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Nota sobre os limites e as possibilidades da era FHC

Note on the limits and possibilities of Cardoso's era

Resumos

Num debate com dois artigos recentes sobre o Brasil no segúndo mandato FHC, submete-se a exame as condições e os limites da passagem de uma política de estabilização para uma política de desenvolvimento econômico. Entre essas condições, argumenta-se, está a inversão do discurso liberal-conservador, mediante a ênfase no desenvolvimento, na reconstrução do Estado e na reabilitação do espaço público.

Brasil sob Cardoso; Brasil


The conditions and limits of moving from a stabilization policy towards one geared to economic development are examined with reference to two recent papers on Fernando Henrique Cardoso's second presidential term. Among those conditions, it is argued, is the reversal of the liberal-conservative stance through an emphasis on development, on the rebuilding of the State, and on the rehabilitation of the public sphere.

Brazil under Cardoso; Brazil


AMÉRICA LATINA

Nota sobre os limites e as possibilidades da era FHC

Note on the limits and possibilities of Cardoso's era

Gilson Schwartz

Professor Visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo

RESUMO

Num debate com dois artigos recentes sobre o Brasil no segúndo mandato FHC, submete-se a exame as condições e os limites da passagem de uma política de estabilização para uma política de desenvolvimento econômico. Entre essas condições, argumenta-se, está a inversão do discurso liberal-conservador, mediante a ênfase no desenvolvimento, na reconstrução do Estado e na reabilitação do espaço público.

Palavras-chave: Brasil sob Cardoso; Brasil, desenvolvimento

ABSTRACT

The conditions and limits of moving from a stabilization policy towards one geared to economic development are examined with reference to two recent papers on Fernando Henrique Cardoso's second presidential term. Among those conditions, it is argued, is the reversal of the liberal-conservative stance through an emphasis on development, on the rebuilding of the State, and on the rehabilitation of the public sphere.

Keywords: Brazil under Cardoso; Brazil, development

Há nos dois textos de referência1 1 Nesse texto retomamos questões discutidas no seminário "Política e economia no primeiro mandato FHC", realizado no CEDEC (31/3/2000) a partir de textos de Schwartz e Sallum Jr. ( Tempo Social, vol. 11, n.2, 1999), sob a moderação de Eduardo Kugelmas e comentários de Marcos Nobre. desse debate um horizonte comum: o desafio de vislumbrar horizontes políticos e econômicos no contexto da passagem de urna política de estabilização para urna política de desenvolvimento econômico.

Tendo superado o pior momento da crise econômica e da queda de popularidade, a avaliação do segundo mandato do presidente FHC ainda está longe do consenso. Para os mais otimistas, o movimento recente no sentido de abrir mão da prioridade às reformas constitucionais e mesmo o afastamento em relação ao PFL sinalizam um fortalecimento do presidente e uma opção por ações de impacto mais direto na economia e mesmo por uma reforma política que conduza ao parlamentarismo. De acordo com este cenário, estaria em curso uma tendência de reforço nas condições de governabilidade, com uma centralização decisória no Poder Executivo e enfraquecimento da disputa sucessória, sobretudo em razão da luta por espaços entre os grandes partidos (PSDB, PFL e PMDB).

Já os mais céticos, mesmo reconhecendo que houve uma mudança de qualidade no pacto de poder dominante, ou seja, que a aliança pela qual se elegeu e reelegeu Fernando Henrique Cardoso representa um divisor de águas decisivo na história política brasileira, continuam alertando para a dificuldade de amadurecimento do sistema político nacional sem um fortalecimento consistente de partidos e lideranças de centro. Nesse contexto, a queda de popularidade do presidente FHC seria em boa medida irreversível, obrigando-o a se compor com os partidos mais conservadores, a abrir mão de políticas desenvolvimentistas e a ceder sempre diante do predomínio dos interesses do sistema financeiro globalizado. Dessa perspectiva, o país novamente percorreria, na disputa sucessória, uma trajetória de polarização entre direita e esquerda.

Complicando o quadro, os analistas mais céticos alertam para a importância crescente do Poder Judiciário como instância de mediação de conflitos políticos e mesmo de questionamento de reformas já proclamadas ou em fase de implementação, em especial no sistema previdenciário 2 2 Esse alerta foi feito, no debate, pelo filósofo Marcos Nobre. Poucos dias depois, houve uma decisão desfavorável do STF com relação à correção passada dos saldos do FGTS, lembrando aos mercados que mesmo sob um regime de governo amplamente sustentado sobre medidas provisórias (MPs) os riscos institucionais e políticos continuam relevantes. .

Paradoxalmente, entre os otimistas incluem-se algumas das vítimas, no próprio PSDB, das composições predominantemente conservadoras conduzidas por FHC (caso de Bresser Pereira). Fora do núcleo do poder, eles voltam a insistir na diferenciação entre o "neoliberalismo" de setores conservadores (sobretudo os do PFL) e a vocação "social-democrata" do partido do presidente. Desse ponto de vista, o encerramento do período de reformas necessariamente coincidiria com uma ruptura da aliança PFL-PSDB, ainda que não se tenha clareza quanto aos rumos da coalizão governista. De um lado, o PMDB tem buscado ocupar o espaço do PFL como principal força governista. De outro, setores do PSDB têm dado sinais de inclinação à esquerda, sobretudo no Estado de São Paulo, sob a liderança do governador Mário Covas.

No entanto, se é verdade que essas visões ajudam na elaboração de um diagnóstico de fundo do sistema político brasileiro, nunca é demais lembrar o quão arriscadas são as interpretações exageradamente ideológicas ou programáticas num país cujas lideranças cultivam formas variadas de pragmatismo oportunista. Isso é válido tanto para o PMDB quanto para o PFL ou para outros partidos menores.

Assim, embora haja de fato uma mudança relevante nos interesses e prioridades do presidente, continua bastante ambígua não apenas a definição do quadro sucessório, mas especialmente o raio de manobra para acelerar uma ampliação da agenda de política econômica que vá "além da estabilização". Complicando o quadro, pesam de um lado as articulações em favor do parlamentarismo, de outro o fortalecimento de segmentos ainda mais oportunistas no sistema político brasileiro, que atuam mediante versões atualizadas do populismo, do fascismo midiático ou sob formas de mobilização carismática, religiosa, regional, corporativista ou clientelista.

Retornando aos trabalhos que serviram de pretexto para esse debate, há uma importante linha de contraponto à aproximação desses dois textos no que se refere ao dilema estabilização/desenvolvimento. A explicitação desse contraponto certamente não resolve a equação política, mas pode eventualmente ampliar as alternativas de interpretação do "modelo" brasileiro.

Creio que a visão cristalizada em Sallum Jr. dava então a entender que o próprio sucesso da estabilização, ancorado numa aliança política inovadora, abriria caminho para a retomada de políticas de desenvolvimento, com a gradual consolidação de uma hegemonia "liberal-desenvolvimentista". Assim, Sallum Jr. estaria colocando em primeiro plano a "virtu" de uma liderança que, apesar dos infortúnios da conjuntura econômica, teria a capacidade de conduzir um projeto consistente de reorganização nacional, em que a adesão a certos princípios do liberalismo globalizante é em última análise compatível com cardápios ora mais reacionários, ora mais progressistas.

Esteja ou não correta essa minha leitura do texto de Sallum Jr. (ou mesmo que ele próprio faça uma auto-crítica por eventualmente ter concedido demais ao liberalismo como horizonte organizador dos temas em questão), o fato é que essa reconstrução da lógica político-econômica do "fernandismo" tem sido assumida por vários protagonistas da cena política. Ela é conveniente para os que defendem um peso maior ao componente social-democrata do modelo. Ela é conveniente também para os que insistem na centralidade e na prioridade à estabilização como condição necessária e suficiente para que a sociedade brasileira "avance" (rumo ao Primeiro Mundo, à consolidação da estabilidade de preços e à redução das desigualdades).

O contraponto possível é o que recusa o pressuposto liberal seja da formulação social-democrata, seja da elaboração mais conservadora. Nessa visão alternativa, não é a estabilização que, gerenciada por uma liderança virtuosa, conduz ao desenvolvimento mas, ao contrário, somente uma política de desenvolvimento que refute lógica e historicamente a adesão ao liberalismo pode conduzir a uma consolidação da estabilidade conquistada sob o império da "fortuna".

Os obstáculos a enfrentar na construção dessa visão alternativa são imensos e bastante antigos. A persuasão em ritmo de bate-estaca que serve ao consenso liberal sem dúvida produziu nas elites e nas camadas médias uma espécie de horror à ação do Estado e à reposição do espaço público, de tal sorte que o mero questionamento já é visto como retorno ao populismo e ao nacional-desenvolvimentismo.

Produz-se uma inversão: aqueles que mais se preocupam com o futuro da sociedade tornam-se resquícios burros e teimosos do passado, enquanto aqueles que defendem o "status quo" e a inserção passiva do país na suposta ordem internacional apresentam-se como paladinos da modernidade e da inovação institucional, de um futuro cuja pertinência é aceita como um resultado natural e virtuoso do livre funcionamento dos mercados. Os críticos são caricaturados como "catastrofistas", enquanto os neo-renascentistas produzem catástrofes reais, sucessivas, recorrentes.

É preciso reconhecer ainda que a esquerda muitas vezes reforça (por oposição) esse quadro fantasmagórico, objetivamente desempenhando o papel de "neobobas" quando caem na denúncia e na rejeição total do status quo, oposição niilista que em última análise recusa o combate político (assumindo assim, involuntariamente, a marginalização da política que o discurso conservador propõe ao usar as imagens de dinossauros, catastrofistas, etc).

A saída desse impasse exige uma efetiva disposição para ir além do receituário crítico tradicional, objetivamente reconhecendo que há novos temas, ou seja, reconhecendo a mudança (em vez de tachá-la sempre como reafirmação de uma dominação totalitária do capital) e, nela, a possibilidade de ação política e ampliação do espaço público.

É precisamente nesse momento que se coloca, lógica e historicamente, a possibilidade de inverter o discurso liberal-conservador e sublinhar que, para o sucesso da estabilidade, o desenvolvimento, a reconstrução do Estado e do espaço público são condições necessárias. Em vez de negar toda transformação no âmbito das economias de mercado como uma ilusão, um fetiche, é preciso dar-se ao trabalho (de mobilização política) para as possíveis orientações sem as quais nenhuma economia de mercado faz sentido.

Há, nessa operação de virar do avesso o sentido histórico do modelo liberal-conservador, vários mitos e consensos que merecem reparos fundamentais. Um exemplo é o da inevitabilidade e irreversibilidade das reformas. Que reformas? Quais são, afinal, as instituições e os padrões de regulação (inclusive de distribuição de renda e acesso ao crédito) que as novas formas de competição capitalista ao mesmo tempo propiciam e exigem para ser eficazes até mesmo do ponto de vista do capital? Em que medida essas possibilidades e exigências tornam viável a reabilitação do espaço público e a mobilização da sociedade? Em suma, trata-se de resgatar um projeto de emancipação bastante conhecido, indagando e agindo a partir do déficit de legitimidade que é inerente a qualquer economia de mercado.

Não se trata necessariamente de verborragia habermasiana. No período mais recente, o capitalismo mundial passa por transformações organizacionais e tecnológicas que objetivamente recolocam em primeiro plano os desafios de constituição de uma "ordem social". Na vanguarda, pelas exigências da economia do conhecimento. Na retaguarda, pela ameaça que a intensa acumulação de excluídos recoloca permanentemente: ameaça de uma anomia clássica, de um naufrágio na geléia geral fermentada por movimentos carismáticos, midiáticos ou explicitamente fascistas.

Afinal, o que há em comum entre fusões e aquisições, multiplicação de ONGs (Organizações Não-Governamentais), fortalecimento de agências de regulação da economia e os impasses da OMC (Organização Mundial do Comércio)?

É o desafio, em escala global, de criar um espaço público que atualize as fronteiras da cidadania. As megafusões ameaçam a concorrência e, portanto, não apenas a liberdade empresarial, mas a liberdade de expressão. As ONGs e o chamado Terceiro Setor assumem funções (sociais, políticas, técnicas) que eram exercidas pelos governos. Mas não garantem acesso universal, compromisso pressuposto (nem sempre realizado) da ação estatal.

As agências de regulação, principalmente as criadas depois das privatizações e as que se ocupam de novas tecnologiais ou meio ambiente, condicionam as estratégias e decisões das empresas, mas não se confundem com instituições convencionais como Executivo, Judiciário e Legislativo.

A OMC quer funcionar como tribunal supranacional em questões de comércio e correlatas. Mas de onde vem a força de um tribunal que não tem um Estado por trás, com poder de polícia?

Em cada um desses exemplos, questões cruciais para o desenvolvimento econômico dependem da reconstrução e da redefinição do que é o espaço público, de suas fronteiras com os direitos individuais e com a vida privada. é uma agenda política e econômica para o século 21.

Parecia, no final do século 20, que haveria uma espécie de sucção do espaço público pelos interesses e paixões privatizantes. Essa tendência gerou o seu contrário e, agora, o desafio é encontrar novas instâncias de mediação e compromisso entre o público e o privado.

O problema dessa noção de "compromisso" é que ela dá a impressão de uma balança, cujos pratos entrariam em equilíbrio. Ou da combinação química, virtuosa de duas substâncias.

Essas imagens e a própria noção de compromisso, no entanto, dependem da existência prévia daquilo que se quer combinar ou equilibrar. E o espaço público, no ciclo recente de reorganização das economias, ricas e pobres, tem sido em grande parte destruído.

Em termos políticos, ele tem sido esquecido. Para as massas mais miseráveis, tem sido substituído por "organizações" alternativas, principalmente pelas várias formas de crime organizado, mas também pelos novos movimentos religiosos e pela indústria cultural operando conteúdos e escalas rigorosamente totalitárias.

Na prática, esse desafio de reconstrução do espaço público tem recebido muito menos atenção do que seria necessário. Falta energia, entusiasmo. Mas nunca, na história humana, ocorreu a construção de espaços públicos sem a mobilização de energias utópicas e coletivas (mobilização que, no século 20, teve expressões extremas, à direita e à esquerda).

A ilusão mais perigosa desse final de século é acreditar que as tecnologias, especialmente as tecnologias da informação, têm o dom de produzir por si mesmas, de modo automático e virtuoso, o próprio espaço público sem o qual elas simplesmente não têm como progredir.

Sim, progredir, pois há nas novas tecnologias da informação uma característica, uma dimensão realmente instrumental, que em tese favorece a construção de novos espaços públicos. Trata-se do predomínio da "rede" como forma essencial da nova base técnica.

Toda rede é, por definição, uma forma cujo dinamismo depende ao mesmo tempo da coesão e da flexibilidade de seus "nós".

Ainda assim, por enquanto, a relação entre rede e democracia não passa de uma possibilidade tênue no horizonte. Entre a democracia virtual e a manipulação de bases de dados por gerentes de marketing não há necessariamente uma contradição, mas uma distância cuja superação depende de política e de instituições. Ou seja, de uma mediação que precisa ser construída num espaço público.

As novas tecnologias não são o único espaço onde esse tipo de questão se recoloca. Não é casual, por exemplo, que os ultraliberais, sempre que um banco central faz uma operação de resgate de um banco prestes a quebrar, reajam horrorizados alertando para o absurdo de um governo estar "premiando a irresponsabilidade" (problema conhecido na literatura especializada como "risco moral"). Na prática, esta seria apenas mais uma instância de supressão da liberdade privada por meio de uma inflação de uma instituição pública. Ironicamente, muitas vezes o esquerdista combate por razões ainda mais moralistas essa "intervenção" na economia de mercado, quando o que se poderia fazer com mais intensidade é negociar o grau e as condições de utilização desses fundos públicos no processo de manutenção da ordem privada. O "risco moral" de fato existe, e lidar com esse problema não é trivial. Mas não existem soluções puramente técnicas.

Em plena crise asiática, aliás, um episódio célebre de "heresia" que reforça a importância dessa agenda foi a apresentação de um punhado de interpretações "pós-consenso de Washington" pelo então economista-chefe do Banco Mundial, Joseph Stiglitz (não por acaso, afastado dessa posição).

Stiglitz sublinhava que ter inflação de até 40% ao ano pode não ser tão ruim. Ou que as privatizações foram feitas por oportunismo político, foram malfeitas e criaram problemas que dificultam a própria continuidade do processo de privatização (a crítica, mais uma vez, consiste em revelar o caráter "self-defeating" de certas políticas liberalizantes). Para o economista herético, o problema nos países em crise não é o excesso de ação do Estado, mas a falta de ação estatal.

Dessa perspectiva, o modelo asiático de desenvolvimento não sai da crise recente arranhado. é preciso reconhecer os resultados positivos de três décadas de políticas públicas e crédito dirigido no Sudeste Asiático. A China demonstra cabalmente o fracasso de políticas de "choque capitalista" ou "choque de credibilidade", como as que foram adotadas na Rússia a conselho de economistas ocidentais.

Não existe critério confiável para o nível de déficit público adequado a um país. E o que pode parecer saudável do ponto de vista macroeconômico (cortar despesas e aumentar impostos, para reduzir o déficit público) muitas vezes acaba sendo contraproducente para o funcionamento dos mercados e a eficiência da economia. Muito depende da qualidade e orientação dos gastos públicos. Sacrificar a saúde e a infra-estrutura, por exemplo, é uma emenda que piora muito o soneto.

Advertências do mesmo teor valem para o déficit nas contas externas. As relações entre liberalização comercial (abertura da economia) e competitividade são algo ainda muito misterioso para os economistas. Mas, se o objetivo é expor as empresas nacionais a mais competição, a abertura deve ser moderada. Afinal, a abertura exagerada tira as empresas locais da competição, simplesmente porque as destrói.3 3 Mais recentemente, Stiglitz voltou ao ataque, publicando um artigo bastante crítico dos organismos multilaterais. Cf. Stiglitz (2000).

No Brasil, o debate sobre modelos de desenvolvimento parece novamente subordinado a outras questões da agenda conservadora. Atualmente, "plano de metas" no Brasil significa apenas referência ao novo modelo de metas inflacionárias. O longo prazo não vai muito além de um cronograma inserido na planilha de um sistema de gerenciamento burocrático do orçamento plurianual. A Coréia, logo depois da crise, optou por aumentar os gastos em educação, ciência e tecnologia. Em vários casos, o FMI recuou diante da mobilização de governos asiáticos. No Brasil, como sempre, o vassalo foi mais realista que o rei.

Há também um vício de raciocínio nas análises financeiras globais que fazem da reforma do Estado uma condição de ajuste econômico. Assim como vários economistas imaginam que os mercados são capazes de se ajustar automaticamente, os profetas de uma nova ordem institucional supõem que os Estados Nacionais sejam capazes de se reformar.

Criou-se um consenso de que a crise ocorreu por falta de credibilidade nos governos e nas políticas econômicas. A sua superação dependeria, portanto, de reformas estruturais e não apenas de medidas de ajuste macroeconômico convencionais. Mas esse novo consenso liberal tende a subestimar as tensões políticas próprias a qualquer projeto de transformação do Estado, pois aplica à esfera do setor público a mesma lógica suposta na análise de mercados que supostamente são capazes de se auto-organizar.

Os critérios de eficiência muitas vezes são estabelecidos com base em metas e princípios de ajuste fiscal que desconsideram outras metas e prioridades, como a renovação da infra-estrutura social, a redução na desigualdade da distribuição de renda ou a implementação de políticas de combate à pobreza.

Na prática, é impossível conduzir todas as reformas ao mesmo tempo, supondo sempre que o modelo de eficiência econômica possa ter uma aplicação universal. Mas os mercados financeiros e as instituições multilaterais, quando operam, julgam e decidem sobre créditos com base nessa visão ideal, terminam provocando sacrifícios desnecessários, conflitos políticos inadministráveis e uma frustração recorrente e inevitável de expectativas (sempre sob o pretexto de que surgiu algum obstáculo "inesperado" que vai atrasar o processo de reformas liberalizantes). Ora, o problema não é dos países que se "atrasam", mas dos modelos a partir dos quais essas expectativas são constantemente formadas.

Para alguns analistas e políticos, esse tipo de viés na reforma do Estado é útil. Eles contam com a pressão externa ("gaiatsu", na expressão consagrada nos estudos sobre reformas no Japão) para romper a inércia ou superar as resistências de grupos políticos que dominam o governo. Mas os resultados dessas pressões, a começar do próprio Japão, têm sido controversos, para dizer o menos.

Mais frequente é a pressão externa assumir os contornos de uma intervenção indevida, que viola a soberania e em última análise favorece alguns grupos locais, em nome de uma suposta recuperação da governabilidade ou aumento da eficiência da economia. Novamente, a suposta racionalidade liberal é self defeating.

O Fundo Monetário Internacional, os formadores de opinião, as lideranças empresariais e boa parte do mundo acadêmico parece ignorar esse tipo de consideração. Aos poucos, entretanto, está surgindo em várias partes do mundo uma reação às armadilhas conceituais do reformismo liberal. Resta saber se esse tipo de reavaliação chegará em tempo aos eleitores e aos governos nacionais.

Haverá nas novas dinâmicas tecnológicas, financeiras e institucionais um espaço-tempo propício à atuação histórica de sujeitos políticos (os "agentes") em níveis de realidade múltiplos, com graus variados de "virtualidade"? Quais os meios e as estratégias de identificação e atuação nesse espaço-tempo? Qual a paideia da sociedade/economia do conhecimento? Como são construídas instituições virtuais e que atuam preferencialmente por meio de redes de comunicação de alcance verdadeiramente global? Como os valores e culturas locais reagem (e com que velocidade) a essa dinâmica informacional acelerada e globalizada?

No campo da filosofia moral e política, a percepção estratégica é possível apenas se houver como construir uma solidariedade que reprima e supere o darwinismo social. Essa dimensão corresponde à ética, e é a própria base sem a qual não há capitalismo, pois não há confiança na contratualidade.

A instância da contratualidade não é a descrição de instrumentos jurídicos ou instituições reguladoras, embora remeta a esses elementos concretos. Teoricamente, a contratualidade é a possibilidade de entendimento comum, ou seja, algum consenso. Consenso que é a eleição de um cenário em que, por todos acreditarem na sua viabilidade, torna-se realidade. é um wishfull thinking de proporções leviatânicas.

A existência de tecnologias de informação e a operação de redes de comunicação alimentam um novo espaço público no qual se produz esse wishfull thinking. Extravaza-se um jogo de sedução, ao mesmo tempo em que se promove a intermediação dos desejos e interesses. Entre o conflito cego e os ideais de harmonia universal surge assim um momento aberto à lógica da representação, da busca de uma medida comum insaturada num espaço-tempo que é permanentemente reconstituído e, dessa perspectiva, abriga em escalas variadas processos diferenciados de destruição criadora.

O refúgio privatista na racionalidade dos mercados ou na autosuficiência da tecnologia ainda é o risco maior para o Bem Público da nossa era.

Nas últimas semanas só se fala em Nasdaq, juros americanos e europeus, recuperação da economia asiática. Enfim, as análises do ambiente externo dominam a imprensa e os relatórios de bancos. Obviamente, há boas razões para isso: no curto prazo, dado o aumento da dependência externa da economia brasileira, vale cada vez mais o velho ditado: quando os EUA espirram, o Brasil pega pneumonia.

No entanto, é preciso relembrar, nesse momento, algo que muito em breve voltará a frequentar as análises dos investidores e agências de risco: os determinantes da situação doméstica, sobretudo analisados de uma perspectiva de longo prazo. Mesmo porque o calendário eleitoral tende a ficar cada vez mais quente e, nesse ambiente, as análises tornam-se mais cautelosas e as tomadas de decisão passam a depender mais de fatores domésticos de longo prazo.

Nessa ótica de análise de fatores internos de longo prazo, é importante registrar que desde meados da década de 80 dois desafios dominam a realidade brasileira: fazer a transição democrática e promover uma profunda reforma estrutural da economia. Já se passaram 15 anos! Predomina ainda, no entanto, a percepção de que o país continua numa espécie de "estado de transição". A consolidação da democracia ainda enfrenta importantes obstáculos. A reforma econômica estrutural continua incompleta.

Para os mais pessimistas, isso tudo apenas prova que este realmente não é um país sério. Para os menos céticos, isso apenas confirma que as grandes mudanças são apenas aparentemente rápidas ou mesmo revolucionárias, pois as sociedades levam sempre várias décadas para se transformar. Já os realistas coincidem com os menos céticos, mas ainda assim acham que a sociedade brasileira tem perdido várias e seguidas chances de acelerar as reformas, consolidar as instituições democráticas e, principalmente, fica ainda devendo muito no quesito distribuição de renda. Sem melhor distribuição de renda, a situação política e as regras da economia acabam ficando sob suspeita, sujeitas a instabilidades recorrentes, independentemente de qual seja a situação nos mercados internacionais.

No plano político, há pelo menos três preocupações fundamentais que afetam a confiança na estabilidade brasileira:

1. o sistema partidário continua frágil e as coalizões de apoio ao governo estão sempre sujeitas aos ciclos de personalismo típicos dos regimes presidencialistas fortes,

2. as relações entre os Poderes continuam marcadas pela instabilidade, sendo que a nova fronteira de conflito opõe Executivo e Legislativo ao Judiciário, o que pode já está afetando a qualidade e o ritmo das reformas econômicas,

3. o grau de exclusão social está exacerbado de tal modo que o amadurecimento ideológico e programático do eleitorado continua muito distante, o que favorece o predomínio de partidos fracos, fisiológicos e de lideranças populistas, muitas vezes perigosamente próximas ao totalitarismo fascista.

No plano econômico, o quadro talvez seja ainda mais complexo. Avançou-se muito em termos de privatização, abertura da economia e reorganização das contas públicas, mas as reformas que são mais importantes do ponto de vista estratégico para o setor privado (reforma tributária, políticas de comércio exterior, de desenvolvimento industrial e tecnológico e de regulação) continuam na sua infância.

Na prática, o governo fez muito nos últimos 20 anos para ajustar as suas contas, jogando o peso desse esfoço sobre o setor privado, sobre os trabalhadores e mesmo sobre os entes de governo subnacionais (governos estaduais e municipais). Houve excesso de centralização, abandono de políticas de desenvolvimento e, o que é pior, mesmo a qualidade do ajuste fiscal é vista com muita cautela pelos especialistas.

Por essas razões, independentemente do desfecho nas Bolsas norte-americanas ou da taxa de crescimento econômico mundial, o risco Brasil continuará elevado, o custo de fazer negócios aqui continuará elevado e a qualidade de vida, sofrível. O governo de FHC, para o bem e para o mal, mesmo com dois mandatos, deve entrar para a história como mais um passo numa longa e penosa transição.

REFERÊNCIAS

Sallum Jr., B., 1999, "O Brasil sob Cardoso, neoliberalismo e desenvolvimentismo". Tempo Social, R. Sociol. USP, Volume 11, n.2, out., edit, em fev. 2000.

Schwartz, G., 1999, "Além da Estabilização, do Plano Real à reconstrução da economia política brasileira". Tempo Social, R. Social. USP, Volume 11, n.2, out., edit, em fev. 2000.

Stiglitz, J., 2000, "O que eu aprendi com a crise mundial". Folha de S. Paulo, 15/04/2000, Caderno Dinheiro.

  • Sallum Jr., B., 1999, "O Brasil sob Cardoso, neoliberalismo e desenvolvimentismo". Tempo Social, R. Sociol. USP, Volume 11, n.2, out., edit, em fev. 2000.
  • Schwartz, G., 1999, "Além da Estabilizaçăo, do Plano Real ŕ reconstruçăo da economia política brasileira". Tempo Social, R. Social. USP, Volume 11, n.2, out., edit, em fev. 2000.
  • Stiglitz, J., 2000, "O que eu aprendi com a crise mundial". Folha de S. Paulo, 15/04/2000, Caderno Dinheiro.
  • 1 Nesse texto retomamos questões discutidas no seminário "Política e economia no primeiro mandato FHC", realizado no CEDEC (31/3/2000) a partir de textos de Schwartz e Sallum Jr.
  • (Tempo Social, vol. 11, n.2, 1999),
  • 1
    Nesse texto retomamos questões discutidas no seminário "Política e economia no primeiro mandato FHC", realizado no CEDEC (31/3/2000) a partir de textos de Schwartz e Sallum Jr. (
    Tempo Social, vol. 11, n.2, 1999), sob a moderação de Eduardo Kugelmas e comentários de Marcos Nobre.
  • 2
    Esse alerta foi feito, no debate, pelo filósofo Marcos Nobre. Poucos dias depois, houve uma decisão desfavorável do STF com relação à correção passada dos saldos do FGTS, lembrando aos mercados que mesmo sob um regime de governo amplamente sustentado sobre medidas provisórias (MPs) os riscos institucionais e políticos continuam relevantes.
  • 3
    Mais recentemente, Stiglitz voltou ao ataque, publicando um artigo bastante crítico dos organismos multilaterais. Cf. Stiglitz (2000).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      2000
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