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A doutrina dos elementos entre a poética e a epistemologia de Gaston Bachelard

Resumos

O artigo propõe estudar o papel que a doutrina dos elementos ou princípios materiais fundamentais da natureza, presente na filosofia pré-socrática, desempenha na estética de Gaston Bachelard; ao mesmo tempo, o texto busca assinalar de que maneira essa referência - que, na Antiguidade Clássica, traduzia entre os filósofos gregos uma concepção da physis, do mundo da experiência sensível -, não pôde por outro lado ser apropriada pela epistemologia bachelardiana, cuja elaboração se alimentou da revolução intelectual operada no campo científico entre o final do século XIX e o início do XX.

Estética; Bachelard; pré-socráticos


The article proposes to study the role the doctrine of fundamental material elements of nature, present in the pre-Socratic philosophy, plays in the aesthetics of Gaston Bachelard. At the same time, it seeks to point out how this reference, which in Greek Antiquity expresses a philosophical conception of physis - of the world of sensible reality - could have not been appropriated by the epistemology of Bachelard, influenced and formed by the intellectual revolution wrought in the scientific field between the end of the nineteenth century and early twentieth century.

Aesthetics; Bachelard; pre-Socratic


ARTIGOS

A doutrina dos elementos entre a poética e a epistemologia de Gaston Bachelard

Alexandre Arbex Valadares

Doutor em Filosofia pela UFRJ e membro do Grupo de Pesquisa Spinoza & Nietzsche: Estudo das Filosofias da Imanência. alexarbex@gmail.com

RESUMO

O artigo propõe estudar o papel que a doutrina dos elementos ou princípios materiais fundamentais da natureza, presente na filosofia pré-socrática, desempenha na estética de Gaston Bachelard; ao mesmo tempo, o texto busca assinalar de que maneira essa referência – que, na Antiguidade Clássica, traduzia entre os filósofos gregos uma concepção da physis, do mundo da experiência sensível –, não pôde por outro lado ser apropriada pela epistemologia bachelardiana, cuja elaboração se alimentou da revolução intelectual operada no campo científico entre o final do século XIX e o início do XX.

Palavras-chave Estética, Bachelard, pré-socráticos.

ABSTRACT

The article proposes to study the role the doctrine of fundamental material elements of nature, present in the pre-Socratic philosophy, plays in the aesthetics of Gaston Bachelard. At the same time, it seeks to point out how this reference, which in Greek Antiquity expresses a philosophical conception of physis – of the world of sensible reality – could have not been appropriated by the epistemology of Bachelard, influenced and formed by the intellectual revolution wrought in the scientific field between the end of the nineteenth century and early twentieth century.

Keywords Aesthetics, Bachelard, pre-Socratic.

É predominante, conquanto controversa, a interpretação segundo a qual a obra de Bachelard se divide em duas vertentes incomunicáveis: a sua epistemologia e a sua poética. A rigidez dessa demarcação torna dispensável a complicada tarefa de conciliar, em um sistema coerente e unívoco, o pensamento bachelardiano. Os dois continentes sobre os quais ele estendeu as suas explorações parecem estar ainda separados pela língua, pelo estilo que, em cada um deles, Bachelard adotou. Tal diferença adverte o leitor, que pretende percorrê-los, a não sobrepor suas cartografias, e desencoraja o estudioso, que deseja agregá-los, a insistir na busca do istmo remoto que unificaria, em uma totalidade original, a extensão poética e a extensão epistemológica. Por outro lado, cumpre considerar que Bachelard não projetou deliberadamente essa disjunção; ela interveio, por assim dizer, inesperadamente no desenvolvimento de sua obra. A preocupação do cientista de afastar as imagens que turvavam a compreensão dos processos naturais acabará por absorvê-lo nelas mesmas, e sua inteligência cederá de bom grado a essa influência.

Os comentadores de obra bachelardiana convêm em situar o início dessa transição em "A psicanálise do fogo". A anunciada intenção de Bachelard de examinar nessa obra as imagens e fantasmagorias suscitadas nos homens pelo espetáculo do fogo – e cujas expressões o filósofo recolherá na poesia – visava desmistificar toda a simbologia que envolve, desde os mais recuados tempos, esse fenômeno natural. A forte impressão que causa sobre o espírito a imagem do fogo inibe, no cientista, a instauração de uma atitude objetiva, desassombrada, diante de suas manifestações. Bachelard não tardará a admitir a impossibilidade de alcançar essa neutralidade capaz de anular o trabalho da imaginação. Dessa constatação, porém, não resultará um estudo científico da produção das imagens, uma tentativa de submeter ao método da ciência a profusão de alegorias inspiradas pelo fascínio dos homens diante do fogo; diferentemente disso, Bachelard adiantará, na introdução a essa obra capital, a conclusão de que a poética e a ciência não são redutíveis uma à outra, e que cabe à filosofia pôr à luz a sua complementaridade recíproca, confrontando o "espírito poético expansivo", contagiável pelo maravilhamento das imagens, ao "espírito científico taciturno", empenhado em conservar, diante delas, uma antipatia precavida (Bachelard, 2008, p. 9).

Bachelard, no entanto, não insiste especialmente nessa demarcação, nem empreende, em sua obra, o esforço de síntese que a missão assinalada à filosofia em "A psicanálise do fogo" recomenda. Que ele não imporá a si mesmo uma disciplina de método ao discorrer sobre as imagens, o prefácio mesmo de "A água e os sonhos" deixa bastante explícito. Nele, Bachelard confidencia ter-lhe sido impossível manter a reserva de razão que a proposta de sua psicanálise dos elementos exigira-lhe a princípio: ele afirma então que, durante a produção dessa obra, as imagens da água haviam granjeado muitas vezes sua "adesão irracional", terminando por arrebatá-lo irresistivelmente. Mais que reconhecer a força persuasiva das imagens, essa transigência manifesta uma percepção, por parte de Bachelard, acerca da insuficiência do método científico para fundamentar uma metafísica da imaginação (Bachelard, 1978, p. 196). Em seu significado profundo, essa crítica confere à imagem, às produções da imaginação, um estatuto epistemológico próprio, na medida em que aponta um limite além do qual o conhecimento científico não tem aplicação. No plano poético, as coisas são apreendidas pelo sonho, e a dinâmica onírica da produção das imagens somente pode ser compreendida a partir da experiência de seus efeitos sobre a sentimentalidade.

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É digno de nota que, na primeira fase de sua poética, Bachelard se tenha ocupado de um tema que poderia ser considerado a origem da epistemologia ou da reflexão sobre a natureza: a doutrina dos elementos. A concepção bachelardiana da imaginação poética tem seu centro nessa doutrina; ela versa sobre a imagem dos elementos fundamentais, das chamadas substâncias primeiras que figuravam nas especulações filosóficas da Antiguidade Clássica. Essa correlação não deixa de surpreender quando se tem em conta que, em sua epistemologia, Bachelard, cuja sólida formação científica é objeto de admiração, assumira a tarefa de elaborar uma interpretação filosófica – não cartesiana – para a nova ciência que, com a teoria da relatividade e a mecânica quântica, florescia no início do século XX.

A busca de um princípio fundamental a partir do qual todas as coisas pudessem ser explicadas nasceu, conforme a tradição, na Grécia Clássica. Recorrendo igualmente à autoridade da experiência e dos mitos, os primeiros filósofos pré-socráticos usavam de uma linguagem poética para expor suas considerações sobre a physis. Na origem, o código da epistemologia era a poesia. Aristóteles, para se referir a esses pensadores, empregará o termo "fisiólogos" (Aristóteles, "Metafísica", livro I) de preferência a "filósofos", e lhes censurará amiúde a falta de clareza das fórmulas, mais sugestivas que assertivas, tão discrepantes da estrutura lógico-dialética que deverá, a partir dele, assinalar a marca própria da argumentação racional. O estilo de Empédocles, médico, orador e profeta, cuja obra foi escrita em versos, Aristóteles chamará "balbuciante", e a afirmação de Tales de Mileto, segundo a qual todas as coisas derivam da água, associá-la-á às antigas crenças teológicas do mundo grego. A Heráclito, como se sabe, a tradição reservará a alcunha "o obscuro", em virtude de seu modo enigmático de se exprimir.

As críticas de Aristóteles e do racionalismo aos pré-socráticos assentam no fato de esses filósofos comunicarem suas reflexões a respeito da natureza por meio de um discurso não filosófico ou não científico, girando em torno de imagens em vez de conceitos. Bachelard postula haver uma anterioridade das imagens sobre as ideias, em particular das imagens que a natureza oferece diretamente e "que apreendem a matéria e o movimento dos elementos naturais" (Bachelard, 1997, p. 191). Mas sob que aspecto se pode dizer que a evocação na poética bachelardiana dos quatro elementos – terra, fogo, ar e água – que, na aurora da filosofia grega, sintetizavam a unidade fundamental da natureza, tem o sentido de uma crítica à tradição racionalista e de uma afirmação da imaginação como fonte de conhecimento?

De acordo com Aristóteles, os pré-socráticos conferiam estatuto ontológico aos elementos naturais ao suporem a existência de um princípio material universal: a imanência desses elementos em todas as coisas, como substância constitutiva do existente, explicava a permanência da unidade material da natureza sob a aparente modificação das formas exteriores. A crítica de Aristóteles a essa filosofia anterior está, contudo, integrada na construção de sua própria filosofia; ele examina através das lentes de seu racionalismo as imagens ideadas pelos pensadores antigos. Em vez de apreender o sentido sob o qual eles percebiam a natureza, Aristóteles interpreta as sentenças dos pré-socráticos à luz da relação delas com sua filosofia, como se não as considerasse pensamentos originais, mas apenas tentativas de vista mais curta. De fato, a conjectura de que, para os pré-socráticos, os elementos naturais constitutivos das coisas eram a causa material delas é já uma proposição aristotélica. Aristóteles sustentava, com efeito, que, ao presumirem nos elementos da natureza material os princípios fundamentais do ser, seus predecessores não haviam referido senão uma das quatro causas pelas quais o ser deve ser explicado – além da causa material, as causas formal, eficiente e final.1 1 A principal crítica de Aristóteles a Tales diz respeito à insuficiência da causa material – a água, no caso de Tales, de acordo com sua interpretação – para a explicação do movimento visível na natureza. A expressão por meio da qual Tales concebia a natureza como algo vivo e animado – "o mundo está cheio de deuses" – parece tão alegórica e generalista quanto sua proposição sobre a água, mas não se confunde com o animismo antigo que atribuía o movimento das coisas aos espíritos que nelas habitavam. Tales descreve o real como uma totalidade que manifesta um poder de transformação que não é humano e que, por sua permanência, pela infinidade de suas variações e pela sua magnitude, deve ser considerado como algo divino. A noção mesma de causa e a ideia de que o conhecimento verdadeiro das coisas consiste no conhecimento de sua causa – ideia que distingue a pergunta pela causa das coisas como a questão filosófica por excelência – não é formulada, nesses termos, senão por Aristóteles.

É possível que Tales, por exemplo, não tenha meditado em relações de causalidade ao afirmar que a terra procede da água. Ele se limita a sugerir que a matéria se solidificou a partir da água sobre a qual flutua, sem necessariamente concluir disso que a terra é feita de água. Kirk e Raven (1969, p. 138) ressalvam que Tales provavelmente derivou essa cosmogonia do mito egípcio das águas primordiais – imagem, aliás, recorrente nas narrativas bíblicas que dizem ter Deus fundado o mundo sobre os mares e estendido a terra sobre as águas (Salmos, 136: 6) –, e não da concepção grega de um rio-oceano circundante à terra. A rigor, o que parece estar por trás do pensamento de Tales é a ideia mitológica de que toda a terra era, na origem, água, e não a hipótese de que a água é o conteúdo material gerador de todos os seres.

Nietzsche (1987, § 3) declara que a proposição de Tales sobre a água é genuinamente filosófica. De seu ponto de vista, a afirmação de que a água é origem e matriz de todas as coisas consiste menos em uma hipótese científica que em uma representação da unidade do ser. Ela tem, portanto, o feitio de um postulado metafísico, formulado a partir de uma operação de abstração. O que está contido na ideia de Tales, de acordo com Nietzsche, é o pensamento: "tudo é um". A frase de Tales exprimiria uma intuição filosófica autêntica, alçada à transcendência por um ingrediente especial da filosofia: a fantasia, isto é, uma espécie de pressentimento da verdade, que se antecipa à possibilidade de produzir, a partir dela, certezas demonstráveis. Para Nietzsche, a tradução de uma intuição desse tipo em linguagem lógico-dialética acabaria por reduzi-la a uma metáfora empobrecedora. Curiosa sugestão, que Bachelard poderia subscrever: o discurso racional é um discurso metafórico do ser. Tales, segundo a leitura nietzschiana, rompera a seu modo a crença grega de que a realidade se circunscrevia à relação entre os homens e os deuses – dos quais a natureza não seria mais que uma metamorfose –, para dizer que não é o homem, mas a água, a realidade das coisas. Em outras palavras, Tales tornou-se o primeiro filósofo justamente por dar a essa afirmação a forma de um conceito, ainda que, ao desejar comunicar a unidade do todo, tenha recorrido a um elemento material, visível: a água.

De toda sorte, é difícil saber se, no dito de Tales, a imagem da água materializa a ideia da unidade do ser. Bachelard poderia dizer que Tales encontrou nesse elemento a forma de dar constância e fixidez ao seu devaneio; em "A água e os sonhos" (Bachelard, 1997, p. 4), ele alude a esse procedimento comum da "filosofia primitiva", que associava a seus princípios formais os elementos da matéria. Para Bachelard, o pensamento filosófico antigo estava ligado a uma imaginação material, a "forças imaginantes naturais", que, por emanarem dos elementos não criados da natureza, constituem o substrato universal a partir do qual se gestam as figuras da imaginação dos homens. O poder sedutor que ainda se desprende de tais imagens, conservado mesmo ao longo de todo o processo de desmistificação da natureza empreendido pela ciência, explica-se pela radicalidade dos elementos que as inspiram. Sua irredutível primitividade na ordem da natureza, insuscetível de ser decomposta em partes mais simples, confere-lhes como que o caráter de unidades constitutivas do real. Proposições como a de Tales comovem a inteligência porque sua potência expressiva provém dos "devaneios fundamentais", dos arquétipos mais antigos da imaginação. Elas revelam o modo pelo qual a imaginação fecunda a inteligência e restitui ao pensamento a perspectiva do sonho e da poética. Como observa Bachelard, a força de uma ideia filosófica está na sua fecundidade.

As metáforas da água, segundo Bachelard (1997, p. 15), anunciam o sentido de uma "maternidade profunda", a imagem da fonte de onde jorra um nascimento contínuo. Noutras palavras, elas manifestam a ideia de origem, de anterioridade, ainda que, em Tales, a anterioridade ontológica, dada pela ideia de "água elementar" – anterioridade do ponto de vista do ser – se confunda com a anterioridade cronológica das águas primigênias – anterioridade do ponto de vista da geração. Mas, uma vez que a água é um elemento natural, tudo que se forma a partir de sua substância é imanente a ela. Por essa razão, a água pode apresentar-se à imaginação como o ser total, como o elemento da unidade. Bachelard afirma que as metáforas da água, imbuídas de um valor ontológico, conferem ao mesmo tempo imaterialidade à representação da ideia de unidade na imaginação. A unidade, como conceito, produz-se a partir do cruzamento de imagens (ibidem, p. 53), do reflexo de imagens sobre imagens. A água é a imagem absoluta porque engloba o seu próprio reflexo.

O reflexo das águas enseja uma metáfora sobre a contemplação. Seu nascimento poético – a imagem em que convergem o reflexo e a reflexão – toma forma no mito de Narciso. O jovem Narciso contempla sua própria imagem na superfície da fonte, enamora-se pelo reflexo de sua beleza e é consumido pelas águas. Oscar Wilde, no conto "O discípulo", acrescenta uma cena a esse desfecho, e parece duplicar, ao invertê-la, a relação entre sujeito e objeto. Ele descreve um diálogo entre as ninfas que vêm deplorar o desaparecimento do jovem e a fonte que recebeu seu corpo: é então a fonte que declara sua paixão por Narciso, em cujos olhos ela podia admirar a beleza de suas águas. Mas a dualidade é apenas aparente: a narrativa de Wilde ilustra, com efeito, a comunhão ou a unidade de sujeito e objeto, do contemplador e do contemplado. Bachelard afirma que a natureza imaginária realiza a unidade da natureza naturante – a natureza considerada como produção, como conjunto de forças em atividade, como "sujeito" – e da natureza naturada – natureza considerada em sua forma realizada, como "objeto": a natureza contemplada é um reflexo sem espelho, sem duplicidade; ela impõe-se como contemplação. É esse o sentido da frase de Joachim Gasquet, citada por Bachelard (1997, pp. 26-27): "O mundo é um imenso Narciso ocupado no ato de se pensar". O mundo se pensa primeiro em sua própria imagem, isto é, no seu reflexo nos olhos dos homens, como no conto de Wilde. O homem contemplativo é o homem que especula, isto é, que se converte em "espelho", em lugar de reflexão.

A contemplação, em sua forma primordial, é o que Bachelard (1978, p. 201) chama "devaneio"; ela expande a imagem que tem diante de si, foge ao objeto próximo e se entrega à imensidade, a um mundo que "traz o signo do infinito". A intuição filosófica de Tales, ainda que especule sobre a constituição física do mundo, tem a forma do devaneio poético.

Contudo, as ideias de imobilidade e permanência, suscitadas por essa ordem de metáforas que encontra nas águas calmas a sua imagem, compartilham sua substância com as ideias de fluxo e mudança. Na filosofia de Heráclito, diz Bachelard, a água é o elemento do transitório: "águas distintas fluem sobre aqueles que entram nos mesmos rios" (Frag. 12, apud Kirk; Raven, 1969, p. 277), e o destino dos homens emula o destino da águas que correm. Eles são, Borges di-lo em um poema ("Final de ano", 1989), as gotas do rio de Heráclito; não podem entrar nos mesmos rios porque já não são os mesmos homens.

O rio é a ancestral metáfora do tempo, por isso a morte heraclitiana, que a poética de Bachelard valorizará, é "tornar-se a alma em água", isto é, dissolver-se na matéria do tempo (Fr. 68, apud Bachelard, 1997, p. 59). A água corrente ilustra a sensação de perda e dissipação. Sua natureza fluida – a impossibilidade de captar as coisas em estado de imobilidade – é representada, por exemplo, nos relógios derretidos pintados por Salvador Dalí, e essa fusão com a imagem de objetos palpáveis, dando-lhes uma aparência deformada, serve, ademais, para aludir à corrupção da matéria no tempo. Aristóteles já identificara a herança heraclitiana na concepção de Platão acerca do mundo sensível, que o caracteriza como fluxo perpétuo, ou seja, como duração e movimento, em contraposição à imobilidade perene do mundo das ideias. A matriz poética de Heráclito que permeia essas imagens não resume, entretanto, sua filosofia. A água não é seu elemento fundamental, e o devir perpétuo das coisas, figurado pela imagem do rio, não se assimila à ideia de dispersão.

O desejo de compreender o movimento das coisas na natureza despertara o espírito filosófico grego, e Heráclito foi, entre os pré-socráticos, o pensador que concebeu, em termos mais explícitos, o mundo como uma totalidade em contínua mutação. Mas, se a mudança e a variação dos estados da matéria se lhe apresentavam como fenômenos universais, o que mais lhe importava explicar era a estabilidade subsistente a todas as transformações (Kirk; Raven, op. cit., p. 265). Heráclito supunha haver um Logos a presidir às mudanças em curso no mundo, isto é, uma razão ou medida a reger a disposição bem proporcionada das coisas, de tal modo que a natureza, em transformação perpétua, conservava sempre sua unidade. Os famosos fragmentos em que Heráclito afirma a unidade dos contrários – o dia e a noite, a fome e a fartura, o idêntico e o não idêntico – e celebra a guerra como rainha de todas as coisas (Frag. 53, apud Kirk; Raven, op. cit., p. 267) integram-se na ideia de um todo que é uno e de uma unidade da qual todas as coisas procedem. As coisas contrárias, a rigor, não se excluem; elas são coextensivas, convertem-se umas nas outras e tornam a ser o que eram, compondo, em suas tensões recíprocas, um todo harmônico. A unidade do rio depende da regularidade do fluxo das águas que o formam (Kirk; Raven, op. cit., p. 280).

Era provável que Heráclito considerasse o Logos como um constitutivo real das coisas. Kirk e Raven (op. cit., pp. 267-268) chamam a atenção para o fato de que os pensadores pré-socráticos não usavam guiar-se pelas distinções de categorias do ser que se tornaram hegemônicas na tradição filosófica, razão pela qual poderiam atribuir ao princípio de ordenação das coisas uma existência tão concreta quanto a das coisas ordenadas. O Logos, o princípio harmônico comum a todas as coisas, estaria, pois, estreitamente relacionado com o elemento natural originário – que, para Heráclito, era não a água, mas o fogo.

O fogo é o elemento da transformação que opera sobre as duas outras massas que formam o mundo – o mar e a terra. As coisas se consomem no fogo e se criam a partir dele, o fogo e as coisas se permutam como as mercadorias e o ouro. À diferença do que significava a água para Tales, o fogo segundo Heráclito é antes a fonte contínua dos processos da natureza que propriamente sua matéria-prima original. A imagem do fogo inspirava aos pré-socráticos essa dupla fabulação: de um lado, o movimento das chamas parecia dotar o fogo de uma natureza cinética, de um poder de transformação sobre os demais elementos; e, de outro, a busca pelo constitutivo material originário reconhecia o fogo como o mais sutil dos elementos. O próprio processo de combustão, em que a emissão de fumaça parece guardar a medida da matéria consumida, podia simbolizar a regra de proporção das mutações da matéria e, por extensão, a conservação da unidade a partir da guerra dos contrários. Bachelard (2008, p. 12) dirá que nenhum outro elemento é tão nitidamente capaz de receber duas valorizações tão contrárias, a ponto de simbolizar, ao mesmo tempo, o bem e o mal, e que essa contradição fazia do fogo um dos princípios de explicação universal. Heráclito supõe que o fogo, elemento cósmico, devia compor também a alma dos homens, e aduzia, para tanto, duas explicações: em primeiro lugar, a natureza do fogo parece dotada de um princípio diretivo em relação à matéria (o corpo), uma vez que é capaz de moldá-la; além disso, o corpo vivo é quente, ao passo que um corpo morto se torna frio porque a alma se desprende dele.

Pode-se considerar que as propriedades poéticas do fogo referidas por Bachelard (2008, p. 12) – o fogo é íntimo e universal, vive nos nossos corações e no céu – entretêm forte relação de analogia com o fogo da física de Heráclito. No que diz respeito à constituição das almas, uma coincidência se assinala. Para Heráclito, as almas virtuosas têm destino diferente do das almas comuns: enquanto estas se diluem em água com a morte do corpo, aquelas sobrevivem para unir-se definitivamente ao fogo cósmico (Kirk; Raven, op. cit., p. 296). As almas virtuosas, para Heráclito, pertencem aos homens que morrem em batalhas: como suas vidas são ceifadas na plenitude da ação, a constituição de suas almas, no momento da morte, é de fogo intenso. Mas o sábio não poderia ser digno dessa morte virtuosa?

A morte de Empédocles, que, segundo o mito, se atirou na cratera do Etna para provar que era um deus, simboliza essa integração do homem ao fogo, elemento cósmico; Bachelard aludirá ao episódio em "A psicanálise do fogo" e cunhará a expressão "complexo de Empédocles" para designar o desejo de aniquilação, de uma morte que seja também um ato de oferenda ou amor do sábio que aspira à comunhão com o universo. O complexo de Empédocles ilustra a atração do fogo sobre os homens, para quem o brilho e a dança das chamas devem ter constituído o primeiro objeto de suas reflexões e devaneios. Como o mito de Narciso traduz o destino do poeta que se deixa absorver pela beleza contemplada, Empédocles sintetiza, na poética bachelardiana, a trágica condição do sábio que acaba por ser consumido pelo objeto de sua contemplação.

Empédocles assume, como elementos constitutivos do mundo, as quatro substâncias que cosmologias anteriores distinguiam – chama-lhes o úmido, o quente, o frio e o seco, isto é, a água (de Tales), o fogo (de Heráclito), o ar (de Anaxímenes) e a terra. Ele reconhece existência apenas a esses quatro elementos, e afirma que a pluralidade das formas existentes é derivada das infinitas combinações que se fazem e desfazem sucessivamente entre eles no processo de produção do mundo. O movimento e a transformação das coisas eram atribuídos, por Empédocles, à ação de dois princípios antagônicos sobre esses elementos: a Amizade, que os une, e a Discórdia, que os desune. Aristóteles ("Metafísica", livro 1, cap. IV) cogitará se tais formulações abrangeriam, além de ideia de causa material, representada pelos quatro elementos, a ideia de causa eficiente, assimilada à Amizade e à Discórdia, cujo poder atuante explicaria o processo de geração e corrupção das coisas. Parmênides, antes, supusera que o Amor ou Desejo eram princípios do universo físico. Essa indiferenciação entre coisas materiais e coisas imateriais não pode deixar de espantar; é certo que a tradição poderá encontrar aí uma antropomorfização ingênua das leis da natureza, mas, ao mesmo tempo, essa estranha correlação entre as paixões e a física revela uma compreensão do psiquismo integrada à compreensão dos processos naturais, e, sob este aspecto, se encontra com a poética bachelardiana, que relaciona a expressão da sentimentalidade à doutrina dos elementos da physis.

Ora, a poética de Bachelard propõe que o funcionamento da imaginação obedece à lei dos quatro elementos naturais. É por meio dos elementos que se efetuam as "grandes sínteses", isto é, as associações recorrentes de imagens que imprimem à imaginação uma regularidade (Bachelard, 2001, pp. 8-12). É possível, a partir da compreensão da lei das quatro imaginações materiais – e da intuição de seus padrões, de modelos metafóricos reiteradamente explorados na poesia –, postular a existência de uma física da imaginação. Os elementos são a matéria-prima da imaginação. Para Bachelard, a apreensão do real pela imaginação consiste em um lento trabalho de transformação, ou, antes, de deformação da matéria na imaginação. É a imaginação que capta o real na sua materialidade elementar: ela imagina o real como matéria porque suas imagens elementares – as imagens a partir das quais ela compõe suas fantasias – são imagens materiais. A rigor, a imaginação não representa o real, não o duplica: ela o estende, constitui-se como sua continuidade independente, como super-realidade.

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A epistemologia de Bachelard sugere acaso uma super-realidade? A título de hipótese, pode-se considerar que a razão científica, na epistemologia, desempenha papel semelhante ao da imaginação na poética: o de produzir deformações do real imediato, que se oferece como evidência, e de, sem o encarar como objeto passível de representação, apreendê-lo como matéria, como o "pretexto" (Bachelard, 1978, p. 93) que faz funcionar o pensamento científico ou que deflagra a expressão poética. Bachelard está longe de professar um idealismo subjetivo ou de colocar a questão clássica da metafísica acerca da realidade do mundo exterior. O racionalismo de sua epistemologia é um inter-racionalismo (Dagognet, 1980, p. 26), envolve, mais do que a adequação da ideia à coisa, a adequação das inteligências entre si, uma convergência dos espíritos ante um conhecimento novo que é transmissível precisamente porque é racional. Uma construção solitária, empreendida no "segredo do escritório",2 2 Bachelard, De la nature du rationalisme, apud Dagognet, 1980, p. 27. não é uma construção científica. Da mesma forma, a poética encontrará, nas figurações dos quatro elementos na imaginação material, o substrato comum das metáforas, a matriz lírica por meio da qual as imagens poéticas se tornam comunicáveis.

Dagognet (1980, p. 47) registra que o inimigo comum à poética e à epistemologia de Bachelard é a determinação visual, o privilégio da visão que dirige a contemplação filosófica ou estética e inspira um idealismo da aparência. Em seu estudo da imaginação, Bachelard não empreende, como seria facilmente presumível, uma análise da pintura. O domínio que, a seu juízo, permite penetrar na vida própria das imagens – apreendê-las não como representação ou reprodução, mas como criação de realidade – é o domínio da palavra. A poesia, ao pôr em evidência o primado da matéria sobre a forma, se revela como uma materialização do imaginário (Bachelard, 2001, pp. 7-8): sob a realidade visível das formas em sua infinita variedade, o poeta anuncia a ancestralidade comum da matéria. As imagens não são formas pré-concebidas, ideadas, e, depois, preenchidas de matéria: elas são deformações da matéria, e a matéria é o inconsciente das formas (Bachelard, 1997, p. 53), a substância em que as formas são sonhadas.

Imaginação poética e razão científica são, ambas, dotadas de uma potência materializante: o devaneio poético e a teoria científica superam e renovam o mundo (Dagognet, 1980, p. 49) na medida em que redefinem os limites da experiência por meio da qual o mundo se apresenta aos homens. Da mesma maneira que cada imagem poética criada expande os limites de nossa sensibilidade, cada precisão teórica acrescida a um sistema induz à retificação da experiência e reconfigura as condições de experimentação. Para Bachelard, a ideia é constitutiva da experiência: ela apreende o complexo, ou o particular, na generalidade da sensação, e, por esse movimento, distingue a experiência, como procedimento objetivamente orientado, da simples vivência espontânea dos eventos. O pensamento – a ideia – realiza o racional, isto é, o vetor epistemológico vai do racional ao real. A realidade não é objeto de conhecimento de um sujeito racional; o que constitui o seu objeto como realidade é o raciocínio. Essa inversão, que vai de encontro a toda a tradição do empirismo, suscita uma nova aproximação entre a poética e a epistemologia bachelardiana. Bachelard (1978, p. 97) afirma que, no pensamento científico moderno, a meditação do cientista acerca dos fenômenos da natureza toma sempre a forma de projeto, que postula uma extensão ou um aprofundamento do real em relação ao visível. Tal concepção introduz no pensamento científico uma dimensão de utopia, de devaneio, mas está claro que não se trata de uma imperfeição. Nietzsche, ao referir-se a Tales, aventou que a fantasia penetra o pensamento filosófico e o faz por vezes ultrapassar a ciência, o campo do conhecido; segundo Bachelard, o devaneio, o sonho, opera a ignição do pensamento, confere-lhe um acréscimo de energia que não apenas redunda em um aperfeiçoamento de suas formulações, mas repercute em efeitos materiais novos.

De fato, os avanços científicos não se explicam rigorosamente pela noção racional de utilidade ou pela influência que tem sobre os homens a ideia da necessidade. Bachelard (1997, pp. 75-76), em um exemplo célebre, argumenta que a utilidade da navegação não poderia jamais ser suficientemente evidente para persuadir o homem pré-histórico a escavar uma tora e se fazer às águas. É apenas retrospectivamente, olhando através das lentes da tradição, que nos inclinamos a supor que o espírito engenhoso e racional que construiu a primeira canoa seria de espécie inteiramente distinta do espírito místico e poético que povoava de ficções a natureza desconhecida. Mas nenhuma ideia de utilidade poderia prevalecer, apenas por si, sobre o risco imprevisível de enfrentar as ondas. Para que um homem se lançasse em semelhante empresa, fora preciso que interesses mais poderosos dominassem o seu ânimo. Esses interesses, afirma Bachelard, são os da quimera, da fantasia, os interesses que "sonhamos, não os que calculamos". A título de comparação, pode-se sugerir que as viagens aeroespaciais do século XX devem tanto às circunstâncias históricas e políticas que as motivaram quanto ao espírito de epopeia dos homens, e pouco, provavelmente, a uma consideração inteligente do quão útil poderia ser enviar o homem à lua.

O homo ludens não é antagonista do homo mathematicus. Como os devaneios poéticos, as matemáticas ampliam a esfera do possível. As certezas e adiantamentos da nova ciência, além de se estabelecerem sem o concurso da experimentação, conferem a esta novas perspectivas e novos materiais. Para Bachelard, as possibilidades matemáticas pertencem ao fenômeno real, mesmo que contrariem a experiência imediata: "o que é possível, no julgamento do matemático, pode sempre ser realizado pelo físico". O possível é homogêneo ao ser, e o real constitui apenas um caso particular do possível (Bachelard, 1978, p. 119).

A função realizante do pensamento manifesta-se, com efeito, no domínio da matemática. A matematização do real constitui um modo de descrever as permanências perceptíveis nos fenômenos físicos (ibidem, pp. 107-108). Essa descrição, contudo, é antes racional que realista, ou seja, ela não oferece uma ilustração da evidência, mas consiste em uma produção racional que se sobrepõe à realidade imediata das sensações, ainda que seja sugerida, pretextada, por elas. As constantes computadas nos conceitos físicos e matemáticos, portanto, representam antes o estado de desenvolvimento da ciência, isto é, o nível atual de suas fundações, que propriamente a regularidade objetiva da natureza. Tal circunstância explica por que toda revolução científica modifica o estatuto do realismo (ibidem, p. 157).

O impulso dessa modificação não advém do próprio real nem tampouco da experiência mediada por certa concepção do real: ele se produz, quase sempre, no domínio abstrato do raciocínio. Sem dúvida, para Bachelard, a realidade científica é uma realidade à imagem da razão, mas o racionalismo bachelardiano não é um idealismo puro que se compraz nas suas sofisticadas ficções; na ciência moderna, esse racionalismo dirige as experiências sobre a matéria, e, uma vez que deve estar em correlação com estas últimas, procede a uma retificação indefinida de suas noções, que já não podem mais ser ditas absolutas ou irredutivelmente simples. A ciência constrói o fenômeno. O pensamento é, em seus desdobramentos, um programa de experiências a empreender (ibidem, p. 118).

Na epistemologia de Bachelard, a realidade de uma noção científica não é dada por sua qualidade intrínseca; ela é tanto maior ou mais perfeita quanto mais amplas forem as possibilidades de sua aplicação. Noutras palavras, a realização de uma teoria científica efetua-se na verdade material de sua aplicação. Ela cria seus próprios instrumentos, e estes não são mais que materializações dos princípios que se querem demonstrar (ibidem, p. 92). O racionalismo aplicado de Bachelard pressupõe que os conceitos constituem as suas próprias condições de aplicação, e se devem provar, para efeitos científicos, teórica e tecnicamente. As proposições teóricas explicam, portanto, as condições técnicas de aplicação, e estas, por sua vez, comprovam o caráter científico de tais proposições.

Essa correlação rigorosa recorda sob certo aspecto as concepções pré-socráticas da natureza que não distinguiam entre as coisas ordenadas (a matéria) e o princípio de ordenação (a teoria), atribuindo tanto a este quanto àquelas o mesmo estatuto ontológico. Mas na filosofia de Bachelard, o sentido dessa correspondência reside na impossibilidade de, ante os avanços científicos do século XX, considerar a matéria sob a perspectiva newtoniana clássica. O estatuto da matéria é completamente modificado por sua epistemologia. Em primeiro lugar, ela rompe com a concepção idealista que afirma o primado da forma – ou da teoria – sobre a matéria, e com a tendência dominante, na história da filosofia e das ciências, a explicar a matéria pela forma, sem jamais presumir a existência independente de uma instância material e, portanto, sem jamais considerar a relação positiva entre o espírito e as propriedades da matéria. Bachelard critica tanto o idealismo ingênuo, que considera a matéria a antítese do ser – um fundo indiferente e inominável que só adquire realidade ao receber uma forma (1990, p. 18) – como o materialismo filosófico tradicional, reputando-o um materialismo sem matéria, prisioneiro inconsciente das analogias que relacionam as imagens dos quatro elementos materiais com as propriedades das substâncias (ibidem, p. 12). A epistemologia bachelardiana divorcia-se da ideia de "elemento", isto é, da suposição segundo a qual as coisas são constituídas a partir de substâncias elementares; em lugar disso, ela afirma o primado das relações sobre as coisas, sublinhando que a função de uma coisa em um contexto de relações – em um complexo – precede à natureza dela (Bachelard, 1978, p. 101).

Uma noção racional deve ser tomada em seu papel funcional, em sua aplicação com respeito a outras noções e ao real, e não propriamente no seu grau de adequação a um objeto ou experiência. A geometria não euclidiana oferece acerca disso os questionamentos mais intrigantes. Bachelard aponta que a equivalência de diversas imagens geométricas se tornou definitivamente explicável quando se estabeleceu que elas correspondiam a uma mesma relação algébrica. Quer isto dizer que a geometria se organiza como totalidade a partir de um acúmulo de relações; ela é, como ciência, um corpo constituído de relações, a síntese coerente de um conjunto de relações. Os objetos – as figuras geométricas – não possuem a raiz dessas relações; suas propriedades nascem com estas relações. A ciência moderna também abonará com suas descobertas essa mudança de perspectiva. A teoria einsteiniana da relatividade contestará a ideia de simultaneidade ou de tempo absoluto, observando que a medida mesma do tempo é sempre relativa a um dado sistema de referência, isto é, a um contexto experimental ou empírico determinado. Heisenberg lançará dúvida sobre a simplicidade da ideia de "lugar" a partir da consideração do comportamento espacial de partículas que podem deslocar-se por efeito da própria experiência que pretende precisar a posição delas. A ideia de massa, uma grandeza admitida sem esforço pela física clássica, será relativizada em função da aceleração do corpo. Einstein, por fim, confere à velocidade da luz um estatuto teórico, o que significa dizer que ele incorpora na sua conceitualização as condições de experimentação: uma vez que a velocidade da luz é a velocidade da própria experiência – da percepção dos fenômenos, dos fatos que se apresentam à visão –, ela é inscrita, pela relatividade, como velocidade-limite, no nível dos princípios teóricos.

Os conceitos, portanto, não se dão senão em relação uns com os outros e em correlação com uma experiência (Bachelard, 1978, pp. 114-115). "Longe de ser o ser que ilustra a relação, é a relação que ilumina o ser" (ibidem, p. 162): são as relações, e não os objetos, que entretecem o real, e é nessa medida que o real é uma construção racional. Essa afirmação da anterioridade da relação com respeito a seus objetos leva Bachelard a rejeitar também a existência de noções simples e universais no campo do conhecimento científico. Sua epistemologia, em contraposição à concepção cartesiana do método, concluirá que o pensamento científico parte, não do simples, do elementar, que é apenas aparente (ou seja, apresenta-se como imagem), mas do complexo, cuja realidade não é objeto da experiência imediata. Na ciência moderna, o "simples" não é dado como tal; ele é produto do processo de simplificação de um fenômeno de indefinida complexidade; da mesma forma, a noção "simples" com que se supõe dar conta da unidade irredutível de um fenômeno só pode ser apreendida como tal a partir de suas relações com o conjunto de princípios ou postulados que sustenta a sua definição. O exemplo oferecido por Bachelard sintetiza essa inversão: "As paralelas existem depois, não antes do postulado de Euclides" (ibidem, p. 160).

À crítica bachelardiana ao idealismo se seguem também contrarrazões às correntes materialistas predominantes no pensamento filosófico-científico. O materialismo clássico, diz Bachelard, procede de uma abstração preliminar e irrefletida, que consiste em presumir que a matéria se situa em um espaço determinado. Essa concepção dissocia o fenômeno em uma geometria da figura e em uma mecânica do movimento e da duração, atribuindo a essas naturezas "simples" uma realidade elementar, primeira. O materialismo ampliado, proposto por Bachelard, inspirar-se-á na microfísica para reassociar, na complexidade do fenômeno, a figura e o movimento, a matéria e a irradiação. Ao argumento atomista, segundo o qual é impossível supor um movimento sem alguma coisa que se mova, Bachelard responderá que não se pode imaginar uma coisa sem colocar alguma ação nessa coisa (ibidem, p. 121). A despeito de sua valorização do concreto, um materialismo pode seguir sendo abstrato se se contenta em considerar as coisas como objetos inertes. Não é possível separar a coisa de seu movimento: o fóton, sugere Bachelard, é uma coisa-movimento, ou por outra, um fóton imóvel não constitui uma realidade física. São os objetos que realizam o complexo espaço-tempo em que a natureza do fenômeno é dada. A consideração da energia, na física pós-newtoniana, ilustra essa conexão: não se trata, então, de perguntar não como a matéria recebe a energia, mas de saber como a energia pode revestir os caracteres da matéria. A energia une a coisa ao movimento, é por meio dela que "um movimento se torna uma coisa" (idem).

O pensamento científico contemporâneo não procede do simples para o complexo, mas, ao contrário, intenta divisar na complexidade do real, sob o caráter imediato e cabal da experiência, a trama de relações que a constitui. Não há substância simples porque a substância é uma contextura de atributos; não há ideia simples porque uma ideia simples deve, para se tornar inteligível, ser inserida em um sistema de pensamento. Apenas o estudo aprofundado do complexo permite intuir o simples. A intuição criadora dos pré-socráticos acerca da existência de um substrato material comum a todas as coisas é completamente invertida pela ciência do século XX. O novo espírito científico restitui aos fenômenos todas as suas qualidades e acidentes, e confere a este conjunto o mesmo estatuto ontológico dado ao que se presume ser a sua parte essencial. O desenvolvimento da física pós-newtoniana, coordenado com as aproximações sucessivas da experiência, que revelam ao cientista, sob a aparente unidade dos fenômenos, a complexidade infinitesimal que os constitui, promove ao mesmo tempo a retificação sucessiva das noções primeiras, abrangendo-as sob concepções cada vez mais complexas. A ciência, afirma Bachelard, simplifica o real e complexifica a razão (ibidem, p. 95).

A reformulação de noções básicas da física pela mecânica não newtoniana pôs em evidência a primazia do composto sobre o simples. A teoria de relatividade cindiu o conceito newtoniano de "massa" – cuja ideia se supunha corresponder a uma natureza "simples" –, ao afirmar que a massa de um corpo é função de sua velocidade. Essa mudança de perspectiva duplicou – tornou mais complexa – a noção de massa, obrigando a distinguir entre uma massa longitudinal, calculada ao longo da trajetória de um móvel, e uma massa transversal, calculada sobre uma reta normal à trajetória, como coeficiente de resistência à deformação dessa trajetória (ibidem, p. 114). A noção mesma de velocidade, por sua vez, acabou por ser abrangida pela noção mais complexa de "momento cinético". A propagação de um fluxo de eletricidade negativa colocou em questão a simplicidade com que a noção de velocidade era apreendida pelo senso comum, mostrando que, a despeito de sua aparente unidade, o fenômeno transcorre em duas velocidades diferentes: uma referente ao conjunto de partículas em deslocamento, outra referente à sequência de ondas. A realidade é ambígua: ondas e corpúsculos, integrados em um mesmo conjunto fenomênico, não são redutíveis um ao outro (ibidem, p. 116).

A nova filosofia científica rejeitará a tendência comum do materialismo clássico de considerar a matéria de um ponto de vista atemporal, idealista, como se nela pudesse enraizar-se a natureza imperecível de uma substância. Em contrapartida, ela acentuará a necessidade de construir uma teoria que, renunciando à pretensão de estabelecer uma verdade incondicional, correspondente à essência da coisa considerada em si e à parte de seus atributos secundários, incorporará tais atributos ao ser mesmo da coisa. Dessa transição do pensamento científico resultará a substituição das metafísicas intuitivas e imediatas, da filosofia científica anterior, por "metafísicas discursivas e objetivamente retificadas" (ibidem, p. 90). Noutras palavras, a nova teoria que, pondo de parte a busca da simplicidade irredutível das coisas, assumirá como seu objeto os conjuntos complexos que caracterizam os fenômenos irá configurar-se como um racionalismo aplicado, isto é, um racionalismo em processo de constante retificação, cujos princípios devem acompanhar os níveis de precisão alcançados na experiência, ao mesmo tempo que, desenvolvendo-se no campo da formulação teórica e matemática, devem renovar sucessivamente a pauta de experiências a realizar. O novo espírito científico apreende o real em sua complexidade original, à qual o diálogo permanente entre o raciocínio e a experiência vai atribuindo novos níveis de composição que aprofundam, na inteligência, a superficialidade da sensação; o dado imediato, na nova epistemologia, é o complexo, e a tarefa do cientista consiste em um esforço de simplificação, de depuração do fenômeno, que, entretanto, jamais se resolve numa verdade última, porque seu ponto de partida precisa ser continuamente retificado.

3

A ideia da unidade do ser, nascida com os filósofos pré-socráticos e enriquecida por variadas sistematizações ao longo da história da filosofia, não encontrará lugar na epistemologia bachelardiana. A esse respeito, Bachelard sustentará que a filosofia científica deve romper com a "tácita crença de que o ser é sempre o sinal da unidade" e elaborar princípios epistemológicos novos: para o cientista, o ser não é passível de ser apreendido "em bloco", nem pela razão nem pela experiência, e a síntese entre estas últimas, que caracteriza a certeza científica, é "móvel", sujeita a aperfeiçoamentos contínuos. O princípio da unidade do ser, tomado como intuição originária, não se coaduna com essa nova filosofia da ciência que, confrontando-se sempre com o indeterminado, não cessa de pôr em questão seus fundamentos.

Mas, se a epistemologia de Bachelard afirmará a anterioridade do complexo em relação ao simples, concebendo este último, não como elemento original, mas como produto de um processo de simplificação e retificação, ele poderá edificar sua poética sobre a doutrina dos quatro elementos fundamentais, não criados, e cujas imagens animam toda criação lírica. Aristóteles censurava aos pré-socráticos a perspectiva restrita sob a qual o ser era apreendido pela doutrina dos elementos, que não adjudicava senão uma causa material para as coisas existentes. Água, fogo, ar e terra constituíam a matéria pura ou combinada das coisas – dos homens e suas almas, das árvores e seus frutos, da luz e do sangue –, o substrato permanente sobre o qual se produziam as aflorações singulares do ser. A poética de Bachelard valorizará precisamente essa imperfeição apontada por Aristóteles e celebrará a materialidade das imagens inspiradas pelos elementos.

Ora, Bachelard fora persuadido a elaborar uma poética justamente ao tentar compreender a influência das imagens sobre o pensamento científico e deparar-se, nessa reflexão, com a irredutibilidade recíproca entre a epistemologia e a poética. A impossibilidade de considerar as imagens de um ponto de vista científico recomendara-lhe a tarefa de estudá-las em si mesmas, em seu "elemento" próprio. Com efeito, da mesma maneira que o racionalismo aplicado exigira do espírito científico a confrontação com a matéria e o conhecimento prático de sua resistência, o estudo da poética reclamará a adesão desarmada do filósofo à imaginação, sua disposição a deixar-se enredar pelas relações entre imagens, pelas analogias que derivam da criação deformadora da imaginação sobre as representações da sensação. Deslocados do campo epistemológico, onde atordoavam com suas imagens envolventes os cálculos do cientista, os quatro elementos da natureza serão, na poética de Bachelard, a matéria da poesia.

A poética materialista de Bachelard irá diferençar-se de sua epistemologia materialista justamente na medida em que a matéria desta última não pode ser imaginada. Ela não é objeto da sensação, sua existência é uma presunção estritamente racional. Se, na poética como na epistemologia, o ser é dado sempre sob a forma complexa das relações – de imagens, nas metáforas da poesia, de conceitos, nos princípios da ciência –, a imaginação, entendida como determinação figurada do real a partir das sensações, distinguir-se-á do pensamento científico não por seu caráter abstrato, desconectado por assim dizer das leis da matéria, mas, ao contrário, por sua dependência da materialidade, com referência à qual ela estabelece suas relações de sentido. No pensamento científico, a matéria não é uma grandeza primitiva, dada; sua realidade consiste não na sua substância, na sua natureza elementar, mas somente nas relações infinitesimais das quais ela é uma derivação complexa.

A ciência pós-newtoniana autonomizara-se da imaginação ao conquistar um grau de conhecimento da natureza que transcendia os limites da sensação, produzindo, assim, a inversão epistemológica que veio a conferir ao raciocínio matemático, capaz de deduzir relações entre grandezas, a precedência em relação à experimentação, isto é, aos métodos de sequenciamento das sensações e de coordenação das representações. A verdade poética, afirmada na imaginação, não pode ser pensada senão no terreno que lhe é próprio; noutros termos, a imaginação somente se dá a conhecer pela imaginação, pela dinâmica ativa da produção de imagens. A certeza científica, por seu turno, diz respeito ao que não pode ser imaginado, mas apenas pensado por meio de relações, ou seja, pensado em aplicação. Contudo, a experiência, tal como os modernos a concebiam, não será de todo destituída: mais que o "valor social da prova", ela facultará ao conhecimento a realização de sua virtude fundamental – a transmissibilidade, isto é, a sua conversão em valor intelectual comum.

Artigo recebido em 17/04/2013 e aprovado em 21/10/2013.

  • ARISTÓTELES. "Metafísica". São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Col. Os pensadores).
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  • BACHELARD, G. "A poética do espaço". São Paulo: Abril Cultural, 1978a. (Col. Os Pensadores).
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  • ______. "O materialismo racional". Lisboa: Edições 70, 1990.
  • ______. "A água e os sonhos". São Paulo: Martins Fontes, 1997.
  • ______. "A psicanálise do fogo". São Paulo: Martins Fontes, 2008.
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  • DAGOGNET, F. "Bachelard". Lisboa: Edições 70, 1980.
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  • NIETZSCHE, F. "A filosofia na época trágica dos gregos". Lisboa: Edições 70, 1987.
  • 1
    A principal crítica de Aristóteles a Tales diz respeito à insuficiência da causa material – a água, no caso de Tales, de acordo com sua interpretação – para a explicação do movimento visível na natureza. A expressão por meio da qual Tales concebia a natureza como algo vivo e animado – "o mundo está cheio de deuses" – parece tão alegórica e generalista quanto sua proposição sobre a água, mas não se confunde com o animismo antigo que atribuía o movimento das coisas aos espíritos que nelas habitavam. Tales descreve o real como uma totalidade que manifesta um poder de transformação que não é humano e que, por sua permanência, pela infinidade de suas variações e pela sua magnitude, deve ser considerado como algo divino.
  • 2
    Bachelard, De la nature du rationalisme,
    apud Dagognet, 1980, p. 27.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2014

    Histórico

    • Aceito
      21 Out 2013
    • Recebido
      17 Abr 2013
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