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Modelo: a noção síntese das concepções filosóficas de Boltzmann

Model: the core notion of Boltzmann's philosophical conceptions

Resumos

Esta introdução descreve os mais importantes dados biográficos da vida e da obra do físico teórico austríaco Ludwig Boltzmann (1844-1906). As principais contribuições científicas de Boltzmann situam-se nos domínios da teoria cinética dos gases e mecânica estatística, da qual ele foi um dos fundadores. A tese de que as teorias científicas são representações dos fenômenos naturais é encontrada em todos os artigos de Boltzmann. No verbete "modelo", ela é apresentada de modo mais organizado, o que o torna uma peça fundamental para a compreensão do pensamento filosófico do físico austríaco. O verbete, publicado na famosa enciclopédia Britannica, foi escrito para o público em geral. Ainda assim, Boltzmann não se eximiu de tomar partido em favor do uso de modelos. Estes últimos não apenas seriam inevitáveis, mas necessários, uma vez que tornavam possível o aperfeiçoamento contínuo da ciência.


This introduction describes the most important biographical details of the life and work of the Austrian theoretical physicist Ludwig Boltzmann (1844-1906). The main scientific contributions of Boltzmann can be found in areas such as the kinetic theory of gases and statistical mechanics, of which he was one of the co-founders. The thesis that scientific theories are representations of natural phenomena is found in all philosophical articles by Boltzmann. In the entry "model", published in the celebrated Encyclopedia Britannica, the thesis is presented in a more organized way, making it the keystone to understand the philosophical thought of the Austrian physicist. Although the entry was written for the general public, in it Boltzmann did not refrain from taking sides as far as the use of models is concerned. According to him, the latter would not only be inevitable, but in fact necessary, since they would made possible the continuous improvement of science.


DOCUMENTOS CIENTÍFICOS

Antonio Augusto Passos Videira

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Tecnológica, Brasil. guto@cbpf.br

RESUMO

Esta introdução descreve os mais importantes dados biográficos da vida e da obra do físico teórico austríaco Ludwig Boltzmann (1844-1906). As principais contribuições científicas de Boltzmann situam-se nos domínios da teoria cinética dos gases e mecânica estatística, da qual ele foi um dos fundadores. A tese de que as teorias científicas são representações dos fenômenos naturais é encontrada em todos os artigos de Boltzmann. No verbete "modelo", ela é apresentada de modo mais organizado, o que o torna uma peça fundamental para a compreensão do pensamento filosófico do físico austríaco. O verbete, publicado na famosa enciclopédia Britannica, foi escrito para o público em geral. Ainda assim, Boltzmann não se eximiu de tomar partido em favor do uso de modelos. Estes últimos não apenas seriam inevitáveis, mas necessários, uma vez que tornavam possível o aperfeiçoamento contínuo da ciência.

ABSTRACT

This introduction describes the most important biographical details of the life and work of the Austrian theoretical physicist Ludwig Boltzmann (1844-1906). The main scientific contributions of Boltzmann can be found in areas such as the kinetic theory of gases and statistical mechanics, of which he was one of the co-founders. The thesis that scientific theories are representations of natural phenomena is found in all philosophical articles by Boltzmann. In the entry "model", published in the celebrated Encyclopedia Britannica, the thesis is presented in a more organized way, making it the keystone to understand the philosophical thought of the Austrian physicist. Although the entry was written for the general public, in it Boltzmann did not refrain from taking sides as far as the use of models is concerned. According to him, the latter would not only be inevitable, but in fact necessary, since they would made possible the continuous improvement of science.

Em 20 de fevereiro de 1844, nasce, em Viena, então capital do Império Austríaco, Ludwig Eduard Boltzmann, um dos mais importantes físicos da segunda metade do século xix. Com importantes trabalhos em praticamente todas as áreas da física teórica de seu tempo, Boltzmann pode, talvez, ser visto como o maior responsável pela importância dada, desde o início da década de 1870, ao conceito de probabilidade e a necessidade de seu emprego no âmbito da física clássica. Boltzmann, em seus pioneiros trabalhos em teoria cinética dos gases e em mecânica estatística, foi um dos poucos físicos daquela época que coerentemente defendeu o uso daquele conceito, o qual, em suas mãos, relacionou-se definitivamente ao estado de organização de um sistema físico qualquer.

Boltzmann estudou física na Universidade de Viena entre 1863 e 1866, ano em que se doutorou; nessa universidade sofreu as influências de J. Stefan e J. Loschmidt, concretizada nas suas opções, mantidas por toda a vida, em favor do eletromagnetismo e do atomismo.

Após terminar seu doutorado e antes de estagiar em Berlim no laboratório dirigido por Hermann von Helmholtz, Boltzmann esteve, entre 1869 e 1873, na Universidade de Graz, como professor de matemática, seu primeiro posto acadêmico oficial. Retornou a essa cidade em 1876, sendo o responsável pela cátedra de física experimental até 1890. Durante sua segunda passagem por Graz, tornou-se membro da Imperial Academia Austríaca de Ciências (1885) e reitor daquela universidade (1887). Após sua saída de Graz, Boltzmann ocupou várias cátedras diferentes em cidades como Viena, Leipzig e Munique, tendo sido inclusive o primeiro ocupante de cátedras de física teórica em todo o mundo: Munique (1890) e Leipzig (1900).

Em 1894, Boltzmann encontrava-se de novo na Universidade de Viena para preencher o cargo de professor e diretor do Instituto de Física Teórica. Contudo, em 1900, insatisfeito com o nível do ambiente científico naquela cidade, partiu para a Universidade de Leipzig, onde ficou por pouco tempo. Retornando a Viena, em 1902, retoma a sua antiga cátedra, que se encontrava vaga, sob o compromisso, assumido junto ao governo austríaco, de instalar-se definitivamente na Universidade de Viena. Por vontade própria, ele acumula a cátedra de física teórica juntamente com a de filosofia da natureza.1 1 As notas e observações, que constituem o conteúdo das suas preleções, foram publicadas em 1990 pela editora alemã Springer Verlag. Nesse mesmo ano de 1902, foi publicado o verbete "Modelo" na décima primeira edição da Enciclopédia Britannica (cf. Videira, 1993).2 2 Poucos anos depois, em 5 de setembro de 1906, Boltzmann suicidou-se na vila de Duino, próxima à cidade de Trieste.

Na segunda metade do século xix, ao mesmo tempo em que se deixava impregnar pelas teses científicas maxwellianas, Boltzmann absorvia ideias filosóficas que reforçavam o seu credo de que toda e qualquer teoria científica nada mais é do que uma representação dos fenômenos naturais. O verbete deve ser entendido, portanto, como uma tentativa de apresentação, para o grande público, dessa concepção representacionista existente entre os físicos, bem como uma síntese das próprias ideias de Boltzmann sobre o assunto.

A tese de que as teorias científicas representam os fenômenos naturais é encontrada em todos os artigos de Boltzmann. No entanto, no verbete "Modelo", ela é apresentada de modo mais organizado, o que o torna uma peça fundamental para a compreensão do pensamento filosófico do físico austríaco.3 3 Além da relação entre a difusão do uso de modelos e o eletromagnetismo, discutimos (cf. Roque & Videira, 2013) as concepções de Boltzmann no contexto das definições de modelo usadas na virada do século xix para o século xx. Nesta apresentação, manterei o foco no verbete para entender as concepções epistemológicas de Boltzmann.

Foi através de Stefan que Boltzmann começou a interessar-se pelas teorias que disputavam entre si a capacidade de representar adequadamente os fenômenos elétricos e magnéticos, recebendo a recomendação explícita de estudar os trabalhos de Maxwell sobre o assunto. O contato precoce com os artigos e livros de Maxwell sobre o eletromagnetismo marcaram e inspiraram as concepções de Boltzmann. É ao eletromagnetismo, ou melhor, às ideias de Maxwell acerca desse domínio da física, que se deve o primeiro encontro ocorrido entre Helmholtz e Boltzmann. Em 1871, este último passou um mês em Berlim, trabalhando no laboratório de Helmholtz, onde realizou uma das primeiras experiências (nesse caso com constantes dielétricas), elaboradas para testar a validade das teses de Maxwell. Ao final do século xix, Boltzmann escreveu um dos primeiros manuais em alemão expondo a teoria eletromagnética do genial físico escocês, manual largamente utilizado pelos estudantes alemães e austríacos (cf. Boltzmann, 1891; 1893).

Outro domínio da física, nascido em pleno século passado, e que reuniu, dessa vez por correspondência epistolar, as figuras de Maxwell e de Boltzmann, foi a teoria cinética dos gases. Boltzmann ofereceu uma demonstração diferente daquela de Maxwell para a distribuição de velocidades das moléculas presentes em um gás. Como pode ser constatado por essas cartas, havia uma série de dificuldades teóricas concernentes aos estilos de trabalho desses dois físicos e que geraram diûculdades de compreensão entre eles, tendo Maxwell abandonado a leitura dos artigos de Boltzmann por considerá-los longos, difíceis e prolixos. Por sua parte, Boltzmann considerava que o estilo de Maxwell era excessivamente sucinto, o que dificultava seguir todos os passos do raciocínio do físico escocês.

Além de Maxwell, uma segunda influência notável sobre Boltzmann foi exercida pelas teses defendidas por Charles Darwin. Ao adotar o darwinismo, Boltzmann não teve como intenção elaborar uma filosofia sistemática da física, nem da ciência. A perspectiva darwinista encontra-se explícita no desenvolvimento das principais contribuições de Boltzmann, tais como o princípio do pluralismo teórico e sua crítica às leis a priori do pensamento. No final de sua vida, a partir do momento em que ocupou a cátedra de filosofia da natureza em Viena, pôs-se a buscar o estabelecimento de uma relação coerente e fecunda entre a filosofia e a ciência.

Os temas que, em grande parte, podem ser classificados como filosóficos não foram incluídos em seus artigos e livros, mas apresentados em ocasiões diversas como palestras para seus pares, elogios fúnebres a colegas falecidos e conferências inaugurais de algumas das cátedras que ocupou. Embora respeitasse a filosofia, o objetivo de Boltzmann era evitar o comportamento dos assim chamados "metafísicos", "filósofos puros" ou "profissionais". Para o físico teórico, Kant, Hegel e Schopenhauer - seus principais alvos - eram exemplos do tipo de filósofo e de sistemas que provocavam sua aversão pela filosofia. Outra explicação para realizar intervenções filosóficas nas ocasiões acima referidas era a audiência diversificada. Os temas abordados deveriam ser de apreciação e compreensão públicas, fazendo valer a atitude antidogmática e pluralista.

Boltzmann participou ativamente do movimento de revisão dos fundamentos e dos conceitos da física, acompanhando colegas como Helmholtz, Heinrich Hertz, Ernst Mach, Pierre Duhem, William Ostwald, Gerard Helm, Henri Poincaré, entre outros. Em particular, o físico austríaco não economizou esforços para defender a permanência de modelos e teorias elaborados explicitamente a partir da mecânica clássica, apesar da conhecida dificuldade enfrentada por ese domínio da física em funcionar como fonte para a formulação de conceitos interpretativos da então nova teoria eletromagnética de Maxwell.

Também o atomismo fora objeto de fortes suspeitas, pois as bases da física estavam abaladas. Enquanto partidário da mecânica clássica, da sua visão de mundo e do atomismo, Boltzmann precisou elaborar e defender seus próprios pontos de vista diante das críticas que suas teorias científicas favoritas estavam recebendo. Suas concepções epistemológicas nasceram para resolver esses problemas, bem como para promover uma transformação nos modos de fazer-se filosofia, reaproximando-a da ciência natural.

Discutiremos, brevemente, os motivos que levaram Boltzmann, em sua defesa do atomismo, a privilegiar argumentos de natureza epistemológica antes que argumentos estritamente científicos. Sua defesa decorre, mesmo que parcialmente, da confusão que reinava nas ciências naturais a respeito do que caberia a uma teoria física. Qual deveria ser o autêntico objetivo? Explicar ou descrever os fenômenos naturais? E ainda, de que modo a questão a respeito da existência dos átomos favorecia, ou prejudicava, esse objetivo? A defesa do atomismo elaborada por Boltzmann foi independente de uma determinação do conteúdo científico do átomo, uma vez que ele percebia que o conceito de átomo passaria, muito provavelmente, por modificações no seu conteúdo científico. Por exemplo, ele não considerava, como sendo uma propriedade definitiva dos átomos, a imutabilidade ou indestrutibilidade, que era então atribuída a eles. Não obstante essa possibilidade, ele também afirmava que essas mesmas modificações, provavelmente, não seriam capazes de conduzir a uma eliminação (definitiva) do átomo e do atomismo. Aos olhos de Boltzmann, a eliminação do atomismo, defendida por pessoas como Ostwald e Mach, não era fundamentada em argumentos científicos. Para ele, os pesquisadores que não aceitavam a presença do atomismo nas ciências naturais faziam-no por motivos epistemológicos, metafísicos, ontológicos etc. Em outras palavras, já que inexistiam argumentos científicos para tanto, a eliminação correspondia a um ato dogmático. Para Boltzmann, tal ato seria ainda mais grave, pois ele mesmo havia direcionado suas reflexões epistemológicas de acordo com uma concepção pluralista de ciência. Dito isto, pode-se afirmar que o átomo, para Boltzmann, além de possuir um valor científico, o qual poderia garantir o seu emprego na ciência (não nos esqueçamos de que Boltzmann sempre foi partidário da teoria cinética dos gases), possuía, igualmente, um valor epistemológico. Era precisamente esse valor epistemológico que dava forças a Boltzmann em sua "batalha" contra os energetistas e outros adversários do atomismo. Vale a pena observar que o físico austríaco, em sua disputa com os energetistas, somente considerou aqueles de língua alemã. Até onde se sabe, ele nunca se ocupou das críticas do físico e filósofo da ciência francês Pierre Duhem (1861-1916). Assim, parece-nos compreensível que Boltzmann não possuísse, na virada do século xix para o xx, clareza suficiente para poder afirmar que características científicas o (novo) átomo teria.

As questões sobre os objetivos de uma teoria física requeriam crítica e inquirição de cunho filosófico, mas a filosofia não era bem vista pelos cientistas, embora, segundo Boltzmann, muitos tenham sido seduzidos por ela (cf. Boltzmann, 2004, p. 159). Os principais motivos desta aversão eram o dogmatismo metafísico e a atitude hostil e destrutiva dos filósofos em relação aos sistemas de seus predecessores e contemporâneos. Para Boltzmann, naquele momento de crise, em que as bases da física estavam abaladas, essas características eram as últimas coisas de que a ciência precisava. Apesar disso, à luz de Darwin, ele observou que o filosofar possuía um caráter instintivo, algo que parecia "inevitavelmente inato" e mesmo inescapável. Uma vez que filosofar era preciso, como Boltzmann escapou ao dogmatismo? E, principalmente, como aplicar concepções de cunho filosófico para justificar a manutenção do mecanicismo e do atomismo na física?

O incômodo de Boltzmann concernia não apenas à questão da existência das coisas, como também a intolerância epistêmico-metodológica em relação a determinadas teorias. Ambas as posições poderiam levar ao dogmatismo, o qual se tornaria um obstáculo ao progresso da ciência. O princípio do pluralismo teórico - um mesmo fenômeno natural pode ser diferentemente explicado por teorias científicas distintas e mesmo contraditórias entre si - , também defendido por Maxwell, e a crítica às leis a priori do pensamento - oposição à ideia de uma adaptação fixa e definitiva das representações mentais e a convicção de que essas imagens são frutos do processo biológico evolutivo - são os elementos principais de sua resposta.

Do ponto de vista do pluralismo teórico, nenhuma teoria ou método científico, ao procurar alcançar a aceitação hegemônica da comunidade científica, deveria excluir as demais teorias. Tal exclusão é inerentemente dogmática e poderia levar ao empobrecimento do empreendimento científico. Apoiado na noção darwiniana de competição e coexistência entre as espécies, o pluralismo teórico defende ser necessário que haja uma competição, semelhante àquela existente nos mundos animal e vegetal, entre as diferentes teorias. Além disso, Boltzmann acreditava que o progresso científico seria realizado graças à coexistência de várias teorias que garantissem aos cientistas a possibilidade de construir representações, talvez mais adequadas que as antigas (cf. Videira, 2006, p. 273). Tendo em vista a ameaça de o atomismo ser eliminado, Boltzmann recorreu ao pluralismo para sustentar que o reconhecimento dos limites científicos de uma teoria não implicaria imediata e necessariamente sua exclusão do domínio da ciência (cf. Videira, 2006, p. 273).

Para Boltzmann, não poderia ser nossa tarefa submeter ao juiz supremo de nossas leis mentais aquilo que é dado, mas sim adaptar nossos pensamentos, conceitos e representações àquilo que é dado (cf. Boltzmann, 2004, p. 173). O ponto de vista do apriorismo redundou em contradições insuperáveis e afirmações não fundamentadas (Boltzmann pensava nas antinomias de Kant), além de não proporcionar à filosofia qualquer crédito pela realização de descobertas úteis e verdadeiras sobre a natureza (cf. Videira, 2005, p. 233). Logo, era preciso enfraquecer o apriorismo das leis do pensamento, ao mesmo tempo em que se fazia relevante a defesa da posição de que o resultado final da prática científica encontrava-se nos modelos.

Boltzmann considerava que certas ideias ou leis do pensamento participam da forma como o homem compreende tanto o mundo quanto a vida, mas aquilo que poderia ser chamado de a priori boltzmaniano tem caráter histórico-natural, sua força provém da transmissão biológica de geração em geração, e não há como escapar ao confronto com a experiência.

O fundamental, segundo Boltzmann, é que "nós não temos o direito de querer derivar a natureza a partir dos nossos conceitos, mas, sim, de adequar os últimos à primeira" (Boltzmann, 2004, p. 173). Ao enfatizar a necessidade de confrontar as representações herdadas com os fatos, Boltzmann estava estabelecendo critérios intersubjetivos tanto para a filosofia, quanto para a ciência.

O verbete, cuja tradução é apresentada em seguida, pode ser considerado como a mais organizada exposição das ideias de Boltzmann sobre a representação. Havia pelo menos uma década, ou seja, desde 1892, que Boltzmann defendia uma concepção de teoria científica como modelo. Essa concepção era profundamente inspirada pelas teorias eletromagnéticas da segunda metade do século xix, em particular, pelos trabalhos de Maxwell, o qual, apesar de jamais ter renunciado à tese de que seria possível formular uma interpretação mecânica para o eletromagnetismo, sustentava que nenhuma teoria poderia almejar conhecer as essências dos fenômenos naturais. O reconhecimento da presença de um "fosso" intransponível entre o cientista e a realidade implicava a renúncia a toda e qualquer tentativa de compreender as teorias científicas como reproduções exatas dos fenômenos naturais observados. Em outras palavras, não haveria meios de evitar a conclusão de que as correspondências entre a teoria e a realidade seriam, no máximo, parciais.

Ainda que o verbete tenha sido escrito para o público em geral - portanto, para um público que, em princípio, desconheceria a existência de debates a respeito dos fundamentos da ciência natural - , Boltzmann não se eximiu de tomar partido, de forma clara e contundente, em favor do uso de modelos. Estes últimos não apenas seriam inevitáveis, mas necessários, uma vez que tornavam possível o aperfeiçoamento contínuo da ciência. Como estratégia concebida para defender a positividade dos modelos, Boltzmann, no texto do verbete, menciona os nomes de Helmholtz, Mach e Hertz como exemplos de físicos renomados que defenderam que os pensamentos representam coisas assim como os modelos representam objetos. Associa-se um conceito a cada coisa, mas sem implicar uma similaridade completa entre a coisa e o pensamento (o que distingue os conceitos dos modelos concretos).

No verbete, talvez para garantir a sua consistência epistemológica, Boltzmann limitou-se a mostrar a inevitabilidade dos modelos e a tal ponto que ele parece querer que seu leitor conclua que fazer ciência seria nada mais nada menos do que construir modelos. Ele deixa de lado questões relativas ao modo como se elabora um modelo, ou ainda à escolha entre modelos concorrentes. Seu comportamento é compreensível, pois, afinal, como resolver uma disputa filosófica quando predomina a incerteza com relação ao que deve ser entendido como o mais fundamental?

  • Boltzmann, L. Escritos populares Tradução, seleção e organização de A. A. P. Videira. São Leopoldo: Unisinos, 2004.
  • _____. Vorlesungen über Maxwells Theorie der Elektricität und des Lichtes. Lepizig: Barth, 1891. v. 1, Ableitung der Grundgleichungen für ruhende, homogene, isotrope Körper.
  • _____. Vorlesungen über Maxwells Theorie der Elektricität und des Lichtes. Leipzig: Barth, 1893. v. 2, Verhältnis zur Fernwirkungstheorie; specielle Fälle der Elektrostatik, stationären Strömung und Induction.
  • Roque, T. & Videira, A. A. P. A noção de modelo na virada do século xix para o século xx. Scientiae Studia, 11, 2, p. 281-304, 2013.
  • Videira, A. A. P. Boltzmann - um físico-filósofo. Ciência Hoje, 16, 96, p. 44-9, 1993.
  • _____. Boltzmann, Darwin e as leis do pensamento. Revista Portuguesa de Filosofia, 61, p. 228-45, 2005.
  • _____. Boltzmann, física teórica e representação. Revista Brasileira de Ensino de Física, 28, 3, p. 269-80, 2006.
  • Modelo: a noção síntese das concepções filosóficas de Boltzmann

    Model: the core notion of Boltzmann's philosophical conceptions
  • 1
    As notas e observações, que constituem o conteúdo das suas preleções, foram publicadas em 1990 pela editora alemã Springer Verlag.
  • 2
    Poucos anos depois, em 5 de setembro de 1906, Boltzmann suicidou-se na vila de Duino, próxima à cidade de Trieste.
  • 3
    Além da relação entre a difusão do uso de modelos e o eletromagnetismo, discutimos (cf. Roque & Videira, 2013) as concepções de Boltzmann no contexto das definições de modelo usadas na virada do século xix para o século xx. Nesta apresentação, manterei o foco no verbete para entender as concepções epistemológicas de Boltzmann.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
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