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Produção discursiva de espaços-tempos em relatos de professores: sentidos reorientadores de formação

RESUMO

O objetivo deste estudo é analisar, em relatos escritos de professores em formação, como as trajetórias de vida destes sujeitos se atualizam em seus discursos, através de referências a coordenadas espaço-temporais. As relações espaço-temporais inscritas nos relatos são apreendidas, nas análises, como dimensões históricas orientadoras de representações que esses sujeitos constroem de sua posição no mundo. Em se tratando de professores participantes de uma particular história de migração para uma região brasileira ainda marcada por processos de negação de direitos, suas práticas discursivas trazem índices desta trajetória e elas devem constituir bases para os próprios processos formativos, uma vez que nelas se forjam modos de constituir-se professor, de assumir a profissão, de desenvolver novos processos formativos. Os relatos apontam para cronotopos que indiciam a relação entre as experiências e a memória regida pela força das condições históricas, ao mesmo tempo que oferecem contornos de produção de identidades e de subjetividades.

PALAVRAS-CHAVE:
Discurso; Espaço-temporalidades; Formação

ABSTRACT

This study aims to analyze, in written accounts of training teachers, how these subjects’ life trajectories are actualized in their discourses through references to time-space coordinates. The time-space relations inscribed in the accounts are apprehended, in the analyses, as historical dimensions that direct the representations that these subjects construct from their position in the world. In relation to the teachers who are part of a specific story of migration to a region in Brazil that is still marked by processes of denial of rights, their discursive practices convey indices of this trajectory and should become the basis for the training processes per se, as modes of becoming teachers, teaching, and developing new training processes are forged in those practices. The accounts point to chronotopes that denounce the relationship between the experiences and memory that are ruled by the force of historical conditions and concomitantly provide outlines for the production of identities and subjectivities.

KEYWORDS:
Discourse; Space-temporalities; Training

Introdução

Este trabalho propõe-se a analisar como discursos veiculados em relatos de professores organizam sentidos orientados por diferentes espaços-temporalidades nos quais se inscrevem dimensões sócio-históricas que interferiram ou interferem nos processos formativos destes sujeitos. Na economia dos relatos, procuramos captar sentidos inscritos em espaços-tempos que não são da ordem física do tempo ou do espaço absoluto, mas da história que oferece as condições para que os sujeitos narrem aspectos de suas vidas, considerando, especificamente, aqueles que podem interferir nas condições profissionais futuras de sujeitos professores. Trata-se de coordenadas espaço-temporais que movimentam diferentes e simultâneas temporalidades nas quais se inscrevem sistemas culturais que podem estar implicados em toda a formação.

Para este estudo, situamos nossas reflexões nos estudos de Bakhtin (Formas de tempo e de cronotopo no romance: ensaios de poética histórica, 1998; A forma espacial do herói, 2000a; Observações sobre a epistemologia das Ciências Humanas, 200b;), no diálogo com Maingueneau (1984MAINGUENEAU, D. Gèneses du discours. Bruxelles: Mardaga, 1984.; 1997)_______. Novas tendências em análise de discurso. Campinas, SP: Pontes, 1997. e De Certeau (1994)DE CERTEAU, M. Invenções do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Pereira Alves. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994., particularmente no que concerne à preocupação destes autores com as coordenadas espaço-temporais postuladas em suas análises como espaços-tempos de inscrição de sujeitos na relação com os sentidos e com a história. Sem desconsiderar os lugares epistemológicos que ocupa cada um dos autores, ao inseri-lo no domínio de um diálogo teórico, nós o fazemos porque, guardadas as proporções, encontramos intercambialidade entre o conceito de cronotopos, engendrado e formulado por Bakhtin, em A forma espacial do herói (2000a) e em Formas de tempo e de cronotopo no romance: ensaios de poética histórica (1998), os estudos desenvolvidos por De Certeau (1994)DE CERTEAU, M. Invenções do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Pereira Alves. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. - sobretudo ao conceber o relato como uma prática do tempo e do espaço - e o conceito de dêixis discursiva formulado no campo da Análise do Discurso, por Maingueneau (1984MAINGUENEAU, D. Gèneses du discours. Bruxelles: Mardaga, 1984.; 1997)_______. Novas tendências em análise de discurso. Campinas, SP: Pontes, 1997.. Em nossos estudos, essas formulações conceituais se apresentam produtivas para delimitarmos as dimensões espaço-tempo, aqui entendidas como categorias discursivas que fundam possibilidades de dizer. Na nossa percepção, o tratamento teórico dispensado pelos três autores se afasta de perspectivas que tomam as categorias espaço-tempo como dimensões absolutas e reduzidas ao mundo físico.

A base empírica de nossas análises é composta de 46 relatórios escritos por professores que, no momento da pesquisa, cursavam graduação em Letras, por meio do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR). Durante a realização de três disciplinas de Estágio Supervisionado, em diferentes momentos, os sujeitos eram solicitados a relatar seus processos de formação, sem, contudo, se limitar ao relato das experiências escolares, mas contemplando, também, experiências que extrapolassem a realidade escolar.

A aproximação das histórias de vida e formação dos sujeitos, através dos relatos, nos suscitou a seguinte pergunta: que reservas de sentido irrompem nas enunciações dos sujeitos ao narrarem suas vidas de formação, nas quais se integram a vida familiar, os processos de escolarização, o trabalho? Tal pergunta favorece a apreensão de discursos que se entrecruzam na constituição da formação destes sujeitos, que se deslocam para os domínios de uma política de formação de professores. Esses deslocamentos ou reservas de sentido alcançam visibilidade nas referências dos sujeitos a espaços-tempos que remontam a dimensões culturais, econômicas, sociais etc. propiciadoras de melhor compreensão e reconfiguração de trajetos formativos, embora nem sempre contempladas pelas políticas públicas de formação.

1 O relato autobiográfico1 1 Relatos, relatos autobiográficos, narrativas, narrativas de vida são aqui assumidos como termos intercambiáveis, embora haja formulações conceituais que considerem suas distinções. : uma prática discursiva do espaço e do tempo

Todo lugar ‘próprio’ é alterado por aquilo que, dos outros, já se acha nele.

De Certeau, 1994DE CERTEAU, M. Invenções do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Pereira Alves. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994., p.110

Para a apreensão dos acontecimentos que os relatos autobiográficos produzem em seu funcionamento discursivo, elegemos como entrada teórica e metodológica as coordenadas espaço-temporais que, marcadas na linguagem, não se confundem com lugares empíricos no mundo nem com um tempo cronológico, numa relação direta entre as palavras e as coisas. Os discursos materializados em espaços-tempos remetem a acontecimentos discursivos, temporalidades históricas que se constituem na dialogia entre sujeito, linguagem e história.

O fenômeno da temporalidade-espacialidade já foi largamente tratado no campo da filosofia, da história, da linguística. Bakhtin (2000aBAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000a, p.3-192.; 1998)_______. Formas de tempo e de cronotopo no romance (ensaios de poética histórica). In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et al. 2. ed. São Paulo: Editora da UNESP/Huicitec, 1998, p.211-362., na sua arquitetônica das relações dialógicas, explorou densamente as noções de espaço-tempo a partir dos conceitos de exotopia e cronotopia, enfatizando o princípio da alteridade e do inacabamento do sujeito, de pontos de vista posicionados nas interações. De acordo com Geraldi (2010)GERALDI, J. Sobre a questão do sujeito. In: De PAULA, L.; STAFUZZA, G. (Orgs.) Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010, p.279-292., nos estudos bakhtinianos, “Talvez, as melhores fontes para pensar o tempo sejam os estudos das obras de Dostoiévski e Goethe, particularmente porque levam à historicidade também do espaço, pela elaboração do conceito de cronotopos”. (GERALDI, 2010GERALDI, J. Sobre a questão do sujeito. In: De PAULA, L.; STAFUZZA, G. (Orgs.) Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010, p.279-292., p.290). Observa o autor, entretanto, que é em Para uma filosofia do ato que Bakhtin postula a temporalidade da vida humana definida pelas possiblidades que a interação oferece, de modo que há “no pensamento bakhtiniano do sujeito datado um entrelaçamento entre passado, presente e futuro que se realizam concretamente num espaço historicizado pelo tempo” (GERALDI, 2010GERALDI, J. Sobre a questão do sujeito. In: De PAULA, L.; STAFUZZA, G. (Orgs.) Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010, p.279-292., p.291).

Com os conceitos de cronotopia e exotopia, Bakhtin propõe o dimensionamento do tempo pelo espaço. Nas palavras de Machado (2010)MACHADO, I. A questão espaço-temporal em Bakhtin: cronotopia e exotopia. In: De PAULA, L.; STAFUZZA, G. (Orgs.) Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010, p.203-234. ,

Assim como o espaço dialógico se manifesta pela exotopia daquilo que excede o campo de visão dos agentes envolvidos, o tempo dialógico só pode ser entendido pelas temporalidades plurais e simultâneas que são projetadas nesse espaço (MACHADO, 2010MACHADO, I. A questão espaço-temporal em Bakhtin: cronotopia e exotopia. In: De PAULA, L.; STAFUZZA, G. (Orgs.) Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010, p.203-234. , p.208).

O conceito de cronotopo, pelo equilíbrio que ele oferece para a relação entre as dimensões de espaço-tempo, ajuda-nos a melhor apreender a articulação entre as coordenadas temporais e espaciais que se inscrevem nos relatos enquanto índices de remissões a discursos em circulação na sociedade. Indiciado na linguagem, o tempo pode indicar expectativas do sujeito em relação a lugares, não propriamente lugares físicos, mas a condições históricas, projeções de vida, expectativas individuais e coletivas.

Tal abordagem da relação dialógica entre espaço-tempo opõe-se a uma concepção de espaço e tempo enquanto realidades absolutas. Para Bakhtin (2000a)BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000a, p.3-192., essas duas realidades são definidas não no seu plano físico, mas por uma postura axiológica orientada por condições históricas e culturais, configuradas e reconfiguradas semioticamente, enquanto produtoras de sentido. O ato de narrar o mundo como possibilidade de criar espaços-tempos não diz respeito a um retorno cognitivo ao vivido, no sentido psicológico da lembrança. A memória opera sempre numa ótica de valores e de acabamento. Por isso, para Bakhtin, no relato sobre a vida, o que mais importa não é o apanhado material e completo sobre o vivido, mas o valor axiológico que permite o acabamento estético da minha vida ou da vida do outro. Nas palavras do autor,

É nesse sentido que o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, da sua visão e da sua memória; memória que o junta e o unifica e que é a única capaz de lhe proporcionar um acabamento externo. Nossa individualidade não teria existência se o outro não a criasse. A memória estética e produtiva: ela gera o homem exterior pela primeira vez num novo plano da existência (BAKHTIN, 2000aBAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000a, p.3-192., p.55).

Afastando-se de concepções que trazem como pressuposta uma concepção de sujeito detentor de pleno domínio do vivido narrado, Bakhtin (2000a)BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000a, p.3-192. adverte que o sujeito não se torna narrador de sua vida porque conhece a totalidade, mas porque traz os valores do mundo e estes entram na narrativa como uma forma de estruturar o mundo.

Desta perspectiva de conceber o narrar de si, prevenimo-nos contra qualquer investida teórica na individualidade do sujeito enquanto “senhor de si”, mesmo defendendo que o sujeito singulariza-se face aos determinantes das condições sócio-históricas mais amplas. Ainda assim, a singularidade tem as ‘marcas’ da plurivocidade de acentos valorativos oriundos de diferentes esferas sociais, de diferentes interações humanas. As ações do sujeito, no mundo da cultura, são marcadas discursivamente por índices da grande temporalidade de que fala Bakhtin (2000b, p.410)_______. Observações sobre a epistemologia das Ciências Humanas. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000b, p.399-414.: um tempo compreendido “num espaço móvel, inacabado e não dado de uma vez por todas’’ (MACHADO, 2010MACHADO, I. A questão espaço-temporal em Bakhtin: cronotopia e exotopia. In: De PAULA, L.; STAFUZZA, G. (Orgs.) Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010, p.203-234. , p.223), mas constituído na relação com o acontecimento das coisas em dados espaços.

Embora compreendamos que o conceito de cronotopo faz referências a posições axiológicas, no mundo e no grande tempo da cultura, em que se colocam como questão fundamental as relações que se plasmam no tempo e no espaço, é preciso não perder de vista, como propõe Machado (2010)MACHADO, I. A questão espaço-temporal em Bakhtin: cronotopia e exotopia. In: De PAULA, L.; STAFUZZA, G. (Orgs.) Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010, p.203-234. , que a narrativa também deve ser compreendida como ambiente de transformação do tempo e do espaço. Tal postulação se mostra produtiva para uma análise que pretende captar da semiose verbal as referências construídas nas relações espaço-tempo, em relatos de vida pessoal e coletiva.

As noções de tempo e de espaço, ainda que em perspectivas teóricas distintas, são também problematizadas por De Certeau (1994)DE CERTEAU, M. Invenções do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Pereira Alves. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994., sejam aquelas inscritas em uma prática de relato de ficção, sejam aquelas que remetem a relatos do mundo vivido. Numa abordagem das práticas ordinárias do sujeito, o autor admite que estas se encontram no domínio de um complexo de procedimentos identificados como um funcionamento do discurso. Ao referir-se aos estudos que evidenciam as formas de organização dos procedimentos da “vigilância” no século XIX, investigadas por Foucault, De Certeau (1994)DE CERTEAU, M. Invenções do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Pereira Alves. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. adverte que a sociedade não é formada apenas de práticas institucionalizadas. Embora não participem da organização institucional de um discurso, as práticas silenciosas conservam primícias ou restos de hipóteses (institucionais, científicas) que não entram na lógica das estruturas institucionais. (De CERTEAU, 1994DE CERTEAU, M. Invenções do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Pereira Alves. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.). Defende o autor que é no domínio da “silenciosa reserva” que as práticas consumidoras deveriam ser apreendidas enquanto organizadoras de espaços e tempos. A nova lógica de otimização tecnológica do século XIX descartou das práticas ordinárias os processos de singularidade, substituindo-os pela precisão e “aperfeiçoamento” da racionalidade técnica. Nessa nova ordem, o saber e o fazer das práticas cotidianas foram remetidos a um saber intuitivo, indefinido, subjetivo, desprovido de legitimidade.

Em contraposição à lógica da racionalidade técnica, De Certeau (1994, p.142)DE CERTEAU, M. Invenções do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Pereira Alves. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. considera que os relatos constituem um espaço em que as práticas cotidianas encontram indícios de expressão dos murmúrios das “singularidades”, das micro-histórias desprovidas da assinatura da ciência. Sendo assim, em vez do estatuto residual atribuído às narratividades, De Certeau formula como questão heurística a hipótese de que “uma teoria da prática do relato é indissociável de uma teoria das práticas, como a sua condição ao mesmo tempo que sua produção” (De CERTEAU, 1996, p.153). Para o autor, a memória mediada pelo relato desloca o tempo para o espaço cujo efeito é de distorção, alteração entre o vivido e o representado.

A memória mediatiza transformações espaciais. Segundo o modo de “momento oportuno” (kairós), ela produz uma ruptura instauradora. Sua estranheza torna possível uma transgressão da lei do lugar. Saindo de seus insondáveis e móveis segredos, um golpe modifica a ordem local [...] Mas essa mudança tem como condição os recursos invisíveis de um tempo que obedece a outras leis e que, por surpresa, furta alguma coisa à distribuição proprietária do espaço. (De CERTEAU, 1994DE CERTEAU, M. Invenções do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Pereira Alves. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994., p.161; grifo do autor).

A memória, concebida por De Certeau como resultante de forças históricas, articula e organiza tempo-espaços, sob o jogo múltiplo da alteração e sempre tocada pelas circunstâncias.

2 O papel da dêixis discursiva na configuração e reconfiguração de espaços-temporalidades

Maingueneau (1997)_______. Novas tendências em análise de discurso. Campinas, SP: Pontes, 1997. denomina o processo de manifestação das coordenadas espaço-temporais de dêixis discursiva e aponta para a distinção fundamental entre as coordenadas espaço-temporais oferecidas pelo sistema da língua na sua referência ao locutor, espaço e tempo implicados na enunciação (eu-tu-aqui-agora) e a dêixis discursiva que, tal como define o autor, aponta para sentidos que não se manifestam no nível do sistema da língua, mas no universo de sentidos constituído pelas regras semânticas de uma formação discursiva. Nesta formulação conceitual, as três instâncias da dêixis (locutor e o destinatário, cronografia, e topografia) não têm correspondência direta com um número de designações no texto, ou seja, nem sempre as instâncias do locutor, do destinatário, da cronografia e da topografia possuem termos específicos e distintos que lhes correspondam. Há casos em que um mesmo nome recobre todas essas instâncias.

Tratando de um fenômeno cuja semântica global é apreendida no domínio da memória discursiva (interdiscurso) e da enunciação (MAINGUENEAU, 1984MAINGUENEAU, D. Gèneses du discours. Bruxelles: Mardaga, 1984.), a dêixis discursiva tem se apresentado como um conceito operacional produtivo na apreensão da relação constitutiva entre interdiscurso e intradiscurso. Maingueneau (1997)_______. Novas tendências em análise de discurso. Campinas, SP: Pontes, 1997. demonstra, em suas análises, que o fenômeno da dêixis discursiva, marcado nas coordenadas espaço-temporais, constitui uma primeira dimensão de acesso à cenografia mais imediata instituída pela formação discursiva. Numa outra dimensão se situa a dêixis fundadora que deve ser entendida como o já-dito, discursos interiores que oferecem legitimidade à dêixis atual.

Esta formulação produz o deslocamento da enunciação de uma conjuntura história e de um espaço exteriormente determináveis para a cena que a enunciação ao mesmo tempo produz e pressupõe para se legitimar. Maingueneau (1997, p.69)_______. Novas tendências em análise de discurso. Campinas, SP: Pontes, 1997. nomeia de “enlaçamento” a inextrincável relação existente entre coerções enunciativas e práticas institucionais, de modo que a geografia do texto coincide com a formação discursiva que o verbaliza, refletindo a própria enunciação.

Ao tratar do sujeito e do lugar de enunciação, Maingueneau observa que, para a Análise de Discurso, todo sujeito é correlato de um conjunto de coordenadas no tempo e no espaço.

Embora formulada em perspectivas distintas, o tratamento teórico dispensado às categorias espaço-tempo pelos três autores, amplia a possiblidade de melhor apreensão de discursos que os relatos colocam em circulação. É possível dizer que o traço comum ao conceito de espaço-tempo, nas três abordagens, é a força operacional que tal conceito propicia na apreensão das interdiscursividades.

As análises a seguir procuram apreender nos discursos índices de remissão a pessoas-espaços-tempos cujo movimento produz o efeito de transformação dos lugares, a partir de uma bricolagem do espaço-tempo (CERTEAU, 1994DE CERTEAU, M. Invenções do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Pereira Alves. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.) cujas possibilidades são fornecidas num encontro fortuito do ato de narrar com as condições históricas de produção da narrativa.

3 Discursividades inscritas em diferentes temporalidades

Tomando a trajetória familiar e o percurso formativo escolar como trajetos temáticos (GUILHAUMOU, 2009GUILHAUMOU, J. Linguística e história: percursos analíticos de acontecimentos discursivos. Trad. Roberto Leiser Baronas e Fábio César Montanheiro. São Carlos, SP: Pedro &João Editores, 2009.) de reorganização da memória dos professores, observa-se que os relatos destes sujeitos trazem em sua materialidade linguística algumas especificidades dos percursos de formação docente, em uma região da Amazônia, especificidades que decorrem de representações sobre a própria condição de vida dos professores e de seus familiares. Elegemos três trajetos temáticos como estratégia metodológica de apreensão dos procedimentos discursivos dos relatos, observando, com Guilhaumou (1997)GUILHAUMOU, J.; MALDIDIER, D. Efeitos do arquivo: a análise do discurso no lado da história. In. ORLANDI, E. (Org.) Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997, p.163-188, que a opção por trajetos temáticos não remete

[...] nem à análise temática, tal como é praticada pelos críticos literários, nem aos empregos que dela se faz na linguística. Essa noção supõe a distinção entre ‘o horizonte de expectativas’ - o conjunto de possibilidades atestadas em uma situação histórica dada - e o acontecimento discursivo que realiza uma dessas possiblidades (p.163-185).

Nesse sentido, os relatos autobiográficos2 2 Lembramos que, neste trabalho, relatos autobiográficos, histórias de vida, narrativas de vida são termos intercambiáveis. constituem espaços de produção de sentidos que remetem a acontecimentos que não são da ordem de um fazer empírico no mundo, mas de efeitos de sentido produzidos na relação entre o que é da ordem da linguagem e da ordem histórica. Dessa perspectiva, a memória recortada na história é “tocada pelas circunstâncias como o piano que ‘produz’ sons ao toque das mãos” (De CERTEAU, 1994DE CERTEAU, M. Invenções do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Pereira Alves. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994., p.163).

Nos três subitens seguintes, tratamos das narrativas inscritas em três trajetos temáticos.

3.1 Efeitos de disjunção espaço-tempo: a história dos pais inscrita nos relatos docentes

Interessam-nos, aqui, como foco de análise, os discursos que colocam em funcionamento a relação espaços-tempos concernente à vida dos pais dos professores em formação, particularmente a sequência trabalho-escolarização. Ao relatar a vida dos pais, no que concerne à relação trabalho-escolarização, os sujeitos trazem em seus discursos processos de exclusão que parecem ser a realidade não apenas de uma geração, mas também das gerações futuras, por exemplo, os filhos que, paradoxalmente, exercem a profissão docente, como veremos em outros enunciados a seguir.

  1. Minha mãe [...], nascida na cidade de Cametá, na sua infância não frequentou escola, devido seus pais morar longe, não tinha meios de transporte até a escola, e também por começar a trabalhar cedo na lavoura, para ajudar em casa. Minha mãe é analfabeta, aos 16 anos ela se casou com C., que também trabalhava como agricultor. C. não tinha estudo, mas sabia assinar seu nome. Ambos foram criados com muita dificuldade. (A.)

  2. [...] minha mãe conta que era muito difícil o acesso a escola devido eles serem de família simples e humilde, ambos [a mãe e o pai] não tiveram muita oportunidade de estudar, de modo que ela fez apenas a 2ª série e meu pai a 3ª série, as dificuldades eram muitas e o lugar era de difícil acesso, por esse motivo faltou oportunidade para que eles tivessem um grau de escolaridade maior. (C. Q.)

  3. Minha mãe é natural da cidade de Bacabal no Maranhão, na infância não teve muita oportunidade de estudar. Porque tinha que ajudar seus pais adotivos na lavoura, porém na idade adulta ela concluiu a 8º série. (F.)

Numa remissão a tempo e a espaço, simultaneamente, os discursos veiculados nos recortes 1, 2 e 3 remetem a condições históricas que modificam dois pares de temporalidades3 3 De acordo com Sousa Santos (2005, p.194), “A sucessão de tempos é também a sucessão de espaços que percorremos e nos percorrem, deixando em nós as marcas que deixamos neles”. que, nos discursos do Estado de direito, estão necessariamente unidas: escola-trabalho; escola-infância. Trabalho e escola constituem a série espacial que, relacionada com a infância, modifica a relação supostamente necessária. Ou seja, se os discursos oficiais afirmam em seus ordenamentos legais a relação entre infância e educação, nos discursos dos professores esta relação é suspensa, apresentando-se como incompatível e excludente. As coordenadas tempo (infância) e espaço (escola) se relacionam, mas, sob o efeito da negação ou da exclusão de um pelo outro. Por outro lado, combina-se o par infância e trabalho, como forma de justificar a separação produzida no par infância-escola. Assim, tempo e espaço se articulam na produção de sentidos (de junção ou disjunção) que remetem tanto às condições históricas dos sujeitos que narram, permitindo-lhes operar “recortes na memória”, quanto à realidade educacional imposta a uma parcela da população brasileira. As marcas do tempo descobrem-se no espaço, sob o efeito da escansão: “Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo” (BAKHTIN, 1998_______. Formas de tempo e de cronotopo no romance (ensaios de poética histórica). In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et al. 2. ed. São Paulo: Editora da UNESP/Huicitec, 1998, p.211-362., p.211).

Detendo-nos nos enunciados: em 1, a infância, funcionando como a metáfora temporal, se inscreve na espacialidade escolar sob o efeito da interdição, ao mesmo tempo que aciona o discurso fundador (MAINGUENEAU, 1997_______. Novas tendências em análise de discurso. Campinas, SP: Pontes, 1997.) de um Estado de direito, em que a educação é anunciada como direito de todas as pessoas e de responsabilidade do Estado4 4 “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA, 1988, Art. 2015). . No entanto, a negação da garantia do direito (na sua infância não frequentou a escola) produz um deslocamento no discurso oficial, mostrando-o no seu avesso, expondo as fraturas que estão na base das contradições de uma sociedade de exclusão.

Essa disjunção discursiva e histórica é reacomodada, na sequência do discurso, sob o efeito da ideologia que produz no sujeito a ilusão de que é livre, de modo que todos os males sociais recaem sobre a sua própria responsabilidade: “[...] devido seus pais morar longe; não tinha meios de transporte até a escola; por começar a trabalhar cedo na lavoura, para ajudar em casa”. Os indicadores de relações lógico-semânticas, em cada enunciado (devido, por, para), atestam no funcionamento discursivo o efeito de causalidade, indicando que morar longe da escola, não possuir transportes e trabalhar na lavoura são a causa de os pais não terem acesso ã educação durante a infância, quando, na verdade, essas condições já são efeitos de negação de direitos. Da mesma forma que a mãe, o pai, ao ser posicionado no espaço-tempo vivencial, tem também a escola como o cronotopo negado (não tinha estudo) e o trabalho no campo como o cronotopo justificador da negação (“que também trabalhava como agricultor”).

Em 2, a infância é a temporalidade que também se apresenta, em parte, negada, no que concerne à relação desejada entre infância e escola. Tanto o pai quanto a mãe são representados no relato de C. como impedidos do acesso à escola, quando crianças. A articulação entre temporalidade e espacialidade (infância-escola) e as próprias condições de vida (“devido eles serem de família simples e humilde, ambos [a mãe e o pai] não tiveram muita oportunidade de estudar”) apresentam-se como barreiras impeditivas de frequentar a escola. Nesse arranjo discursivo, há um jogo ambíguo a partir do qual o argumento do sujeito da narrativa pode se encaminhar para duas dêixis fundadoras possíveis: i) o discurso oficial, no seu avesso, uma vez que se textualiza nos relatos a negação da educação enquanto direito de todos e dever do Estado e ii) um discurso do senso comum em que prevalece a aceitação de que a condição de pobreza seja mesmo barreira impeditiva do acesso dos pais à escolarização. Esta segunda possiblidade incorreria numa posição de conformismo, um efeito da ideologia, uma vez que as difíceis condições de vida dos pais já são efeito do processo histórico de exclusão e não causa desta, como se poderia imaginar.

Em 3, as experiências de vida dos pais também se forjam na temporalidade da infância. O tempo é transformado pela não coincidência entre infância e escola - esta, projetada nos discursos como a grande temporalidade. A escola, enquanto elemento desta grande temporalidade, compõe os valores e ideais dos pais que a vêm como um campo de possiblidades para os filhos, apesar de todo o processo de exclusão enfrentado tanto no que concerne ao acesso quanto à permanência. Neste relato, como nos dois anteriores, se a escola constitui uma matriz espacial que mobiliza nas representações dos sujeitos um lugar negado, outra espacialidade se insere como não coincidente com o mundo escolar, que é a espacialidade representada pelo trabalho e vida do campo. Neste discurso, o tempo dos sujeitos que têm a produção da existência no campo - seja porque sempre tiveram o campo como lugar de produção da vida, seja porque, sem condições de vida na cidade, encontraram no campo possibilidades de sobrevivência, se transforma em um tempo reduzido pela espacialidade. Em outras palavras, as projeções desses sujeitos se limitam à questão do trabalho enquanto meio de sobrevivência. Nos discursos dos sujeitos há duas alternativas apenas: ou trabalham no campo sem a garantia de acesso à escola, ou abandonam o trabalho e o campo em busca de acesso à escola, na cidade. A decisão por uma ou outra alternativa altera a relação espaço-tempo projetada nos discursos.

Assim, nos relatos de professores, destacam-se representações de temporalidades contraditórias: os pais não usufruíram da unidade campo-escola-trabalho e esta emerge nos relatos dos filhos, hoje professores da escola básica, como uma ausência que resvala para suas histórias de formação atuais. Esta negação não contingente produz efeitos negativos na formação destes professores, como veremos em outros enunciados a seguir.

3.2 Experiências temporais reorganizadoras de espacialidades

Os excertos 4 e 5, a seguir, expressam a reorganização do espaço pelo tempo, ou seja, o tempo avança impulsionando a alteração de lugar: a negação do acesso à escola se atualiza na infância dos filhos, o que evidencia uma situação não contingente, mas uma realidade que afeta diferentes gerações. Face a esta realidade, os pais se deslocam de um lugar a outro em busca de condições de vida favoráveis à escolarização dos filhos.

  • 4. Com o passar do tempo os filhos foram crescendo e surge a necessidade de colocar os filhos pra estudar, ficar no sitio não era mais possível, mas como era só uma filha que estava com sete anos, dava de colocar na casa da avó durante a semana, e os finais de semana minha irmã mais velha chamada de M. voltava pra casa. No ano seguinte surge outro problema teria minha outra irmã que também deveria ir à escola, aí nesse momento não teve jeito, foi aí que meu pai resolveu comprar uma casa na cidade, já que ele tinha um propósito que todos os filhos teria que estudar. (F.)

  • 5. Com o passar dos anos nasceram seus três filhos e como já estavam ficando com a idade de estudar resolveram mudar para Nazaré dos Patos porque a escola, nessa comunidade, as séries eram até a oitava, Dois filhos mais velhos foram para cidade a dar continuidade nos seus estudos, a primeira filha terminou o ensino médio na cidade e o segundo estudou até a oitava depois seus dois filhos voltaram a morar com seus pais, e continuaram seus estudos no campo junto com seus pais. (M. S.)

Nas análises das práticas de lugares, De Certeau (1994)DE CERTEAU, M. Invenções do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Pereira Alves. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. refere-se a sujeitos sem um lugar próprio, situados, portanto, nas margens das esferas institucionais. É o que se pode apreender, também, dos relatos 4 e 5, uma vez que, neles, o que se verifica é que o tempo incide nas projeções dos pais dos sujeitos da narrativa como um elemento dimensionador das ações (“com o passar do tempo, com o passar do anos; o tempo passou”) e reorganizador de espaços, uma vez que a fase escolar dos filhos e a ausência de escolas na comunidade se constituem como referências espaço-temporais com base nas quais as famílias decidem deslocar-se de uma localidade para outra em busca de educação formal para os filhos.

Assim, os pais que, nos relatos 1, 2 e 3, não tiveram acesso à escola, pela história de exclusão social, nos enunciados 4 e 5, são narrados como sujeitos que passam a enfrentar novas temporalidades, agora com a infância dos filhos (os próprios professores que narram). Estes, assim como os pais quando crianças, também se encontram quase impedidos de chegar à vida escolar porque ainda prevalece no cenário das políticas públicas brasileiras uma concepção de campo sem pessoas, portanto, um lugar de excluídos de serviços sociais, como a educação. Apesar das condições historicamente impostas, é possível apreender, nos relatos 4 e 5, um movimento discursivo que se materializa como processos de resistência através dos quais os pais subvertem temporalidades e as fazem sobrepor-se ao espaço determinado pelas condições históricas orientadoras das relações espaço-temporais: “aí nesse momento não teve jeito, foi aí que meu pai resolveu comprar uma casa na cidade; nasceram seus três filhos e como já estavam ficando com a idade de estudar resolveram mudar para Nazaré dos Patos”. Como nos relatos 1, 2 e 3, verifica-se em 4 e 5, o funcionamento da dêixis discursiva impulsionadora de temporalidades marcadas nos indicadores temporais (“aí nesse momento; foi aí que meu pai; ficando com a idade de estudar”). Trata-se de um discurso que se ancora em vozes do senso comum, este orientado pelo discurso oficial, no que se refere ao ingresso à escola na idade certa. No entanto, diferentemente dos relatos 1, 2 e 3 - em que a temporalidade (fase escolar) não avança para a espacialidade positivamente projetada (acesso à escola) porque os pais não têm qualquer possiblidade de frequentar a escola na fase infantil ou na juventude-, em 4 e 5 tem-se, na tensão espaço-temporal, a busca incessante dos pais por escola para os filhos.

Portanto, prevalece nos relatos 4 e 5 o sentido de urgência que leva os sujeitos a avançarem temporalidades em direção a outros lugares. Lembra-nos Sousa Santos que “O sentimento de urgência é o resultado da acumulação de múltiplas questões na mesma hora e lugar. Sob o peso da urgência, as horas perdem minutos e os lugares comprimem-se” (2008, p.190). As formas verbais colocar, resolver e foram indiciam mudanças de atitude, tomadas de decisões impelidas pelas adversidades que lhes são impostas (“colocar os filhos pra estudar”; “colocar na casa da avó durante a semana”; “resolveu comprar uma casa na cidade”; “resolveram mudar para Nazaré dos Patos”; “foram para cidade”). As tomadas de decisões marcadas nas formas linguísticas colocar pra estudar; colocar na casa da avó; resolveu comprar; resolveu mudar sugerem a reorganização do espaço e do tempo. De acordo com De Certeau (1994)DE CERTEAU, M. Invenções do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Pereira Alves. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994., trata-se de práticas organizadoras de espaços que, ao serem narradas, produzem “geografias de ações” que traduzem as experiências dos sujeitos no mundo. “Os relatos efetuam, portanto, um trabalho que, incessantemente, transforma lugares em espaços ou espaços em lugares. Organizam também os jogos das relações mutáveis que uns mantêm com os outros”. (De CERTEAU, 1994DE CERTEAU, M. Invenções do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Pereira Alves. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994., p.203). Dessa forma, a temporalidade captura e reorganiza as ações espaciais, coordenando mudanças, produzindo sentidos mobilizados num movimento tenso de resistências que atuam como acontecimentos na linguagem e na história. Mesmo sofrendo as adversidades históricas, os sujeitos dão o golpe da ocasião (De CERTEAU, 1994DE CERTEAU, M. Invenções do cotidiano: 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Pereira Alves. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.) no momento em que os filhos atingem a idade escolar.

3.3 A formação docente: dêixis orientadora de diferentes espaço-temporalidades

Neste item, destacamos, nos relatos dos docentes, sentidos que remetem à profissão docente, com ênfase no funcionamento discursivo marcado nos processos de identificação, também eles inscritos em coordenadas espaço-temporais. Discursos socialmente já formulados sobre a docência orientam posições enunciativas dos sujeitos ao tomarem a profissão como objeto de seus discursos.

  • 6. Finalmente conclui o Ensino Médio no ano de 1997, fiz a minha formatura que tanto esperava. Depois de dois anos tive oportunidade de trabalhar pela primeira vez como professora de 1ª. a 4ª. série do Ensino Fundamental, na cidade de Breu Branco, onde fiz o 1º. Concurso Público. Concluí o nível superior em Pedagogia no ano de 2004, esse momento foi o mais esperado, lembro-me que meu pai chorou quando me viu vestida na Beca. (A.)

  • 7. Passaram-se alguns anos e com muitas dificuldades consegui concluir o primeiro grau, foi importante para mim, fui convidado para substituir uma professora, a turma era multisseriada, fiz um teste e passei. Quando comecei a lecionar, surgiu a oportunidade de cursar o Magistério me tornando um educador. (C. A.)

  • 8. O início de minha vida no magistério, não era o que almejava para minha vida profissional, mas foi o que apareceu e mesmo sem preparo aceitei o desafio, e passei a espelhar-me nos meus professores, tentava copiar suas ações e com essas atitudes sei que prejudiquei muitas vidas. Pois a prática de meus professores se repetia nas minhas, com exceção de castigos e palmatórias. (S.)

  • 9. [...] houve um intervalo de alguns anos fiquei sem trabalho, mesmo com estudo completo as oportunidades eram poucas, foi quando minha mãe pediu que eu passasse provas para seus alunos, devido a uma doença que ocasionou problemas com suas cordas vocais, isso no ano de 1998 e fui trabalhar como professor substituto. No ano de 1999 comecei estudar o Magistério e trabalhar com a 2ª série e no ano de 2001 concluí meu curso. Com isso entrei na profissão de professor não por opção, mas por necessidade. (C.)

Passando do relato para a prática discursiva, no processo de constituição da memória, duas dimensões da trajetória de formação dos professores parecem estar na base dos enunciados 6, 7, 8 e 9: o próprio percurso de formação até a universidade e a (não) escolha da profissão. Em 6, textualizam-se sentidos de finalização e de alcance de expectativas em relação à formação escolar (finalmente; tanto esperava). Em 7, há também índices temporais que remetem a expectativas, em relação à conclusão de etapas da escolarização (“passaram-se alguns anos”; “consegui concluir o primeiro grau”). No entanto, esses índices de temporalidade nos orientam à busca de “outras” palavras aí não textualizadas, mas que, na ausência, produzem outros sentidos, uma vez que um discurso diz para não deixar que outro seja dito com outras palavras.

Os relatos 6 e 7, ancorados no tempo da formação, dizem mais do que expectativas dos sujeitos quanto à conclusão das etapa de estudos. Neles estão inscritos, sobretudo, discursos que traduzem as condições históricas de formação numa dada conjuntura. Se os pais viveram um momento histórico em que lhes foi terminantemente negado o acesso à escolarização, os filhos vivem numa conjuntura em que, apesar de terem acessado a escolarização, esta ainda não se efetiva como pleno direito. A expectativa de comprimir o tempo com a finalização dos estudos se reveste da maior importância nesses discursos, possivelmente porque a formação docente se coloca no horizonte discursivo desses sujeitos como a única possibilidade de trabalho no lugar em que vivem. No entanto, tal expectativa nem sempre é facilmente materializada com a formação: “Depois de dois anos tive oportunidade de trabalhar pela primeira vez como professora”. O marcador temporal depois de dois anos expressa a duração da expectativa de trabalho após concluídos os estudos.

Vale destaca ainda, no relato 7, a aparente contradição a que estão expostos os processos de formação dos professores. O sujeito que diz ter concluído o ensino fundamental com muitas dificuldades, também reconhece que a docência foi uma forma de garantia de conclusão do ensino médio. Ora, numa região em que o nível de escolarização nem sempre é a principal exigência para que uma pessoa assuma a profissão docente, justamente pelo difícil acesso à formação inicial, uma vez assumido o trabalho, este passa a significar a possibilidade de dar continuidade aos estudos em serviço, até mesmo por exigências não propriamente do professor. Numa sociedade em que a cada dia o “mercado de trabalho” demanda novos perfis de profissionais, a formação em serviço passa a atender a uma nova ordem que não tem, necessariamente, a dimensão humana como centralidade, mas a instrumentalização que se renova de acordo com as necessidades externas e com novos dispositivos de subjetivação do professor.

Os relatos 8 e 9 colocam em cena justamente a questão da (não) escolha profissional, de modo que a assunção da profissão docente passa pela falta de perspectivas profissionais. Os dois enunciados traduzem esse sentido: “O início de minha vida no magistério, não era o que almejava para minha vida profissional; houve um intervalo de alguns anos fiquei sem trabalho, mesmo com estudo completo as oportunidades eram poucas [...]. Com isso entrei na profissão de professor não por opção, mas por necessidade”. Nesse discurso é possível apreender a não identificação do sujeito com a profissão. A busca de melhores condições de vida é que impulsiona a entrada na docência, realidade muito presente nos relatos dos professores. Nos dois últimos relatos, as primeiras experiências neste campo profissional remetem a situações fortuitas, como a única oportunidade de trabalho (“mas foi o que apareceu e mesmo sem preparo aceitei o desafio; fui trabalhar como professor substituto”). Nesse discurso, o sentido da profissão se reveste de provisoriedade (“o que apareceu”; “professor substituto”), o que evidencia, também, como a docência, no contexto das políticas públicas brasileiras, tem enfrentado tempos paradoxais: se, por um lado, as reformas educacionais ampliaram as modalidades de formação do professor, por outro, a profissionalização dos professores não tem levado em conta as condições históricas, culturais, políticas e sociais em que a profissão é exercida (LIBANEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2003LIBÂNEO, J.; OLIVEIRA, J.; TOSCHI, M. Educação escolar: políticas, estrutura e organização. São Paulo: Cortez, 2003.).

Os sentidos da profissão veiculados nos relatos apontam para a complexidade que envolve o constituir-se professor. Além de desprestígio social, salários aviltantes, difíceis condições de trabalho, deve-se levar em consideração as representações que os sujeitos produzem sobre a profissão a partir das condições históricas que envolvem não apenas a formação escolar, mas a vida, o universo cultural e discursivo em que se forjam sentidos da profissão. As análises apontam para a necessidade de novas interrogações sobre a relações saber-poder a partir de como os tempos da formação e da docência são discursivamente relocalizados no espaço-tempo, indiciando metáforas de enquadramento da memória na história.

Conclusão

Lembra-nos Pollak (1989)POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos. Rio de Janeiro, vol.2, n.1989, p.3-15. que as histórias de vida reconstroem a história e ordenam acontecimentos. Esta percepção está na base de nossas análises ao procurarmos apreender sentidos produzidos nas narrativas dos sujeitos em formação, considerando os gestos narrativos como formas de interpretar o mundo a partir de condições dadas. Nesse sentido, os relatos traduzem a gestão de um equilíbrio precário de contradições e tensões (POLLAK, 1989POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos. Rio de Janeiro, vol.2, n.1989, p.3-15.).

As categorias espaço-tempo se constituíram, no decorrer das análises, como entradas metodológicas importantes para chegarmos às práticas discursivas e apreendê-las nas relações dialógicas que colocam os sujeitos em contato com a história. Em nossas análises constatamos como espaço e tempo se unem ou se transformam, reorganizando sentidos orientados pelas condições históricas dos sujeitos produtores de linguagem.

Por esta via de análise, destacamos três trajetos temáticos configurados como modalidades de coordenadas espaço-temporais que tocam a história dos sujeitos na relação com o processo de formação: i) a temporalidade-espacialidade infância-escola e infância-trabalho que traz na materialidade dos discursos a inscrição da incomensurabilidade entre a vida no campo e o direito a questões básicas, como educação, por exemplo; ii) experiências temporais reorganizadoras de espacialidades, em que os sujeitos, face aos processos de exclusão social, resistem e reorganizam suas trajetórias de vida, no limite do caos; iii) a formação docente orientando novas temporalidades. Nesta terceira modalidade, as coordenadas espaço-temporais se voltam para a formação e exercício da profissão dos sujeitos da narrativa. Nessas coordenadas, se inscrevem efeitos de sentido que remetem a um movimento complexo da formação docente, trazendo a historicidade marcada de contradições próprias. A formação dos sujeitos é representada discursivamente por uma recorrência às condições de vida no campo, marcada de processos de exclusão desde a história dos pais, passando pelo acesso à universidade e chegando ao trabalho. Esses processos passam, inescapavelmente, pela formação e, por isso mesmo, devem ser tomados como componentes da própria formação inicial e continuada.

Os sentidos que movimentam as narrativas nos mostram que nenhum projeto de formação - no caso em estudo, a formação de professores - deve se instituir sem que se considerem as práticas discursivas dos sujeitos sobre sua trajetória individual e coletiva, uma vez que nela se inscrevem dimensões da vida política, econômica, cultural, educacional etc. que trazem implicações para a própria formação docente. Em se tratando de professores participantes de uma particular história de migração para uma região brasileira ainda marcada por processos de negação de direitos, suas práticas discursivas trazem índices desta trajetória e elas devem constituir bases de formação, considerando que nelas se forjam modos de constituir-se professor, de assumir a profissão, enfim, nas práticas discursivas se dá o movimento das identidades e da constituição de subjetividades que devem alimentar o próprio processo formativo.

  • 1
    Relatos, relatos autobiográficos, narrativas, narrativas de vida são aqui assumidos como termos intercambiáveis, embora haja formulações conceituais que considerem suas distinções.
  • 2
    Lembramos que, neste trabalho, relatos autobiográficos, histórias de vida, narrativas de vida são termos intercambiáveis.
  • 3
    De acordo com Sousa Santos (2005, p.194), “A sucessão de tempos é também a sucessão de espaços que percorremos e nos percorrem, deixando em nós as marcas que deixamos neles”.
  • 4
    “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA, 1988, Art. 2015).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2016
  • Aceito
    08 Nov 2017
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