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Comentário a “Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético”: de conceitos a perguntas, de perguntas a conceitos1 1 Este estudo foi financiado, em parte, pelo Programa Capes-PrInt da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES), código financeiro 001, processo 8881.310246/2018-1, e por Le Programme Cofecub, processo 88887.468340/2019-00.

Em “Para Velhas Perguntas, Novas e Melhores Respostas: da Engenharia Conceitual ao Aprimoramento Erotético”, André J. AbathABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023. propõe que devemos melhorar nossas respostas a questões do tipo “O que é um F?” Com tal proposta, Abath busca “[i]ntroduzir uma nova proposta no campo de pesquisa da ética conceitual.” A ética conceitual, enquanto campo de pesquisa, diz respeito às maneiras de os filósofos irem além da mera exposição daquilo que Goldman (1989GOLDMAN, A. I. Metaphysics, Mind, and Mental Science. Philosophical Topics, v. 17, n. 1, p. 131-145, 1989.) chama de ontologia folk, rumo a maneiras de avaliar e melhorar nossas representações do mundo e de nós mesmos - aquilo que Goldman denomina metafísica prescritiva, um campo de pesquisa que tem florescido nos últimos anos (THOMASSON, 2020THOMASSON, A. L. A pragmatic method for normative conceptual work. In: BURGESS, A.; CAPPELEN, H.; PLUNKETT, D. (ed.). Conceptual engineering and conceptual ethics. Oxford: Oxford University Press, 2020. p. 435-458.). Nas propostas usuais desse campo de pesquisa, os objetos a serem aprimorados são nossos dispositivos representacionais, sejam estes tomados por conceitos ou por palavras. Na proposta de Abath, são nossas respostas a perguntas do tipo o-que-é.

Abath focaliza o campo de pesquisa da ética conceitual, o qual envolve a avaliação dos nossos dispositivos representacionais (as palavras e os conceitos), mas também a intervenção, quando esses dispositivos não se adequam a nossos objetivos (coletivos e individuais) legítimos. Essa apresentação é valiosa, pois introduz os novatos ao tema, e está em conformidade com a compreensão-padrão e correta das pesquisas sobre ética conceitual e engenharia conceitual.

Abath motiva sua proposta de focar na melhoria de respostas a perguntas do tipo o-que-é no fato de que não há consenso, entre os pesquisadores da área da ética conceitual, sobre o que são conceitos. São abstracta? São significados? Representações mentais? Palavras? Essa falta de consenso é uma ameaça à área de pesquisa da avaliação e melhoria de dispositivos representacionais (a ética conceitual), pois não deixa claro o que é para ser melhorado.

Proponho, aqui, algumas questões:

  • Sobre a metafísica dos conceitos. Sem dúvida, há divergências nítidas e notáveis sobre a natureza dos conceitos. No entanto, é de se admitir que divergências sobre a metafísica dos conceitos não têm impedido os pesquisadores do campo da ética conceitual de ter conversas substantivas uns com os outros. Isso indica, creio, que a área de pesquisa da avaliação e melhoria de dispositivos representacionais lida bem com o pluralismo sobre a natureza dos conceitos.

  • Mudança de assunto? Além disso, poderia se objetar que trocar conceitos por respostas a perguntas do tipo o-que-é piora a situação, pois não diminui a babel em torno do conceito de conceito, mas diminui o foco nos dispositivos representacionais, o que pode vir a ser um risco para a área. Não seria interessante endereçar essa objeção para não enfraquecer a motivação para a proposta?

  • Uma questão verbal? Por fim, se a proposta de Abath está certa, então, a “ética conceitual” é misnamed, dado que não diz respeito a conceitos. Esta é uma dificuldade substantiva ou meramente verbal?

Outra questão é que o elemento reflexivo, ao se pensar sobre as respostas possíveis a perguntas do tipo o-que-é, naturalmente passa por conversas sobre conceitos. O próprio apelo de Abath à jogada da subscrição (CHALMERS, 2017CHALMERS, D. J. Disputas verbais. Sképsis, v. 15, p. 57, 2017.) revela isso. Logo, considere-se o seguinte diálogo:

“Onde fica o banco?”

“Fica na praça.”

“Mas, peraí, o que você quer dizer com ‘banco’? De sentar ou de pagar boleto?”

No exemplo acima, a melhoria da resposta à pergunta “Onde fica o banco?” passa pela questão do conceito empregado. Não creio que a conversa acima seja atípica. Meu ponto é que o aprimoramento erotético é uma alternativa, no sentido não exclusivo, à avaliação e melhoria de conceitos.

Abath compara a facilidade de mudar significados à facilidade de mudar respostas. Sem dúvida alguma, é mais claro o que é mudar (e melhorar) uma resposta do que mudar (e melhorar!) um conceito. Por um lado, não é claro como se faria para mudar o significado (extensão ou intensão) de um conceito, pois mecanismos semânticos são complexos. Por outro lado, é relativamente fácil detectar quando uma resposta deixa de responder a uma pergunta, quiçá porque mecanismos epistêmicos e psicológicos são mais fáceis de entender e manipular do que mecanismos semânticos. Este é, sem dúvida, um ponto a favor do aprimoramento erotético. Contudo, não se poderia usar melhores respostas para aprimorar conceitos? Pense-se no caso das baleias:

A pergunta. O que é uma baleia?

A melhor resposta. Uma baleia é um mamífero.

Essa resposta melhora o conceito de baleia.

De qualquer forma, o foco no jogo do perguntar e do responder é o elemento mais original e mais frutífero da proposta de Abath. Abath se propõe resgatar o projeto clássico de investigar o que as coisas são. Este é um projeto de Sócrates, o qual não cansava de pedir que as pessoas que têm posições firmes sobre algum F (a justiça, a virtude etc.) explicitassem o que elas entendiam sobre F. Esse projeto, que para Sócrates se limitava às coisas da moral, foi estendido por Platão para tudo, inclusive o ser. Não é claro, no entanto, de que tipo de projeto se trata. Qual o foco do aprimoramento erotético? Creio que é possível focar:

  • Em questões metafísicas, como “O que é um F?”

  • Em questões ontológicas, como “Como os Fs são conceitualizados na ontologia da população S?” (metafísica descritiva), ou “Como deveríamos conceitualizar os Fs (as baleias, por exemplo), à luz da biologia?” (metafísica prescritiva, como diria Goldman)

  • Em questões cognitivas, como “Como a população S conceitua os Fs?”

  • Em questões epistêmicas, como “Como um indivíduo da população S pode vir a saber o que é um F?”

No livro, Abath explora, antes de tudo, a via epistêmica. Abath (2022ABATH, A. J. Knowing what things are: an inquiry-based approach. Cham: Springer, 2022., p. 3) afirma que saber o que um tipo de coisa é saber responder (habilmente, legitimamente) à questão “O que é um F?” O foco no epistêmico tem sua razão de ser na importância de saber o que as coisas são. Nossa geração viu de perto as consequências de se ignorar o que é a COVID - e o quanto a negação do pouco que se sabia foi mortal. Este é um caso extremo, mas, mesmo para interagir bem com um gato, você tem que saber o que é um gato (ABATH, 2022ABATH, A. J. Knowing what things are: an inquiry-based approach. Cham: Springer, 2022., p. 1).

No livro, Abath defende que a proposta do aprimoramento erotético só funciona para os conceitos sociais não disputados, pois não é claro o que é conhecer um ente social, tal como o casamento, não é saber responder à pergunta “O que é o casamento?” apenas dizendo “Casamento é…” (ABATH, 2022ABATH, A. J. Knowing what things are: an inquiry-based approach. Cham: Springer, 2022., p. 77). Aqui se revela o ponto fraco da proposta do aprimoramento erotético. Eis minha crítica:

Por se apoiar no conhecimento (epistemologia), em vez de se apoiar no esquema conceitual que usamos para lidar com a realidade (ontologia), o aprimoramento não dá conta de uma parte significativa das perguntas do tipo o-que-é.

Aqui se mostra mais aguda a proposta de Thomasson (2020THOMASSON, A. L. A pragmatic method for normative conceptual work. In: BURGESS, A.; CAPPELEN, H.; PLUNKETT, D. (ed.). Conceptual engineering and conceptual ethics. Oxford: Oxford University Press, 2020. p. 435-458.), o qual propõe que se faça metafísica prescritiva sobre os aspectos da realidade que nos interessam, incluindo os aspectos sociais. Nessa proposta, o importante é avaliar se nossos conceitos estão de acordo com nossos interesses legítimos. A partir daí, avaliam-se as respostas às perguntas do tipo o-que-é.

Minha crítica, aqui, é que restringir a aplicação do esquema explicativo do aprimoramento erotético a espécies naturais é ad hoc. Abath sustenta que, no caso de certos entes sociais, as respostas às perguntas do tipo o-que-é podem nos parecer muitíssimo erradas (ABATH, 2022ABATH, A. J. Knowing what things are: an inquiry-based approach. Cham: Springer, 2022., p. 98). No entanto, este é o caso também para espécies naturais. A tese de que um átomo pode ser partido pareceu totalmente errada a vários cientistas de primeira linha, assim como a tese de que baleias são mamíferos.

A proposta de aprimoramento erotético para respostas a perguntas do tipo o-que-é relacionadas a entes sociais parece desmotivada, portanto. Melhor seria seguir o caminho de Thomasson e de tantos que reconhecem que o trabalho do metafísico prescritivo se dá no envolvimento em negociações metalinguísticas.

Referências

  • ABATH, A. J. Knowing what things are: an inquiry-based approach. Cham: Springer, 2022.
  • ABATH, André J. Para velhas perguntas, novas e melhores respostas: da engenharia conceitual ao aprimoramento erotético. Trans/Form/Ação: Revista de filosofia da Unesp, v. 46, Número especial “Filosofia Autoral Brasileira”, p. 103- 134, 2023.
  • BELLERI, D. Ontological disputes and the phenomenon of metalinguistic negotiation: Charting the territory. Philosophy Compass, v. 15, n. 7, jul. 2020.
  • CHALMERS, D. J. Disputas verbais. Sképsis, v. 15, p. 57, 2017.
  • GOLDMAN, A. I. Metaphysics, Mind, and Mental Science. Philosophical Topics, v. 17, n. 1, p. 131-145, 1989.
  • THOMASSON, A. L. A pragmatic method for normative conceptual work. In: BURGESS, A.; CAPPELEN, H.; PLUNKETT, D. (ed.). Conceptual engineering and conceptual ethics. Oxford: Oxford University Press, 2020. p. 435-458.
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    Este estudo foi financiado, em parte, pelo Programa Capes-PrInt da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES), código financeiro 001, processo 8881.310246/2018-1, e por Le Programme Cofecub, processo 88887.468340/2019-00.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2023
  • Aceito
    22 Abr 2023
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