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HEIDEGGER E PAULO: A MODALIDADE DE VIDA AUTÊNTICA ( WIE ) E A TEMPORALIDADE ESCATOLÓGICA NA APROPRIAÇÃO FENOMENOLÓGICA DA PROCLAMAÇÃO DA παρoυσíα

RESUMO

O artigo trata da apropriação fenomenológica das epístolas aos Tessalonicenses levada a termo por Martin Heidegger em sua prelação do semestre de inverno de 1920-1921 intitulada “Introdução à Fenomenologia da Religião” (WS), quando era assistente de Edmund Husserl na Universidade de Freiburg (1919-1923). A preleção foi publicada pela primeira vez no quadro da Edição Integral (Gesamtausgabe = GA) das obras de Heidegger em 1995. No artigo considerarei especialmente a noção de temporalidade escatológica a partir da análise do fenômeno cristão da παρoυσíα fora do contexto do sercrente e de sua consequente fundamentação teológica. Portanto, a proposta do presente estudo sobre o jovem Heidegger consistirá, em primeiro lugar, no “status quaestionis” da pesquisa sobre a referida preleção acadêmica e sua relação com o Denkweg de Heidegger. Em segundo lugar, destacarei a peculiaridade da leitura das epístolas de Paulo no contexto de uma abordagem fenomenológica a partir do conceito de “pré-compreensão” (Vorverständnis) no sentido de que há um sentido a ser procurado em um fenômeno sem ainda determiná-lo teoricamente. Esta categoria metodológica indica um horizonte para o qual é preciso avançar realizando uma metamorfose do si (Selbst) (e não simplesmente preenchendo a intuição). Em terceiro lugar, examinarei o §26 da segunda parte da mesma preleção acadêmica que versa sobre a “expectativa da parusia” (Die Erwartung der Parusie) no Cristianismo das Origens para explicitar especialmente as conexões entre historicidade e modalidade da vida autenticamente vivida (o como [Wie] da existência), bem como a estrutura da temporalidade vivida pelo Cristianismo das origens: “a experiência fática da vida é histórica. A religiosidade cristã vive a temporalidade como tal”.

Palavras-chave:
Parusia; temporalidade; kairós; facticidade; Cristianismo das origens; fé.

ABSTRACT

The article deals with the phenomenological appropriation of the epistles to the Thessalonians carried out by Martin Heidegger in his lecture of the winter semester of 1920-1921 entitled "Introduction to the Phenomenology of Religion" (WS), when he was assistant to Edmund Husserl at the University of Freiburg (1919-1923). The lecture was first published in the context of the Integral Edition (Gesamtausgabe= GA) of Heidegger's works in 1995. In the article, I will especially consider the notion of eschatological temporality from the analysis of the Christian phenomenon of the παρoυσíα outside the context of the believer and its consequent theological foundation. Therefore, the proposal of the present study on the young Heidegger will consist, in first place, in the "status quaestionis" of the research on the said academic lecture and its relation with the Denkweg of Heidegger. In second place, I will highlight the peculiarity of the reading of Paul's epistles in the context of a phenomenological approach from the concept of "pre-comprehension" (Vorverständnis) in the sense that there is a meaning to be sought in a phenomenon without yet determining it theoretically. This methodological category indicates a horizon for which one must advance by performing a metamorphosis of the self (Selbst) (and not simply by filling in the intuition). In third place, I shall examine § 26 of the second part of the same academic lecture dealing with the "expectation of the parusia" (Die Erwartung der Parusie) in Christianity of Origins in order to explicate especially the connections between historicity and modality of an authentically lived life (the how [Wie] of existence), as well as the structure of temporality experienced by Christianity of the origins: "the factual experience of life is historical. Christian religiosity lives temporality as such".

Key words:
Parousia; temporality; kairos; facticity; Christianity of the origins; faith.

A interpretação hermenêutico-filosófica de Martin Heidegger das epístolas do apóstolo Paulo é realizada com base na experiência fática da vida, ponto de partida e de chegada da filosofia nos anos de 1920. Essa apropriação fenomenológica está consignada na segunda parte da preleção do semestre de inverno intitulada “Introdução à Fenomenologia da Religião” (WS 1920-1921) e publicada no quadro da Edição integral das obras de Heidegger em 1995 no volume 60 (Fenomenologia da Vida Religiosa) (Heidegger, 1995, pp. 1-156).1 1 Para a contextualização desta preleção acadêmica e do lugar da religião no caminho de pensamento de Heidegger, ver Kirchner, 2014. A segunda parte desta preleção é a “explicação” (Explikation) fenomenológica da “experiência cristã da vida”, tal como se mostra nas epístolas de Paulo, particularmente naquela endereçada aos Gálatas e especialmente nas duas destinadas aos Tessalonicenses. Essa abordagem não priorizará o estatuto de texto sagrado ou histórico-dogmático, mas a textualidade, ou seja, a fenomenalidade própria do Novo Testamento. O exame fenomenológico da religião é compreendido no horizonte da tentativa de definir as estruturas fundamentais da vida e de realizar uma explicação categorial da “situação” do ser-aí histórico, que sucede em constante confronto com alguns momentos decisivos da história da filosofia e da tradição cristã em particular (Savarino, 2001SAVARINO, L. “Heidegger e il cristianesimo (1916-1927)”. Napoli: Liguori Editore, 2001., pp. 65-135).

O jovem Heidegger, confrontando-se sobretudo com a fenomenologia de seu mestre Edmund Husserl, do qual era docente assistente desde 1919 até 1923, bem como com a investigação histórica de Wilhelm Dilthey, clarifica metodológica e conceitualmente as definições de “tempo”, de “facticidade”, de “historicidade” e de “kairos” que norteavam sua discussão com a experiência de vida típica da fé neotestamentária em sua realidade concreta. A concepção da filosofia aí mostra uma profunda fidelidade a essa “experiência fática da vida” em sua constante mobilidade, que é radicalmente irredutível a um sistema especulativo de conceitualização (Barash, 2010_____. “Theology and the Historicity of Faith in the Perspective of the Young Martin Heidegger”. In: McGRATH, S. J., WIERCINSKI, A. (ed.). A Companion to Heidegger’s Phenomenology of Religious Life. Amsterdam & New York: Rodopi, 2010. pp. 93-113., pp. 99-104). De fato, a vida fática constitui o fio condutor (Leitfaden) da investigação do sentido do ser em geral, na medida em que ela se caracteriza por uma dinâmica fundamental, a saber: uma mobilidade (Bewegtheit) de ordem ontológica e não uma espécie de movimento concreto (Bewegung ôntico). Com base nesta dimensão pré-teorética, destacamos, entre outras, duas razões que levaram Heidegger a interessar-se pela experiência do Cristianismo das origens, tal como Paulo a descreve em suas epístolas enquanto modalidade autêntica do viver: um sentimento específico do tempo e um determinado comportamento - a realização da vida cristã em seu “como” (Wie) histórico-temporal - que brota de uma decisão precisa e última.

Uma vez feitas essas considerações introdutórias, passemos ao conteúdo do artigo percorrendo, sucessivamente, o “status quaestionis” da pesquisa sobre a prelação do semestre de inverno de 1920-1921 (1), a peculiaridade da leitura das epístolas de Paulo no contexto de uma abordagem fenomenológica (2), a interpretação sobre a “expectativa da παρoυσíα” no Cristianismo das Origens e, por fim, a explicitação das conexões entre historicidade e modalidade da vida autenticamente vivida (o como [Wie] da existência), bem como a estrutura da temporalidade vivida pelo Cristianismo das origens (3).

1. “Status quaestionis” da pesquisa sobre a Vorlesung “Introdução à Fenomenologia da Religião”

Sucessivamente depois da recepção acadêmica inicial da preleção realizada por Otto Pöggeler (1963)PÖGGELER, O. “Der Denkweg Martin Heideggers”. Stuttgart: Neske,1963., Karl Lehmann (1966)_________.“Christliche Geschichtserfahrung und ontologische Frage beim jungen Heidegger”. Philosophisches Jahrbuch, Nr. 74, pp.126-153, 1966. e Thomas Sheehan (1979)SHEEHAN, T. “Heidegger’s ‘Introduction to the Phenomenology of Religion’ 1919-1921”. The Personalist, Vol. 60/3, pp. 312-324, 1979. (= primeira fase de interpretação) e do processo predominante da investigação genealógica nos anos de 1990, mas com posições matizadas em relação às pesquisas anteriores (segunda fase interpretação),2 2 Nesse sentido mencionamos as seguintes obras: Dieter Thöma (1990), Matthias Jung (1990), Jeffrey A. Barash (1988), Theodore Kisiel (1993), Jaromir Brejdak (1996), Gerhard Ruff (1997), Jean Greisch (2000), Luca Savarino (2001). Destacamos, de modo particular, a investigação de Theodore Kisiel como um todo, considerando que o volume 60 da GA de Heidegger só foi publicado em 1995, e o longo capítulo dedicado aos dois cursos religiosos de 1920-1921. Kisiel evidencia aí o caráter preteorético da experiência religiosa, que “é a mais preteorética, e neste modo uma prova final do método fenomenológico” (Kisiel, 1993, p. 219: “The Religion Courses”, pp. 149-219). Nesses cursos Heidegger “em última análise procura um acesso não disruptivo à verdadeira temporalidade e historicidade dos fenômenos preteoréticos”, mesmo que “não chegue nunca a resolver completamente o paradoxo paulino da confiança e da confidência de um lado e do desespero da decisão de outro lado...”, o que pode ser associado ao ceticismo religioso e ao ateísmo professado no início dos anos de 1920. Do ponto de vista da gênese de Sein und Zeit, Kisiel julga que Heidegger extraiu do comentário às epístolas paulinas a concepção kairológica do tempo vivido e, da parte metodológica do curso de 1919-1920, a noção de indicação formal (formale Anzeige), segundo a qual o sentido de um conteúdo (Gehalt) dado em uma referência (Bezug) se determina somente com base no modo de realização ou execução (Vollzug) da dita referência. Assim, por exemplo, em Sein und Zeit, com base no modo da autenticidade ou da inautenticidade. Portanto, “kairologia e indicação formal constituirão juntas o coração mais essencial, mas em grande parte não dito, de SundZ” (Kisiel, 1993, p. 152). no início do século XXI inaugurou-se a terceira fase da interpretação da investigação sobre a temática da preleção heideggeriana com as obras de Marta Zaccagnini (2003)ZACCAGNINI, M. “Christentum des Endlichkeit. Heideggers Vorlesungen: Einleitung in die Phänomenologie der Religion”. Münster/Hamburg/London: LIT Verlag, 2003., de Christian Sommer (2005)SOMMER, Ch. “Heidegger, Aristote, Luther”. Paris: PUF, 2005., de Sean J. McGrath (2006)McGRATH, S. J. “Heidegger and Medieval Philosophy. A Phenomenology for the Godforsaken”. Washington D. C.: American Catholic Press, 2006., de Benjamin D. Crowe (2006CROWE, B. D. “Heidegger’s Religious Origins. Destruction and Authenticity”. Indiana: Indiana University Press, 2006., 2008_____. “Heidegger’s Phenomenology of Religion. Realism and Cultural Criticism”. Bloomington/Indianapolis: Indiana University Press, 2008.), de Pierfrancesco Stagi (2007)STAGI, P. “Der faktische Gott. Selbstwelt und religiöse Erfahrung beim jugen Heidegger”. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2007., Mario Fischer (2013)FISCHER, M. “Religiöse Erfahrung in der Phänomenologie des frühen Heidegger”. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2013..

Particularmente significativos para a situação atual são os estudos de Sophie-Jan Arrien (2014)ARRIEN, S.-J. “L’inquiétude de la pensée. L’herméneutique de la vie du jeune Heidegger (1919-1923)”. Paris: PUF, 2014. e Sylvain Camilleri (2008CAMILLERI, S. “Phénoménologie de la religion et herméneutique théologique dans la pensée du jeune Heidegger”. Dordrecht: Springer, 2008., 2017_____. “Heidegger et les grandes lignes d’une phénoménologie herméneutique du christianisme primitif”. Dordrecht: Springer, 2017.) sobre o estatuto da religião e sua relação estrutural com a fenomenologia nos escritos do jovem Heidegger. Diferentemente de outras obras dedicadas ao primeiro período de docência de Heidegger em Freiburg, como as de Francisco de Lara López (2008)LARALÓPEZ, F. “Phänomenologie der Möglichkeit. Grundzüge der Philosophie Heideggers 1919/1923”. Freiburg/München: Alber, 2008. e Scott M. Campbell (2012)CAMPBELL, S. M. “The Early Heidegger’s Philosophy of Life. Facticity, Being, and Language”. New York: Fordham University Press, 2012., a obra de Sophie-Jan Arrien (L’inquiétude de la pensée. L’herméneutique de la vie du jeune Heidegger [1919-1923]) (Arrien, 2014) apresenta um método novo e fecundo para abordar a especificidade da filosofia presente nos primeiros escritos de Heidegger entre 1919 e 1923. Grosso modo, o método consiste em “conduzir a pesquisa sobre a eclosão da fenomenologia hermenêutica da vida”, “remontando aos diferentes eixos” e “seguindo, passo a passo, resposta por resposta, a determinação sempre mais complexa das coações às quais deve obedecer a interpretação filosófica da vida para que esta se aproprie da originariedade à qual ela aspira” (Arrien, 2014, p. 14).

O caráter inédito da metodologia é assim declinado:

Para além da dimensão genealógica que os primeiros cursos de Freiburg possuem necessariamente em relação ao opus magnum de 1927, nosso propósito é colocar em relevo um projeto filosófico autônomo e original, cujas aquisições atravessam, porém, todo o pensamento ulterior de Heidegger (Arrien, 2014ARRIEN, S.-J. “L’inquiétude de la pensée. L’herméneutique de la vie du jeune Heidegger (1919-1923)”. Paris: PUF, 2014., p. 18).

Com base nessas citações, vê-se que Sophie-Jan Arrien objetiva desvelar integralmente, antes de tudo, a autonomia e a originalidade do projeto protoheideggeriano no quadro do próprio pensamento de Heidegger e na época de seu surgimento. Metodologicamente, haveria legitimidade de estabelecer uma descontinuidade entre os primeiros cursos de Freiburg e o pensamento ulterior - o de Sein und Zeit bem como o do Evento que caracteriza a reflexão de Heidegger dos anos 1930 e seguintes. Separando o pensamento do ser, compreendido como analítica existenciária do Dasein, da fenomenologia hermenêutica da vida, Sophie-Jan Arrien observa, por fim, que

o esforço hermenêutico e crítico desenvolvido pelo jovem Heidegger para sondar o logos da vida e a vida do logos, sem nada fixar de sua mobilidade e de seu caráter de evento, revelará assim todo seu alcance, a título de primeiro golpe dado à conceitualidade metafísica, além ou aquém da questão do ser tal como foi tradicionalmente investida pelo discurso filosófico (Arrien, 2014ARRIEN, S.-J. “L’inquiétude de la pensée. L’herméneutique de la vie du jeune Heidegger (1919-1923)”. Paris: PUF, 2014., p. 18).

No que concerne ao estatuto da religião no jovem Heidegger, destaca-se o projeto semelhante de Sylvain Camilleri e, em grande parte coincidente com a proposta de Sophie-Jan Arrien. Em duas obras programáticas de 2008 (Phénoménologie de la religion et herméneutique théologique dans la pensée du jeune Heidegger) (Camilleri, 2008) e 2017_____. “Heidegger et les grandes lignes d’une phénoménologie herméneutique du christianisme primitif”. Dordrecht: Springer, 2017. (Heidegger et les grandes lignes d’une phénoménologie herméneutique du christianisme primitif) (Camilleri, 2017), respectivamente, consagradas a dois cursos da GA 60, Sylvain Camilleri retoma e reitera o princípio da separação das esferas, isto é, dos diferentes períodos da obra de Heidegger, de modo ainda mais radical: só é possível captar verdadeiramente todo o sentido e todo o alcance do projeto proto-heideggeriano sob a condição de isolá-lo muito claramente da sequência da obra, isolamento no sentido de uma “desconstrução dirigida”, de uma crítica positiva, mas sem concessão, do método “genealógico” praticado muito frequentemente pela Heidegger-Forschung.

Em outras palavras: Sylvain Camilleri preconiza, com fins estritamente interpretativos (e não apologéticos), certa forma de epochē, de modo particular no que diz respeito à fenomenologia da religião. Portanto, somente sob a condição de realizar tal operação metodológica se tornará possível distinguir dentro dos primeiros cursos de Freiburg duas fenomenologias ao mesmo tempo unidas e irredutíveis uma a outra: de um lado, uma fenomenologia da vida “secular” no sentido de que não depende de um paradigma histórico preciso; de outro lado, uma fenomenologia da vida “religiosa” (Camilleri, 2008, pp. 11-12; Camilleri, 2017_____. “Heidegger et les grandes lignes d’une phénoménologie herméneutique du christianisme primitif”. Dordrecht: Springer, 2017., pp. XXVIII-XXX). No caso da preleção “Introdução à Fenomenologia da Religião” (WS 1920/1021), esta só se distingue verdadeiramente sob a condição de reconhecê-la como um cume histórico e sistemático nas duas vertentes fenomenológicas, quer estas sejam tomadas juntas ou separadamente (Camilleri, 2017, p. XXX). Quanto ao fato, aliás, histórico, de uma formalização, de uma secularização, de uma des-teologização progressiva do fundo cristão no pensamento do jovem Heidegger, Sylvain Camilleri julga que a evolução de tal processo de “formalização/secularização” aconteceu lentamente e só foi desencadeada quando Heidegger (re)descobre Aristóteles em 1921, determinando aí de modo mais preciso a conceitualidade de sua hermenêutica da vida, antes de fazer, a partir de 1924, da “questão do ser” o fio condutor de sua leitura de Aristóteles.

Nesse sentido, esta direção do Denkweg de Heidegger marca inegavelmente o declínio da fenomenologia da vida religiosa mas não seu fim, visto que encontramos ainda traços dela nos cursos dos anos 1921-1923, bem como no protocolo de uma intervenção datada de 1924 dentro do seminário (Die Ethik des Paulus) de R. Bultmann e intitulada “O problema do pecado em Lutero”, depois de sua chegada na Universidade de Marburg, no semestre de inverno de 1923 (Heidegger, 2011, pp. 259-286). Mas deparamos então com um problema interpretativo fundamental: a fenomenologia da religião é apenas uma temática circunscrita ao período juvenil da investigação de Heidegger ou ela se reveste de um alcance ainda maior, e quase estrutural, em seu pensamento? Mas esbarramos também aqui com os limites da própria investigação fenomenológica sob o aspecto do ateísmo fundamentalmente metodológico. Em suma, a julgar pelo epílogo dos editores do volume, Matthias Jung e Thomas Regehly, a preleção é fundamental para entender o pensamento do jovem Heidegger em razão da posição e do lugar temático que o curso ocupa no âmbito da obra heideggeriana: “em nenhum outro lugar torna-se tão visível a natureza própria do preconceito (Vorgriff) filosófico em oposição ao método científico; em nenhum outro lugar trata-se com tal envergadura e exatidão exegética as questões religiosas” (Jung; Regehly, 1995JUNG, M., REGEHLY, R. H. “Nachwort der Herausgeber der Vorlesung Wintersemester 1920/1921”. In: HEIDEGGER, 1995 (GA 60), pp. 339-343., p. 342).

2. As epístolas de Paulo: uma interpretação hermenêutico-filosófica de Heidegger à luz da experiência fática da vida

A peculiaridade da leitura heideggeriana está justamente na conquista de uma “pré-compreensão (Vorverständnis) para uma via originária de acesso” (Heidegger, 1995, p. 67) à experiência religiosa fundamental do Cristianismo das origens, uma vez que, só permanecendo arraigado nela, torna-se possível compreender a conexão de todos os fenômenos religiosos originários dela mesma (Heidegger, 1995, p. 73). Embora não desenvolvida aqui no curso em questão, o termo Vorverständnis deixa entrever que toda interpretação compreensiva pressupõe naturalmente uma relação viva e prévia com a coisa mesma, ou seja, uma relação vivificante entre o intérprete e seu texto de análise. Explicar fenomenologicamente o Novo Testamento, sem adotar, portanto, o método teológico, significa sempre já possuir certa familiaridade com as palavras, com a linguagem, com o mundo e consigo mesmo. Esta pré-compreensão fundamental do entendimento das epístolas de Paulo, longe de qualquer pretensão normativa,

abre o acesso ao “sentido de realização” (Vollzugssinn) das experiências vividas no NT, seja o modo pelo qual os primeiros cristãos encontraram a Deus, seja como eles O experienciaram em sua existência concreta. É precisamente na totalidade de sentido dessas três direções de sentido (isto é, todo conteúdo [Gehalt] está vinculado a um sentido de referência [Bezugssinn] e a um sentido de realização [Vollzugssinn]) que se conquista a fenomenalidade própria das experiências cotidianas (Heidegger, 1995, p. 63; cf. Lara López, 2018_____. “O conceito de fenômeno no jovem Heidegger”. Ekstasis: revista de hermenêutica e fenomenologia, Vol. 7, Nr. 1, pp. 181-199, 2018., passim). Se o que está em jogo na apropriação hermenêutica de Heidegger é o fato de saber como o Cristianismo das origens experienciou a si mesmo enquanto história nascente e vivente, trata-se também da pré-compreensão que temos de nós mesmos, uma pré-compreensão que suscita a intepretação e o desdobramento dos sentidos sem jamais fixá-los em um compedium de princípios dogmáticos. O objetivo do compreender fenomenológico das epístolas, portanto, não consiste em atingir o santuário de uma “compreensão última”, como se fosse possível obter um “catálogo de conceitos fundamentais” da teologia paulina, mas em acompanhar-nos no caminho que conduz à “explicação originária do sentido mesmo da vida religiosa”, ou seja, “voltar à experiência originária”, que é a do Apóstolo Paulo enquanto “compreensão histórica originária de seu si-mesmo e de ser-aí [Dasein]” (Heidegger, 1995, p. 67.74). Em razão desta compreensão, Paulo “realiza sua prestação como apóstolo e como ser humano” (Heidegger, 1995, p. 74). Assim, por exemplo, o que indicam formalmente as expressões paulinas tais como “a vossa fé está crescendo” (2Ts 1,3), “seduções de injustiça para aqueles que se perdem, porque não acolheram o amor na verdade” (2Ts 2,13)? Não é destacada a relação de uma espécie a um gênero, como no juízo proposicional “O rubi é vermelho”. Nos dois exemplos citados, não se trata de definir o que é a fé, tampouco o que é a injustiça, mas simplesmente indicar, de um lado, que a fé é passível de intensificação, de crescimento; de outro lado, que a injustiça diz respeito à sedução e à perda de si, e isso se realiza mediante uma determinada relação, a saber: relação de não acolhimento e não aceitação do amor (de verdade) (cf. Grupillo, 2014GRUPILLO, A. “Fenomenologia da vida religiosa: história e método na interpretação das epístolas paulinas do jovem Heidegger”. Numen: revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, Vol. 17, Nr. 2, pp. 73-98, 2014., pp. 86-87).

A contribuição mais original dos cursos de 1920 e 1921 de Heidegger, especialmente no que diz respeito à interpretação fenomenológica das epístolas de Paulo e de Agostinho (cf. GA 60) reside fundamentalmente na categoria fundamental presente no coração da explicitação da facticidade enquanto conteúdo concreto e vivo da existência, a saber: a historicidade (Geschichtlichkeit) (Serban, 2015SERBAN, C. “La Phénoménologie de la vie religieuse du jeune Heidegger: une mise em perspective”. Archives de sciences sociales des religions, Nr. 171, pp. 220-222, 2015., pp. 220-222). Em uma preleção anterior, do semestre de inverno de 1919-1920, intitulada “Problemas fundamentais da fenomenologia” (GA 58), tal era a convicção de Heidegger em relação ao fio condutor da fenomenologia: “O verdadeiro organon da compreensão da vida é a história (Geschichte), não enquanto ciência da história (Geschichtswissenschaft) [...], mas como vida vivida”. Em outras palavras: “na história encontra-se o verdadeiro ‘fio condutor’” para as investigações fenomenológicas, pois “a vida efetiva e a história são [...] a experiência norteadora (Leiterfahrung) da investigação

fenomenológica” (Heidegger, 1993, pp. 256.246-247.252). Uma vez que se trata aqui precisamente de uma apropriação fenomenológica do protocristianismo, está em jogo uma distinção importante na estratégia heideggeriana, ou seja, a distinção entre duas acepções da história com base no fenômeno fundamental da experiência fática da vida: de um lado, a determinação da conexão do fenômeno na perspectiva da história objetiva; de outro lado, a conquista da realização da situação histórica do fenômeno (Heidegger, 1995, pp. 84.88-89.90). Portanto, enquanto compreensão da situação histórico-originária, essa “conexão realizadora” (Vollzugszusammenhang) é parte do conceito do fenômeno (Heidegger, 1995, pp. 84-85).

Na primeira concepção deparamos com a história objetiva que concerne justamente às objetividades: um texto, vocábulos, certa língua são clarificados com base em condições históricas objetivas. O ponto de partida desta abordagem consiste em distanciar-se do sentido, considerando-o como passado e a ele se referindo à maneira de um espectador desinteressado. No caso, porém, da segunda concepção de história enquanto realização da situação histórico-originária, Heidegger privilegia o conceito metodológico de Vollzugssinn, sentido de (uma) realização possível, e assim a história - e, portanto, o tempo -, é integrada à análise de sua fenomenologia hermenêutica: trata-se de encontrar a experiência ou a realização concreta e vivida das significações objetivas que se expressem com o discurso. Desenvolver uma atitude de tornar-se-consciente-de-si-mesmo, enquanto consideração do si-mesmo (Selbst) da vida, tornando-se sua própria origem, implica mudar a perspectiva do passado pela do presente, que conserva sua atualidade.

Adotar o ponto de vista da perspectiva realizadora é já uma Selbstaufklärung, isto é, uma iluminação do si-mesmo que se motiva sempre a partir de uma vivência histórica genuína. Esta Aufklärung pessoal permite pensar o existir sem objetivá-lo por meio de conceitos. Segundo o método da “indicação formal” em Heidegger (Heidegger, 1995, pp. 55-66),3 3 Sobre o método da “indicação formal” e sua aplicação na interpretação das epístolas paulinas, ver Hebeche, 2005, pp. 315-355; Grupillo, 2014, pp. 84-87; Fernandes, 2016, pp. 100-103. há sempre um sentido vivo, a indicação dá a forma de um sentido possível a alguém capaz de determinar pessoalmente com base em um sentido realizador. A essência do método da indicação formal consiste em mostrar que o caminho é livre, de pura determinação (Bestimmung), enquanto o si-mesmo o realiza de múltiplas maneiras mediante a passagem de um conteúdo (o Begriff, apreensão conceitual)ao conceito de expressão (Ausdrucksbegriff) enquanto a “expressão” mesma é realizada na vida cotidiana: por conseguinte, expressar-se significa o gesto de abrir-se mais ou menos ao mundo na medida em que o si-mesmo é reenviado a uma rede de remissões como significatividades.4 4 Para a descrição fenomenológica da “expressão” (Ausdruck) enquanto se refere a uma realização viva da expressão no sentido preciso de que essa não é tomada tematicamente como objeto, mas é realizada na conversação, na pergunta e no dizer, ver os exemplos dados por Heidegger,1993, pp. 43-44. Na verdade, com base nas categorias metodológicas para conceber seu modo de pensar fenomenológico, Heidegger põe o conteúdo (Gehalt) na imprecisão para concentrar-se no modo de referir-se a ele (Bezug) e, portanto, sobre a maneira de realizar a dita referência (Vollzug) (Gauvry, 2018, pp. 65-78; Lara López, 2018_____. “O conceito de fenômeno no jovem Heidegger”. Ekstasis: revista de hermenêutica e fenomenologia, Vol. 7, Nr. 1, pp. 181-199, 2018., pp. 185-186). É precisamente por meio dessa categoria metodológica (cf. Vollzugsinn) que se descortina continuamente uma metamorfose do si-mesmo à mercê de possibilidades vitais no mundo circundante (Umwelt), que é dado primordialmente na “vivência da pergunta” (Frageerlebnis) como totalidade originariamente significativa de referências.5 5 A partir da "vivência do mundo do entorno” (Das Umwelterlebnis) no curso KNS de 1919, Heidegger questiona radicalmente o problema de perguntar pela “realidade” do mundo circundante justamente porque “tudo o que é real pode mundar/mundificar (kannwelten); mas nem tudo o que munda (wasweltet) tem necessidade de ser real”. Como observa com justeza S-J. Arrien, no exemplo dado por Heidegger na mesma preleção, a “cátedra advém primeiramente enquanto significatividade e não enquanto ‘realidade’”: Heidegger (1999, pp. 63. 89. 92.91); Arrien (2014, p. 81). Sobre a problemática fenomenológica do “mundo” em Heidegger, ver Carbone (2017, passim).

Portanto, a história dos modos de realização próprios à facticidade está intimamente associada à historicidade de um homem ou de um si-mesmo vivente e, portanto, da história “que nós mesmos somos” (Heidegger, 1976HEIDEGGER, M. “Anmerkungenzu Karl Jaspers' Psychologie der Weltanschauungen”. In: _____. Wegmarken. (Gesamtausgabe [= GA] 9). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1976. pp. 1-44., pp. 1-44; aqui, p. 34), ou seja, da história na medida em que expressa uma historicização do ponto de vista do pensamento. Trata-se desse modo da experiência vivida inserida no horizonte fático de realização do si-mesmo, tal como Heidegger a descreve nas notas sobre obra Psicologia das visões de mundo de Karl Jaspers: a experiência da vida “na qual me posso ter (ich mich haben kann) de diferentes maneiras não é, todavia, alguma coisa como uma região em que me conservo, nem o universo cujo isolamento seria o si (Selbst), mas é um fenômeno que, segundo o modo da sua própria realização, é essencialmente ‘histórico’” (Heidegger, 1976, p. 32). É justamente na experiência do si-mesmo enquanto existência, como temporalidade concreta, que Heidegger concebe a história do ponto de vista fenomenológico: não mais como processo, mas em seu caráter de evento (Ereignischarakter) da vida fática, como facticidade histórica do si-mesmo.

Vida e mundo, que pareciam concorrentes, são reconciliados através da dimensão “histórica” própria da experiência (Barash, 1997______. “Heidegger e o seu século - Tempo do Ser, Tempo de história” . Lisboa: Instituto Piaget, 1997., pp. 30-31). É o caso da relação peculiar de atuação da forma de vida dos primeiros cristãos: “A vida dos cristãos é determinada historicamente enquanto se inicia sempre com a Proclamação. Quem vive nesta, vive em relação de suspensão neutralizante no que diz respeito às significatividades do mundo da vida” (Carbone, 2017CARBONE, G. “La questione del mundo nei primi corsi friburghesi di Martin Heidegger”. Milano: Mimesis Edizioni, 2017., p. 205). A partir da circularidade entre o passado e o presente, entre a vida histórica passada e a vida histórica presente o si-mesmo vive sua história, ou seja, o si-mesmo se realiza como apropriação global de significações complexas. Por que se dá este tipo complexo de apropriação? Simplesmente porque sempre está à espreita do si-mesmo a tendência decadente da vida fática em relação à coincidência com mundo de significatividades geradas em sua experiência concreta (Carbone, 2017, pp. 205-206). O vivido está entrelaçado com o possível antes de todo processo pensado como sequência real de causas e efeitos. Como observou precisamente Claudia Serban, que colocou o lugar do possível na esfera do evento apropriador, Heidegger adota em sua fenomenologia a ideia de possibilidades fáticas do si-mesmo, da vida definindo-se com base nas tendências que se desdobram no tempo qualitativo.

Nesse sentido, o gesto “destrutivo” de Heidegger nesse período é onipresente, uma vez que se faz a “destruição” fenomenológica de toda representação teórica da relação do si-mesmo com suas próprias vivências: se o si-mesmo é a fonte, sua vivência mesma não é um processo constituído por um processo de acontecimentos, mas uma apropriação (Er-eignung) de alguma coisa (Etwas), transformando-se em “doação” pelo si-mesmo (Begebenheit, sichbegeben). Nesta “doação” o si-mesmo descortina um sentido, isto é, o como eu me encontro no mundo sob modo de ser da significatividade, uma vez que o fático, quando assumido pelo conhecimento, “possui apenas caráter de significatividade” (Heidegger, 1995, pp. 13-14). Neste sentido, como observa ainda Claudia Serban, “o Ereignis está presente desde o início da reflexão heideggeriana” (Serban, 2018_____.“Le vécu: acte, accomplissement ou événement?”. In: S. Camilleri, G. Fagniez, CH. Gauvry (éds.). Heideggers Hermeneutik der Faktizität, pp. 99-112, 2018., pp. 99.101.105.107.110).

O conceito inicial de destruição não está ainda orientado especificamente para a tradição ontológica como acontecerá no opus magnum de 1927 (Sein und Zeit), mas visa fundamentalmente a compreender e explicitar de modo originário a problemática que representa a vida para a filosofia (cf. Jollivet, 2004JOLLIVET, J. “La notion de ‘destruction’ chez le jeune Heidegger: De ‘la critique historique’ à la ‘destruction de l’histoire de l’ontologie’”. Horizons philosophiques, Vol. 14, Nr. 2, pp. 81-104, 2004.). Considerando o Denkweg de Heidegger entre 1919 e 1923, compreende-se assim que o problema das formas autênticas do filosofar aparece concomitantemente com a questão das estruturas originárias da vida: “Na experiência fática da vida, já existe uma conceitualidade mais originária, da qual deriva somente a conceitualidade material que nos é familiar”, afirma Heidegger em Introdução à Fenomenologia da Religião (Heidegger, 1995, p. 85).

É com base neste copertencimento entre problema da vida e problema da filosofia que a vertente positiva da “destruição” hermenêutica consistiria justamente na “’explosão’ das categorias tradicionais” em vista da descoberta das articulações dinâmicas da vida e do ser-aí fático: “a explicitação do ser-aí fático fará explodir em pedaços o conjunto do sistema tradicional das categorias: tão radicalmente novas serão então as categorias do ser-aí fático!”, afirma ainda Heidegger na mesma preleção (Heidegger, 1995, p. 54). É aqui que reside o papel paradigmático da experiência da vida cristã primitiva (ou do protocristianismo) na fenomenologia hermenêutica do jovem Heidegger. Portanto, deparamos com a exigência de refundar radicalmente o “sentido do próprio categorial” (Heidegger, 1985, p. 79) e de forjar categorias somente a partir da autointerpretação - ou autoexplicitação - da vida, categorias que Heidegger qualifica desde então como “hermenêuticas” e às quais atribui o nome de existenciários - por oposição às simples categorias (Heidegger, 1995, p. 232) -, mas que o próprio Heidegger denominou antes, nos cursos de 1921-1922, de “categorias fundamentais da vida” (Heidegger, 1985, p. 79).

3. O sentido originariamente histórico-temporal do Wie da παρoυσíα em Paulo (1Ts 5,3-4) 6 6 Cf. sobretudo Heidegger, 1995, pp. 98-112.149ss (§§ 26-28; Anexo ao § 26). Ver a análise de Hebeche, 2005, pp. 89-138.

Ao lado da concepção de historicidade da vida fática descortinada na vida dos cristãos, tal como Paulo a descreve em sua indeterminação temporal, Heidegger a conecta aqui com a modalidade de realização - o Wie - da experiência fático-cristã da vida. Desse modo, com base nesta conexão estrutural entre historicidade e o como da existência, deparamos com o sentido da filosofia para Heidegger à medida que se manifesta como retorno à historicidade originária. Concretamente, o estatuto conceitual da filosofia nesse momento do Denkweg heideggeriano atravessa o questionamento radical da experiência protocristã da vida para esboçar certas estruturas que incidem mais na modalidade (Wie) do que no conteúdo (Was): essas indicações, longe de ordenarem um preenchimento de sentido, exigem realização - vivida e histórica: “a vida fática em sua facticidade, em sua riqueza de relações, é para nós o mais próximo: nós mesmos a somos” (Heidegger, 1993, p. 173) [...] “Vivemos na vida fática - somos essa vida fática mesma, ela é para nós o mais próximo absolutamente” (Heidegger, 1993, p. 174). Portanto, a abertura fenomenológica das cartas paulinas confirma o pressuposto da coincidência entre a articulação da experiência do cristianismo originário e a originariedade de seu caráter temporal.

Em Paulo o termo παρoυσíα designa a presença plena do evento messiânico enquanto segunda vinda de Jesus no fim do tempo: “para os cristãos, παρoυσíα significa ‘a nova manifestação do Messias que já se manifestou’” (Heidegger, 1995, p. 102). Mesmo que a salvação já tenha se realizado para Paulo, ela implica, para realizar-se realmente, um tempo ulterior e decisivo. O que vem a ser esta suposta dilação constitutiva? O evento messiânico já aconteceu (que, para Paulo, é a ressurreição de Jesus), mas a presença já manifesta do Messias traz em seu interior outro tempo, um kairós, intimamente unido ao chronos enquanto tempo representado. São dois tempos heterogêneos que, com o termo παρoυσíα indicam em Paulo “a íntima estrutura unidual do evento messiânico, um tempo operativo e um tempo representado, unidos, mas não adicionáveis” (Agamben, 2016AGAMBEN, G.“O tempo que resta. Um comentário à Carta aos Romanos”. Belo Horizonte: Autêntica, 2016., p. 88).

Em relação específica com a apropriação das epístolas de Paulo aos Tessalonicenses (especialmente 1Ts 4,13-18 e 5, 1-12 quanto à ideia de παρoυσíα), Heidegger evidencia de modo fenomenologicamente transparente a situação do ponto de vista da realização histórica (em contraste com a situação histórico- objetiva), dentro da qual a “escritura epistolar” revela-se como a verdadeira “forma de Proclamação” (Heidegger, 1995, p. 99). Esta Proclamação - a boa nova - salvaguarda a fé e possibilita ao acesso à compreensão da situação originária da existência histórica no cristianismo das origens. Nesta Proclamação encontrase a ideia de que a verdadeira linguagem é performativa - e não informativa, à maneira de simples comunicação de um conteúdo de sentido. É pelo sentido do sentido que Heidegger chega à linguagem comentando as epístolas de Paulo: a realização (Vollzug), que designa a leitura do sentido da ação iminente, a “caritas”, santo espírito do sentido, une o conteúdo originário ao contexto. Em outras palavras: a situação na qual nos encontramos ao compreender inicialmente um sentido de conteúdo (por exemplo, a categoria “mundo” do ponto de vista do fenômeno “vida”), “é justamente a decisiva situação de partida para o movimento realizador em direção à plena apropriação do objeto, isto é, de sua posse” (Heidegger, 1985, p. 34). Portanto, o conteúdo é de tal modo conteúdo que sua apropriação “é uma tarefa de realização concreta e peculiar”, uma vez que a relacionalidade (estrutural entre “vida” e “mundo”) é “própria de uma referência (Bezug), ou seja, realizada, vivida” (Heidegger, 1985, p. 61.86).

Como afirma Gregory P. Floyd, a invenção cristã da linguagem como Proclamação é a chave da hermenêutica heideggeriana, matriz de toda indicação formal: Paulo lê em seu mundo, nascido da Palavra proclamada, as indicações formais que revelam a possibilidade interna da facticidade (Floyd, 2018FLOYD, G. P. “Proclamation of the Words. Heidegger’s Retrieval of the Pauline Language of Factical Life”. In: S. CAMILLERI; G. FAGNIEZ, CH. GAUVRY (eds.). “Heideggers Hermeneutik der Faktizität” . Nordhausen: Verlag TraugottBautz GmbH, 2018., pp. 172.175.177). Sob esta perspectiva é necessário perguntar-se como Paulo se confronta com o mundo circundante dos tessalonicenses. A resposta é a seguinte: Paulo experimenta os Tessalonicenses em seu “ter-se-tornado”, enquanto seus seguidores e do Senhor, e assim experimenta igualmente o fato de que os Tessalonicenses, seus seguidores, possuem um “saber do seu ter-setornado (Gewordensein)” (Heidegger, 1995, p. 93). Portanto, Paulo mesmo e os tessalonicenses estão unidos mutuamente em seu “ter-se-tornado”. Esta entrada falante do Possível na vida concreta de Paulo e dos tessalonicenses revela a essência da temporalidade. Ora, este “saber”, distinto de todo outro saber e recordar, nasce somente “do complexo da experiência cristã da vida” (Heidegger, 1995, p. 94). A fé é fidelidade ao seu próprio ter-se-tornado em uma negatividade que implica a estruturalmente a tribulação, a espera ardente do ser que ainda não é, a parusia, que é a indicação formal principal (Floyd, 2018, pp. 178-179). O “ter-se-tornado”, enquanto evento coexperienciado continuamente por Paulo e pelos tessalonicenses, é explicitado nas seguintes categorias do ser fático: “servir (douleúein) e esperar (anaménein),um caminhar diante de Deus e um persistir” (Heidegger, 1995, p. 95) (cf. 1Ts 1,9-10). Esses são os modos de realização próprios à facticidade cristã, e a natureza desta temporalidade é explicitada decisivamente pelo próprio Heidegger no § 32 da primeira parte da preleção (“A facticidade cristã como realização [Vollzug]”): “A conversão que supõe a experiência cristã da vida diz respeito à realização” (Heidegger, 1995, p. 121).

Após expor o fenômeno do “ter-se-tornado” dos tessalonicenses e sua temporalidade específica, Heidegger trata na sequência da expectativa da παρoυσíα em Paulo sob o aspecto do sentido da experi ência desse fenômeno (seu “Wie” e não o seu “Was”), experiência que se identifica com uma “tribulação absoluta”, inerente à própria vida dos cristãos: “a tribulação é uma característica fundamental, é uma preocupação absoluta dentro do horizonte da παρoυσíα, da vinda no final dos tempos” (Heidegger, 1995, pp. 97-98). A tendência do “esperar” (anaménein) é, portanto, decisiva para a caracterização da experiência cristã da vida, exemplificando-se justamente na espera da παρoυσíα: viver tal espera servindo “o Deus vivo e verdadeiro” (1 Ts 1,9-10) significa expor-se “a angústia” (Heidegger, 1995, p. 98), em uma situação caracterizada pela absoluta tribulação e preocupação na qual aparece como a vida cristã não seja posse, mas procura, e como através dela não se tem segurança, uma vez que urge refletir sobre a própria vida e sua realização concreta.

Em relação à interpretação das duas passagens paulinas mencionadas anteriormente, duas questões são levantadas: “1) O que há com os mortos que não vivenciam mais a παρoυσíα (1 Ts 4,13-18)? 2) Quando se realizar á a παρoυσíα (1Ts 5,1-12)?” (Heidegger, 1995, p. 99).O princípio norteador aqui não consistirá na análise do problema escatológico e sua relação com a ressurreição, mas residirá na compreensão do “como da realização” da ideia doutrinal da escatologia a fim de encontrar uma coesão das duas passagens paulinas. Nesse sentido, a escatologia será examinada com base no fenômeno fundamental da tribulação que é inseparável do “aceitar a Proclamação” feita por Paulo (1Ts 1,6) (Heidegger, 1995, p. 95). Portanto, o aspecto escatológico é assim conduzido mais originariamente à pré-compreensão quando “escatologia e facticidade enquanto são experienciadas na vida fática” (Heidegger, 1995, p. 146), ou seja, quando submetidas à coação da mobilidade realizadora. Isso implicará então concentrar-se na segunda questão: quando a παρoυσíα se realizará (1Ts 5,1-12)?”.

Heidegger retoma esta última passagem no anexo da preleção e trata novamente da questão do quando da παρoυσíα (Heidegger, 1995, p. 150). Se o fenômeno da tribulação torna-se o problema fundamental do evento escatológico enquanto determina a situação verdadeira e própria de Paulo em sua dimensão histórico-realizadora, a pergunta pelo “quando” em seu “como” (“Wie”) não provém de nenhum “raciocínio mundano”. Paulo “se mantém afastado de todo tratamento cognitivo”, mas também não diz que seja incognoscível (Heidegger, 1995, p. 99). Face à pergunta, Paulo responde confrontando dois modos de vida fática para explicitar o sentido do quando: “quando (hótanlégōsin) eles dizem..., versículo 3, mas vós (hymeis dè)..., versículo 4” (Heidegger, 1995, p. 99). Qual é o sentido da contraposição em seu “como da participação” (Heidegger, 1995, p. 103) e, portanto, em um contexto temporal particular, isto é, com base na diferença entre tempo objetivo e temporalidade da vida fática? A oposição entre os versículos 3 e 4 nos remete para a esfera do “sentido do ‘quando’, do tempo e do instante”, bem como para os termos-chave que permitem decifrar o sentido propriamente cristão da παρoυσíα: “Ereignis, Wie, Wer” (Acontecimento, Como, Quem).7 7 Cf. Heidegger, 1995, pp. 99-100.149. Heidegger reforça o sentido propriamente cristão da παρoυσíα ao introduzir três termos no anexo ao § 26 da preleção: “acontecimento” (Ereignis), “como” (Wie), “quem” (Wer)? Como entender a relação dos primeiros cristãos com cada um desses termos a partir da expectativa da παρoυσíα? Enquanto segunda vida de Cristo, a παρoυσíα é um “acontecimento” decisivo na vida dos primeiros cristãos. É o acontecimento de uma presença que promete transformar para sempre a existência crente.

Ao associar intimamente “tempo (Zeit) e instante (Augenblick)” em seu comentário a 1Ts 5,1, Heidegger remete a uma singularidade do plano existencial da temporalidade kairológica no Cristianismo das origens, uma vez que o uso da linguagem bíblica não é casual. Não há mais um instante a ser apreendido, mas uma sequência de “agora” que a ser vivenciado tão intensamente quanto o Dia do Senhor. Uma temporalidade própria e um kairós verdadeiramente “decisivo” para vida fática podem manifestar-se só quando o tempo e o instante se determinam e se singularizam reciprocamente (Camilleri, 2017_____. “Heidegger et les grandes lignes d’une phénoménologie herméneutique du christianisme primitif”. Dordrecht: Springer, 2017., p. 554). Os tessalonicenses foram instruídos somente no “como” (Wie) da παρoυσíα, o que lhes permite assim prepararem-se de maneira excelente para as dificuldades da existência. O que é realizado em seu presente vivo é decisivo: vivendo o tempo como tal, os cristãos existem realmente in et coram Deo. Em suma: na tensão paradoxal entre um e um ainda não que define a concepção paulina da salvação Heidegger enfatizará que o “quando” é sempre algo incerto para os cristãos, e que a compreensão experienciada do tempo remete para “a hora da máxima angústia e necessidade, e o mais importante não é que vos deis conta do quando objetivo, mas que estejais firmes, que não vacileis” (Heidegger, 1995, p. 156), pois os tessalonicenses sabem que o quando está implícito na vida fática cristã.

A. Confrontação entre dois tipos de vida fática: “os negligentes” e os “vigilantes”

Vejamos então a contraposição dos dois modos de vida fática para responder à pergunta do “quando”. Quanto ao primeiro modo de vida, que se refere à “paz e segurança na vida fática”, trata-se do “como comportamental no que diz respeito ao que me vem ao encontro na vida fática”. Esses esqueceram o seu próprio “si-mesmo” e não possuem a si mesmos “na claridade do saber autêntico” (Heidegger, 1995, p. 103). São equiparados aos negligentes, que se apegam a um saber teórico e absoluto, já distante das tribulações e, portanto, da realidade mais fundamental de todo ter-se-tornado cristão: a imersão cotidiana na luta e na insegurança. No segundo modo de vida, na vida cristã, que não provém de conteúdos mundanos, o quando da παρoυσíα e do tempo têm “um caráter especial”. A religiosidade cristã não vive no tempo objetivo, mas “vive a temporalidade” no modo da temporalização. Nesse viver a temporalidade os cristãos trazem continuamente consigo motivos para a inquietação; por isso, esses cristãos são identificados com os vigilantes. Portanto, se a temporalidade da vida fática é um “tempo sem uma ordem própria, sem lugares fixos, etc.,”, o “quando” [Wann] não pode ser apreendido objetivamente.

Em Paulo é fundamental o “como da apreensão da realidade, o como da concepção dos acontecimentos”, uma vez que se revela essencial a compreensão de toda a situação fática. Nesse sentido, a resposta de Paulo pelo “quando” da παρoυσíα exige que os tessalonicenses permaneçam “vigilantes e sóbrios”, exortação endereçada àqueles que desejam fixar o “quando” da παρoυσíα no âmbito do tempo objetivo (Heidegger, 1995, pp. 104-105). Em contraste com os negligentes que representam o primeiro modo de vida, aos vigilantes, que encarnam o segundo modo de vida arraigado no cotidiano com todas as suas agruras, Heidegger mostra uma dimensão fundamental da facticidade cristã: “para a vida cristã não há segurança alguma” e, ainda mais, “a contínua insegurança é igualmente característica das significatividades fundamentais da vida fática”. Portanto, o “inseguro” (das Unsichere) está no coração da religiosidade protocristã e, nesse sentido, “não é casual, mas necessário”, mas de uma necessidade que não é “nem da ordem lógica, nem da ordem natural” (Heidegger, 1995, p. 105). Do mesmo modo, na intepretação fenomenológica da segunda epístola aos Tessalonicenses, na qual deparamos com os temas da expectativa da παρoυσíα de Cristo e o anúncio do anticristo, Heidegger resume assim a resposta de Paulo em relação ao quando da παρoυσíα com as seguintes palavras: “O quando é determinado pelo como do comportar-se, que por sua vez é determinado pela realização da experiência fática da vida em cada uma de seus momentos” (Heidegger, 1995, p. 106).

Mas a interpretação equivocada de 2 Ts 2,3-12 como um “apocalipse” isolado favoreceu a lógica do Wann objetivo quando aí Paulo fala do anticristo: “Ele [o homem da impiedade, o filho da perdição] virá mais cedo que a παρoυσíα” (2 Ts 2,3). Este anúncio está correto do ponto de vista do conteúdo, mas, na realidade, afirma Heidegger, “não se trata em primeiro lugar disso” (Heidegger, 1995, p. 108). Interpretados em sentido objetivante, esses versículos serviram mais para erguer uma dogmática e uma ética paulinas do que explicitar a genuína escatologia do acontecimento cristão. Essa se traduz fenomenologicamente “na singularização da experiência fática da expectativa da parusia” (Hebeche, 2005HEBECHE, L. “O escândalo de Cristo: ensaio sobre Heidegger e São Paulo” . Ijuí: Ed. Unijuí, 2005., p. 140). Como é possível ver tal apaziguamento dos ânimos em 2Ts 2,1- 12 justaposto ao fato de não ensinar mais a iminência da παρoυσíα? Dentro de uma relativa coerência do conteúdo persiste uma coesão de realização absoluta (Camilleri, 2017_____. “Heidegger et les grandes lignes d’une phénoménologie herméneutique du christianisme primitif”. Dordrecht: Springer, 2017., pp. 596-600). Como afirmou Luiz Hebeche, o que está em questão “não é a autenticidade das cartas, mas de como, nelas, se expressa a autêntica experiência da parusia” (Hebeche, 2005, p. 141). Na verdade devemos excluir na intepretação dessa passagem paulina a hipótese segundo a qual Paulo teria apaziguado a situação e contemporizado na calma, como se a intenção dele fosse compartilhar a posição objetiva da iminente expectativa da παρoυσíα:

Todo o tom, todo o modo de expressão da segunda epístola dizem o contrário. Não há nenhuma depreciação, mas uma multiplicação de tensão em cada uma das expressões. A epístola em sua totalidade é mais urgente do que a primeira: nenhuma retratação, mas um agravamento da tensão. Os tessalonicenses devem ser reenviados a si mesmos (Heidegger, 1995, p. 108).

Adotando esta leitura não tradicional sobre a tensão entre a escatologia de 2Ts 2,1-12 e a de 1Ts, não é o caso, portanto, de pensar que Paulo teria simplesmente apaziguado os ânimos dos tessalonicenses em relação ao retardo da παρoυσíα. Em termos mais técnicos: 2Ts 2,1-12, ou qualquer que seja seu autor na hipótese da autoria não paulina, não corrigiu a escatologia supostamente falsa de 1 Ts nem tampouco a “suplantou”. Considerando a situação concreta dos tessalonicenses, especialmente daqueles que se tornaram mais vulneráveis em relação ao não essencial, não obstante 1Ts e o anúncio da παρoυσíα, Paulo se expressou sobre o mesmo tema, ainda com a mudança de tom, mas sem justificar o retardo da παρoυσíα. Paulo continua sua missão de preparar a comunidade para o retorno próximo de Cristo, mas este comunicar concerne ao âmbito pré-escatológico, isto é, à vivência antecipada da παρoυσíα no sentido de manter a tensão voltada para o presente das existências preocupadas e inquietas (Camilleri, 2017_____. “Heidegger et les grandes lignes d’une phénoménologie herméneutique du christianisme primitif”. Dordrecht: Springer, 2017., pp. 598-599).

Quando Paulo diz que “os tessalonicenses devem ser reenviados a si mesmos”, toda a passagem aponta para o cume ao qual chegou a tensão escatológica entre os tessalonicenses: o passado, o presente e o futuro dos tessalonicenses são conectados e determinados do modo idêntico na mesma fé que cresce à medida que eles suportam as tribulações e perseguições (2Ts 1,4). O crescimento da fé no acolhimento existencial da Proclamação feita por Paulo8 8 O “ter-se-tornado” é igualmente um “aceitar a proclamação em meio a uma grande tribulação”. O que é acolhido não concerne a um conteúdo mundano, mas ao “como do comportar-se na vida fática”: Heidegger, 1995, p. 95. é crescimento da confiança: “A pístis [fé] não é um ‘ter-por-verdadeiro’, senão o hyperauxánei não teria sentido algum; o pisteúein é uma conexão de realização suscetível de ser intensificada. Esta intensificação é a garantia da consciência autêntica” (Heidegger, 1995, p. 108). Nesse voltar-se para o crer dinâmico, à medida que se revela um modo de ser determinando-se em função de sua relação com o mundo da vida, reside o compreender da motivação própria por trás do chamado “caráter sobrecarregado (plérophorie) da expressão paulina” na segunda epístola aos tessalonicenses: 2Ts 1,5 e 2Ts compreendem-se a partir de uma sobrecarga enquanto amálgama de uma multiplicação de intensidade vivida e de um acréscimo de sentido que se alimentam reciprocamente (Camilleri, 2017_____. “Heidegger et les grandes lignes d’une phénoménologie herméneutique du christianisme primitif”. Dordrecht: Springer, 2017., pp. 588.600-601).

Compreende-se, portanto, que o “caráter sobrecarregado (plérophorie) da expressão paulina” só é possível de ser compreendido em função da situação escatológica e porque também no interior de 2Ts “as conexões de realização da vida fática são acentuadas em todos os lugares” (Heidegger, 1995, p. 107.108). A intensificação da fé se manifesta quando os tessalonicenses aceitam a provação, uma vez que, sendo chamados (2Ts 2,10) não creem no falso e, portanto, perseveram na fé. Sob este aspecto, uma modalização específica da fé como exemplo da intensificação está na passagem de 2Ts 1,4 citada por Heidegger: “sentimo-nos orgulhosos de vós”, “é uma intensificação do orgulhar-se”. Por que este orgulho de Paulo em relação aos que creem em sua Proclamação sobre a παρoυσíα? Simplesmente porque aqueles cristãos, que se mantêm continuamente vigilantes face à manifestação da παρoυσíα, estão dispostos a crer nos momentos mais difíceis e mais incertos. Esses cristãos preocupados e inquietos vivem o tempo sob a ótica escatológica. É assim que entende Heidegger a genuína compreensão da παρoυσíα: aqueles que através de Paulo compreenderam a Proclamação do Evangelho e assim o significado autêntico da παρoυσíα, “devem estar desesperados, porque cresce a tribulação e cada qual está sozinho diante de Deus”. Aos cristãos que vivem esta decisiva forma de vida, Paulo responde que “a tribulação (thlipsis) é um endeigma [um sinal] da vocação” (Heidegger, 1995, p. 112).

B. A proclamação do Anticristo: o caráter decisivo e iminente resultantes da “manifestação de sua vinda” (2Ts 2,8)9

No contexto do anúncio do anticristo, que precederá o retorno de Cristo, Heidegger ainda explicita fenomenologicamente o autêntico significado da παρoυσíα: “o vir primeiro” (prōtonelthē; 2Ts 2,3) do anticristo, enquanto precederá a παρoυσíα do Cristo, “não implica nenhuma prorrogação do prazo, mas precisamente a intensificação de maior tribulação no sentido da facticidade cristã” (Heidegger, 1995, p. 114). Ou ainda, quando Heidegger reitera a necessidade absoluta de decidir-se face à grande cena pela qual o anticristo irá aparecer: “O ‘antes’ [zuvor] é, portanto, aqui uma intensificação da mais alta tribulação” (Heidegger, 1995, p. 115). O importante é justamente o caráter decisivo e iminente da “manifestação de sua vinda” e não tanto a natureza objetiva do que impede sua revelação plena (cf. o katéchon): uma vez que só os crentes reconhecerão o Adversário, o “antes” (o fato de que primeiro deve aparecer o anticristo) não é da ordem do tempo cronológico (“não há absolutamente mero antes e depois”), mas pertence ao âmbito da “preocupação - algo que tem uma significância existencial” (Heidegger, 1995, p. 155).

A introdução da questão do anticristo serve, portanto, para exibir uma compreensão fática do crente na medida em que repousa em uma decisão com o objetivo de permanecer firme na Proclamação aceita por ocasião do ter-se-tornado cristão. Ao comentar o texto paulino, Heidegger explicita desse modo que os traços da temporalidade parusíaca não se enquadram em uma concepção linear do tempo com seu fim como um instante pontual, uma vez que tal representação torna impensável a experiência vivida do tempo no cristianismo das origens. A παρoυσíα anunciada nas epístolas aos Tessalonicenses não diz respeito ao tempo quantitativo e nem tampouco concerne à história profana, mas se insere no contexto da história paulina da salvação com base na tensão entre um e um ainda não: “Para o cristão, deve ser decisivo o τò vȗv [o agora] da conexão de realização no qual ele se mantém autenticamente, e não a expectativa (Erwartung) de um acontecimento específico que se situa em uma temporalidade futura” (Heidegger, 1995, p. 114).

A temporalidade da παρoυσíα cristã, compreendida autenticamente, deve afastar qualquer tendência à objetivação da “expectativa” e à materialização de seu objeto. O saber da fé dispensa os tessalonicenses de preocuparem-se com especulações sobre os que morreram, uma vez que “perguntas curiosas” acerca dos mortos são dirimidas antecipadamente pela certeza da fé: esse é o sentido da fórmula paulina de 1Ts 4,14 sublinhada por Heidegger: “nós cremos que Jesus morreu e ressuscitou” (Heidegger, 1995, p. 115).A crítica de Heidegger aqui visa à prioridade dada à concepção escatológica de um futuro irreal que descuida do presente, do atual ter-se-tornado cristão. Este ter-se-tornado é um passado ativo que abarca a totalidade das referências cristãs diante do mundo circundante e do mundo compartilhado não cristão com os outros.

O “tempo de agora”, que se contrai e começa a acabar, é o tempo kairológico originário: Paulo conduz os cristãos a fazer do agora do momento não outro tempo, mas apenas um chrónos contraído e abreviado à medida que é integrado existencialmente no presente da vida mesma do cristão. Com observou Giorgio Agamben a propósito da noção de kairós para a escatologia paulina, é o tempo que nos resta e não “a nossa representação do tempo cronológico, como tempo no qual estamos”, tempo “que separa de nós mesmos, transformando-nos, por assim dizer, em espectadores impotentes de nós mesmos”, mas na verdade “é o tempo que nós mesmos somos - e, por isso, o único tempo real, o único tempo que temos” (Agamben, 2016, pp. 85-86).

Portanto, em vez de especular sobre um evento esperado com tentativas vãs de determinar o indeterminável, os tessalonicenses, aqueles que acolheram a Proclamação de Paulo, devem priorizar o agora de sua existência religiosa concreta dentro de um complexo realizador da fé (1Ts 3,3; 5,9) (Heidegger, 1995, p. 117). A constituição do sentido da esperança propriamente cristã, especialmente no que diz respeito à expectativa da παρoυσíα em Paulo, é construída com base no liame do esperar (anaménein) ao servir (douleúein) (Heidegger, 1995, pp. 95-98), o servir perseverante na tribulação, como já dissemos anteriormente: “o anaménein(é um esperar na persistência diante de Deus”, ou seja, um esperar na realização fática de sua vida de cristão; “[...] um esperar na persistência diante de Deus, que não remete para significâncias de um conteúdo futuro, mas para Deus”. Tanto o “servir” quanto o “esperar” só fazem sentido a partir da obra da fé. Portanto, trata-se de um estar-disposto concreto em e diante de Deus arraigado no agora da existência cristã, conforme o sentido de um tempo vivido na fé: “O sentido da temporalidade determina-se a partir da relação fundamental com Deus, de tal maneira, porém, que só compreende a eternidade aquele que vive a temporalidade de maneira realizadora” (Heidegger, 1995, p. 117). Não é mais suficiente falar de um evento futuro no contexto de um esperar objetivo e teórico, mas a nova cronologia torna-se agora uma kairologia enquanto contração do tempo: a temporalidade kairológica é concebida agora a partir de uma conexão de atuação com Deus.

É justamente este “saber” que provém de uma atuação com Deus que Heidegger prioriza quando se tratada realização da esperança relativa à παρoυσíα: na expressão “ter esperança”, o esperar é apropriado sob a forma de esperança. Assim procedendo, Heidegger acentua a temporalidade da esperança cristã no “como” (Wie) da vinda do Senhor (Heidegger, 1995, p. 153), uma vez que ela é uma realidade vivida. Portanto, esta determinação modal da παρoυσíα não é julgada segundo o conteúdo dogmático determinado como, por exemplo, na concepção da espera objetiva de um “mundo iminente” com a nova manifestação do Messias. Por fim, em Heidegger o tema da escatologia paulina é pautado com base na modulação segundo o como da situação, sendo esta compreendida em termos de uma fenomenologia hermenêutica e, portanto, “transcendendo” a alternativa do “estático” e do “dinâmico”: o que é primordial na interpretação fenomenológica de Heidegger sobre a esperança cristã da παρoυσíα“é a coesão da realização” e não a abordagem histórico-objetiva (Heidegger, 1995, p. 153). Uma vez que a facticidade cristã só pode ser compreendida como existência diante de Deus, coram Deo, tudo depende da espera da παρoυσíα do Senhor. Essa experiência da παρoυσíα recebe o nome de tribulação (thlípsis) enquanto realidade constitutiva da vida cristã: ao depreender o sentido de referência da experiência fática da vida, faz-se necessário atentar para o fato de que essa é “dificultada”, essa se realiza en thlipsesin [nas tribulações] (Heidegger, 1995, pp. 98.121). Verdade é que a compreensão hermenêutica desses textos fundadores do cristianismo esbarra sempre com esta noção paradoxal de realização (Vollzug) precisamente porque a “dificuldade da compreensão [fenomenológica] está associada à sua realização mesma; esta dificuldade continua a crescer à medida que se aproxima do fenômeno concreto” (Heidegger, 1995, p. 101). É a dificuldade de “transpor-se-para” (Sich-hinein-Versetzen) [para a posição de Paulo], “que não pode ser substituído por nenhum fantasiar-se, e nem por nenhuma ‘assimilação compreensiva’; o que se exige é uma realização autêntica” (Heidegger, 1995, p. 100). Portanto, mutatis mutandis, acessar “às coisas mesmas” do fenômeno histórico originário exibido nas epístolas de Paulo significa não um direito de retorno aos fenômenos, mas uma “realização autêntica”, aventurosa e indeterminada, pois Heidegger compreende tal noção “como algo que escapa ao modelo epistêmico que guia a fenomenologia husserliana da presença plena do fenômeno no ideal de uma visão em carne-e-osso” (Palmeiro, 2019PALMEIRO, T.M. “Intencionalidade e a transposição do pensamento”. Revista Natureza Humana, São Paulo, Vol. 21, Nr. 1, pp. 1-12, 2019., p. 10; cf. Hebeche, 2005HEBECHE, L. “O escândalo de Cristo: ensaio sobre Heidegger e São Paulo” . Ijuí: Ed. Unijuí, 2005., pp. 51-56).

Conclusão

Nas páginas anteriores, abordamos o fenômeno da παρoυσíα do ponto de vista de uma apropriação fenomenológica da experiência cristã da vida fática exibida nas epístolas de Paulo. Na prelação acadêmica de 1920-1921, objeto do presente artigo, Heidegger se interessa fundamentalmente pelas estruturas da facticidade cristã - isto é, pelo saber (Wissen), pela fé cristã e pela παρoυσíα - sob modalidade da realização autêntica na qual a significatividade mundana é experienciada pelo mundo do si-mesmo (Selbstwelt). Sob o aspecto do primado ontológico, a temporalidade originária da experiência cristã da vida fática se articula a partir da tripartição de toda experiência kairológica na dimensão de três fenômenos fundamentais do ter-se-tornado (Gewordensein), da “expectativa (Erwartung) da παρoυσíα” e do “como se não” (hosmē) (Heidegger, 1995, pp. 93-98; p. 98-105; pp. 118-121, respectivamente).

Segundo a apropriação fenomenológica do fenômeno da παρoυσíα, a qualidade específica da dimensão “futura” da segunda vinda é colocada no contexto da temporalidade fática. Não se espera “um acontecimento” objetivo face à pergunta do “quando” objetivo. Paulo não conhece quando a segunda vinda acontecerá, mas retorna a pergunta àqueles que indagaram sobre isso e afirma que os tessalonicenses já possuem a resposta. Assim procedendo, Paulo deseja simplesmente colocá-los em um instante (Augenblick) no qual cada um deverá tomar uma decisão (Entscheidung), uma decisão da qual dependerá suas próprias vidas.

Se os tessalonicenses, como o próprio Paulo também, decidiram aceitar a Palavra de Deus, então eles acolheram imergir naquele contexto ativo que lhes abre a experiência da urgência (Not) da vida (Heidegger, 1995, p. 109) e, muito mais, a uma compreensão mais originária da temporalidade, de tal modo que os tessalonicenses são enquanto tendo-se tornado e enquanto “esperam” a παρoυσíα no horizonte temporal da realiza ção da facticidade cristã (Heidegger, 1995, pp. 121-122). Portanto, a espera do retorno de Cristo, na perspectiva fenomenológica, não deve ser visto sob um preenchimento determinado, isto é, em termos de representações históricas objetivas. O evento escatológico da παρoυσíα constitui assim a possibilidade mais pr ópria dos tessalonicenses na medida em que tal evento é assumido em uma antecipação: nesta perspectiva, o referido evento revela-se plenamente operante na realização da experiência fática, de tal modo que na decisão que antecipa o evento escatológico como sempre possível se constituem de modo autenticamente fático o “não-mais” do próprio passado e o “como se não” do próprio presente.

Este caráter de “antecipação” do fenômeno da παρoυσíα cristã sugere uma proximidade conceitual entre as investigações fenomenológicas de Heidegger na preleção “Introdução à Fenomenologia da Religião” (1920-1921) e no opus magnum de 1927, Sein und Zeit, no diz que diz respeito à genealogia do fenômeno da morte. Esta aproximação é explicitada na abordagem genealógica precisa de Cristian Ciocan em 2014CIOCAN, C. “Heidegger et le problème de la mort: existentialité, authenticité, temporalité”. Dordrecht: Springer, 2014. (Ciocan, 2014, pp. 168-170). Ora, o privilégio ontológico concedido à dimensão da antecipação (Vorlaufen) - respectivamente da παρoυσíα, no contexto da preleção sobre as epístolas paulinas, e da morte, enquanto possibilidade fundante da Existenz na esfera da Analítica existenciária - inaugura a caracterização da abertura (Offenheit) situacional do Dasein em relação à possibilidade de que ele mesmo é a cada instante (Augenblick) da existência e à iminência fugidia de toda tentativa de determinação da morte (cf. Ardovino, 1998ARDOVINO, A. “Heidegger. Esistenza ed effettività. Dall'ermeneutica dell'effettività all'analitica esistenziale (1919-1929)”. Milano: Guerini e Associati, 1998., pp. 108-109).

Portanto, segundo Adriano Ardovino (Ardovino,1998ARDOVINO, A. “Heidegger. Esistenza ed effettività. Dall'ermeneutica dell'effettività all'analitica esistenziale (1919-1929)”. Milano: Guerini e Associati, 1998., pp. 109-112), Dario Vicari (1996)VICARI, D. “Ontologia dell'esserci. La riproposione della ‘questione dell'uomo’ nello Heidegger del primo periodo friburghese”. Zamorani: Torino, 1996. e, sobretudo, Cristian Ciocan (2014)CIOCAN, C. “Heidegger et le problème de la mort: existentialité, authenticité, temporalité”. Dordrecht: Springer, 2014., Heidegger teria subsumido o tema escatológico paulino (Heidegger, 1995, §§ 26-28, pp. 98-112) na “Analítica existenciária” do “ser-para-a-morte” em Sein und Zeit (§§ 46-53).O “ser-para-a-morte” constitui um existenciário-ontológico do Dasein e, desse modo, possibilita indicar a morte não como alguma coisa que se acrescenta à nossa vida, mas como algo imanente e iminente do Dasein ôntico. Eu morro a cada instante, hic et nunc. O Dasein não está a caminho em direção ao seu fim (sua morte): em seu tornar-se mortal, o Dasein é este caminho, e o telos de seu movimento nada mais é do que esse próprio movimento. A morte tem uma função ontológica na medida em que rejeita a tendência a ser absorvida no Was, ou seja, na dimensão enunciativa sobre o que ela é do ponto de vista teorético. Esta certeza ou asseguramento do sentido teorético afasta a verdadeira compreensão da vida fática e, portanto, se transforma em um modo no qual ela evita o encontro consigo mesma e com seu verdadeiro caráter ontológico.

Ora, calcular a morte implica reduzi-la ao seu simples sentido de conteúdo, ao seu “Was”, cognoscível e apreensível. Ao contrário, a certeza da morte é sempre acompanhada da indeterminação de seu “quando”, uma vez ela não será jamais alcançada mediante um cálculo estatístico. Igualmente, o tempo da παρoυσíα paulina é o tempo kairológico, que exibe o “como” (Wie) se espera o evento escatológico e não ao “que coisa” (“Was”). Se compreendêssemos sob este último aspecto, reduziríamos a vinda de Cristo a um fato que já é real e cognoscível, ou seja, a um evento cronologicamente determinável. A indeterminidade da παρoυσíα coloca o cristão individual diante do fato de que todo “instante” pode ser aquele aguardado; por essa razão, Paulo deseja de seus “irmãos” de Tessalônica sobriedade e Wachsamkeit (vigilância) (cf. Vicari, 1996VICARI, D. “Ontologia dell'esserci. La riproposione della ‘questione dell'uomo’ nello Heidegger del primo periodo friburghese”. Zamorani: Torino, 1996., pp. 94-96).

  • 1
    Para a contextualização desta preleção acadêmica e do lugar da religião no caminho de pensamento de Heidegger, ver Kirchner, 2014KIRCHNER, R. “Heidegger: da filosofia fenomenológica à fenomenologia da religião”. Numen: revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, Vol. 17, Nr. 2, pp. 135-168,2014..
  • 2
    Nesse sentido mencionamos as seguintes obras: Dieter Thöma (1990)DIETER, T. “Die Zeit des Selbst und die Zeit danach”. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1990., Matthias Jung (1990)MATTHIAS, J. “Das Denken des Seins und der Glaube an Gott - Zum Verhältnis zwischen Philosophie und Theologie im Denken Martin Heideggers”. Würzburg: Königshausen & Neumann,1990., Jeffrey A. Barash (1988)BARASH, J. A. “Martin Heidegger and the Problem of Historical Meaning”. Den Haag: Nijhoff, 1988., Theodore Kisiel (1993)KISIEL, T. “The Genesis of Heidegger’s ‘Being and Time’”. Berkeley/Los Angeles/ London: University California Press, 1993., Jaromir Brejdak (1996)BREJDAK, J. “Philosophiacrucis. Heideggers Beschäftigung mit dem Apostel Paulus”. Peter Lang: Frankfurt am Main, 1996., Gerhard Ruff (1997)GERHARD, R. “Am Ursprunf der Zeit. Studiezu Martin Heideggersphänomenologischem zugangzurchristlichen Religion in den ersten ‘Freiburger Vorlesugen’”. Berlin: Duncker & Humblot, 1997., Jean Greisch (2000)GREISCH, J. “L’Arbre de vie et l’Arbre du savoir. Les racines phénoménologiques de l’herméneutique heideggerienne (1919-1923)”. Paris: Cerf, 2000., Luca Savarino (2001). Destacamos, de modo particular, a investigação de Theodore Kisiel como um todo, considerando que o volume 60 da GA de Heidegger só foi publicado em 1995, e o longo capítulo dedicado aos dois cursos religiosos de 1920-1921. Kisiel evidencia aí o caráter preteorético da experiência religiosa, que “é a mais preteorética, e neste modo uma prova final do método fenomenológico” (Kisiel, 1993, p. 219: “The Religion Courses”, pp. 149-219). Nesses cursos Heidegger “em última análise procura um acesso não disruptivo à verdadeira temporalidade e historicidade dos fenômenos preteoréticos”, mesmo que “não chegue nunca a resolver completamente o paradoxo paulino da confiança e da confidência de um lado e do desespero da decisão de outro lado...”, o que pode ser associado ao ceticismo religioso e ao ateísmo professado no início dos anos de 1920. Do ponto de vista da gênese de Sein und Zeit, Kisiel julga que Heidegger extraiu do comentário às epístolas paulinas a concepção kairológica do tempo vivido e, da parte metodológica do curso de 1919-1920, a noção de indicação formal (formale Anzeige), segundo a qual o sentido de um conteúdo (Gehalt) dado em uma referência (Bezug) se determina somente com base no modo de realização ou execução (Vollzug) da dita referência. Assim, por exemplo, em Sein und Zeit, com base no modo da autenticidade ou da inautenticidade. Portanto, “kairologia e indicação formal constituirão juntas o coração mais essencial, mas em grande parte não dito, de SundZ” (Kisiel, 1993, p. 152).
  • 3
    Sobre o método da “indicação formal” e sua aplicação na interpretação das epístolas paulinas, ver Hebeche, 2005, pp. 315-355; Grupillo, 2014, pp. 84-87; Fernandes, 2016FERNANDES, M.A. “Heidegger e o método da explicação fenomenológica das cartas de Paulo”. Reflexão (PUC-Campinas), Vol. 41, Nr. 1, pp. 95-111, 2016., pp. 100-103.
  • 4
    Para a descrição fenomenológica da “expressão” (Ausdruck) enquanto se refere a uma realização viva da expressão no sentido preciso de que essa não é tomada tematicamente como objeto, mas é realizada na conversação, na pergunta e no dizer, ver os exemplos dados por Heidegger,1993, pp. 43-44.
  • 5
    A partir da "vivência do mundo do entorno” (Das Umwelterlebnis) no curso KNS de 1919, Heidegger questiona radicalmente o problema de perguntar pela “realidade” do mundo circundante justamente porque “tudo o que é real pode mundar/mundificar (kannwelten); mas nem tudo o que munda (wasweltet) tem necessidade de ser real”. Como observa com justeza S-J. Arrien, no exemplo dado por Heidegger na mesma preleção, a “cátedra advém primeiramente enquanto significatividade e não enquanto ‘realidade’”: Heidegger (1999, pp. 63. 89. 92.91); Arrien (2014, p. 81). Sobre a problemática fenomenológica do “mundo” em Heidegger, ver Carbone (2017, passim).
  • 6
    Cf. sobretudo Heidegger, 1995, pp. 98-112.149ss (§§ 26-28; Anexo ao § 26). Ver a análise de Hebeche, 2005, pp. 89-138.
  • 7
    Cf. Heidegger, 1995, pp. 99-100.149. Heidegger reforça o sentido propriamente cristão da παρoυσíα ao introduzir três termos no anexo ao § 26 da preleção: “acontecimento” (Ereignis), “como” (Wie), “quem” (Wer)? Como entender a relação dos primeiros cristãos com cada um desses termos a partir da expectativa da παρoυσíα? Enquanto segunda vida de Cristo, a παρoυσíα é um “acontecimento” decisivo na vida dos primeiros cristãos. É o acontecimento de uma presença que promete transformar para sempre a existência crente.
  • 8
    O “ter-se-tornado” é igualmente um “aceitar a proclamação em meio a uma grande tribulação”. O que é acolhido não concerne a um conteúdo mundano, mas ao “como do comportar-se na vida fática”: Heidegger, 1995, p. 95.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    04 Set 2019
  • Aceito
    20 Nov 2019
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