. Do livro à tese de Bakhtin sobre Rabelais (1930-1952): Projeto, contexto, desfecho. Alfa, São Paulo, v. 66, e15167, 2022. https://doi.org/10.1590/1981-5794-e15167.
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, p. 13). Por sua vez, o examinador Nikolai Brodski, também em sua arguição, afirmou que “[o] realismo gótico representa um rebaixamento do método” (Grillo, 2022GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. Do livro à tese de Bakhtin sobre Rabelais (1930-1952): Projeto, contexto, desfecho. Alfa, São Paulo, v. 66, e15167, 2022. https://doi.org/10.1590/1981-5794-e15167.
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, p. 14) e que não concordava que o “realismo gótico” estivesse refletido nas obras de Dostoiévski, Bóbok e Sonho de um homem ridículo. Por fim, apesar do tom elogioso da arguição de Mikhail Alekseev, esse examinador fez uma ressalva quanto à escolha do termo “realismo gótico”, em substituição ao qual propôs que fosse usado “realismo folclórico medieval”2 2 Foram feitas outras arguições, que não mencionamos porque não interessam aos propósitos do presente ensaio. . Ao fim da defesa, na ata constava que a utilização de “realismo gótico” no trabalho de Bakhtin era um defeito grosseiro.

Grillo (2022)GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. Do livro à tese de Bakhtin sobre Rabelais (1930-1952): Projeto, contexto, desfecho. Alfa, São Paulo, v. 66, e15167, 2022. https://doi.org/10.1590/1981-5794-e15167.
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informa que, em resposta aos apontamentos feitos pela banca, além de outras alterações que renderam mais cento e vinte páginas ao trabalho - que foram incluídas também para atender outras críticas que não vêm ao caso mencionar aqui -, Bakhtin substituiu “realismo gótico” por “realismo grotesco” na versão final de sua tese, que foi reapresentada à Comissão de Certificação Superior. Mesmo assim, na ata final, que concederia a Bakhtin o título de doutor e lhe negaria a almejada livre-docência, ainda constava uma crítica ao modo como abordava o realismo de Rabelais na tese, o qual, segundo o que ficou lavrado, é tratado anacronicamente como naturalismo.

A partir do que se descreveu até aqui sobre o processo de defesa da tese de doutorado de Bakhtin, há pelo menos três informações úteis para se discutir o significado do gótico, que estava na primeira versão da tese de Bakhtin. Em primeiro lugar, observamos que “grotesco” substituiu “gótico” na teoria de Bakhtin, e entender essa substituição revela algo sobre a teoria proposta por Bakhtin que foi reelaborada na versão final de sua tese; em segundo lugar, apesar de ter soado anacrônico aos examinadores, pode ser plausível que o “gótico” de Bakhtin adianta características do naturalismo na concepção estética medieval e na do Renascimento; por fim, o gótico, do modo como Bakhtin o abordou em sua tese, está relacionado com o folclore na concepção que se tinha desse domínio do saber mais ou menos na metade do século XX na União Soviética.

Na formulação original, que estava na tese de doutorado de Bakhtin, que foi criticada por vários membros de sua banca, conforme acabamos de apontar a partir do texto de Grillo (2022)GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. Do livro à tese de Bakhtin sobre Rabelais (1930-1952): Projeto, contexto, desfecho. Alfa, São Paulo, v. 66, e15167, 2022. https://doi.org/10.1590/1981-5794-e15167.
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, o termo gótico designava a estética que o estudioso pretendia apresentar como aquela que corresponde à medieval e que se refletia nas obras literárias renascentistas, principalmente na obra de Rabelais. Ao que tudo indica, Bakhtin fez a substituição de gótico por grotesco porque não pretendia confrontar com a banca examinadora no contexto histórico e no ambiente cultural em que as autoridades públicas não costumavam ser favoráveis a pessoas como ele, que havia sido condenado ao exílio sob acusação de cosmopolitismo (Clark; Holquist, 2004CLARK, Catarine; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Editora Pespectiva, 2004.). Entende-se que, para ele, substituir um termo por outro, mesmo a contragosto, seria melhor do que argumentar e insistir na defesa da utilização de “gótico” e, por isso, ter sua tese rejeitada e o título de doutor negado.

Substituir “gótico” por “grotesco” exigiu uma reelaboração da tese, pois, na versão final, o conceito de grotesco ganhou papel fundamental para a teoria do desenvolvimento da cultura por meio da história da literatura que a tese de Bakhtin propõe. Isso ocorreu porque o termo gótico - ao menos na maioria das vezes em que aparece na versão final do livro que chegou às nossas mãos em língua portuguesa - possui conotação negativa, pois está relacionado com as “trevas” (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 85), o “lúgubre” (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 211), “as sotainas” (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 234) e “a seriedade” (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 239) da Idade Média; e mais do que isso, o gótico é apresentado como atributo do século que foi castigado pelo Renascimento (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 234).

Se, como vimos, o “gótico” de Bakhtin foi várias vezes criticado pelos examinadores da tese, e o “grotesco”, que o substituiu, por sua vez, foi rejeitado na versão final do trabalho porque foi compreendido pelo menos por parte dos membros da banca como manifestação do naturalismo, isso significa que a abordagem feita por Bakhtin em sua tese foi considerada anacrônica, tendo em vista que o objeto de sua pesquisa, a obra rabelaisiana, foi escrita no século XVI, e o surgimento do naturalismo é tido como originado em época bem posterior, mais ou menos no início do século XIX, e por isso não se admitiram nem sequer relações indiretas entre Rabelais e o naturalismo.

Apesar das críticas que a primeira versão da tese de Bakhtin recebeu de seus examinadores por terem-na considerado anacrônica, é interessante observar que o historiador da arte Erwin Panofsky (1991)PANOFSKY, Erwin. Arquitetura gótica e escolástica: sobre a analogia entre arte, filosofia e teologia na Idade Média. Trad. Wolf Hörnke. São Paulo: Martins Fontes, 1991. afirmou que a arte gótica aplaina o caminho para o naturalismo moderno. Se é impossível que Bakhtin tenha lido o livro de Panofsky, ao qual fazemos referência, que foi publicado pela primeira vez em 1951, assim como é improvável que Panofsky tenha lido o texto de Bakhtin que não tinha sido publicado como livro nessa época, parece que a ligação entre os dois pensadores se dá pelo zeitgeist.

Panofsky cita a concepção que o pintor e arquiteto renascentista Giorgio Vasari (Arezzo, 1511 - Florença, 1574) tem sobre o gótico, que pode ser chamado de maneira tedesca (Panofsky afirma que ‘tedesco’ se tornou um insulto naquele contexto). De acordo com as referências que faz a Vasari, o estilo que será chamado de gótico “difere muito tanto do antigo quanto do moderno” (Panofsky, 2017PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017., p. 237). Tratava-se de um estilo monstruoso e bárbaro, inventado pelos godos, ao qual lhe faltava tudo o que se chama ordem e, por isso, “deveria ser chamado confusão e desordem” (Panofsky, 2017PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017., p. 237). A arquitetura gótica foi compreendida por Vasari como um estilo naturalístico, proveniente da imitação das árvores vivas, uma perspectiva absolutamente ultrapassada para a visão de mundo do Renascimento.

Na versão final da tese, o gótico adquiriu sentidos unilateralmente negativos, enquanto grotesco o substituiu e alterou a significação que lhe corresponderia, pois enquanto o gótico poderia ser situado histórica e geograficamente, o grotesco passou a ter validade a-histórica, uma vez que, como veremos com mais detalhes, “as imagens do grotesco têm sua origem num passado não recordável”3 3 No original: “the images of the grotesque have their origin in an unremembered past”. (Tihanov, 2000TIHANOV, Galin. The Master and the Slave: Lukacs, Bakhtin and the Ideas of Their Time. Oxford: Claredon Press, 2000., p. 285). Trata-se de uma categoria estética surgida numa antiguidade imemorável que sobreviveu às eras por meio da cultura popular e não oficial do Medievo e chegou ao ápice com a literatura do Renascimento. Depois disso, degenerou-se na posteridade, como, por exemplo, na forma do grotesco romântico, e a partir de então só subsistiu em formas reduzidas, atenuadas e “destroços” (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 21).

Tanto Bakhtin quanto Panofsky consideraram o Renascimento como um período de apogeu cultural nos determinados domínios abordados tanto por um quanto por outro. Enquanto o Medievo é ambíguo porque representa a época das trevas góticas, ao mesmo tempo, aponta para o naturalismo, que na concepção de Panofsky é a expressão da renovação futura que começa a se deslindar; e, na concepção de Bakhtin, é a época da efervescência da cultura popular e não oficial que terá seu auge no Renascimento.

Numa perspectiva estritamente histórica, o gótico antecede o Renascimento, assim como o grotesco antecede o Clássico da Antiguidade, mas, na abordagem de Bakhtin, o grotesco atravessa todas as eras, está associado à cultura popular, à cultura não oficial, e por isso foi relacionado com o folclore por um dos arguidores que participaram da defesa da tese de Bakhtin. No entanto, como ao termo “folclore” não se poderia atribuir sentido ideológico, deve ser por isso que Bakhtin não o aceitou como substituto adequado de gótico e optou pelo termo mais amplo “realismo grotesco”, e não pelo termo duplamente estrito “realismo folclórico medieval”.

Por se tratar de uma concepção estética que antecedeu ao clássico na Antiguidade, era de se supor que o grotesco tivesse potencial para adquirir sentido subversivo e ideológico, sentido de expressão cultural não oficial, de cultura que permanece existindo em subcamadas da sociedade, que sempre se manifesta em fenômenos periféricos, prestes a irromper novamente de forma torrencial. Apesar de não ter sido bem recebido pela banca, como vimos, o conceito de grotesco relacionado com a cultura popular e não oficial parecia dar uma boa roupagem ideológica à proposta teórica da tese de Bakhtin de tratar das formas culturais marginalizadas, sobretudo porque se vivia num contexto social de política totalitária.

Sob outro aspecto, quanto à utilização que Bakhtin faz de “gótico” para se referir à categoria estética medieval e assim qualificar o realismo da obra renascentista de Rabelais, deve-se notar que na concepção da banca examinadora, esse procedimento utilizado pelo intelectual russo colocava os dois períodos, Medievo e Renascimento, em continuidade e rejeitava a ideia da existência estabelecida de uma ruptura histórica, como queria a perspectiva de leitura dogmática do hegelianismo sobre a sucessão dos períodos históricos, que predominava na visão acadêmica da União Soviética naquela época.

Conforme aponta Grillo (2022)GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. Do livro à tese de Bakhtin sobre Rabelais (1930-1952): Projeto, contexto, desfecho. Alfa, São Paulo, v. 66, e15167, 2022. https://doi.org/10.1590/1981-5794-e15167.
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, o fato de Bakhtin, em sua tese, ter colocado o Renascimento na continuidade da Idade Média lhe rendeu críticas da banca julgadora, uma vez que ele entrou em contradição com o postulado de Engels, que propôs que o Renascimento é a superação da cultura do Medievo. Um membro da banca chegou a afirmar que o que Bakhtin fez foi um desprezo pela ideologia do Renascimento. Desse modo, fica claro que essa crítica é ideológica e não acadêmica, ao menos é assim no sentido em que entendemos hoje.

No que diz respeito à valorização dada à cultura da Idade Média por Bakhtin e a certa confluência cultural entre esses dois períodos históricos, coincidiram a tese de Bakhtin e a teoria proposta pelos historiadores da Escola dos Anais, conforme afirma o historiador Aaron Guriêvich4 4 Nesse artigo, cito duas obras do mesmo autor, mas as edições em língua portuguesa transliteram seu nome de modos diferentes: Guriêvtich (2003) e Gurevich (2000). ao declarar que “[Bakhtin e os historiadores da Escola dos Anales] surgiram quase em sincronia e independentemente uns dos outros” (2003, p. XIII). Enquanto isso, a visão dos acadêmicos russos sobre a história é criticada por Guriêvtich (2003GURIÊVITCH, Aaron. A síntese histórica e a Escola dos Anais. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.), porque, segundo o historiador russo, baseava-se em uma leitura dogmática do hegelianismo via Engels e assim continuou até a década de 1990.

Quanto à ligação do gótico com o folclore, a identificação entre os sentidos pretendidos pelos conceitos foi tal que, conforme vimos acima, o arguidor Mikhail Alekseev sugeriu que “realismo gótico” fosse substituído por “realismo folclórico medieval” (Grillo, 2022GRILLO, Sheila Vieira de Camargo. Do livro à tese de Bakhtin sobre Rabelais (1930-1952): Projeto, contexto, desfecho. Alfa, São Paulo, v. 66, e15167, 2022. https://doi.org/10.1590/1981-5794-e15167.
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). No caso, no contexto da União Soviética, o folclore abordava uma amplitude de assuntos relacionados com o que chamamos hoje de cultura popular, aquele conteúdo da cultura não erudita, relacionada com o campesinato, que geralmente é oral.

Como vimos, essa substituição não parecia interessante ao projeto de Bakhtin, porque o termo “folclore” não tem o mesmo peso ideológico que “grotesco” potencialmente parecia ter. Apesar de Bakhtin não ter aceitado que “folclore medieval” fosse o conceito adequado para substituir “gótico”, passou a atribuir ao grotesco a característica do tamanho desproporcional, do mesmo modo como propunha um dos grandes folcloristas russos, Vladimir Propp, em Comicidade e riso (1992PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Editora Ática, 1992., p. 91): “No grotesco o exagero atinge tais dimensões que aquilo que é aumentado já se transforma em monstruoso. Ele extrapola completamente os limites da realidade e penetra no domínio do fantástico, Por isso o grotesco delimita-se já com o terrível”.

Assim, o termo “grotesco” também é adequado à teoria de Bakhtin porque corresponde aos corpos dos gigantes glutões da literatura rabelaisiana, a respeito da qual Bakhtin pesquisava. Gargântua e Pantagruel passaram a ser identificados como gigantes grotescos, mas não poderiam ser gigantes góticos, porque o significado de grotesco era mais abrangente e adequado, e tinha especificidades que não eram compartilhadas pelo gótico, restrito à Idade Média tardia e a certas regiões da França e Itália.

3 Realismo grotesco e corpo grotesco em A cultura Popular na Idade Média e no Renascimento

A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais (2010) é a obra de Bakhtin em que aparecem o conceito “grotesco” e outros conceitos relacionados com este. De acordo com uma compreensão possível da argumentação geral que o autor faz nesse livro, o significado do termo “realismo grotesco” refere-se à categoria estética medieval que se reflete na obra Gargântua e Pantagruel, do escritor renascentista François Rabelais, a respeito da qual o estudioso russo tratou na obra, que, antes de ser publicada como livro, foi defendida como tese doutoral. De acordo com Bakhtin, o grotesco, que vem da cultura popular medieval, manifesta-se na literatura do Renascimento, nas obras de Cervantes, Shakespeare, Boccaccio, Dante e outros, mas sobretudo na obra de Rabelais, que é o objeto de sua pesquisa.

O problema é que não podemos nos basear apenas no que está explícito nesse texto, pois reconhece-se nessa obra de Bakhtin pelo menos três diferentes níveis de leitura: (1) a crítica velada ao contexto vivido na União Soviética sob Stalin; (2) a história da literatura em perspectiva idealista, desde sua origem mítica até seu ápice renascentista; (3) a retórica materialista e populista utilizada para adequar o conteúdo idealista à exigência do realismo socialista. Entender o grotesco exige o vasculhamento de todas as camadas da tese de Bakhtin. De acordo com Brandist (1996BRANDIST, Craig. Carnival Culture and Soviet Modernist Novel. London: MacMillan Press, 1996., p. 2): “Bakhtin, pelo menos em sua obra madura, concentrou-se na dinâmica da cultura e literatura popular ocidental em uma tentativa de destacar certas características da vida cultural soviética contemporânea5 5 No original: “Bakhtin, at least in his mature work, concentrated on the dynamics of western popular culture and literature in an attempt to highlight certain features of the contemporary Soviet cultural life.” ”.

Na obra de Bakhtin, afirma-se que o realismo grotesco é proporcionado pelo carnaval medieval e por suas manifestações prototípicas realizadas na Antiguidade, que são as antigas festas agrárias, as saturnálias etc. Nesse caso, o carnavalesco e o efeito que proporciona, a carnavalização, devem ser compreendidos como fenômeno cultural abrangente que se configura como uma verdadeira cosmovisão carnavalesca, que está relacionada com festividades, espetáculos, rituais, obras verbais e gêneros discursivos vulgares (ou baixos) que são produzidos desde a Antiguidade pela cultura popular não oficial, que sobreviveram à seriedade da Idade Média subvertendo a realidade simbólica ou concretamente por meio de festejos e expressões de rebaixamentos, inversões, espancamentos, injúrias, destronamentos e outros tipos de degradações ambíguas numa sociedade que pretendia a imposição de uma compreensão da realidade de modo unilateralmente séria com seus cerimoniais oficiais, sua religião dogmática e seu autoritarismo impositivo.

De acordo com isso, a carnavalização, que é o mais importante conceito de Bakhtin em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais (2010), é a transposição desses fenômenos tidos como carnavalescos à literatura e à cultura. O historiador Peter Burke (2010BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., p. 270) afirma algo que se aplica também à utilização que Bakhtin faz de carnavalesco:

Num certo sentido, toda festa era um Carnaval em miniatura, na medida em que era uma desculpa para a realização de desordens e se baseava no mesmo repertório de formas tradicionais, que incluíram procissões, corridas, batalhas simuladas, casamentos simulados e falsas execuções. O emprego do termo “carnavalesco” não pretende supor que os costumes da Terça-Feira Gorda fossem a origem de todos os outros, ele apenas sugere que as grandes festas do ano tinham rituais em comum, e que o Carnaval constituía um agrupamento especialmente importante de tais rituais.

A especificidade da teoria de Bakhtin é a transposição desses rituais carnavalescos à literatura e à cultura, assim como o caráter a-histórico dessas manifestações desde a Antiguidade nas saturnálias até a Idade Média. Precisamos abordar esse conceito ainda que brevemente porque não é possível compreender o grotesco separado da carnavalização na teoria bakhtiniana.

A partir da terminologia adotada e utilizada reiteradamente pelo próprio Bakhtin ao longo de sua obra, podemos dizer que, por realismo grotesco, o autor refere-se ao sistema de imagens da cultura cômica popular que existe em oposição à cultura oficial da Idade Média. Por sinal, essa oposição é difícil de se situar do ponto de vista historiográfico no período medieval ao qual Bakhtin pretende aplicar a abordagem, como reconheceu Caryl Emerson ao afirmar que essa terminologia só seria aplicável no período do absolutismo maduro (2003EMERSON, Caryl. Os 100 primeiros anos de Mikhail Bakhtin. Trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: Difel, 2003.). Do mesmo modo, é difícil delimitar a cultura popular à qual se refere o estudioso. Cultura popular de que época? De que região? Em qual contexto?

Vários estudiosos perceberam esses e outros problemas na teoria bakhtiniana. O historiador russo Aaron Gurevich (2000GUREVICH, Aaron. Bakhtin e sua teoria do carnaval. In: BREMMER, Jan; ROODENBURG, Herman (orgs.). Uma História Cultural do Humor. Trad. Cynthia Azevedo e Paulo Soares. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000, p. 83-92., p. 89) afirma que “a teoria de Bakhtin sobre o carnaval na cultura popular é unilateral, portanto, historicamente incorreta”; Craig Brandist (2012), autoridade em teoria cultural, aponta inadequações da proposição de Bakhtin sobre a cultura aplicada à Idade Média; Élide Oliver (2008)OLIVER, Élide Valarini. Rabelais e Joyce: três leituras menipéias. Estudos Literários; 25. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008., pesquisadora e tradutora da obra de Rabelais, declara que a definição de cultura popular de Bakhtin muda de acordo com a conveniência; o historiador britânico Peter Burke (2010)BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. e Richard M. Berremong (1986)BERREMONG, Richard. Rabelais and Bakhtin: Popular Culture in “Gargantua and Pantagruel”. Nebraska: University of Nebraska Press, 1986., estudioso na área de linguagem, indicam que a obra de Rabelais também tem fontes eruditas, além de populares, embora Bakhtin omita comentários sobre umas para destacar as outras.

Os questionamentos feitos à obra de Bakhtin, assim como as críticas, devem ser respondidos e discutidos à luz do contexto em que as pesquisas foram realizadas e a partir da situação histórica concreta vivida pelo estudioso. É provável, como indica Brandist (2000)BRANDIST, Craig. Marxism and Russian Populism. In: BRANDIST, Craig; TIHANOV, Galin (eds.). Materializing Bakhtin: The Bakhtin Circle and Social Theory. London: MacMillan Press, 2000, pp. 70-93., que a utilização que Bakhtin faz de “povo” advenha da concepção que fazia dele o movimento dos intelectuais russos (intelligentsia) no contexto pré-revolução, que ficaram conhecidos como populistas russos (1850-1890).

Para esclarecer do que se tratava o populismo russo, devemos dissociá-lo da noção que se tem desse termo na nossa sociedade contemporânea, na qual chamamos de populistas, sobretudo, políticos como os latino-americanos, que têm discursos demagógicos, paternalistas e dissimuladamente simplistas. Na Rússia, essa noção comum de populista incorporou-se à língua por meio de um vocábulo que translitera o termo latino com caracteres cirílicos apenas acrescentando-lhe um sufixo do idioma russo [populistckiĭ]. Enquanto isso, o populismo no sentido em que os intelectuais russos lhe atribuíram é um termo que foi produzido a partir da palavra russa narod, que significa “povo”. Nessa acepção, o termo para populista é narodnik, que são intelectuais engajados no esclarecimento das massas populares.

Num contexto em que “a própria ideia de educação era revolucionária” (Chambelain, 2022, p. 35), os populistas russos estavam engajados na diminuição do abismo existente entre a aristocracia e a população camponesa. “Para reparar seu erro, todos os homens educados tinham obrigação de trabalhar tenazmente pela transformação da Rússia numa sociedade justa” (Chambelain, 2022, p. 93). Eles estavam influenciados por românticos alemães como Fichte, Schelling e Hegel, e determinados a proporcionar educação e conscientização para as massas camponesas quanto à situação histórico-social na qual estavam envolvidas e quanto aos seus direitos políticos.

De acordo com Aurora Bernadini (2008BERNARDINI, Aurora. Os escritores russos na época do populismo. Outra Travessia. UFSC. Florianópolis, n. 7, p. 109-116, 2008. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/view/11982. Acesso em: 23 out. 2023.
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, p. 111), “a intelligentsia russa mantinha uma crença quase mística no camponês (o povo, para os populistas), como portador de uma verdade eterna e genuína”. Parece certo que essa ideia populista incorporou o trabalho de Bakhtin, que precisava adequar a perspectiva histórica que sua tese tinha sobre Rabelais (idealismo e neokantismo) ao realismo socialista, que era uma política de Estado na União Soviética nas décadas de 1930 e 1940, conforme Alastair Renfrew (2017).

Note a frequência com que Bakhtin trata da imortalidade do povo e como a coloca em relação com o carnaval e com o corpo grotesco6 6 Além das passagens citadas, note-se em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (2010) as menções à imortalidade do povo que aparecem nas páginas 82, 239, 283, 284 e 286. . Podemos ler algumas dessas afirmações nas seguintes passagens:

Com todas as suas imagens, cenas, obscenidades, imprecações afirmativas, o carnaval representa o drama da imortalidade e da indestrutibilidade do povo. Nesse universo, a sensação da imortalidade do povo associa-se à de relatividade do poder existente e da verdade dominante (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 223).

À guisa de conclusão, gostaria de sublinhar especialmente que, na concepção carnavalesca do mundo, a imortalidade do povo é sentida numa indissolúvel unidade com a imortalidade de toda a existência em vias de evolução e funde-se com ela. O homem sente vivamente no seu corpo e na sua vida a terra, os outros elementos, o sol, o firmamento (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 224).

Pode-se dizer, para concluir, que na concepção grotesca do corpo nasceu e tomou forma um novo sentimento histórico, concreto e realista, que não é a idéia abstrata dos tempos futuros, mas a sensação viva que cada ser humano tem, de fazer parte do povo imortal, criador da história (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 322).

A terminologia populista adotada por Bakhtin em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais (2010) - que não se resume aos termos discutidos aqui - certamente tingiu de realismo socialista sua apresentação da história da evolução das formas literárias que atingiram seu nível mais elevado no Renascimento, depois de um longo histórico de desenvolvimento ocorrido desde a consciência mítica. Essa era uma teoria que resultou da combinação de sua concepção do neokantismo cassireriano embebido de hegelianismo.

O tom metafísico-religioso que a repetitiva afirmação da eternidade do povo dá à obra de Bakhtin não deve surpreender já que, segundo Chamberlain (2022CHAMBERLAIN, Lesley. Mãe Rússia: uma história filosófica da Rússia. Rio de Janeiro: Editora Record, 2022., p. 219), “[t]oda filosofia russa exceto o positivismo era teologia no fundo”. Além disso, Brandist (1996BRANDIST, Craig. Carnival Culture and Soviet Modernist Novel. London: MacMillan Press, 1996., p. 2) afirmou: “Bakhtin foi uma figura periférica na vida intelectual soviética que refletiu sobre a experiência da revolução de maneiras religiosas e filosóficas”. Desse modo, devemos reconhecer que temas relacionados com Teologia e Religião não estão absolutamente fora do escopo da pesquisa realizada por Bakhtin, principalmente porque a teologia, religião e cristianismo são elementos indissolúveis da cultura ocidental.

Podemos afirmar que, com sua tese, Bakhtin tinha como objetivo mostrar o desenvolvimento fenomênico da consciência simbólica por meio da história da literatura (Brandist, 1997BRANDIST, Craig. Bakhtin, Cassirer and Symbolic Forms. Radical Philosophy, n. 85, set./out. 1997. Disponível em: https://www.radicalphilosophyarchive.com/issue-files/rp85_article2_bakhtincassirersymbolicforms_brandist.pdf. Acesso em: 23 out. 2023.
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, 2002BRANDIST, Craig. The Bakhtin Circle: Philosophy, Culture and Politics. London: Pluto Press, 2002., 2012). Segundo Craig Brandist (2002)BRANDIST, Craig. The Bakhtin Circle: Philosophy, Culture and Politics. London: Pluto Press, 2002., termos como “cultura não oficial” e “cultura popular” correspondem à linguagem populista que Bakhtin utilizou como verniz socialista de sua proposta hegeliana e neokantiana de leitura da história. Parte da tarefa de entender Bakhtin é desvendar o significado oculto dessas palavras dentro do campo das ideias particulares do autor russo.

Assim, de acordo com Bakhtin, no conjunto de imagens que compõem o realismo grotesco, a ênfase está no elemento material e corporal, que é considerado princípio positivo unido aos demais aspectos da vida. Nas palavras do próprio estudioso russo, lemos o seguinte:

São imagens [as do realismo grotesco] ambivalentes e contraditórias que parecem disformes, monstruosas e horrendas, se consideradas do ponto de vista da estética “clássica”, isto é, da estética da vida cotidiana preestabelecida e completa. A nova percepção histórica que a trespassa, confere-lhe um sentido diferente, embora conservando seu conteúdo e matéria tradicional: o coito, a gravidez, o parto, o crescimento corporal, a velhice, a desagregação e o despedaçamento corporal, etc., com toda a sua materialidade imediata, continuam sendo os elementos fundamentais do sistema de imagens grotescas. São imagens que se opõem às imagens clássicas do corpo humano acabado, perfeito e em plena maturidade, depurado das escórias do nascimento e do desenvolvimento (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 22; grifos no original).

Os elementos desse sistema de imagens são corpos abertos em movimento de devir e com dimensões desproporcionalmente grandes, linguagem fisiológica excessivamente detalhada e frequentemente repugnante (que em certo sentido pode ser considerada por nós como naturalismo), cujo palavreado inclui o baixo calão, blasfêmias, profanações, paródias, ironias proporcionados pela linguagem ambígua, de modo a manterem o aspecto positivo das ofensas proferidas, pois no grotesco da Idade Média e do Renascimento prevalecem os polos negativos e positivos, diferentemente da época posterior, em que o grotesco passou a ser associado unilateralmente com aspectos simbólicos negativos da existência, sobretudo pela literatura romântica.

Numa descrição que tenta parafrasear Bakhtin, pode-se afirmar que o sistema de imagens do realismo grotesco proporciona o rebaixamento de tudo o que é elevado ao plano material e corporal. Rebaixar, nesse sentido, é aproximar da terra, assim como o termo de origem latina ‘humilhar’ tem esse significado. O referido fenômeno do rebaixamento é produzido pelo riso, pois, segundo Bakhtin, o riso degrada, rebaixa, materializa. Gêneros cômicos como a sátira, a paródia e a ironia são exemplares para esse tipo de rebaixamento por serem essencialmente ambíguos, assim mantêm simultaneamente os aspectos positivo e negativo do objeto de sua invectiva.

Pelo rebaixamento, os elementos mais aterrorizantes da existência, como a morte e o demoníaco, são apresentados de modo cômico. No realismo grotesco, o demônio, que geralmente sorri, é um “espantalho cômico” (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 34), pois o terrível é representado como “bobagem alegre” (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 34), e a própria morte não é oposta à vida, antes, está relacionada com sua renovação. Isso é proporcionado pela cultura popular desde a Antiguidade, passando pela Idade Média e tendo sua melhor expressão no Renascimento, época depois da qual o “verdadeiro grotesco” (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 46) degradou-se no grotesco romântico que se afastou da cultura popular.

Do sistema amplo de imagens da cultura popular, uma imagem tem destaque especial e é a melhor representação do realismo grotesco; trata-se do já mencionado “corpo grotesco”. Bakhtin (2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 23) descreve-o do seguinte modo:

Em oposição aos cânones modernos, o corpo grotesco não está separado do resto do mundo, não está isolado, acabado nem perfeito, mas ultrapassa-se a si mesmo, franqueia seus próprios limites. Coloca-se ênfase nas partes do corpo em que ele se abre ao mundo exterior, isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo sai para o mundo, através de orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos genitais, os seios, falo, barriga e nariz. É em atos tais como coito, a gravidez, o parto, a agonia, o comer, o beber, e a satisfação de necessidades naturais, que o corpo revela sua essência como princípio em crescimento que ultrapassa seus próprios limites. É um corpo eternamente incompleto, eternamente criado e criador, um elo na cadeia da evolução da espécie ou, mais exatamente, dois elos observados no ponto onde se unem, onde entram um no outro. Isso é particularmente evidente em relação ao período arcaico do grotesco.

Bakhtin (2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 28) traça uma história altamente idealizada em três etapas para o corpo grotesco: arcaico, clássico e pós-antigo. Como já afirmamos reiteradas vezes, o ápice de sua manifestação ocorreu no Renascimento, depois disso, o grotesco se degradou no romântico, ao se tornar mera anedota burguesa. Numa antiguidade a perder-se de vista, dominada pela forma do mito, o corpo grotesco originou-se e desse período quase só nos restaram arquétipos de sua manifestação. Depois do período arcaico, a partir das civilizações da Grécia e de Roma7 7 Nos textos que compõem The Dialogic Imagination (1981; ver nota de rodapé n.1), Bakhtin apresenta, desde o período do helenismo, a luta dos gêneros baixos que no futuro formarão o romance numa perspectiva semelhante à que mostra a sobrevivência da cultura popular não oficial no período medieval até sua manifestação renovada no Renascimento em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (2010). antigas até o fim da Idade Média, o corpo grotesco subsiste, pela cultura popular não oficial, em meio a batalhas renhidas contra a cultura que tenta domesticá-lo e acomodá-lo às formas da linguagem (no sentido cassireriano), que são mais racionais que o mito. Por fim, no Renascimento, o grotesco alcança a síntese entre as formas do mito e da linguagem. Nas palavras de Tihanov (2000TIHANOV, Galin. The Master and the Slave: Lukacs, Bakhtin and the Ideas of Their Time. Oxford: Claredon Press, 2000., p. 264): “Essa patente incongruência na narrativa de Bakhtin pode sugerir que ele considera que o Renascimento seja uma exceção, uma ilha solitária na predominantemente não-grotesca história do corpo humano8 8 No original: “This incongruence in Bakhtin’s narrative may suggest that he considers the Renaissance to be an exception, a solitary island in the predominantly non-grotesque history of the human body.” ”.

De acordo com esse esquema dialético evidentemente hegeliano, o grotesco do Renascimento (pós-antigo) é a síntese das antíteses que existiram nas formas do grotesco advindos do pensamento mítico (arcaico) e do grotesco que se manifestou desde o período da Antiguidade Clássica, propriamente dita, até a Idade Média (clássico). Enquanto o grotesco arcaico, por ser essencialmente mítico, prescindia da linguagem, no esquema cassireriano seguido por Bakhtin, o grotesco clássico tenta conformar o conteúdo mítico à estrutura de linguagem que lhe é antitética, à qual resiste marginalmente. A síntese desse processo só é alcançada quando, no Renascimento, a literatura equaliza mito e linguagem, que se debateram ao longo do ‘século gótico’ - aqui entendido como o período que vai da Antiguidade Tardia até Idade Média. Essa compreensão da história do corpo grotesco de Bakhtin combina hegelianismo e neokantismo, pois, de acordo com Tihanov (2000TIHANOV, Galin. The Master and the Slave: Lukacs, Bakhtin and the Ideas of Their Time. Oxford: Claredon Press, 2000., p. 269), nas primeiras décadas do século XX: “o neokantiano foi, de fato, 'infectado' e se moveu em direção ao hegelianismo9 9 No original: “Neo-Kantism was indeed ‘infected’ with and moving towards Hegelianism” ”.

Lemos em Bakhtin (2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 277, grifos no original) que “o corpo grotesco é um corpo em movimento”. O movimento desse corpo está relacionado com a expressão do espírito em seu autorreconhecimento, conforme a dialética histórica hegeliana:

Pelo contrário, o verdadeiro grotesco não é de maneira alguma estático: esforça-se, aliás, por exprimir nas suas imagens o devir, o crescimento, o inacabamento perpétuo da existência: é o motivo pelo qual ele dá nas suas imagens os dois polos do devir, ao mesmo tempo o que parte e o que está chegando, o que morre e o que nasce; mostra dois corpos no interior de um único, a germinação e a divisão da célula viva. Nas formas mais altas do realismo grotesco e folclórico, como nos organismos unicelulares, não resta jamais um cadáver (a morte do organismo unicelular coincide com o processo de multiplicação, é a divisão em duas células, dois organismos, sem “desfazimentos”), a velhice está grávida, a morte está prenhe, tudo que é limitado, característico, fixo, acabado, precipita-se para o “interior” corporal para aí ser refundido e nascer de novo (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 46).

De acordo com Brandist (2002)BRANDIST, Craig. The Bakhtin Circle: Philosophy, Culture and Politics. London: Pluto Press, 2002., em Bakhtin, o corpo grotesco torna-se uma imagem da dialética universal da vida, o movimento interno do espírito em si mesmo, pois essa imagem do corpo representa a fase em que, em geral, o espírito dá forma a si mesmo, se desvencilha do puramente natural e se eleva ao possuir existência mais independente. Esse corpo não é individual e biológico, mas sim o corpo do povo, o corpo da humanidade que encontra sua melhor expressão em Rabelais.

Depois do Renascimento, conforme Bakhtin (2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 21), o grotesco continuará a existir em “destroços”, sobretudo durante o período romântico, que verdadeiramente degenerou o grotesco ao associá-lo unilateralmente com aspectos negativos da existência, como o feio, o horror, a morte, a decadência e a vileza, expressões totalmente afastadas do riso. Até o ponto em que a pesquisa de Bakhtin chega, Wolfgang Kayser (2003)KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. São Paulo: Perspectiva, 2003. era o único que tinha escrito uma obra dedicada ao grotesco, mas sua abordagem tomou apenas o grotesco romântico, por isso o conteúdo escrito pelo crítico literário alemão era de pouca relevância para o estudo de Bakhtin. A partir do século XIX, o interesse pelo grotesco desaparece e depois ressurge de forma renovada no século XX, nas formas de grotesco realista e grotesco modernista.

4 Imagens do grotesco no judaísmo e no cristianismo da Antiguidade e do Medievo

Além dos gigantes Gargântua e Pantagruel da obra rabelaisiana, que são a representação do corpo grotesco por excelência, muitas são as imagens do grotesco apresentadas por Bakhtin em seu livro. São famosas as referências que o estudioso russo fez às figuras de terracota de Kertch, que são velhas grávidas que riem. A respeito dessas imagens, afirmou o seguinte:

Trata-se de um tipo de grotesco muito característico e expressivo, um grotesco ambivalente: é a morte prenhe, a morte prenhe que dá à luz. Não há nada perfeito, nada estável ou calmo no corpo dessas velhas. Combinam-se ali o corpo descomposto e disforme da velhice e o corpo ainda embrionário da nova vida. A vida se revela no seu processo ambivalente, interiormente contraditório. Não há nada perfeito nem completo, é a quintessência da incompletude. Essa é precisamente a concepção grotesca do corpo (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 23).

Em correlação com a imagem grotesca das velhas grávidas que riem, temos uma que está descrita na narrativa do nascimento de Melquisedeque, no antigo livro de II Enoque, que pertence à literatura apócrifa do judaísmo do segundo templo, a qual, apesar de ser uma representação do corpo grotesco, ao que tudo indica, é pouquíssimo provável que Bakhtin tenha tido acesso a ela em suas pesquisas.

De acordo com a narrativa de II Enoque (também chamado de Enoque eslavo), a mãe de Melquisedeque, Sopanima, concebeu sem ter tido relações sexuais com seu marido Nir (irmão de Noé), que era celibatário. Quando percebeu que Sopanima estava grávida, Nir interrogou sua mulher, que negou tê-lo traído, já que era idosa, mas, enquanto Nir a repreendia, ela caiu morta e Noé veio ajudar seu irmão a enterrar a mulher. Quando se depararam com o cadáver dela, eis que ela deu à luz uma criança já desenvolvida que se comunicava como um adulto e procedia como um sacerdote.

E ele sentou-se na cama ao lado dela. E Noé e Nir entraram para enterrar Sopanim, e viram a criança sentada ao lado de Sopanim que estava morta, e enxugando suas roupas. E Noé e Nir ficaram muito apavorados e com muito medo, porque a criança era totalmente desenvolvida fisicamente, como uma criança de três anos. E falava com os próprios lábios e bendizia ao Senhor. E Noé e Nir olharam para ele e eis que o emblema do sacerdócio estava em seu peito e tinha uma aparência gloriosa. E Noé e Nir disseram “Eis que Deus renova o sacerdócio de sangue relacionado conosco, como lhe apraz”. E Noé e Nir se apressaram e lavaram a criança, e vestiram-na com as vestes do sacerdócio, e deram-lhe o pão sagrado e ele o comeu. E eles chamaram seu nome de Melquisedeque (II En 71.17-21)10 10 Na tradução consultada: “And he sat on the bed at the her side. And Noe and Nir came in to bury Sopanim, and they saw the child sitting beside the dead Sopanim, and wiping his clothing. And Noe and Nir were very terrified with a great fear, because the child was fully developed physically, like a three-year-old. And he spoke with his lips, and blessed the Lord. And Noe and Nir looked at him and behold, the badge of priesthood was on his chest, and it was glorious in appearance. And Noe and Nir said “Behold, God is renewing the priesthood from blood related to us, just as he pleases,” And Noe and Nir hurried and they washed the child, and they dressed him in the garments of priesthood, and they gave him the holy bread and he ate it. And they called his name Melkisedek” (II En 71.17-21). .

O nascimento de Pantagruel tem traços muito semelhantes ao excerto citado de II Enoque, como se pode ver a seguir:

E, enquanto estavam conversando, eis que saiu Pantagruel, peludo como um urso, pelo que disse uma delas com espírito profético: “Nasceu com muito pelo, fará coisas maravilhosas”.

Quando Pantagruel nasceu, quem ficou espantado e perplexo foi Gargântua, seu pai; pois vendo de um lado sua mulher Bedebeca morta, e do outro seu filho Pantagruel nascido, tão belo e tão robusto, não sabia o que dizer nem o que fazer (Gargantua, Livro II, cap. II).

As semelhanças não podem ser ignoradas, pois tanto em uma narrativa quanto em outra há uma morte e um nascimento, há uma criança espantosamente desenvolvida, há uma expectativa em torno das capacidades do recém-nascido, além da alusão à desconfiança de que a mãe, tanto em um caso quanto em outro, tenha tido relações extraconjugais, porque no texto de Rabelais afirma-se ironicamente que Pantagruel nasceu depois de dez meses.

Os personagens principais da obra de Rabelais são Gargântua e Pantagruel, pai e filho, que em muito se assemelham por serem gigantes de tamanho desproporcional como bem explicou Erich Auerbach em seu artigo “O mundo na boca de Pantagruel” (2011), no qual descreve uma verdadeira sociedade que residia na boca dessa personagem. Relacionado com seu tamanho está o seu apetite, que esgota os recursos materiais do mundo e proporciona violência para conseguir a saciedade. Curiosamente, na antiga literatura enoquiana, também consta a existência de gigantes glutões nascidos de relações inapropriadas que esgotam os recursos naturais e cometeram atos de violência para alimentar sua fome insaciável. Dessa vez, estamos mencionando o livro de I Enoque, também conhecido como Enoque etíope:

E [os anjos, filhos do céu] tomaram mulheres, cada um escolheu a sua e começaram a conviver e a se unir com elas, ensinando-lhes feitiços e conjuros e admoestando-as a recolher raízes e plantas. Elas ficaram grávidas e geraram enormes gigantes de três mil côvados de altura cada um. Consumiam todo o produto dos homens, até que foi impossível para estes alimentá-los. Então os gigantes se voltaram contra eles e comiam os homens. Começaram a pecar com aves, bestas, répteis e peixes, consumindo sua própria carne e bebendo seu sangue. Então a terra se queixou dos iníquos (I En 7)11 11 Na tradução consultada: “And they took wives unto themselves, and everyone (respectively) chose one woman for himself, and they began to go unto them. And they taught them magical medicine, incantations, the cutting of roots, and taught them (about) plants. And the woman became pregnant and gave birth to great giants whose heights were these hundred cubits. These (giants) consumed the produce of all the people until the people detested feeding them, So the giants turned against (the people) in order to eat them. And they began to sin against birds, wild beasts, reptiles, and fish. And their flesh was devoured the one by the other, and they drank blood. And then the earth brought an accusation against the oppressors” (I En 7). .

Aqui a existência de gigantes gulosos e da fantástica narrativa de seus nascimentos apontam para uma relação existente entre os símbolos de I Enoque e de Gargântua e Pantagruel. É improvável que Rabelais tenha conhecido as antigas obras do ciclo de Enoque, que eram totalmente desconhecidas no Ocidente até o século XVIII, e só circulavam na Etiópia, em idioma etíope, onde faziam parte da literatura canônica da Igreja Cristã Ortodoxa. Mas, ao menos no que diz respeito aos gigantes, parece que a obra de Rabelais é uma paródia de I Enoque. Independentemente de qualquer fator histórico desconhecido por nós até o momento, o que nos interessa destacar é o fenômeno do realismo grotesco nessas obras, e esse é bem evidente.

Há outro tema importantíssimo para a representação do grotesco em Bakhtin, que pode ser identificado em expressões religiosas do antigo mundo judaico-cristão, a saber, o inferno e o diabo; ambos são importantes componentes da obra rabelaisiana.

Quanto a esse tema, embora não haja citação direta, Bakhtin faz repetidas menções ao livro medieval da Visão de Túndalo (na edição em língua portuguesa do livro de Bakhtin, aparece grafado “Tungdal”), como podemos ler: “Lúcifer é apresentado acorrentado à grelha, branca de tão quente, do fogo sobre o qual é assado, enquanto se alimenta de pecadores” (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 341); “Na Visão de Tungdal (século XII), Lúcifer devora os pecadores, enquanto que ele mesmo é assado acorrentado à grelha gigantesca da chaminé” (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 242); “Na Visão de Tungdal, Lúcifer não passa, com efeito, de um alegre espantalho, a imagem do velho poder vencido e do medo que inspira” (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 243).

O texto aludido por Bakhtin é o seguinte:

E ali viu o senhor das trevas... A sua figura era esta, ele era tão negro como o carvão e tinha figura de homem dos pés até a cabeça, e tinha uma boca em que havia muitos males, e tinha um rabo tão grande que era coisa espantosa. Nesse rabo havia mil mãos e em cada mão tinha a largura de cem palmos e as mãos e as unhas delas e as unhas dos pés eram tão largas como lanças e todo aquele rabo era tão cheio de agulhas muito agudas para atormentar as almas. E aquele Lúcifer jazia escondido sobre um leito de ferro, feito da mesma maneira que as grelhas e sobre aquele leito jaziam carvões acesos e sopravam-nos e acendiam-nos, muitos demônios e cercavam-nos de muitas almas, tantas que não há homem vivo em carne que as pudesse contar, nem cuidar, nem crer, que tais e tantas pessoas foram criadas no mundo depois que foi formado (PereiraPEREIRA, F. H. Esteves (ed.). Visão de Túndalo (Códice 244). Revista Lusitana, v. III, 1895, p. 97-120., Códice 244, 111; texto modernizado por nós).

Uma imagem medieval que pretendeu reproduzir Lúcifer como está nessa descrição é Les très riches heures, que está no Livro das Horas do Duque de Berry, c. 1450, disponível para visualização online na Web Gallery of Art12 12 Les très riches heures du Duc de Berry c. 1450. Manuscript (Ms. 65). Musée Condé, Chantilly. Disponível em: https://www.wga.hu/index1.html. Acesso em: 17 mai. 2023. .

Bakhtin tinha conhecimento do livro apócrifo do Apocalipse de Pedro, escrito entre o fim do século I e início do século II da era comum, que, além de ter inspirado a Visão de Túndalo, também inspirou significativamente o imaginário do inferno da Idade Média, tanto em artes plásticas quanto na literatura renascentista, quiçá influenciou o imaginário de toda a posteridade, embora, conforme a argumentação de Bakhtin, o grotesco tenha se degenerado depois da grande obra produzida por Dante Alighieri:

O Apocalipse de Pedro pode ser considerada a obra mestra da tradição medieval da pintura dos infernos, composta por um autor grego do final do século I ou começo do século II da nossa era, essa obra resume idéias antigas sobre o além-túmulo, para as necessidades da doutrina cristã (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 340).

Em relação ao “inferno carnavalizado” - para utilizar a expressão de Discini (2008)DISCINI, Norma. Carnavalização. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Editora Contexto, 2008, p. 53-93. -, Bakhtin aponta um dos painéis de Hyeronimus Bosch, que representa o grotesco no inferno, o qual corresponde à Visão de Túndalo. Na imagem do lado direito do famoso tríptico Julgamento Final, de Hieronymus Bosch13 13 Last Judgment Triptych (right wing) 1504-08. Mixed technique on panel, 167 x 60 cm; Akademie der Bildenden Künste, Vienna. Disponível em: https://www.wga.hu/index1.html. Acesso em: 17 mai. 2023. , há a imagem tipicamente grotesca de pecadores sendo assados por Lúcifer na grelha. De acordo com Bakhtin (2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 341), esse conteúdo está relacionado com A Visão de Túndalo, como podemos ler nas palavras dele:

Esses elementos de cômico grotesco existiam, já o dissemos, em estado embrionário na Visão de Tungdal: exerceram influência sobre as artes plásticas; assim Jerônimo Bosch, num dos painéis executados por volta de 1500, sublinha os aspectos grotescos da Visão, os pecadores são assados por Lúcifer acorrentado à grelha da chaminé. Encontram-se na catedral de Bourges afrescos do século XIII, onde os elementos de cômico grotesco são postos em evidência na pintura do inferno.

Como se disse reiteradamente, a partir de Bakhtin, o realismo grotesco não é unilateral, suas representações são ambíguas, ao mesmo tempo sérias e cômicas, não estão relacionadas apenas com representações de elementos negativos da existência, mas também com os positivos. O grotesco é indicado por Bakhtin a partir da citação direta que faz de João 9, 6, em latim: “Lutum fecit ex sputo” [“Ele fez barro com saliva”]. Conforme explica o pensador russo, desse versículo desenvolveu-se na França uma tradição popular conforme a qual todo lugar em o Senhor expelira urina, excrementos e saliva tornou-se sagrado (Bakhtin, 2010BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução da versão francesa de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 128).

Interessante também notar como o corpo de Cristo, do qual trata o apóstolo Paulo em I Coríntios 12.12-27, é um corpo grotesco, uma vez que é um corpo uno e diversificado, aberto à entrada de novos componentes. Nesse corpo não há divisão, os membros discutem entre si mesmo sendo diferentes uns dos outros, sem haver hierarquia entre eles; na verdade, os menos honrosos é que recebem mais honra, isto é, nesse corpo realiza-se uma inversão carnavalesca.

Considerações finais

Acabamos de realizar um percurso para entender os conceitos bakhtinianos de realismo grotesco e corpo grotesco, ao longo do qual, em primeiro lugar, passamos pelas novas perspectivas sobre o grotesco, que têm sido desenvolvidas por linguistas e semióticos que renovaram a vitalidade dos conceitos bakhtinianos de realismo grotesco e corpo grotesco em trabalhos de perspectiva sincrônica. A seguir, revisitamos o grotesco bakhtiniano em sua pré-história, quando passou a substituir o termo “gótico” na tese de Bakhtin, e discutimos o que isso significou para a estrutura da obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais (2010). Depois, entramos em contato com o sentido do grotesco no interior da obra de Bakhtin, levando em conta seus significados particulares. Por fim, apontamos o grotesco em artes plásticas e no imaginário judaico antigo e cristão antigo e medieval.

Toda essa trajetória permitiu-nos sair de um conhecimento superficial sobre o grotesco e buscar uma compreensão do conceito desde sua origem, tanto histórica, no contexto das vicissitudes vividas por Bakhtin na União Soviética durante os anos da primeira metade do século XX; quanto teórica, de acordo com a qual, observamos que Bakhtin pretendeu desenvolver uma categoria estética que correspondesse especificamente à obra de Rabelais e aos fenômenos da cultura estética alinhados com ela. Para alcançar a definição de tal categoria, Bakhtin revirou a história da arte, da literatura e da cultura em geral do Ocidente, ameaçando as próprias estruturas estabelecidas pela tradição e causando desconforto aos intelectuais conformados à terminologia tradicional. Ainda hoje, o grotesco bakhtiniano carece de ser mais bem compreendido pelos pesquisadores da obra do pensador russo, pois seu significado tem muito a acrescentar à pesquisa contemporânea nas ciências humanas.

  • 1
    O conteúdo que está na compilação de artigos de Bakhtin publicada em língua inglesa e intitulada The Dialogical Imagination (1981BAKHTIN, Mikhail. The Dialogic Imagination. Austin: University of Texas Press, 1981.) corresponde ao que se tem nas edições brasileiras Questões de literatura e de estética: a teoria do romance (2010) e Teoria do romance em três volumes (2015; 2018; 2019). No inglês, encontram-se na coletânea os seguintes ensaios: O discurso no romance [Discourse in the novel]; Da pré-história do discurso romanesco [From the Prehistory of Novelistic Discourse]; Epos e romance (Sobre a metodologia do estudo do romance) [Epic and Novel]; e Formas de tempo e de cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica) [Forms of Time and of the Chronotope in the Novel].
  • 2
    Foram feitas outras arguições, que não mencionamos porque não interessam aos propósitos do presente ensaio.
  • 3
    No original: “the images of the grotesque have their origin in an unremembered past”.
  • 4
    Nesse artigo, cito duas obras do mesmo autor, mas as edições em língua portuguesa transliteram seu nome de modos diferentes: Guriêvtich (2003GURIÊVITCH, Aaron. A síntese histórica e a Escola dos Anais. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.) e Gurevich (2000)GUREVICH, Aaron. Bakhtin e sua teoria do carnaval. In: BREMMER, Jan; ROODENBURG, Herman (orgs.). Uma História Cultural do Humor. Trad. Cynthia Azevedo e Paulo Soares. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000, p. 83-92..
  • 5
    No original: “Bakhtin, at least in his mature work, concentrated on the dynamics of western popular culture and literature in an attempt to highlight certain features of the contemporary Soviet cultural life.”
  • 6
    Além das passagens citadas, note-se em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (2010) as menções à imortalidade do povo que aparecem nas páginas 82, 239, 283, 284 e 286.
  • 7
    Nos textos que compõem The Dialogic Imagination (1981BAKHTIN, Mikhail. The Dialogic Imagination. Austin: University of Texas Press, 1981.; ver nota de rodapé n.1), Bakhtin apresenta, desde o período do helenismo, a luta dos gêneros baixos que no futuro formarão o romance numa perspectiva semelhante à que mostra a sobrevivência da cultura popular não oficial no período medieval até sua manifestação renovada no Renascimento em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (2010).
  • 8
    No original: “This incongruence in Bakhtin’s narrative may suggest that he considers the Renaissance to be an exception, a solitary island in the predominantly non-grotesque history of the human body.”
  • 9
    No original: “Neo-Kantism was indeed ‘infected’ with and moving towards Hegelianism”
  • 10
    Na tradução consultada: “And he sat on the bed at the her side. And Noe and Nir came in to bury Sopanim, and they saw the child sitting beside the dead Sopanim, and wiping his clothing. And Noe and Nir were very terrified with a great fear, because the child was fully developed physically, like a three-year-old. And he spoke with his lips, and blessed the Lord. And Noe and Nir looked at him and behold, the badge of priesthood was on his chest, and it was glorious in appearance. And Noe and Nir said “Behold, God is renewing the priesthood from blood related to us, just as he pleases,” And Noe and Nir hurried and they washed the child, and they dressed him in the garments of priesthood, and they gave him the holy bread and he ate it. And they called his name Melkisedek” (II En 71.17-21).
  • 11
    Na tradução consultada: “And they took wives unto themselves, and everyone (respectively) chose one woman for himself, and they began to go unto them. And they taught them magical medicine, incantations, the cutting of roots, and taught them (about) plants. And the woman became pregnant and gave birth to great giants whose heights were these hundred cubits. These (giants) consumed the produce of all the people until the people detested feeding them, So the giants turned against (the people) in order to eat them. And they began to sin against birds, wild beasts, reptiles, and fish. And their flesh was devoured the one by the other, and they drank blood. And then the earth brought an accusation against the oppressors” (I En 7).
  • 12
    Les très riches heures du Duc de Berry c. 1450. Manuscript (Ms. 65). Musée Condé, Chantilly. Disponível em: https://www.wga.hu/index1.html. Acesso em: 17 mai. 2023.
  • 13
    Last Judgment Triptych (right wing) 1504-08. Mixed technique on panel, 167 x 60 cm; Akademie der Bildenden Künste, Vienna. Disponível em: https://www.wga.hu/index1.html. Acesso em: 17 mai. 2023.

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  • TODOROV, Tzvetan. Mijaíl Bajtín: El principio dialógico. Trad. Mateo Cardona Vallejo. Bogotá: Publicaciones del Instituto Caro e Cuervo, 2012.

Declaração de disponibilidade de conteúdo

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.

Parecer II

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer II

O trabalho é adequado ao tema proposto: “realismo grotesco e corpo grotesco em Bakhtin”. O título dialoga com o conteúdo do texto. Os objetivos são explicitados e desenvolvidos de forma coerente. O autor demonstra familiaridade com a teoria proposta e conhecimento atualizado da bibliografia vigente. O artigo apresenta uma reflexão original, dialogando com o que se sabe até então e, ao mesmo tempo, trazendo novas perspectivas teórico-conceituais sobre o tema. A contribuição para o campo de conhecimento e áreas correlacionadas é significativa e justificada pelo autor, quando apresenta, também, outros estudos realizados sob óticas distintas e situa sua pesquisa. O artigo possui linguagem adequada a um trabalho científico. Recomenda-se, antes da publicação, uma revisão de caráter gramatical. Há algumas palavras e expressões com erro de digitação. Pelos motivos expostos, o parecer é favorável à publicação em Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    13 Jul 2023

Parecer III

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer III

O excelente artigo “Realismo grotesco e corpo grotesco em Bakhtin” tem por objetivo refletir sobre os conceitos bakhtinianos que lhe dão título, e o faz de modo muito profícuo, examinando, com acuidade, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, mas também buscando a gênese dos conceitos nas versões anteriores dessa obra, que foram apresentadas como tese doutoral. Caminho de reflexão que dá profundidade histórica aos conceitos, aos trabalhos, em outras palavras, dá vida a eles. Recupera filtros de leituras críticas que participaram do que lemos hoje. O artigo, ainda, ressalta com propriedade as bases filosóficas que sustentam o estudo de Bakhtin. No entanto, quando afirma que “era uma teoria que resultou da combinação de sua [de Bakhtin] concepção do neokantismo cassireriano embebido de hegelianismo”, não seria apenas um detalhe lembrar que o hegelianismo já está também em Cassirer. O “retorno a Kant” após Hegel, que marcou os neokantianos, não se deu sempre com o abandono de Hegel, e é o caso de Cassirer. Ainda para somar à reflexão realizada no belo artigo, pode ser interessante salientar a inflexão da filosofia idealista de Cassirer à linguagem (uma “virada linguística”, que estudiosos de sua obra preferem nomear “virada semiótica”, ou, em outro termo, “virada simbólica”, ou, ainda, “virada cultural”). Direção filosófica, que, do ideal, busca tender ao rés do chão, à vida cotidiana. Assim, quando o artigo afirma que “a terminologia populista adotada por Bakhtin (...) certamente tingiu de realismo socialista sua apresentação da história da evolução das formas literárias (...)”, a inegável terminologia populista está repercutindo o realismo socialista, mas a reflexão tem raízes filosóficas no conceito husserliano de “mundo da vida”, presente também em Cassirer. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    22 Ago 2023

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2023
  • Aceito
    23 Out 2023
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