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Comentário a “Deleuze e a escrita: entre a filosofia e a literatura”

A vergonha de ser um homem: haverá razão melhor para escrever? Mesmo quando é uma mulher que devém, ela tem de devir-mulher, e esse devir nada tem a ver com um estado que ela poderia reivindicar. Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação tal que já não seja possível distinguir-se de uma mulher, de um animal, ou de uma molécula: não imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto se singularizam numa população. (DELEUZE, 1997DELEUZE, Gilles. Crítica e Clinica. Tradução de Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997., p. 11).

Quando se leem as páginas do belíssimo artigo “A Literatura e a Vida”, escrito pelo filósofo francês Gilles Deleuze, presente em Crítica e Clínica, parece impossível não se sentir perplexo e, ao mesmo tempo, tocado diante da maneira como o pensador desdobra suas questões, entre as quais aquelas que envolvem os temas que cercam a relação entre literatura e vida, filosofia e literatura, escrita e clínica, devir etc. Embora o ensaio do Christian, “Deleuze e a Escrita: Entre a Filosofia e a LiteraturaVINCI, Christian Fernando Ribeiro Guimarães. Deleuze e a escrita: entre a filosofia e a literatura. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 53-72, 2022.” (2021), não se limite a lançar luz apenas sobre o texto “A Literatura e a Vida”, uma vez que o autor, na sua reflexão, ultrapassa as fronteiras desse importante texto deleuziano, mesmo assim, talvez não seja insensato adotá-lo como ferramenta estratégica, a qual permite cercar uma parte substancial dos temas ali presentes, numa tentativa de conquistar as condições mais favoráveis, quando se trata de um encontro bem-sucedido, em termos de pensamento com o artigo em questão.

Se a ideia nuclear parece passar pelo modo como o filósofo francês constrói uma produtiva zona de vizinhança entre filosofia e literatura, preenchida por uma escrita atravessada de elementos clínicos, não se pode deixar de levar em conta a relação traçada por Deleuze entre o filosófico e a compreensão não filosófica, algo bem apontado por Christian, em sua exposição. Por qual razão se faz necessária essa ligação entre o filosófico e o não filosófico? É que a aliança criada pelo filósofo francês entre filosofia e não filosofia apenas seria possível, mediante a presença do que Deleuze designou como intercessores. Os intercessores se constituem como uma espécie de diferença de potencial presente nos encontros entre domínios pensantes, a qual retira o pensamento de sua imobilidade natural, capaz de produzir o pensar no pensamento, já que qualquer ato criativo na filosofia não seria natural ou inato, dependendo sempre de um encontro violento com signos que forçam o pensamento a pensar, sendo a literatura um desses domínios, marcado por signos que colaboram nos processos de criação do pensamento filosófico.

Não se contentando em narrar vivências individuais, lembranças, viagens, amores, lutos, sonhos, fantasmas, mas empenhando-se em revelar as singularidades que atravessam os indivíduos como potência impessoal, essa concepção da escrita apresentada pelo filósofo francês não teria por fonte o indivíduo ou a individualidade, não se apoiaria em qualquer quadro, como neurose, psicose etc., pois tais quadros clínicos não se constituiriam como passagens de vida, contudo, como estados nos quais a vida cairia sempre que processos de pensamento são interrompidos.

De acordo com ChristianVINCI, Christian Fernando Ribeiro Guimarães. Deleuze-guattarinianas: experimentações educacionais com o pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1990-2013). 2014. Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014., Deleuze chama essa potência impessoal e singular captada pelo exercício da escrita de uma vida: ou seja, pura corrente a-subjetiva de consciência, consciência pré-reflexiva impessoal, duração qualitativa sem eu, capaz de emergir, quando a vida de um indivíduo dá lugar a uma vida impessoal, singular, que, na condição de puro acontecimento, se libera dos acidentes de uma vida interior ou exterior, se liberta de um processo qualquer de subjetivação, dado num campo demarcado por acidentes objetivos e subjetivos. A propósito, a maneira como o filósofo francês, em parceria com Félix Guattari, entende a relação entre criação conceitual e problema, temas presentes na obra deleuziana bem antes do trabalho em conjunto com o psicanalista e militante francês, são ótimas referências acerca do modo como uma consciência individual parece capaz de apreender uma vida imanente e impessoal, enquanto expressão da criação conceitual filosófica.

Por outro lado, não se pode deixar de observar, no pequeno texto “Imanência: Uma Vida”, a forma como Deleuze mostra uma espécie de ressonância entre filosofia e literatura, esfera filosófica e não filosófica, tendo em vista o tratamento em relação a uma potência imanente da vida, capaz de modificar os espaços ordinários das coisas. É uma potência imanente da vida tratada, segundo o filósofo francês, pela literatura, que na qualidade especial de medicina responde pela promoção de uma nova sintomatologia, uma vez que o julgamento clínico não parece capaz de apreender uma vida na imanência, por ser atravessado de juízos preconceituosos. Se a relação entre filosofia e literatura parece tão importante para Deleuze, seria porque os modos de expressão literária, como aponta Christian, não só seriam os mais capazes de evidenciar certos sintomas que passam pelo mundo, mas, ainda, de denunciar a maneira como determinadas forças respondem pelo processo de domesticação das potências mais criadoras da vida, impondo formas de agir e de pensar aos sujeitos constituídos. Ao reconhecer a literatura como uma espécie de medicina, como um importante instrumento a serviço da decifração de certos signos ou sintomas, o filósofo francês pretende sugerir não só o modo como certas forças parecem fadadas a ser caladas junto à experiência ordinária, todavia, principalmente, recuperadas pelo exercício literário, se apresentando como horizonte de expansão das experiências, forças essas classificadas por Deleuze como devir. Como bem interroga Christian, no seu ensaio, ao aludir a imanência, como evitar que se caia na transcendência, visto que só parece ser possível fazer e não falar de imanência?

Seria nesse sentido que a literatura funcionaria como grande aliada da filosofia, uma vez que somente a literatura parece ser capaz de dar conta da produção do real, por meio da libertação de forças que foram caladas ao longo do tempo. Ainda nessa direção, diferentemente da perspectiva apresentada num objeto-livro enquanto caixa fechada, onde a escrita consiste na condição de segredo a ser decifrado, interpretado, comentado etc., por um leitor, o filósofo francês oferece aos seus leitores uma escrita que não se vê receptiva a tentativas de decifração ou interpretação, menos ainda passível de comentários, exigindo outra espécie de leitura. Esta só poderá ser captada pelas intensidades que atravessam o texto, tendo em vista a maneira como o livro se conecta com um fora! É que, para o filósofo francês, segundo nota Christian, escrever não se diferencia de funções vitais, como evacuar, gozar, comer, falar, agir etc., ligadas ao funcionamento do corpo, colocando o processo que envolve a escrita mais próximo da vida. Escrever, portanto, para Deleuze, nunca foi representar, mas uma potência vital a serviço da vida, conectada à ordem dos problemas vigentes e urgentes que cercam um pensador e seus experimentos com o pensamento.

Em suma, do ponto de vista deleuziano, a filosofia deve estar conectada à vida, observará Christian, exigindo um tipo de escrita literal, poética, sintonizada ao campo das experiências não filosóficas, numa ressonância com experimentações realizadas com vários domínios, entre eles, o literário, sem o qual qualquer relação com o pensamento seria ofuscada, perdendo-se num exercício exegético de caráter representativo. “A vergonha de ser um homem: haverá razão melhor para escrever?” (DELEUZE, 1997DELEUZE, Gilles. Crítica e Clinica. Tradução de Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997., p. 11). Não se escreve, desde que a relação seja estabelecida com forças não humanas? Não seria necessário buscar nessas forças o que há de genuíno, quando se trata do pensamento? Parece-me que, entre tantas questões suscitadas pelo belo ensaio do Christian, esses aspectos não deixaram de ser abordados e desdobrados.

Referências

  • DELEUZE, Gilles. Crítica e Clinica. Tradução de Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.
  • VINCI, Christian Fernando Ribeiro Guimarães. Deleuze-guattarinianas: experimentações educacionais com o pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1990-2013). 2014. Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
  • VINCI, Christian Fernando Ribeiro Guimarães. Deleuze e a escrita: entre a filosofia e a literatura. Trans/form/ação: revista de Filosofia da Unesp, v. 45, n. 2, p. 53-72, 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Fev 2022
  • Aceito
    17 Fev 2022
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