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O Epicuro de Nietzsche: a influência constante e ambígua de Epicuro na construção dos filosofemas nietzschianos* 1 Nota do tradutor (doravante, N.T.): As notas e as indicações de termos, no corpo do texto e rodapé, são a tradução das do próprio autor. Quando precisei inserir qualquer nota explicativa, segue a indicação N.T. Para evitar problemas conceituais, quando o autor utilizou a expressão “surhumain (Übermensch)”, deixei apenas o termo original em alemão. Para melhor fluidez do texto, para a variante “übermenschliche”, preferi traduzir para “além-humana”. Quanto ao termo “décadence”, e suas variáveis, preferi manter em francês, dado que o próprio Nietzsche costumava assinalar assim em seus textos.

Nietzsche´s Epicure : The Constant and Ambiguos Influence of Epicure in the Construction of Nietzschean´s Philosophems

Resumo:

Propomos neste estudo reconstituir, através da obra do pensador alemão, parte da relação que une Nietzsche a Epicuro. Isso nos levará a estudar os temas da díade apolíneo-dionisíaco, do Übermensch1 1 Nota do tradutor (doravante, N.T.): As notas e as indicações de termos, no corpo do texto e rodapé, são a tradução das do próprio autor. Quando precisei inserir qualquer nota explicativa, segue a indicação N.T. Para evitar problemas conceituais, quando o autor utilizou a expressão “surhumain (Übermensch)”, deixei apenas o termo original em alemão. Para melhor fluidez do texto, para a variante “übermenschliche”, preferi traduzir para “além-humana”. Quanto ao termo “décadence”, e suas variáveis, preferi manter em francês, dado que o próprio Nietzsche costumava assinalar assim em seus textos. e, finalmente, o tema da décadence ao qual se liga a figura de Epicuro a partir de um determinado período. Nosso posicionamento teórico consiste em dizer que há um fio condutor do pensamento epicurista na obra nietzschiana, que o torna uma fonte contínua de inspiração para forjar em parte seus principais conceitos.

Palavras-chave:
Nietzsche; Epicuro; Übermensch; décadence; apolíneo; dionisíaco

Abstract:

The purpose of our study is to demonstrate through an array of three themes that the role of the thought of Epicurus is central throughout the works of Friedrich Nietzsche. In doing so, we are going to study several themes among which the duality between the Apollonian and the Dionysian, the Übermensch and finally décadence (as the word is used in French by Nietzsche) and which Nietzsche associates to Epicurus in his last period. Our theoretical proposal consists of saying that there is a common thread of the Epicurean thought in the Nietzschean works that makes it an important source of inspiration throughout his works in order to build some of his main concepts.

Keywords:
Nietzsche; Epicurus; Übermensch; décadence; apollonian; dionysian

A obra de Nietzsche é permeada, do princípio ao fim, de referências - ora explícitas, ora implícitas - a conceitos dos quais se apropria ou metáforas relativas à filosofia epicurista. Essa influência se manifesta em particular através da reinterpretação de elementos provenientes da religião e da mitologia gregas (através das figuras de Apolo e Dionísio), como também através da sua leitura da teologia epicurista, em relação à figura dos deuses epicuristas, dos quais ele se serve em parte para forjar o conceito de Übermensch. A figura de Epicuro também é afetada pela transformação metodológica que Nietzsche opera no final de sua obra com o prefácio da Genealogia da moral. Assim, como veremos, por meio do método genealógico que desenvolve, Nietzsche estabelece os critérios da décadence cristã e relê o significado da abordagem de Epicuro na história do pensamento. As ligações entre as escolas gregas tardias de pensamento e a formação da filosofia de Nietzsche têm sido objeto de interesse renovado nos últimos anos no contexto dos estudos nietzschianos, em particular no que diz respeito ao chamado período intermediário dos escritos (de Humano, demasiado humano até A gaia ciência). Na verdade, nossa abordagem consiste em abarcar a totalidade da obra de Nietzsche para considerar a compreensão da relação entre os dois pensadores em sua complexidade. Por um lado, tentaremos defender a ideia de que uma rede de temas ligados aos conceitos e à linguagem epicuristas irrigam aspectos centrais do pensamento nietzschiano, e por outro que, de acordo com esse prisma, existe na relação de Nietzsche com Epicuro um fio condutor, certa continuidade, em oposição à cisão que alguns comentadores estabeleceram.2 2 Cf. Ansell-Pearson, 2014 e Choulet, 1998. Sobre este último, referimo-nos aqui ao seu artigo “O Epicuro de Nietzsche: uma figura da décadence” (Revue Philosophique de la France et de l’Étranger, vol. 188 n°3, pp.311-330 1998). Nosso objetivo aqui será mostrar, a partir do estudo dos três temas seguintes, o fio condutor existente entre os dois pensadores: a interpretação da relação entre Nietzsche e Epicuro à luz da díade apolíneo-dionisíaca; a fonte epicurista para a conceituação do Übermensch e, por fim, as considerações sobre a caracterização de Epicuro como décadent em Nietzsche.

O prisma do apolíneo e do dionisíaco para visualizar a relação entre Nietzsche e Epicuro

O tratamento da figura de Epicuro na obra de Nietzsche é, no mínimo, ambivalente. Se o pensador do jardim figura entre os filósofos que Nietzsche julga dignos de interesse e diálogo em um parágrafo de Humano, demasiado humano (cf. VM/OS 408, KSA 2.533-534) - ao lado de Montaigne, pensador influenciado pelas escolas estoica e cética - ele igualmente é alvo de fortes críticas. Há no epicurismo a exigência de viver em harmonia com a natureza, sendo isso feito através do “exercício de verdadeiras tendências vitais”,3 3 Escoubas, 1967, p.165. segundo Escoubas. O método para adquirir esse acordo se manifesta entre os epicuristas pela busca do prazer. As paixões são vividas de modo negativo, na medida em que a eudaimonia, a forma visada da felicidade, é ataraxia, ou seja, ausência de perturbações na alma. O epicurista obedece a um princípio de economia de desejos e, assim, tenta se conformar à natureza. Nietzsche evoca a felicidade epicurista em A gaia ciência nestes termos:

Epicuro. - Sim, estou orgulhoso de sentir o caráter de Epicuro diferentemente, talvez, de qualquer outro e de desfrutar toda a felicidade da tarde da Antiguidade em tudo o que ouço e leio sobre ele: - vejo seus olhos contemplando um mar vasto e esbranquiçado, por cima das rochas costeiras onde o sol repousa, enquanto grandes e pequenos animais brincam em sua luz, tão seguros e tranquilos quanto essa luz e esses mesmos olhos. Tal felicidade só poderia ser concebida por alguém que sofre continuamente, a felicidade de um olhar diante do qual o mar da existência se acalma, e que agora não se cansa de contemplar a superfície e essa colorida, delicada e tremulante pele do mar: antes nunca houve uma tal modéstia na luxúria (FW/GC 45, KSA 3.4114 4 N.T: As citações de Nietzsche foram colocadas pelo autor no original. Salvo disposição em contrário, é de minha responsabilidade a tradução dos textos de Nietzsche. ).

Essa felicidade é, portanto, assimilada à ideia de um mar calmo e sem agitação, que pode entrar em coerência com a ataraxia, já anteriormente definida como a simples ausência de perturbações na alma. Festugière fala do fato de que o epicurista “não busca nada além da equanimidade, uma serenidade como o mar calmo”.5 5 Festugière, 1997, p.11. Este primeiro nível de leitura parece relativamente claro. A interpretação clássica, e literalmente fiel ao que escreve Nietzsche, é que Epicuro, tendo chegado a uma idade avançada - trata-se mesmo de uma “felicidade da antiguidade tardia” - se coloca diante desse mar calmo, sem mais vontade de nele navegar porque já atingiu certa serenidade, talvez até a ataraxia. Podemos interpretar esse aspecto da evocação de Epicuro, por Nietzsche, dentro da estrutura do modelo dual que ele propõe pela primeira vez em O nascimento da tragédia. Ele desenvolve uma estrutura com base em duas figuras divinas gregas que carregam importante simbolismo: Apolo e Dionísio. A pulsão apolínea é aquela que se relaciona com o domínio do sonho e da bela representação. A conceituação do apolíneo é articulada em três etapas em Nietzsche: a produção das belas aparências; o distanciamento e a “conscientização” do caráter onírico do sonho e, finalmente, numa última etapa, o prazer obtido na contemplação das aparências. Podemos transcrever essas três etapas à luz do parágrafo 45 de A gaia ciência e isso pode nos permitir esclarecer a visão que Nietzsche tem de Epicuro e o que dela pode extrair para seu próprio pensamento. Antes de mais nada, a questão da produção de belas aparências nos permite imaginar Epicuro contemplando esse mar calmo de que fala Nietzsche.

Então, o sábio de Samos estaria contemplando uma felicidade calma e estável que construiu durante um longo período e que se permite admirar no entardecer da sua vida. A felicidade superficial que o pensador forjou está, portanto, à vista e tudo a testemunha na descrição (os animais ao redor, a luz, o mar e o olhar fixo no panorama). Mas é a segunda etapa do raciocínio nietzschiano que nos interessa ainda mais aqui, na medida em que consiste em distanciar o caráter onírico da representação e possibilita vincular o apolíneo com a outra pulsão da natureza em ação na realidade: o dionisíaco. Com efeito, para além do quadro idílico descrito neste parágrafo, o apaziguamento descrito no texto só foi conseguido à custa de muito sofrimento: sob “a variegada pele oceânica” esconde-se algo mais atormentado e à bela representação de uma felicidade parcialmente fantasiada é adicionada uma realidade caótica que traz tanto sofrimento quanto alegria, às vezes violenta. Lembre-se que a pulsão dionisíaca é aquela que está na origem das artes não figurativas como a música e a dança. Dionísio, ao contrário de Apolo, que preside o princípio de individuação e delimitação, está na origem do rompimento deste princípio. A partir do momento em que percebemos o caráter onírico dessa representação de uma forma de felicidade, percebemos ao mesmo tempo a coexistência dessa felicidade com outra parcela de realidade que é tudo o que se esconde sob a superfície lisa e aparentemente sem turbulência.

As conexões entre o uso desta metáfora complexa, da extensão de água calma e serena cobrindo um fundo de realidade mais turbulento, são explicadas por Nietzsche em um fragmento póstumo:

Experiências psicológicas fundamentais: o termo “apolíneo” é usado para descrever a extasiada contemplação de um mundo imaginário e sonhado, o mundo da bela aparência como uma redenção do devir: por outro lado, o nome Dionísio é dado à apreensão ativa do devir, subjetivamente sentida como a luxúria furiosa do criador, que ao mesmo tempo conhece a ira do destruidor. Antagonismo dessas duas experiências e dos desejos subjacentes: o primeiro desejo busca a eternidade da aparência, o homem se aquieta diante dela, sem desejos, como o mar suave, curado, em paz consigo mesmo e com todo o ser; o segundo desejo anseia pelo devir, ou seja, pela luxúria de criar e destruir (NF/FP outono de 1885 - outono de 1887, 2 [110] KSA 12.115).

Este texto evoca o apolíneo como uma representação de uma realidade pacífica, sem perturbações, um “mar de óleo”, retomando a metáfora do texto da A gaia ciência. No entanto, essa realidade de contemplação de uma felicidade simples não é incompatível com a violência do dionisíaco. Para um estudioso desta questão, como Ansell-Pearson, “Epicuro abandona completamente seu senso de si mesmo para que possa se abrir para o mar da existência, e talvez se encontre aqui uma alternativa ao êxtase dionisíaco, resultando em uma perda mais pacífica e menos grandiosa do si mesmo no Ur-eine”.6 6 Ansell-Pearson, 2014, p.27. A nosso ver, no entanto, as duas realidades se sobrepõem e se entrelaçam e, embora seus funcionamentos pareçam opostos, elas sempre se conjugam. Assim, a vontade de eternizar o devir, própria do apolíneo, não dura muito tempo, e a pulsação criadora-destrutiva do dionisíaco ciclicamente vem perturbar o prazer encontrado nas belas aparências. Observamos que essas duas pulsações e seus funcionamentos respectivos se encaixam apesar de suas contradições a priori. Como Nietzsche explica em um fragmento de 1888:

Nietzsche esforçou-se essencialmente para descobrir por que razão o apolíneo grego teve de crescer a partir de um fundo dionisíaco: o grego dionisíaco precisava tornar-se apolíneo, isto é: quebrar a sua vontade de monstruosidade, de multiplicidade, de incerteza, de horror, mediante uma vontade de moderação, de simplicidade, de ordem, seguindo normas e conceitos. O desmedido, o selvagem, o asiático estão na sua base: a bravura do grego consiste na luta contra o seu asiaticismo: a beleza não lhe é dada, assim como a lógica ou a naturalidade dos costumes - é conquistada, desejada, lutada - é a sua vitória... (NF/FP primavera de 1888, 14 [14], KSA 13.225).

Neste trecho, percebemos traços epicuristas na ideia de domínio da natureza caótica da realidade. Esses traços são considerados a partir da ligação entre o apolíneo e o dionisíaco, não no modo de décadence e falta de vida, mas sim no sentido do entrelaçamento de duas realidades com funcionamentos, a priori, relativamente antagônicos, mas que na realidade complementares. Todo organismo parece oscilar entre o dionisíaco e o apolíneo como dois polos a serem constantemente equilibrados, entre uma calma e uma medida que seriam um perigo para a vitalidade e uma desmedida que pode ser destrutiva. E, justamente nesse texto, Nietzsche explica que o que é da ordem da Cultur, em seu vocabulário, é esse refinamento construído sobre a base dionisíaca. Pode-se, de fato, considerar a postura de Epicuro, descrita no parágrafo 45 de A gaia ciência, como a do espírito livre nietzschiano ou de um indivíduo que conseguiu vestir as roupas de um tipo superior de homem, talvez mesmo do tipo Übermensch, desenvolvendo seu próprio corpo de valores à parte da sociedade de seu tempo e dos traços de uma civilização décadent. Este mar observado pode também constituir um convite a explorar a possibilidade dos perigos que encerra, ou seja, a assumir a realidade em movimento, caótico e assim participando numa forma de funcionamento dionisíaco. Langer explica, em um livro sobre esse texto, que “a descrição de Nietzsche é cativante, evocativa e ricamente ambígua”.7 7 Langer, 2010, p.65. De fato, essa teoria permite interpretações diversas, e mesmo nessa serenidade no fim da vida, o sábio epicurista, mais próximo do deus epicurista - como sugere as últimas frases da Carta a Meneceu: “[...], mas viverás como um deus entre os homens. Pois nada se parece menos com um mortal do que aquele que vive em meio a bens imortais”8 8 Epicuro, 1994, p.198. -, olha com tranquilidade para o que no passado foi uma luta e combate contra si mesmo e contra os outros, a fim de se libertar de certas ilusões, em primeiro lugar a ilusão de que a morte seria algo para nós. De fato, é útil lembrar que a morte não é nada para um epicurista porque, “o mais terrível dos males, a morte, portanto, não tem nada a ver conosco, pois precisamente, enquanto nós existimos, a morte não está lá, e uma vez que a morte é lá, então não estamos mais”.9 9 Epicuro, 1994, p.193. A concepção da morte como provação é apenas consequência de uma ilusória assimilação da morte à dor eterna. Epicuro a analisa friamente como ausência de sensação, portanto também ausência de dor possível. Essa desconstrução de um grande questionamento filosófico é reminiscente daquela que o próprio Nietzsche opera, em especial graças à abordagem genealógica da piedade cristã (em particular na segunda dissertação da Genealogia da moral). Epicuro detalha seu raciocínio na Carta a Heródoto, texto que apresenta de maneira geral sua doutrina física. Referindo-se ao medo da morte prevalente entre seus contemporâneos e ao tumulto resultante, Epicuro escreve:

[...] e também quer que eles sempre esperem - ou temam - algo eternamente terrível, por causa dos mitos ou mesmo da insensibilidade que há no estado de morte, que eles temem como se pudesse alcançá-los, e também é devido ao fato de que essas afeições se devem menos a opiniões do que a uma disposição irracional da mente: segue-se que, ao não definir o que é temer, eles [os homens] sentem uma perturbação igual à que teriam se formassem opiniões sobre isso, ou ainda mais intensa.10 10 Epicuro, 1994, p.172-173.

Longe de ser apenas um simples seguidor da décadence, - definida por Nietzsche como incluindo os adoradores de uma vida diminuída, em declínio e simplesmente conduzida em função de uma constituição fraca, resultando em falta de vitalidade e desorganização da hierarquia de impulsos que o compõem - Epicuro, ao contrário, assume plenamente os perigos que a existência encerra, inclusive o sofrimento que dele faz parte: “Solidamente ancorado ao solo, Epicuro olha para o mar e aprecia a possibilidade da incerteza que ele oferece. Literal e figurativamente, ele pode flutuar sobre o mar. [...] Epicuro se alegra com a possibilidade sempre presente de deixar o solo firme para os perigos do mar”.11 11 Langer, 2010, p.67. O cálculo epicurista dos prazeres não é simplesmente evitar a dor, mas sim hierarquizar entre certos tipos de prazer e certos tipos de dor, da mesma forma que há uma hierarquia das pulsões, embora não seja puramente racional e consciente, na concepção de Nietzsche sobre o funcionamento fisiopsicológico dos indivíduos. Não haveria, por um lado, a atitude simplesmente passiva e temerosa de um organismo enfraquecido diante de uma atitude afirmativa, ativa e conquistadora do organismo poderoso: o funcionamento dos organismos e das estruturas fisiopsicológicas que são os indivíduos é mais complexo. O epicurista não evita necessariamente toda dor porque é dor, pois há dores que servem para a existência e dores que abrigam um prazer maior ainda por vir. A dor é um mal absoluto, mas pode ter uma utilidade relativa. Em termos nietzschianos, percebemos em Epicuro uma forma de manifestação do complexo apolíneo-dionisíaco na organização pulsional dos indivíduos. Como escreve Epicuro na Carta a Meneceu sobre a relação e o jogo que existe entre o prazer e a dor:

[…] mas há casos em que deixamos de lado muitos prazeres, sempre que um desagrado maior resulta para nós desses prazeres; e pensamos que muitas dores são preferíveis a prazeres, quando um prazer maior se segue para nós, depois de termos suportado as dores por muito tempo.12 12 Epicuro, 1994, p.195.

Portanto, é importante abandonar a visão do epicurismo como simples busca do prazer moderado e evitação da dor. A matriz epicurista é mais complexa e, se a considerarmos através do prisma desenvolvido por Nietzsche, especialmente em O nascimento da tragédia, na dualidade entre o apolíneo e o dionisíaco, podemos entender que, por trás da metriopatia epicurista, há uma manifestação do apolíneo ou pelo menos algo que dele participa, relacionado à boa medida na gestão de prazeres e dores. Mas, de forma mais profunda, o fato é que Epicuro fundamentalmente assumia o caráter caótico e, em termos nietzschianos, dionisíaco do mundo, com suas incertezas, sofrimentos e alegrias. O desenvolvimento do pensamento nietzschiano ocorreu no sentido de uma reflexão sobre a questão do valor dos valores, tendo a própria vida como valor a ser privilegiado e o aumento do sentimento de potência como meio privilegiado para alcançar esse objetivo. Um comentador13 13 cf. Dewitt, 1947, pp.195-201. argumentou contra a ideia difundida de que a vida - e não o prazer - era o bem supremo da filosofia epicurista. Na verdade, uma vez que o postulado da negação da imortalidade é estabelecido, em contradição com as concepções religiosas da época, é a própria vida que se torna o valor supremo e a gestão do prazer se torna uma modalidade dessa existência. A ética epicurista pressupõe, de fato, a vida biológica para favorecer o prazer na existência. Ao mudar de perspectiva no quadro do pensamento epicurista, pode-se considerar que o objetivo é, ainda mais fundamentalmente do que a busca pelo prazer calculado como fonte da ataraxia, uma forma de gerenciar o prazer e a dor que faz da concepção da existência o valor supremo, e da filosofia uma empreitada com objetivo prático, “Filosofia como uma arte de viver” (NF/FP outono de 1887, 9 [57], KSA 12.363),14 14 Traduzimos “Kunst des Lebens” por arte de viver, mas também poderíamos transcrever este fragmento para “arte da vida”, literalmente mais fiel ao texto original e que sublinha a dimensão da autocriação muito presente no pensamento nietzschiano. Esta passagem é traduzida como “arte da vida” na tradução de Gallimard. como Nietzsche se expressa sobre Epicuro.

Determinada análise da noção de prazer em Epicuro permite-nos conceber as ligações que podem existir com a alegria dionisíaca, tal como concebida por Nietzsche. Sabemos que uma distinção clássica é feita em Epicuro, entre prazer estável (catastemático) e instável (cinético)15 15 Retomado notavelmente em Annas, 1987, pp.5-21. . No entanto, pode ter parecido a alguns comentadores que esta distinção, no nível filológico, é por vezes mais tênue. Podemos, se não confundir prazer catastemático - que é o objetivo final, como um estado de ausência de dor, do epicurismo - e prazer cinético, pelo menos estabelecer uma certa continuidade entre os dois. Na Sentença Vaticana 33,16 16 cf. Epicuro, 1994, p.213 Epicuro escreve que existem três fontes de prazer: ausência de fome, sede ou frio. No entanto, isso não corresponde ao estado de catastema, a ausência de dor que supostamente corresponde ao prazer. Isso estaria presente tanto nesses processos de ausência de fome, sede ou frio quanto no estado estável que resulta deles e que pode levar à ataraxia. Em outras palavras, a felicidade epicurista não seria apenas um estado definido negativamente, isto é, pela ausência de dor, mas estaria relacionada aos processos de prazer em movimento. É isso que Nikolsky explica quando escreve que:

Além disso, as palavras conclusivas da citação de Epicuro - ut natura is potiens dolore careat [que a natureza está isenta de dor] - mostram definitivamente que Epicuro não opunha prazer sensorial e ausência de dor, mas ao contrário, os via como uma unidade, acreditando que tais prazeres eram a condição indispensável para um “bom estado” do organismo.17 17 Nikolsky, 2001, p.449.

Se esta fronteira entre o prazer processual e o prazer “estado” é mais porosa do que geralmente se reconhece, então surge um espaço teórico possível para a aproximação do que constitui a alegria dionisíaca - intrinsecamente processual - e o prazer epicurista. Essas reflexões sobre as proximidades dos dois conceitos nos levam precisamente a tratar do tipo de homem que experimenta a pura alegria do criar e do tornar-se dionisíaco, ou seja, o tipo Übermensch, uma categoria conceitual na qual Nietzsche se baseou na teologia epicurista.

A inspiração epicurista de Nietzsche para a conceituação do Übermensch

A alegria dionisíaca, como um estado experimentado pelo tipo Übermensch, lembra a forma como Nietzsche se refere à figura dos deuses epicuristas. Poderíamos estabelecer uma analogia entre esses diferentes termos: o que a alegria dionisíaca é para o tipo Übermensch, a eudaimonia é para o deus epicurista. O Übermensch, lembremos, refere-se a um tipo de homem a ser elevado no contexto da transvaloração de todos os valores. É um conceito essencial do pensamento nietzschiano. Ele não se refere a uma categoria de humanos já existente, mas sim a um horizonte a ser alcançado através de um cultivo (Züchtung) visando combater o movimento niilista de seu tempo. Nietzsche está ciente da dimensão póstuma que este projeto apresenta e reconhece seu caráter aristocrático, além de que só pode eventualmente ocorrer a longo prazo. Ele retira várias ideias da conceituação dos deuses por Epicuro. Lembremos, brevemente, o debate existente na exegese a respeito dos deuses epicuristas. Uma visão realista considera que Epicuro via os deuses como realmente existentes fora de nós, enquanto uma concepção idealista descreve os deuses como sendo projeções mentais. Esta última interpretação, defendida em particular por Bollack,18 18 cf. Bollack, 1975, p.217 ss., em que se faz a discussão sobre a real existência dos deuses. com base na análise da Escolio de Maxime I de Epicuro e no comentário de Cícero em Da natureza dos deuses I, 19, 49, consiste em dizer que os deuses não são para nós apenas da ordem dos simulacros (eidolon) que afetam nossos órgãos perceptivos. Se certos textos de Epicuro - em particular uma passagem da Carta a Meneceu19 19 cf. Epicuro, 1994, p.191-192. No início da Carta a Meneceu está escrito: “Primeiro, considerando que o deus é um ser vivo incorruptível e abençoado, de acordo com o que a concepção comum do deus traça, não atribua a ele nada que seja estranho à sua incorruptibilidade ou que seja impróprio para a sua felicidade; mas forme em você, relatando-o a ele, qualquer opinião que seja capaz de preservar sua felicidade unida à sua incorruptibilidade. Pois os deuses existem: de fato, evidente é o conhecimento que se tem deles [...]”. Da tradução desta passagem da Carta, a existência - e, portanto, a tese realista sobre a teologia epicurista - parece ser atestada pela própria carta de Epicuro. - nos incitam a inclinar-nos para a interpretação realista da teologia epicurista, outros autores nos recomendam cautela. Este é notadamente o caso de Piettre que explica que “sem dúvida é necessário superar a oposição, que nos parece irredutível, entre deuses transcendentes e deuses imagens. Pode ser que o obstáculo só exista em nossas próprias representações culturais”.20 20 Piettre, 2005, p.81. Para nosso tema, seja qual for a natureza dos deuses em Epicuro - real e física, ou como representação mental - seu papel é um regulador da existência. Eles nos servem de modelo em sua impassibilidade resultante de sua ausência de problemas. Assim também age o tipo Übermensch em Nietzsche.

Em Nietzsche, de fato, o indivíduo que encarnará o tipo Übermensch será aquele que poderá estabelecer certa distância em relação ao mundo, terá a capacidade de concretizar o pathos da distância de que fala o autor, em particular em Para além de bem e mal, esta propensão de “desejar continuamente a expansão da distância dentro da própria alma” (JGB/BM 257, KSA 5.205), dimensão que encontramos na figura do deus epicurista. Nietzsche novamente especifica, em um fragmento póstumo, que é sobre o homem “que possui felicidade e coragem suficientes para se manter afastado e contemplar à parte, assim como um deus epicurista” (NF/FP outono de 1885- primavera de 1886, 1 [108], KSA 12.36). Em todo o caso, trata-se de encorajar o desenvolvimento, como escreve em Crepúsculo dos ídolos, de uma “vontade de ser você mesmo, de se destacar” (GD/CI, Incursões de um extemporâneo 37, KSA 6.138). Aqui vislumbramos o aspecto aristocrático do projeto filosófico de Nietzsche. Este vê, no tipo do deus epicurista, uma figura que tem essa característica aristocrática de saber priorizar, de ter domínio na hierarquia dos impulsos que o constitui. Assim, em um fragmento póstumo, Nietzsche escreve:

I. Zaratustra só pode trazer a felicidade depois que a ordem hierárquica for estabelecida. Em primeiro lugar, essa ordem precisa ser ensinada. II. A ordem hierárquica é implementada em um sistema de governo da terra: os senhores da terra em último lugar, uma nova casta dominante. Deles, aqui e ali, surge um deus totalmente epicurista, o Übermensch, o transfigurador da existência. III. A compreensão além-humana do mundo. Dionísio (NF/FP maio - julho 1885, 35 [73], KSA 11.541).

Para Nietzsche, no quadro do advento de um novo corpus de valores para substituir os de origem platônico-cristã, trata-se de estabelecer uma hierarquia não apenas entre si e os outros, em uma dimensão que se poderia chamar aristocrática ou oligárquica. Concerne, ainda, a estabelecer uma hierarquia em si mesma, como uma estrutura pulsional entre os instintos que contribuem para a promoção da própria vida como um valor e os instintos que tendem a um rebaixamento da vida. O desígnio filosófico último de Nietzsche é, como ele especifica no texto, a transfiguração da existência. Se a figura do próprio Epicuro é dita décadent, parece que na sua teologia, os deuses epicuristas representam ao mesmo tempo algo da calma apolínea, da alegria dionisíaca e do que Nietzsche chamará de Übermensch. Ele justapõe textualmente o Übermensch e o deus epicurista, mostrando assim as relações existentes entre os dois. Evoca, então, Dionísio como sendo co-constituinte de uma concepção além-humana do mundo, movendo-se no caos indistinto da realidade. Se nos referirmos a um texto de Para além de bem e mal, podemos notar a proximidade da figura do deus epicurista com certas características do mundo dionisíaco. Neste aforismo intitulado “O vício olímpico” Nietzsche evoca os deuses olímpicos e escreve:

E supondo que até mesmo os deuses filosofem, como não poucas conclusões já me levaram a acreditar -, não duvido que eles saibam rir de uma maneira além-humana e nova - e às custas de todas as coisas sérias! Os deuses têm um desejo irônico: parece que nem mesmo em ações sagradas eles conseguem evitar o riso (JGB/BM 294, KSA 5.236)

Encontramos aqui tanto a ideia do pathos da distância, que se manifesta através do riso olímpico dos deuses, quanto a ideia do riso diante da tragédia da existência e a sua parcela de sofrimento, necessária para tornar a vida e a intensificação da sensação de poder o próprio motor da existência. Outro aspecto, tomado de empréstimo por Nietzsche do conceito epicurista dos deuses, é sua autorreferencialidade: o Übermensch, como o deus epicurista, é indiferente ao destino dos outros e desenvolve seus valores dentro da estrutura de sua própria hierarquia. Conforme descrito em um fragmento póstumo, falando de futuros indivíduos do tipo Übermensch, Nietzsche escreve: “como os deuses epicuristas, não se importando com o outro” (NF/FP julho de 1882 - inverno de 1883/1884 7 [21], KSA 10.244), que ecoa o final da Carta a Meneceu, quando Epicuro descreve os homens que conseguem respeitar os princípios da ética epicurista, explica então: “nunca te perturbarás, nem na vigília nem nos sonhos, mas viverás como um deus entre os homens”.21 21 Epicuro, 1994, p.198. Em última análise, o tipo Übermensch encontra um espelho na figura do deus epicurista, mais do que no simples discípulo epicurista que aplica os princípios éticos ensinados pelo mestre do jardim, no sábio epicurista ou mesmo no próprio fundador da escola.

Estas temáticas também envolvem o ideal epicurista de reclusão em relação à sociedade. Isso nos remete ao apolitismo, ou mesmo ao antipolitismo, da escola epicurista. Como Nietzsche escreve neste texto de A gaia ciência:

[…] Viva na obscuridade para que você possa viver para si! Viva ignorante do que parece mais importante para o seu tempo! Coloque, entre você e o seu presente, uma pele de ao menos três séculos! E o clamor de hoje, o barulho das guerras e revoluções, não passarão de um murmúrio para você! Você também vai querer ajudar: mas apenas aqueles cuja necessidade você entende completamente, porque eles compartilham com você uma dor e uma esperança - seus amigos: e apenas da maneira que você se ajuda: - eu quero torná-los mais corajosos, resistentes, simples e alegres! Eu quero ensiná-los o que tão poucos entendem agora e o que os pregadores da compaixão menos que todos: a alegria compartilhada! (FW/GC 338, KSA 3.568).

A reclusão é tanto espacial (lathè biôsas, ou seja, a injunção de viver escondido), com o ideal do jardim, quanto intelectual. Quando Nietzsche ordena ao leitor que coloque entre si e o mundo contemporâneo “a espessura de três séculos”, trata-se de tornar-se, de certa forma, inatual no sentido em que as contingências próprias de uma época não devem desviá-lo dos objetivos e valores que ele se atribui. Como o deus epicurista, o representante do tipo Übermensch é indiferente ao destino de seus contemporâneos. No contexto da construção de seus próprios valores, ele não pode viver no mundo como a maioria e subscrever a seus próprios, que podem ser décadents, como Nietzsche considera as sociedades políticas na Europa de seu tempo. E é agora esta questão da décadence que ocupará o final do nosso trabalho.

A ambiguidade de Nietzsche na caracterização de Epicuro como pensador décadent e seu prisma cristão

Queremos, igualmente, explorar aqui a ambiguidade de Nietzsche face ao estatuto típico de décadent de Epicuro - pronunciado durante a aplicação do método genealógico contra ele.22 22 Esta ideia é notavelmente presente nos textos a seguir: FW/GC 370, KSA 3.619-622; GM/GM III 17, KSA 5.324-325; AC/AC 30, KSA 6.200-201; NW/NW, Nós, antípodas, KSA 6.424-427. A par desta observação, o fato de reconhecer que o sábio de Samos tem ao mesmo tempo lutado contra os princípios pré-cristãos - “Lê-se Lucrécio para entender o que foi o combate de Epicuro, não o paganismo, mas o ‘cristianismo’, ou seja, a corrupção das almas através dos conceitos de culpa, de castigo e de imortalidade” (AC/AC 58, KSA 6.246) - está ligado com sua assimilação de uma ética cristã de niilismo passivo e rebaixamento da existência em favor de um nada - que seria o além entre os cristãos e a felicidade (como ataraxia) em Epicuro. Os ideais ascéticos seriam, portanto, o sintoma dessa décadence. No entanto, na esteira desse tema, Nietzsche presta em seu último período de atividade um claro elogio a Epicuro em sua crítica às ideias que presidem a religião no parágrafo 58 do Anticristo, crítica que será renovada por Lucrécio no De rerum natura. Neste texto tardio, de 1888, - escrito no período em que se supõe que Epicuro seja univocamente considerado um decadente,23 23 Isso é a opinião de alguns comentaristas, especialmente Ansell-Pearson, citado neste artigo. um organismo em que a vontade de potência se enfraqueceu e em que os instintos se desordenam no sentido de um empobrecimento da existência - Nietzsche levanta um ponto central, presente em Epicuro, sobre a crítica dos dualismos e sobre a existência de mundos supraterrenos como sintoma de ideais ascéticos. Neste texto, onde Nietzsche evoca a décadence dos cristãos e dos anarquistas e onde opõe aos cristãos o modelo de nobreza dos romanos, fará uma incursão sobre Epicuro. Nietzsche faz do filósofo do jardim um precursor de uma crítica - não do cristianismo é claro, o que constituiria um anacronismo - dos ideais ascéticos e, em particular, de três elementos constitutivos da ascese cristã: a culpa, o castigo e a imortalidade. Com efeito, na concepção epicurista, a morte não é nada para nós, pois segundo a célebre fórmula da Carta a Meneceu:

O mais terrível dos males, a morte, portanto, não tem relação conosco, pois precisamente, enquanto existimos, a morte não existe, e uma vez que a morte existe, nós não existimos mais. Assim, não tem relação nem com os vivos nem com os mortos, pois para uns não é, enquanto para outros já não é mais.24 24 Epicuro, 1994, p.193.

Essa contribuição especificamente epicurista para a doutrina da morte é absolutamente central em sua relação com o pensamento nietzschiano, cuja crítica a todos os dualismos e oposições binárias veiculadas por todas as formas de idealismo é extremamente importante. A partir do momento em que não há mais um mundo de trás (Hinterwelt),25 25 N.T.: seguimos a tradução proposta por Rubens Rodrigues Torres Filho em: Nietzsche, F. Obras Incompletas. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p.130. uma vez que a morte é uma ausência de sensibilidade e apenas uma representação estabelecida pelos vivos, o único critério pelo qual podemos julgar a vida é autorreferencial, ou seja, a própria vida. Isso é outro aspecto central da posição nietzschiana, para a qual a vida é a expressão positiva da vontade de potência através dela, que é a única juíza.

No Crepúsculo dos ídolos (cf. GD/CI, A “razão” na filosofia 6, KSA 6.78-79), Nietzsche retorna a essa ideia de divisão idealista entre um mundo verdadeiro e um mundo que seria apenas aparente. Ele mostra que, a partir do momento em que se dissipa a mentira que constitui esse mundo “verdadeiro”, também não há mais mundo aparente: há apenas esse mundo do aqui embaixo - o que os idealistas poderiam chamar de mundo fenomenal e das religiões - um aqui embaixo que pode ser um mundo de aparências, mas que é o único mundo disponível para nós, dada a ausência de um além supostamente portador de uma realidade e verdade maiores. Interessante a esse respeito o trecho imediatamente seguinte ao que citamos da Carta a Meneceu, poderíamos até acreditar que Nietzsche o teria escrito: “Mas a multidão às vezes foge da morte como o pior dos males, às vezes a chama como o fim dos males da vida. O sábio, ao contrário, não ignora a vida, nem tem medo de não mais viver: pois a vida não é um fardo para ele, nem considera que existe o mal menor de não mais viver”.26 26 Observamos aqui, de fato, a concepção que pode ser considerada como o inverso simétrico da sabedoria de Sileno evocada por Nietzsche no início de O nascimento da tragédia, em que Sileno, questionado por Midas sobre a natureza do maior dos bens, explica que o maior bem é não nascer e, na falta disso, morrer o mais rápido possível (cf. GT/NT 3, KSA 1.34-38). Quando Epicuro nos diz que não há nada de errado em não viver mais, ele não quer dizer que um além seja desejável ou que traria algo mais, algo melhor, mas simplesmente que a única realidade que nos é oferecida é este mundo aqui embaixo e é este que requer nossa atenção. A morte é certamente o termo da existência, mas é justamente porque a existência é finita no tempo que seu valor é maior. Epicuro e Nietzsche compartilham a observação - Nietzsche desenvolverá certa aversão a ela dois milênios depois de Epicuro e após a idade de ouro do idealismo em muitas formas - que o fato de acreditar na vida após a morte não é apenas prejudicial à vida, mas é o sintoma de um declínio da vida. Nietzsche acrescenta que isso faz parte de um ódio à vida e uma recusa em aceitar a existência como ela é neste mundo de aparências, e Epicuro faz isso com base no princípio de que a única coisa que deve nos preocupar é regular nossa conduta numa ética precisa baseada no cálculo dos prazeres. Além disso, em relação à qualificação de Epicuro, o próprio Nietzsche expressa a ideia de que ele é tanto um décadent quanto o próprio oposto:

Além do fato de ser décadent, também sou sua antítese. Minha prova disso é, entre outras coisas, que instintivamente sempre escolhi os meios corretos contra as piores condições: enquanto o décadent em si acaba escolhendo os meios que o prejudicam. Em suma, como um todo (summa summarum) eu era saudável, enquanto décadent como uma especialidade (EH/EH, Por que sou tão sábio 2, KSA 6.266).

Nesse texto, Nietzsche opõe as constituições fundamentalmente sadias das constituições doentes. Ele se define como fundamentalmente saudável. Poderíamos notar aqui certa incoerência entre essa descrição de Nietzsche e a concepção sempre mutável do real que ele adota. De fato, existe aqui uma espécie de hipóstase de saúde e doença como características intrínsecas que surpreende sob sua pena. Porém, no restante do texto, ele acredita não ter conseguido recuperar sua saúde sozinho. Existe, portanto, a priori, a possibilidade de passar do estado de saúde à presença de traços décadents sem que isso seja irremediável. Segundo ele, para ser mais preciso, trata-se de ser fundamentalmente saudável na origem. A partir daí pode-se passar por períodos de ausência de saúde e depois recuperá-la. Mas um ser fundamentalmente doente, segundo seus termos, não pode recuperar a saúde. Ele escreve: “Uma criatura tipicamente mórbida não pode se tornar saudável, e ainda menos se curar sozinho; ao contrário, para uma pessoa tipicamente saudável, estar doente pode ser um estímulo energético para viver, para viver intensamente” (ibid.). Como Epicuro é posicionado nessa dicotomia saúde/doença? A maioria dos textos que se relacionam explicitamente com Epicuro - mesmo após o período intermediário - parecem apresentá-lo como uma figura de saúde. Trata-se de certa interpretação da sua ética à luz do modelo genealógico que acaba por fazer dele um exemplo de ascetismo que testemunha a décadence. E é em virtude de certa esquematização da teoria epicurista da felicidade que Epicuro acaba por ser considerado décadent. Mas a análise que vislumbramos do prazer epicurista põe em causa essa qualificação. Aqui, Nietzsche chega a assimilar-se ao tipo de homem - talvez em parte ironicamente - que considera ser Epicuro.

Esta temática não está sem ligação com a de Nietzsche (que encontra seu correspondente em Epicuro) de doença e saúde, e dos remédios que se pode aplicar à doença. Também neste texto, Nietzsche menciona sua condição de indivíduo “fundamentalmente saudável”. Além disso, ele formula uma descrição detalhada de si mesmo que não está sem evocar tons epicuristas:

Ele só gosta do que lhe é benéfico; seu prazer e sua alegria acabam onde há prejuízo. Ele cria remédios para os danos e utiliza eventos ruins a seu favor; o que não o mata o torna mais forte. Ele faz instintivamente sua soma, coletando tudo o que vê, ouve e experimenta: ele é um princípio seletivo e deixa muita coisa de lado. Ele está sempre na companhia de si mesmo, quer esteja lidando com livros, pessoas ou paisagens: ele honra ao escolher, permitir, confiar. Ele reage lentamente a todos os tipos de estímulos, com a lentidão que a longa cautela e o orgulho cultivado deliberadamente lhe conferiram - ele examina o estímulo que se aproxima, está longe de ir ao seu encontro (EH/EH, Por que sou tão sábio 2, KSA 6.267)

Este parágrafo tardio na obra de Nietzsche apresenta elementos epicuristas, mesmo que o nome do fundador do jardim não seja mencionado explicitamente. A ideia de cálculo cuidadosamente estabelecido, de discriminação entre as coisas que são adequadas ao seu bem e as outras, está presente. Além disso, a ideia de uma sociedade retirada, seletiva, de uma espécie de jardim é de fato a ideia de uma ética aristocrática que nos é entregue aqui. Se aqui Nietzsche, como ele diz, descreve a si mesmo, é tanto do sábio epicurista quanto do personagem animado por uma pulsão dionisíaca predominante que essa descrição se origina. Isso nos convida a explorar não apenas a evolução do pensamento e da linguagem de Nietzsche em relação a Epicuro e ao epicurismo em uma abordagem genealógica, mas também a posição do homem Nietzsche e de sua vida em relação à doutrina epicurista e o que ele pode revelar em seu discurso como tal. Às vezes involuntariamente, como ele escreve, tornamo-nos o que somos sem saber inicialmente em que direção estamos indo.

Considerações finais

Por meio da presente discussão, pudemos vislumbrar a complexidade da relação que une Nietzsche a Epicuro, uma vez que a qualificação de Epicuro como décadent se conjuga a um julgamento, segundo o qual ele teria lutado contra ideais pré-cristãos. A figura de Epicuro não escapa, portanto, à frase de Jaspers sobre Nietzsche: “Pode-se, quase sempre, encontrar nele uma apreciação e seu contrário. Ele parece ter duas opiniões sobre tudo”.27 27 Jaspers, 1978, p.8. Os conceitos que aqui pudemos estudar nos mostram a importância do pensamento de Epicuro como infraestrutura do pensamento de Nietzsche e o significado contínuo que tem no pensamento deste último. De notar ainda que esta aproximação à obra do pensador alemão permite dar conta da complexa relação entre os impulsos apolíneo e dionisíaco, constituindo um exemplo paradigmático deste par de divindades e conceitos, na origem da obra de Nietzsche com O nascimento da tragédia em 1872 e recupera força na última parte de sua obra, tornando-a um quadro completo de análise da realidade. A figura dos deuses epicuristas permite a Nietzsche completar seu projeto filosófico de transvaloração de todos os valores (Umwertung aller Werte), de afirmação da existência, de construção de um novo tipo humano, e mostra a predominância de um quadro de pensamento infundido por referências epicuristas para forjar seus conceitos centrais, no quadro de um pensamento certamente de estrutura aforística e fragmentária, mas coerente na rede que constitui. O Übermensch faz parte, de fato, do lado construtivo do pensamento nietzschiano e constitui de certa forma a culminância de seu pensamento.

Referências

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  • PIETTRE, R. Comment peut-on être dieu? La secte d’Épicure Paris: Belin, 2005.
  • 1
    Nota do tradutor (doravante, N.T.): As notas e as indicações de termos, no corpo do texto e rodapé, são a tradução das do próprio autor. Quando precisei inserir qualquer nota explicativa, segue a indicação N.T. Para evitar problemas conceituais, quando o autor utilizou a expressão “surhumain (Übermensch)”, deixei apenas o termo original em alemão. Para melhor fluidez do texto, para a variante “übermenschliche”, preferi traduzir para “além-humana”. Quanto ao termo “décadence”, e suas variáveis, preferi manter em francês, dado que o próprio Nietzsche costumava assinalar assim em seus textos.
  • 2
    Cf. Ansell-Pearson, 2014ANSELL-PEARSON, K. Heroic-Idyllic Philosophizing: Nietzsche and the Epicurean Tradition. In: Royal Institute of Philosophy Supplements, Vol. 74, p. 1-34, Juillet 2014. e Choulet, 1998. Sobre este último, referimo-nos aqui ao seu artigo “O Epicuro de Nietzsche: uma figura da décadence” (Revue Philosophique de la France et de l’Étranger, vol. 188 n°3, pp.311-330 1998).
  • 3
    Escoubas, 1967ESCOUBAS, É. Ascétisme stoïcien et ascétisme épicurien. In: Les Études philosophiques, Vol. 22, no 2, p. 163-172, Juin 1967., p.165.
  • 4
    N.T: As citações de Nietzsche foram colocadas pelo autor no original. Salvo disposição em contrário, é de minha responsabilidade a tradução dos textos de Nietzsche.
  • 5
    Festugière, 1997FESTUGIÈRE, A-J. Épicure et ses dieux. Quatrième édition. Paris: PUF, 1997., p.11.
  • 6
    Ansell-Pearson, 2014ANSELL-PEARSON, K. Heroic-Idyllic Philosophizing: Nietzsche and the Epicurean Tradition. In: Royal Institute of Philosophy Supplements, Vol. 74, p. 1-34, Juillet 2014., p.27.
  • 7
    Langer, 2010LANGER, M. Nietzsche’s Gay Science. Dancing Coherence. Londres: Palgrave Macmillan, 2010., p.65.
  • 8
    Epicuro, 1994ÉPICURE, -. Lettres, Maximes, Sentences. Trad. par Jean-François BALAUDÉ. Paris: Le Livre de poche, 1994., p.198.
  • 9
    Epicuro, 1994ÉPICURE, -. Lettres, Maximes, Sentences. Trad. par Jean-François BALAUDÉ. Paris: Le Livre de poche, 1994., p.193.
  • 10
    Epicuro, 1994ÉPICURE, -. Lettres, Maximes, Sentences. Trad. par Jean-François BALAUDÉ. Paris: Le Livre de poche, 1994., p.172-173.
  • 11
    Langer, 2010LANGER, M. Nietzsche’s Gay Science. Dancing Coherence. Londres: Palgrave Macmillan, 2010., p.67.
  • 12
    Epicuro, 1994ÉPICURE, -. Lettres, Maximes, Sentences. Trad. par Jean-François BALAUDÉ. Paris: Le Livre de poche, 1994., p.195.
  • 13
    cf. Dewitt, 1947DEWITT, N W. Epicurus: Philosophy for the Millions. In: The Classical Journal, Vol. 42, no 4, p. 195-201, Janvier 1947., pp.195-201.
  • 14
    Traduzimos “Kunst des Lebens” por arte de viver, mas também poderíamos transcrever este fragmento para “arte da vida”, literalmente mais fiel ao texto original e que sublinha a dimensão da autocriação muito presente no pensamento nietzschiano. Esta passagem é traduzida como “arte da vida” na tradução de Gallimard.
  • 15
    Retomado notavelmente em Annas, 1987ANNAS, J. Epicurus on Pleasure and Happiness. In: Philosophical Topics, Vol. 15, no 2, p. 5-21, Fall 1987., pp.5-21.
  • 16
    cf. Epicuro, 1994ÉPICURE, -. Lettres, Maximes, Sentences. Trad. par Jean-François BALAUDÉ. Paris: Le Livre de poche, 1994., p.213
  • 17
    Nikolsky, 2001NIKOLSKY, B. Epicurus on Pleasure. In: Phronesis., Vol. 46, no 4, pp. 440-465, Novembre 2001., p.449.
  • 18
    cf. Bollack, 1975BOLLACK, J. La pensée du plaisir : Épicure : textes moraux, commentaires. Paris: Éd. de Minuit, 1975., p.217 ss., em que se faz a discussão sobre a real existência dos deuses.
  • 19
    cf. Epicuro, 1994ÉPICURE, -. Lettres, Maximes, Sentences. Trad. par Jean-François BALAUDÉ. Paris: Le Livre de poche, 1994., p.191-192. No início da Carta a Meneceu está escrito: “Primeiro, considerando que o deus é um ser vivo incorruptível e abençoado, de acordo com o que a concepção comum do deus traça, não atribua a ele nada que seja estranho à sua incorruptibilidade ou que seja impróprio para a sua felicidade; mas forme em você, relatando-o a ele, qualquer opinião que seja capaz de preservar sua felicidade unida à sua incorruptibilidade. Pois os deuses existem: de fato, evidente é o conhecimento que se tem deles [...]”. Da tradução desta passagem da Carta, a existência - e, portanto, a tese realista sobre a teologia epicurista - parece ser atestada pela própria carta de Epicuro.
  • 20
    Piettre, 2005PIETTRE, R. Comment peut-on être dieu? La secte d’Épicure. Paris: Belin, 2005. , p.81.
  • 21
    Epicuro, 1994ÉPICURE, -. Lettres, Maximes, Sentences. Trad. par Jean-François BALAUDÉ. Paris: Le Livre de poche, 1994., p.198.
  • 22
    Esta ideia é notavelmente presente nos textos a seguir: FW/GC 370, KSA 3.619-622; GM/GM III 17, KSA 5.324-325; AC/AC 30, KSA 6.200-201; NW/NW, Nós, antípodas, KSA 6.424-427.
  • 23
    Isso é a opinião de alguns comentaristas, especialmente Ansell-Pearson, citado neste artigo.
  • 24
    Epicuro, 1994ÉPICURE, -. Lettres, Maximes, Sentences. Trad. par Jean-François BALAUDÉ. Paris: Le Livre de poche, 1994., p.193.
  • 25
    N.T.: seguimos a tradução proposta por Rubens Rodrigues Torres Filho em: Nietzsche, F. Obras Incompletas. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p.130.
  • 26
    Observamos aqui, de fato, a concepção que pode ser considerada como o inverso simétrico da sabedoria de Sileno evocada por Nietzsche no início de O nascimento da tragédia, em que Sileno, questionado por Midas sobre a natureza do maior dos bens, explica que o maior bem é não nascer e, na falta disso, morrer o mais rápido possível (cf. GT/NT 3, KSA 1.34-38).
  • 27
    Jaspers, 1978JASPERS, K. Nietzsche: Introduction à sa philosophie. Paris: Gallimard, 1978., p.8.
  • *
    Tradução de Luiz Felipe Xavier Gonçalves.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Nov 2022
  • Aceito
    18 Dez 2022
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